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1. Transições e transcrições: caminhos da cultura arquitectónica Em Lisboa, nas primeiras décadas do século XX, estavam em cons- trução diversos projectos de casas unifamiliares burguesas, o que representava uma das encomendas mais comuns entre arquitectos e conductores de obras. A habitação unifamiliar constituía uma experiência arquitectónica significativa, não só pela qualidade do dispositivo espacial da grande casa burguesa, ajustado ao desejo de sumptuosidade e de qualificação moderna do habitar dos seus clientes, mas também pela introdução no projecto e no discurso arquitectónico de uma diferente ideia de casa, genericamente reconhecida pela sua contenção e racionalidade. Esta «outra casa», embora cingida nas dimensões e limitada no orça- mento, dispunha-se a reelaborar a experiência espacial dos mestres na edificação da grande habitação, estando sujeita a inéditos critérios de serialização dos processos de projecto no atelier e de construção na obra. No virar do século, com esta «outra casa» que designaremos de produção corrente, inaugurava-se uma distinta racionalidade arquitec- tónica, do espaço e dos modos de habitar, que coexistia com a grande casa burguesa. O seu projecto registava novas regras e adequava os dispositivos espaciais extensos e complexos a programas mais redu- zidos e económicos. A sua realização iria possibilitar à burguesia uma alternativa ao palacete urbano, que, contudo, sem ter uma intenção substitutiva de um pelo outro, foi sinal indelével do seu tempo, acom- panhando a alteração do estilo de vida dos seus habitantes. A arquitectura no início do século XX é ecléctica, transformando- se num campo disponível para a afirmação de diferentes tendências e gostos que vão germinando nas construções então realizadas. «Produções correntes» em arquitectura: a porta para uma diferente gramática do projecto no início do século XX RUI RAMOS * —————————— * Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. nw noroeste. revista de história, 2005,1 53-80 RAMOS, Rui J. G., "«Produções correntes» em arquitectura: a porta para uma diferente gramática do projecto do início do século XX", NW noroeste. Revista de História, nº 1, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, 2005, p.53-80 [Universidade do Porto, Faculdade de Arquitectura]

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1. Transições e transcrições:caminhos da cultura arquitectónica

Em Lisboa, nas primeiras décadas do século XX, estavam em cons-trução diversos projectos de casas unifamiliares burguesas, o querepresentava uma das encomendas mais comuns entre arquitectos econductores de obras.

A habitação unifamiliar constituía uma experiência arquitectónicasignificativa, não só pela qualidade do dispositivo espacial da grandecasa burguesa, ajustado ao desejo de sumptuosidade e de qualificaçãomoderna do habitar dos seus clientes, mas também pela introdução no projecto e no discurso arquitectónico de uma diferente ideia decasa, genericamente reconhecida pela sua contenção e racionalidade.Esta «outra casa», embora cingida nas dimensões e limitada no orça-mento, dispunha-se a reelaborar a experiência espacial dos mestres na edificação da grande habitação, estando sujeita a inéditos critériosde serialização dos processos de projecto no atelier e de construção naobra. No virar do século, com esta «outra casa» que designaremos deprodução corrente, inaugurava-se uma distinta racionalidade arquitec-tónica, do espaço e dos modos de habitar, que coexistia com a grandecasa burguesa. O seu projecto registava novas regras e adequava os dispositivos espaciais extensos e complexos a programas mais redu-zidos e económicos. A sua realização iria possibilitar à burguesia umaalternativa ao palacete urbano, que, contudo, sem ter uma intençãosubstitutiva de um pelo outro, foi sinal indelével do seu tempo, acom-panhando a alteração do estilo de vida dos seus habitantes.

A arquitectura no início do século XX é ecléctica, transformando-se num campo disponível para a afirmação de diferentes tendências egostos que vão germinando nas construções então realizadas.

«Produções correntes» em arquitectura:a porta para uma diferente gramática

do projecto no início do século XXRUI RAMOS *

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* Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.

nw noroeste. revista de história, 2005,1 53-80

RAMOS, Rui J. G., "«Produções correntes» em arquitectura: a porta para uma diferente gramáticado projecto do início do século XX", NW noroeste. Revista de História,nº 1, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho, 2005, p.53-80[Universidade do Porto, Faculdade de Arquitectura]

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A mistura de influências com origem na livre e académica adopçãodos estilos, com um gosto pitoresco (por vezes de raiz internacional quedeterminava o aparecimento dos chalets e dos châteaux 1), produz umaarquitectura híbrida. Este fenómeno romântico marca a habitação uni-familiar e, adequando-se à realidade portuguesa, influenciará a nossacondição arquitectónica 2 do início até meados do século XX.

As obras realizadas neste período por Nicola Bigaglia (?-1908),José Alexandre Soares (1873-1930), Álvaro Machado (1874-1944), JorgeP. L. de Alfredo d’Ascensão Machado (1857-1926), Adães Bermudes(1864-1948), Leonel Gaia (1871-1941), Francisco Carlos Parente (1872--1924), José Alexandre Soares (1873-1930), Manuel J. Norte Júnior(1878-1962), Ernesto Korrodi (1889-1944), António Couto, Rafael Duartede Melo, entre muitos outros, podem ser um exemplo da situação entãovivida na edificação da habitação burguesa, onde a variabilidade domodelo adoptado e dos seus matizes difíceis de classificar, correspon-dem também a circunstâncias como o tipo de cliente, o local da obra eo seu destino (habitação própria ou arrendamento).

Neste tempo é necessário distinguir as obras de Miguel VenturaTerra (1866-1919) e de Raul Lino (1878-1974). O requinte da casa doCipreste, realizada por Raul Lino entre 1907 e 1913, só pode ser con-frontado com algumas das casas de Ventura Terra, como a casa Vis-conde de Valmôr, projectada em 1905. Embora esta obra seja deinfluência clássica e Ventura Terra um forte crítico da argumentação deRaul Lino a favor da Casa Portuguesa, no desenvolvimento do pro-grama da habitação unifamiliar detecta-se uma mesma atenção ao processo de fazer arquitectura 3, partilhando uma mesma preocupaçãorelativa à intervenção no sítio, à paisagem, à construção e à planta,como instrumento essêncial na realização dos aspectos funcionais do

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1 STOOP, Anne, «Algumas casas românticas em Sintra», Romantismo -Sintra nos ite-nerários de um movimento, vol. 2, Instituto de Sintra, 1988, p. 215-233 [comunicações aoI Congresso Internacional de Sintra sobre o Romantismo, 1986].

2 Paulo Pereira constata, de forma notável, esta inclusão de tempo passado, oséculo XIX, no desenvovimento do século XX, atribuindo a esta condição a essência dacultura e da arte em Portugal: «(…) o século XIX mantém o seu balanço epocal até muitotarde. Os progressos da revolução industrial, tímida e tardia, parecem meras importaçõesfomentistas sem que traduzam uma modificação do tecido essencialmente rural do país.Nas artes, o tradicionalismos e o conservadorismo são de tal modo pesados e inerciais quese pode afirmar, sem receio de errar, que os traços do gosto oitocentista, ao nível da educaçãodas artes e do consumo, se mantêm até cerca de 1960… O século XIX é, de facto, o séculomais longo da história portuguesa.» PEREIRA, Paulo, 2000 anos de arte em Portugal, Temase Debates e Autores, Lisboa, 1999, p. 319

3 Aspecto já salientado por Raquel Henriques da Silva. SILVA, Raquel Henriques da, «A «Casa Portuguesa» e os Novos Programas, 1900-1920», in A. Becker, A. Tostões, W.Wang (org.), Portugal Arquitectura do Século XX, Prestel, 1997, p. 18

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programa: «Esta constatação problematiza positivamente a questão da«casa portuguesa», permitindo considerar que por volta de 1900, tanto o gosto culturalista do primeiro [Lino], como o paradigma progressista do segundo [Terra] se encontravam, com naturais diferenças de estilo,abertos à reflexão sobre as necessidades da casa moderna.» 4

Apesar das significativas diferenças, os protagonismos de VenturaTerra e Raul Lino (um de formação clássica filiada na academia fran-cesa e portadora de uma visão cosmopolita traduzida em termos deintervenção sócio-cultural e política, e o outro romântico de influênciagermânica e anglo-saxónica, interessado em conhecer o seu país e assuas raízes para a afirmação da identidade nacional), introduzem emPortugal um vector de modernidade na produção arquitectónica aindaagendada pela força do século passado. Ao reagrupamento cultural quemarcava a passagem de século, do eclectismo ao pitoresco, Terra e Linosouberam, por vias e em ritmos distintos, interpretar a sua formação,

Casa do Cipreste, planta, Raul Lino, 1907-1913

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4 Ibid.

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propondo não só um novo gosto, mas também uma diferente forma de fazer arquitectura.

Aliás será contra os insuportáveis revivalismos, que de forma alea-tória eram servidos como contraproposta aos estilos importados, sobre-tudo de influência francesa, que Raul Lino formula uma alternativaarquitectónica nacional, sintetizando o debate do seu tempo em tornoda genuína Casa Portuguesa. Apesar da acção de Raul Lino ser incon-dicionalmente antimoderna, as suas primeiras obras apresentam deforma paradigmática, características disciplinares inovadoras, quetrouxeram para a casa uma espacialidade modernizante na época,assente numa nova e radical forma de entender o tempo doméstico. O seu trabalho como arquitecto de casas como Monsalvat e doCipreste 5, estabelece uma dissociação fundamental com a sua inter-venção enquanto agente doutrinador empenhado na estilização e divul-gação da Casa Portuguesa 6, tema que continuará a inquietar o debatearquitectónico até 1970 7.

Apesar da análise arquitectónica da obra inicial de Raul Lino, con-firmar a presença de aspectos seminais da concepção espacial mo-derna 8, verifica-se a não incorporação desta experiência pela geraçãode arquitectos modernos na sua tradição, problema significativo eamplo no tempo. O facto de Raul Lino não ter tido discípulos, a par dacontestação coesa dos arquitectos motivada pela exposição retrospec-

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5 Ao longo do texto os nomes dos projectos a «bold» indicam que se encontramdocumentados com ilustrações.

6 A acção de Raul Lino em organismos oficiais (em 1947 é Vice-Presidente da Aca-demia Nacional de Belas-Artes e em 1967 seu Presidente, tendo sido em 1949 Directordos Monumentos Nacionais) parece ter-se regido por uma forte imposição das suas ideiascom alguma contundência. Tal facto é relatado por alguns arquitectos no documentárioRaul Lino, realizado por Cristina Antunes (RTP, 1999), e igualmente salientado por NunoPortas ao referir ser necessário fazer-se um estudo «dos inúmeros pareceres que, em dife-rentes representações, teve que dar nas últimas décadas, na medida em que nas cadeias deinformação oficiais, como nas decisões de júris, se decide arquitectura, directa ou indirec-tamente.» PORTAS, Nuno, «Raul Lino: uma interpretação crítica da sua obra de arqui-tecto e doutrinador», Colóquio, 61, Lisboa, 1970, p. 20.

7 Ibid., p. 14.8 Sobre a caracterização dos dispositivos espacias modernos na arquitectura

doméstica ver: RAMOS, Rui, A Casa Unifamiliar Burguesa na Arquitectura Portuguesa:mudança e continuidade no espaço doméstico na primeira metade do século XX, Disser-tação de Doutoramento em Arquitectura apresentada à Faculdade de Arquitectura daUniversidade do Porto, 2004 [policopiado]. E sobre a presença desses dispositivos na obra de Raul Lino ver: ALMEIDA, Pedro Vieira de, «Raul Lino, Arquitecto Moderno», inRaul Lino. Exposição Retrospectiva da sua Obra, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,1970, p. 115-188.

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tiva da sua obra 9, independentemente do seu óbvio cunho emocional epolítico, manifesta tanto o não relacionamento dos arquitectos com asua figura, como a dificuldade em aceitarem a experiência da sua obrarelevante, como parte do processo histórico, isto é, não só como umapercepção do passado mas também como a sua presença 10.

O constrangimento dos arquitectos na aceitação da experiênciainovadora da obra inicial de Raul Lino até 1970, permite também dis-tinguir a importância e significado dos gestos de modernidade pre-sentes na obra de Ventura Terra. A influência para a sua geração egerações seguintes, quer como arquitecto social e politicamente activo,quer através da sua obra, nomeadamente através da produção corrente,permite-nos considerar a sua reavaliação na cultura arquitectónica por-tuguesa no início do século.

A síntese de Ventura Terra, como refere Paulo Nunes, apresenta-secomo uma introdução da arquitectura moderna portuguesa e das suaspróprias circunstâncias, que importa atender numa leitura coetâneacom experiência similar da arquitectura europeia e norte americana 11.A sua obra é marcada, não só pela produção de grandes casas bur-guesas, de postura ecléctica e classizante, com um vigor cosmopolita

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9 FRANÇA, José-Augusto, RIO-CARVALHO, Manuel, ALMEIDA, Pedro Vieira de,PIMENTEL, Diogo L. (org.), Raul Lino. Exposição Retrospectiva da sua Obra, FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa, 1970

10 ELIOT, T. S., «A tradição e o talento individual», in J. Monteiro-Grillo (ed.),Ensaios de Doutrina Crítica, Guimarães Editores, Lisboa, 1997, p. 21-32

11 NUNES, Paulo Manuel Simões, A Construção Moderna e a cultura arquitectónicano início de Novecentos em Portugal, Dissertação de Mestrado em Teorias da Arte pelaFaculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2000, [policopiado]. RAMOS, Rui, op. cit.

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Palacete Mendonça, corte, VenturaTerra, 1909

Casa J. J. da Silva Graça, corte, VenturaTerra, 1905-1907

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inédito e espacialmente sofisticado, mas também, como veremos, poruma produção corrente do seu atelier que realiza um vasto números deprojectos inovadores na racionalidade da sua concepção 12.

A casa J. J. da Silva Graça e o Palacete Mendonça representama grande casa burguesa que Ventura Terra executava com grande mes-tria. No primeiro exemplo, trata-se de uma construção sobre a rua,

edificando um gaveto, e no segun-do de um palacete rodeado poruma grande propriedade. Situa-ções diferentes, que apesar dasdiferentes opções de estilo, de in-fluência Beaux-arts e origem fran-cesa, são submetidas à mesmaorganização da planta de eixo cen-tral. Destaca-se o grande espaçodo átrio central como elementoaglutinador da composição, ser-vida por uma detalhada elabora-ção espacial, que dá resposta àsofisticação do programa e mecâ-nica funcional, com a presença denovos equipamentos e soluçõesconstrutivas.

Estas duas casas, pela sua complexidade e extensão, aproximam-sede grandes máquinas de habitar, baseadas na imponência como estra-

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12 Pedro Vieira de Almeida ao analisar a obra de Raul Lino dá-nos as coordenadasdo que é ser moderno na transição do século, permitindo conjugar esse entendimentosobre a obra de Ventura Terra, como aliás também tem vindo a ser apontado por RaquelHenriques da Silva. Assim poderemos referir: Ventura Terra, arquitecto moderno?

Casa José Maria Posser de Andrade,planta piso 1, António Couto, 1913

Casa José Maria Posser de Andrade, detalhes, António Couto, 1913

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tégia de representação social, sujeitas também a imperativos oitocen-tistas de higiene baseados na separação das tarefas, tipo de produtos,momentos de execução e abundância de água — sem interferir aindana lógica da própria concepção do espaço funcional, como veremos nas décadas seguintes. Não são casas determinadas pela modernaminiaturização funcional do espaço, mas sim referenciadas ao trabalhodoméstico intensivo, gerador de grandes espaços detalhadamente pre-vistos para o serviço de muitos empregados.

Entre as inúmeras grandes casas burguesas que na época se rea-lizaram, podemos ainda distinguir a casa José Maria Posser de An-drade, de António Couto, em que o programa doméstico comumcontem soluções particulares, provenientes de outra experiência in-fluente na sua época com origem na English free architecture 13.

Trata-se de uma vasta habitação organizada em redor de um pátiocentral ocupado por um jardim, o que determina uma planta em formade U. O seu programa e tradução espacial apresentam característicasparticulares e invulgares nas casas então construídas, sendo a mais evidente, a sistematização da articulação entre compartimentos atravésde um corredor e a simplificação desses mesmos procedimentos sócio-espaciais.

Este projecto apresenta uma organização espacial e funcional quenão corresponde a estritos princípios de composição classizante, comoa simetria ou a centralidade da circulação vertical, do acesso e do átriocentral; pelo contrário, parece tentar encontrar uma lógica própria de responder a um programa extenso, estabelecendo a sua hierarquiade relações espaciais internas, e de adaptação ao terreno e ao sítio.Verifica-se que são os espaços sociais e os espaços privados a ocupa-rem o lugar central na composição da casa, ao contrário dos dois exem-plos anteriores onde o átrio e os espaços de circulação, nomeadamentea escada principal, constituem argumentos estruturais do espaçodoméstico.

Estas casas representam a grande habitação burguesa, que terá oseu contraponto na produção corrente de inúmeros projectos, publi-cados nas revistas da especialidade, de casas sujeitas a outro registoespacial e socioeconómico, manifestando tanto a disponibilidade daburguesia para encomendar uma edificação mais contida, como a dosarquitectos para acolherem a sua realização.

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13 Ver prefácio de Julius Posener à primeira edição inglesa (1975) da obra de Her-mann Muthesius, Das englische Haus (Berlim, 1904-1905).

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2. Ser burguês e a condição de ser moderno

Esta «outra casa» estabelece não só a oportunidade de conter esimplificar o programa da casa burguesa, mas também de defrontarnovos problemas sociais, como a organização da privacidade e o papelda mulher. No início do século, a afirmação de uma nova burguesiaurbana passa pela necessidade de edificar residência, que apesar dapequena dimensão, é um elo fundamental da representação social, eonde irá expor (mais do que assumir) os recentes paradigmas do «con-forto» chegados do estrangeiro, recorrendo aos novos materiais, tecno-logias e sistemas de decoração, de acordo com uma economia deconsumo emergente.

Contudo, julgamos que a fabricação desta «outra casa» é sobretudouma oportunidade de ajuste às novas realidades societais e de mercado,e nunca o advento de uma transformação moderna, como já firme-mente se esboçava na sociedade europeia. Apesar desta iniciativa deactualização da casa, do seu espaço doméstico e possibilidade de repre-sentação, a nossa burguesia é avessa a verdadeiras transformações, eincapaz de assumir a aliança entre tradição e progresso, e de compre-ender que o revivalismo estava já condenado no seu tempo 14.

Em Portugal, se este processo encetado pela burguesia mantémsemelhanças com expressões europeias no assumir da herança doséculo XIX, com o qual esboça linhas de continuidade e de inovação,terá com certeza uma imensa dificuldade de libertar-se dela em todosos planos da sociedade 15. A construção da modernidade em Portugal, é fenómeno pontual e minoritário, porque nunca abraça (ou não podeabraçar) uma utopia de transformação social, ou seja, nunca foi umprojecto que ultrapassasse o domínio da iniciativa pessoal, e que alcançasse uma dimensão colectiva e institucional como propósito da melhoria das condições degradadas de vida da sua população 16.

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14 Diversos investigadores como José-Augusto França, Nuno Portas, Pedro Viera deAlmeida, Paulo Pereira, Paulo Varela Gomes ou Lucília Verdelho da Costa, entre outros,apontam a falta de iniciativa e perspectiva da burguesia, genericamente pouco culta,diminuta e com poucos recursos. Para uma ampla leitura deste condição na transfor-mação do espaço doméstico ver: RAMOS, Rui, op. cit.

15 Entre outros, José-Augusto França observa essa mesma inércia bloqueadora daburguesia em encetar um projecto de sociedade. Para uma ampla e profunda observaçãoda sociedade portuguesa no século XIX ver: FRANÇA, José-Augusto, O Romantismo emPortugal: estudo de factos socioculturais, (1974), Livros Horizonte, Lisboa, 1993.

16 É uma situação de miséria que podemos constatar em Portugal nos anos trintae quarenta, com os dados fornecidos pelo Inquérito à habitação rural, publicado nos doisprimeiros volumes em 1943 e 1947. BASTO, E. A. Lima, BARROS, Henrique, Inquérito àhabitação rural, vol. I, Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1943 [Minho, Douro-

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As obras mais emblemáticas do modernismo, como o InstitutoSuperior Técnico (Pardal Monteiro, 1925-1941) e o conjunto que éedificado em seu redor, são obras circunscritas a uma cenografiaestatal 17. A modernidade edificada em Portugal na primeira metade doséculo XX foi, na sua generalidade, revivalista de um século XIX, nuncaconseguindo alcançar uma pertinência formal por via de uma indus-trialização não existente, tratando-se sempre de fenómeno eminente-mente visual. A construção doméstica em registo modernista é rea-lizada em alvenaria de pedra (com excepções no uso do betão, como a verificada na casa para o engenheiro Bélard da Fonseca, de Cristinoda Silva, em 1930), o que não permite o abandono da parede espessapara a liberdade espacial (promenade architectural), ou a abertura degrandes vãos (fenêtre à longueur), argumentos definitivos da nova lin-guagem. A modernidade é assim e sobretudo um estilo 18, que por vezesé alternado com outros de cariz oitocentista, de tradição romântica,realizado entre vários compromissos formais, técnicos, sociopolíticos,sempre ligado à terra e à origem, sendo a sua arquitectura intuitiva,requintada e intimista. Até ao final dos anos cinquenta, este será oquadro de continuidade e de inovação da arquitectura portuguesa, patro-cinado por uma burguesia herdeira das pesadas décadas anteriores.

3. Casa feita, casa refeita: a arte de projectar

Simultaneamente à produção de grandes casas, geralmente situa-das em espaços privilegiados, produz-se uma outra arquitectura carac-terizada por habitações de menores dimensões, com custos controlados

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-Litoral, Trás-os-Montes e Alto-Douro]. BARROS, Henrique, idem, vol. II, 1947 [BeiraLitoral, Beira Alta e Beira Baixa]. Sobre este assunto ver ainda: LEAL, João, EtnografiasPortuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional, D. Quixote, Lisboa,2000, p.145-164.

17 António Bandeirinha salienta a hibridez da produção arquitectónica, o imobi-lismo sociocultural da burguesia, e a generalizada degradação das condições de vida dopovo, como factores caracterizados da sociedade portuguesa nos anos 40. BANDEIRINHA,José António, Quinas Vivas, (1993), FAUP publicações, Porto, 1996.

18 Ou seja uma ideia de «diferença». Um sistema de formas ou estilo, não é maisque a consagração de uma repetição, plasticamente verificável e socialmente identifi-cada. A burguesia exige a diferença, não como verdadeira originalidade, mas porquecaracteriza simultaneamente um conjunto de pessoas consideradas superiores. Assim a«diferença» é fundamentalmente um aspecto de reconhecimento da classe social. Sobreeste assunto ver: BOURDIEU, Pierre, La Distinction: critique sociale du jugement, (1979), Les éditions de minuit, Paris, 1985. PEZEUMASSABUAU, J., La maison: espace réglé, espacerêvé, Gip Reclus, Montpellier, 1993.

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e situadas em lotes de contidas dimensões. Esta extensa produçãocorrente dos ateliers dos mestres, embora mal identificada nos estudosmonográficos, constitui um aspecto inovador com reflexos arquitectó-

nicos geralmente pouco conside-rados. É uma obra marcada poruma afirmação plástica e decora-tiva contida, apresentando aspec-tos de sistematização construtiva ede repetição de elementos comoportas e janelas sem molduras,cornijas em madeira e remates uti-lizando tijolo aparente, de difícilclassificação estilística.

Caberá a esta arquitectura deprodução corrente, no cenário Por-tuguês, standardizar e tipificar oprojecto de arquitectura para umaconstrução rápida e mais econó-mica? O racionalismo da concep-ção e da construção entra assimpela «porta menor» da obra anó-nima e banal, de reduzidas dimen-sões e geralmente ignorada tantodos currículos profissionais comoda crítica?

Trata-se da obra produzida porarquitectos como Norte Júnior (1878--1962) ou Ventura Terra (1866-

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Casa José Joaquim Miguéis, alçados principal e posterior, Ventura Terra, 1903

Casas geminadas H. dos Santos, detalheconstrutivo, Ventura Terra, 1904

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-1919), que recorrendo às suas capacidades e conhecimentos da arte deconstruir, produzem uma arquitectura doméstica de grande economiade meios, que simultaneamente apresenta uma forte racionalidade naorganização da habitação e na inclusão dos princípios higienistas.

Podemos identificar do arquitecto Ventura Terra entre 1903 e 1904,entre Lisboa e Cascais: a casa José Joaquim Miguéis, as casas gemi-nadas H. dos Santos, a casa Jacinto Cândido, a casa Júlio G. da CostaNeves, as casas em banda Miguel Henrique dos Santos e a casa da Con-dessa de Taboeira; ou do arqui-tecto Norte Júnior em 1910 a casaJosé Pereira da Costa, que repre-sentam uma atitude de eficaz pra-gmatismo profissional, face a umaencomenda vasta, tipificada e depoucos recursos.

Esta situação é referida nocomentário que acompanha apublicação de alguns projectos,como o da casa José JoaquimMiguéis de Ventura Terra: «Nopequeno, como no grande, porém,se revela o cuidado e bom gosto quepresidem a todos os trabalhos do sr.Ventura Terra.» 19

Este tipo de projecto apre-senta soluções inovadoras e comrecurso expedito a novas técnicas.Na casa José Joaquim Miguéis,

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Casa Júlio G. da Costa Neves, alçado principal e posterior, Ventura Terra, 1904

Casa Júlio G. da Costa Neves,planta piso 1, Ventura Terra, 1904

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verificamos a utilização de umalonga estrutura metálica (pilarese vigas metálicas com aboba-dilhas), que serve para criar umterraço ao longo de toda a fa-chada lateral. Esta estruturapermite articular os espaços dazona social da casa com o exte-rior e com o jardim, ou seja,permite a comunicação dassalas do piso nobre (elevadasrelativamente ao terreno) com oexterior através do terraço sus-penso.

Na casa Júlio G. da CostaNeves de Ventura Terra encon-tramos os mesmos aspectos de racionalidade e economia. A planta, organizada desde umátrio central, apresenta umacompartimentação cuidada deacordo com um programa muito

detalhado como se constata na legenda. O espaço do átrio central, pre-sente nos dois pisos, reúne as principais circulações da casa, quer asligações horizontais entre os compartimentos, quer a circulação ver-tical entre pisos. Tal não impede que encontremos ainda uma segundaescada de serviço, que permite uma circulação directa entre a zona dacozinha e a área das instalações sanitárias junto do quarto principal.Também a entrada principal, com um pequeno vestíbulo junto da portade acesso da rua, permite o acesso primeiro ao escritório e à saleta edepois ao átrio central e deste à casa, assegurando um efectivo sistemade segregação entre espaços privados para a vida familiar e espaço deacolhimento das visitas.

A organização da casa mantém todos os dispositivos para o funcio-namento do programa doméstico, mas numa versão de grande eco-nomia de área, o que implica uma grande eficácia na proposta deorganização do espaço e de domínio dos seus instrumentos de projecto.

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19 [s.n.], «Casa do Ex.º Sr. José Joaquim Miguéis», A Construcção Moderna, ano IV,n.º 89, 1903, p. 35.

Casa António Macieira, planta piso 1,E. Korrodi, 1910

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Igualmente a casa António Macieira de Ernesto Korrodi, distin-guida em 1910 com o Prémio Valmor, apresenta os mesmos aspectos deorganização da planta. Tal como no exemplo anterior, a planta deforma quadrangular é dividida com grande rigor, funcional e técnico.Embora com um sentido decorativo diverso e mais exuberante que em Ventura Terra, nomeadamente com a presença de diversos arcos nafachada principal (na varanda, na janela de três arcos e no portão deentrada para o jardim), os restantes alçados, são tratados como super-fícies lisas, recortadas unicamente pelos vãos.

A solução demonstra um conhecimento seguro das necessidadesdomésticas e economia de meios, bem como dos instrumentos arqui-tectónicos para o realizar, o que não pode ser conotado com «menorempenho» na realização do projecto.

Neste projecto, assim como nos restantes exemplos já referidos,verificamos que a necessidade de economia leva à existência de um tra-tamento diferente entre o alçado que confronta com a rua e é visível doespaço público, e os que são voltados para o logradouro. Esta diferençareflecte-se na simplificação decorativa dos alçados voltados para oespaço privado do logradouro. Nestes, o uso de materiais nobres, comoa pedra aparente, é substituído pelo uso de superfícies lisas rebocadas,os frisos de pedra são substituídos por frisos realizados na argamassa,

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Casa António Macieira, alçado sobre a rua e lateral com a porta principal,E. Korrodi, 1910

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e mesmo o beiral é simplificado chegando a ser eliminada a cornija, ousubstituída por material mais barato como a madeira.

A casa António Macieira é um claro exemplo de racionalidadeconstrutiva e económica, muito vincada no lote urbano, onde existeuma forte demarcação do tratamento do domínio visual público e doespaço de logradouro privado. A casa realizada por Korrodi é nisto evi-dente, no contraste do trabalho decorativo em redor dos vãos e da cor-nija da fachada principal, e nos alçados voltados para o logradouro. A importância do que é visível do espaço público leva a que o alçadolateral, virado para o acesso da rua ao logradouro, apresente dois des-enhos de cornija: um na viragem do alçado da rua e outro mais simplesque se prolongará para as traseiras. Embora o alçado lateral na suatotalidade apresente uma simplificação do desenho do vão, recortadona superfície de alvenaria, verificamos que a cornija adoptada nafachada principal dobra para ao alçado lateral até à porta principal deacesso a habitação, apresentando depois dela outro desenho simplifi-cado do beiral.

Também aqui se regista a eficácia da solução adoptada por Ernesto Korrodi ao localizar a entrada principal da casa no alçado lateral, talcomo em alguns projectos de Ventura Terra (casa José Joaquim Mi-guéis). A lateralização da entrada principal, (somente possível quandoo lote apresenta largura suficiente para um percurso lateral), permiteuma melhor acessibilidade do exterior ao centro da casa, reduzindoassim o espaço de circulação e de atravessamento até ao seu átrio cen-tral. Esta solução permite ainda, ao libertar a frente da casa do acessoprincipal, aproveitar a sua totalidade para a localização privilegiadasobre a rua dos compartimentos nobres.

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Casa Agnello Barbosa, Leonel Gaia, 1910 Casa José Maria Andrade, Leonel Gaia,1910

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Esta produção corrente pode igualmente ser verificada na obra demuitos outros arquitectos. A revista A Arquitectura Portugueza publicaem 1910, duas casas de Leonel Gaia (1871-1941) designadas de modes-tas, mas com todos os cuidados interiores de conforto e higiene.

Tratam-se das casas Agnello Barbosa e José Maria Andrade, queapresentam uma organização baseada numa planta central, assente naredução da área edificada e na inevitável simplificação do programadoméstico, não deixando de atribuir importância ao aspecto represen-tativo do espaço doméstico. Podemos observar esta atenção no sistemade composição entre o vestíbulo de entrada e o átrio central com duplaaltura e escada principal. Este sistema é retomado do princípio monu-mentalizado das grandes casas e palacetes urbanos, como processo demarcar o ingresso na casa e a organização doméstica pela afirmaçãoespacial deste dispositivo.

A edificação destas casas apresenta volumes precisos, por vezescom ligeiros recortes que marcam a presença dos serviços domésticos,evidenciando uma superfície contínua onde se recortam os vãos comgrande rigor geométrico. Trata-se de uma composição de traçadoclassizante, que associa eficazmente o desenho à necessidade de umagrande racionalidade de princípios.

Também podíamos referir a casa Carlo Calderon de Adolfo A. Mar-ques da Silva (1876-1939), a casa Constâncio Quadrio de Carvalho deNorte Júnior ou a casa Avelino Lopes Cardoso de Álvaro Machado, quearticulam uma influência classizante com uma noção simplificadora

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Bairro das Roseiras, planta piso 1,Álvaro Machado, 1910

Bairro das Roseiras, fachada principal,Álvaro Machado, 1910

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da construção e organização interna, cruzada por elementos comovarandas contínuas ou janelões, num sistema de composição verticalque se destaca unicamente e com excepção decorativa, na composiçãoda fachada principal.

São igualmente publicados, no mesmo ano na revista A Arquitec-tura Portugueza, dois projectos de Álvaro Machado (1874-1944) noEstoril: o Bairro das Roseiras (dois conjuntos de duas casas cada) e ascasas Álvaro Machado, sua propriedade (composto de duas casas idên-ticas). Estes projectos foram publicados em simultâneo, com um textopouco elucidativo das características do trabalho apresentado, mas comuma vasta cobertura fotográfica. A publicação das casas do Bairro dasRoseiras e das casas Álvaro Machado, permite-nos consolidar a ideiade estarmos perante uma produção de baixos custos, projectadas econstruídas com uma grande simplicidade de meios.

Na construção do Bairro das Roseiras, constituído por quatro habi-tações das quais conhecemos as plantas, verificamos que a organizaçãodas casas parte de um módulo rectangular composto por dois compar-timentos. Este módulo é traduzido na edificação por um volume repe-tido e perpendicular à rua, criando uma acentuada marcação que serepete ao longo da fachada.

Apesar da simplicidade da organização e da quase ausência deco-rativa nas fachadas, o volume da construção surge como o principaltema a ser tratado pelo projecto. Repare-se no tratamento do gaveto ena marcação já referida, dos corpos perpendiculares à rua com telhadode duas águas. Estes elementos que acentuam o recorte da fachadaprincipal, sugerem a repetição de pequenas casas, ideia contrária ao

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Casas Álvaro Machado, fachada principal, Álvaro Machado, 1910

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edifício contínuo, e originando reentrâncias exteriores no plano dafachada que identificam o acesso a cada habitação.

Se por um lado, tal como temos vindo a analisar em vários exem-plos, o conjunto edificado para o Bairro das Roseiras apresenta umagrande simplicidade de meios, por outro, tal não impede a atenção aoproblema urbano que defrontava com esta construção. A ambiguidadeentre edifício colectivo e casas associadas em banda (que o são na rea-lidade), é uma das estratégias utilizadas por Álvaro Machado, para conferir ao conjunto uma escala e uma imagem apropriadas à habi-tação projectada e aos habitantes a que se destina.

Relativamente às duas casas Álvaro Machado, só foram publicadasfotografias. Contudo, as suas imagens revelam-nos fachadas lisas, com uma forte marcação do beiral, onde os vãos são recortados semdesenho de moldura, mantendo tal como no Bairro das Roseiras e sal-vaguardando as diferenças na dimensão, uma afinidade de princípiosde composição. O único elemento decorativo que está presente nasfachadas em ambos os projectos é um friso de azulejos, que no Bairrodas Roseiras está situado ao nível das janelas do segundo piso, e nascasas Álvaro Machado está entre as janelas de ambos os pisos. Nesteúltimo projecto existem ainda painéis decorativos de azulejos de ele-mentos vegetais e figuras humanas em estilizações geométricas degosto arte nova 20.

O projecto do Bairro das Roseiras, publicado em 1910, introduz--nos três questões que julgamos essenciais para a sua apreciação numcontexto mais amplo de alguma produção europeia: a organização daplanta em «falsa cruz», a minimização do seu espaço doméstico e aassociação em banda de casas individuais.

Verificamos que a organização da casa recorrendo a uma compar-timentação em cruz 21, permite obter um sistema de distribuição inte-rior racional e económico, na área utilizada para ligar os espaços. O centro da cruz é o centro da casa e espaço privilegiado de ligaçãoentre pisos e compartimentos, sendo também através do espaço centralque se pode obter o maior afastamento de áreas de serviço e sociais,localizadas nos seus extremos. Este esquema permite ainda optimizar

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20 Sobre o tema da arte nova sob a condição portuguesa ver: RIO-CARVALHO,Manuel, «A «Arte Nova»: modernidade domesticada, sentimentalidade projectada», Esté-tica do Romantismo em Portugal, Grémio Literário, Lisboa, 1970, p. 247-251. Ibid., «Em90% dos casos a Arte Nova em Portugal foi uma gramática decorativa», Binário, 201,1975, p. 299-301.

21 Esta forma de organização espacial é largamente explorada na obra de FrankLloyd Wright.

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a iluminação directa dos compartimentos, conseguida através do au-mento do recorte exterior da edificação.

Estes aspectos informam o projecto do Bairro das Roseiras,embora sujeitando-os a um tratamento diverso, onde a cruz não é total-mente realizada em planta, estando presente uma organização onde defacto a construção só descreve um L. Esta «falsa cruz» permite a reali-zação da casa com áreas muito reduzidas, aspecto que conduz a umaminiaturização das relações espaciais presentes na casa burguesa demaior dimensão. Podemos verificar que o hall, como espaço central dedistribuição, articula o acesso exterior, a escada para o piso superior, aligação à cozinha, a copa e as duas salas. Mas a redução de áreasimplica a supressão de circulações distintas, obrigando a que a pas-sagem entre a cozinha e a sala cruze o hall. Encontramos contudo, umesforço de equilíbrio entre os diferentes aspectos do programa, reflec-tido nas áreas e na localização dos espaços, assegurando o seu aspectorepresentativo social ou privado.

Por último, a solução de associação em banda de pequenas casasindividuais constitui uma solução inovadora no compromisso que estabelece, entre economia da construção, sistema urbano proposto, evalor representativo da casa para os seus habitantes, enquanto habi-tação individual.

A análise realizada pode ser verificada em diversos exemplos damesma época fora de Portugal, em outro contexto e sobretudo emoutra dinâmica de transformação do território.

O Architects and Builders Journal é uma das muitas publicaçõesque no início da década de dez publicava exaustivamente os projectosdas casas edificadas nas Garden Cities Inglesas. Em 1911, é realizadauma edição especial 22, onde são publicados os projectos e fotografias

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Desenho de Hampstead(B. Parker e R. Unwin, 1903), Ch.-E. Jeanneret [Le Corbusier], 1910

——————————22 A edição especial referida é publicada em: Garden City Houses and Domestic

Interior Details, Technical Journals, Westminster, 1913.

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de casas em Hampstead Garden Suburb e Gidea Park, que permiteconstatarmos a existência de edificações com afinidades com as casasdo Bairro das Roseiras. Não se trata de sugerir uma influência sobreesta obra (até por desconhecemos aspectos monográficos dos seusautores) mas podemos verificar, que do ponto de vista arquitectónico,existe um conjunto de preocupações que conduzem a soluções espa-ciais semelhantes.

Na House in Red Pond Walk, em Gidea Park, de Randall Wellspodemos encontrar a organização da casa tendo por base a planta emcruz, experiência fortemente enraizada na tradição anglo-saxónica,como solução para optimizar a vida doméstica. Esta solução é tambémaqui usada, para reduzir espaço de circulação e simplificar o seu pro-grama, com repercussão na redução de áreas, como esforço de con-tenção do custo, mas continuando a assegurar aspectos essenciais desegregação funcional e de representação social.

Noutro exemplo, no Group of Cottages for the Hampstead TenatsLtd. em Hampstead 23, de Barry Parker (1867-1947) e Raymond Unwin(1863-1940), encontramos a mesma necessidade de minimização doprograma doméstico. A necessidade de economia leva a que, tal comono Bairro das Roseiras, seja adoptado um sistema de construção embanda de quatro casas independentes. Aqui a dimensão reduzida dacasa, enquanto célula de habitação, é diluída no conjunto edificado,que parece reforçar a sua unidade enquanto casa/construção única de

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23 Hampstead é projectada por Barry Parker e Raymond Unwin que abordam oconceito «subúrbio-jardim», sem indústria e dependendo do metro para aceder aos ser-viços, uma variação das Cidades-Jardim de Ebenezer Howard (1850-1928). Para umaanálise extensiva deste tema, e sobre o seu balanço de 100 anos ver: HALL, Peter, Cidadesdo Amanhã, (1988), Editora Perspectivas, São Paulo, 1995. HALL, Peter, WARD, Colin,Sociable Cities: The Legacy of Ebenezer Howard, John Wiley & Sons, 1998.

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House in Red Pond Walk, Gidea Park,Randall Wells, 1911

Group of Cottages for the HampsteadTenats Ltd., Hampstead, B. Parker

e R. Unwin, 1911

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grande dimensão, ao contrário do que é realizado no Bairro dasRoseiras, onde cada casa marca a sua individualidade.

Serve esta comparação, entre as casas do Bairro das Roseiras ealgumas edificações em Cidades Jardim na mesma época, para verifi-carmos que existe um conjunto de preocupações comuns aos projectosanalisados (economia, racionalidade construtiva, simplificação do pro-grama, representação social) que necessariamente tem implicações, naaproximação das soluções espaciais adoptadas.

Resta-nos colocar a questão, se não será esta produção corrente emPortugal, a que mais se aproxima de outras realizações contempo-râneas na Europa? Ficando esta e outras dúvidas para posterioresinvestigações, podemos contudo registar, que existem semelhanças for-mais entre os exemplos construídos em Portugal e na Europa, que nosindicam uma mesma linha de influência classizante, já fortementedepurada nas imagens de casas económicas em banda realizadas nadécada de dez, por arquitectos como Peter Behrens (Siedlung Ober-schöneweide, Berlim, 1915), Hans Meyer (Siedlung Freidort, Basileia,1919-1921) ou Bruno Taut (Siedlung Eichkamp, Berlim, 1926-1927).

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Siedlung Oberschöneweide, Peter Behrens, 1915

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Nestes projectos se, por um lado, se encontra a mesma simplifi-cação e contenção tanto do programa, como da construção da habi-tação, por outro lado, a produção europeia revela já sinais do início deum profundo processo de racionalização, que conduzirá à adopção denovas técnicas industriais de desenhar e construir 24, com a sua expres-são mais significativa nos bairros de Frankfurt dirigidos por Ernst May(1886-1970) – a mais extensa experiência arquitectónica urbana, cons-truída na Europa durante a década de 20.

Esta arquitectura corrente que temos vindo a evidenciar, constituium aspecto significativo da produção arquitectónica realizada, e quena época mereceu a publicação em revistas da especialidade. Pelas suascaracterísticas, não se trata de palacetes ou de casas de grandes dimen-sões, mas de construções mais modestas com preocupações de con-forto, higiene, de protecção da vida doméstica para a pequenaburguesia, para quem a casacontinua a ser um sinal de pres-tígio no meio onde vive.

Do ponto de vista do signifi-cado disciplinar e arquitectónicoa produção corrente representa,como já referimos, uma atitudede atenção e rigor profissional auma encomenda com caracterís-tica específicas. Os arquitectosque a produziram souberam daressa resposta, sem abdicar dosseus princípios estéticos e dosseus conhecimentos profissio-nais. Este aspecto é já insinuadono trabalho de Maria José Per-digão, com a presença de um

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24 Em 1917, numa série de conferências denominadas «Technische Abende», PeterBehrens participa com uma comunicação intitulada «Sobre a relação técnica e arte:alguns problemas», e Herman Muthesius com uma comunicação significativamentedesignada «Trabalho manual e produção de massa», que ilustraram o debate que entãose registava no meio da disciplina, ambiente que influenciará a sua transformação, téc-nica e estética, na década seguinte. MAY, Ernst, «Cinco años de construcción de bairrosde Frankfurt», (1930), in HEREU, p. , MONTANER, J. M., OLIVERAS, J. (org.), Textos de arqui-tectura de la modernidad, Nerea, Madrid, 1994, p. 281-284. Para uma observação maisampla deste período ver: MARTÍ ARÍS, Carlos, Las formas de la residencia en la ciudadmoderna: Vivenda y ciudad en la Europa de entreguerras, Edicions UPC, Barcelona, 2000.

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Casa N. Cortez, Arménio Losa, CassianoBarbosa, 1946

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capítulo sugestivamente designado «As casas simples» 25, não lhe sendoatribuído contudo qualquer sentido disciplinar e significativo, do querepresenta fazer uma casa mais simples na primeira década do século.

Julgamos ser na obra teórica de Nuno Portas, sobretudo no tra-jecto entre a publicação de A Arquitectura para hoje (1964) e de A cidadecomo Arquitectura (1969), onde encontramos um primeiro entendi-mento disciplinar do sentido de uma arquitectura de série, que se dis-tingue da obra designada como singular ou de autor. A valorizaçãodesta outra produção é reconhecida por Nuno Portas, e sucessivamenteclarificada na sua intervenção, pela atribuição de significado à pro-dução corrente como instrumento essencial para uma construção qua-lificada da cidade democrática.26 A leitura da cidade não pode ser

realizada exclusivamente pelosland-marks de uma história daarquitectura e pela sua van-guarda, correndo o risco derejeitarmos a produção arqui-tectónica mais extensa de umtempo 27. Com este entendi-mento, Nuno Portas não sóatribui um lugar à produçãocorrente na prática profissional,

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25 PERDIGÃO, Maria José A. Lima, O Arquitecto Miguel Ventura Terra: Vida e Obra,Dissertação de Mestrado em História de Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanasda Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1988, [policopiado]

26 Será que a organização do escritório/atelier de arquitectura, para responder auma produção corrente, como sistema de produção eficaz e fluído, tal como numa linhade montagem, não corresponderá a um sinal de modernidade, ou mesmo uma sua exi-gência? Não reproduz o escritório, na sua organização, pela resposta e pelo seu processode trabalho, o ideal moderno revisto na máquina, na velocidade e nos produtos em série?A questão da própria produção da arquitectura, ser sujeita a processos modernos é levantada por Hitchcock, relativamente ao trabalho de Albert Kahn (1869-1942) para aarquitectura industrial, sendo também largamente debatido por Federico Bucci no seuinteressante ensaio: BUCCI, Federico, «“Les ingénieurs américains»: Frederick W. Taylor,Albert Kahn y la ascensión de la «Moderner Industriebauknust”», in Arquitectura e Indus-tria Modernas,1900-1965, Actas do 2.º seminário DOCOMOMO Ibérico, DOCOMOMOIbérico, 1999, p. 13-23. Sobre Albert Kahn e a metáfora da máquina como dispositivopara a ordem moderna, ver: BUCCI, Federico, Albert Kahn: Architect of Ford, (1991), Prin-ceton Architectural Press, 1993.

27 SMITH, Elizabeth T. A., «Re-examining architecture and its history at the end ofthe century», in R. Koshalek, E. A. T. Smith (org.), At the end of the century: one hundredyears of architecture, Harry N. Abrams, Los Angeles, 1998, p. 23-99.

Casa Victor Brandão, Fernando Távora,1963-65

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mas sobretudo, inaugura a inevitabilidade da sua presença na crítica e nainvestigação contemporânea no campo da arquitectura 28.

A mesma situação relativa a uma produção corrente, pode ser regis-tada em diferentes períodos, onde permanece ocultada por uma mádivulgação da obra, falta de investigação monográfica e também poruma prévia qualificação de obra «menor», tal como é remetida naspublicações onde é referida. Podemos encontrar esta produção, entreoutros, na obra de Cassiano Barbosa (1911-1998) com Arménio Losa(1908-1980) ou de Fernando Távora (1923-2005).

Na produção de Cassiano Barbosa e de Arménio Losa, inventariadapelo estudo de Joana Rosas e Luzia Gama 29, constatamos que existe,durante a década de quarenta e até meados dos anos cinquenta, a parde uma produção de maior dimensão e de traço moderno, uma outraprodução de casas unifamiliares de menores dimensões que evocamum desenho anónimo. Estas casas, sem concessões a uma estilizaçãonacional da Casa Portuguesa, articulam pragmatismo e eficiência daconstrução – no uso de telhados, da pedra, de vãos pequenos, de sacadascom floreiras – com uma grande austeridade do desenho das fachadas,

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28 Também Ana Tostões, na sua resenha sobre a situação da crítica de arquitecturaem Portugal, aflora esta hipótese relativa à posição de Nuno Portas, que acompanhandoos movimentos internacionais, coloca a necessidade de um diferente entendimento daprodução arquitectónica para além da obra de autor. TOSTÕES, Ana, «Afirmação, Questio-namento e Contestação do Paradigma Moderno», Jornal Arquitectos, 211, Lisboa, 2003,p. 18-25 [Seminário Internacional «Situação-Crítica»].

29 ROSAS, Joana, GAMA, Luzia, Arménio Losa/Cassiano Barbosa: projectos e obras,Relatório de Estágio FAUP, Porto, 1992, [policopiado].

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Casa Guilherme A. Ribeiro planta,Fernando Távora, 1966-67

Casa Guilherme A. Ribeiro, jardim,Fernando Távora, 1966-67

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com vãos recortados na superfície do re-boco sem ornamentação e com uma cuida-dosa composição geométrica. Podemosreferir as obras de Cassiano Barbosa cata-logadas entre 1942 e 1944 tal como, DuasCasas, casa Henrique Vieira, casa PereiraCruz, e em 1946 já com Arménio Losa, acasa N. Cortez 30. Julgamos mesmo que acasa Cassiano Barbosa, desenhada pelopróprio em 1955, pode ser incluída nestedesenho discreto, com evidentes sinais deuma composição moderna, na fachada e naorganização interna, embora mantendo uma cobertura tradicional em telhado.

Também a obra de Fernando Távoraparece-nos, em alguns casos, sujeita a esteprocesso de ocultação de uma produção cor-rente. Embora nos exemplos da casa PabloGali ou da casa Victor Brandão, projec-tadas e realizadas entre 1960 e 1965, este-jamos perante habitações de maior dimen-são e sobretudo com uma grande sofisti-

cação na organização do espaço, estes projectos, na monografia de Fer-nando Távora editada por Luís Trigueiros, são apenas referidas nacronologia final 31.

Nestas obras de Fernando Távora, pode ainda incluir-se a casaGuilherme Álvares Ribeiro de 1966, que apesar da grande descriçãono tratamento das fachadas em granito, que resultam de um volumedespreocupadamente fragmentado, apresenta um desenvolvimentoinesperado no desenho do espaço doméstico. A planta (da qual a única publicação conhecida é na cronologia referida anteriormente)apresenta uma organização espacial que articula a modernidade dasolução, com a sumptuosidade de um pequeno palácio do início denovecentos. A visita da casa permite constatar uma sofisticada organi-zação dos espaços na zona social, voltada para o jardim em cotas dife-

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30 Podemos ainda indicar no mesmo período, a casa Manuel Graça e a casa Cpt.Afonso da Costa, para as quais o estudo acima referido indica expressamente a co-autoriade Cassiano Barbosa e Arménio Losa. Ibid.

31 MENDES, Pedro (org.), «Obras e projectos», in Luiz Trigueiros (ed.), FernandoTávora, Blau, Lisboa, 1993, p. 185-212.

Casa Guilherme A. Ribeiro,sala, Fernando Távora,

1966-67

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renciadas, e na altura variável do seu pé direito. A luminosidade destesespaços, os seus diferentes níveis ajustados à caracterização do pro-grama social e o desenho de toda a pormenorização, dos vãos e dos revestimentos, aproximam esta obra da resiliência encontrada nascasas e na obra de Frank Lloyd Wright. Igualmente rodeando a áreasocial da casa, desenvolve-se em idêntica sequência de espaços, umvasto sistema de serviços domésticos, com grande dimensão e rigorprogramático.

Esta casa surge como um dos exemplos mais eloquentes da habi-tação burguesa no final da década de sessenta, que acumula comedi-mento visual com elogio da qualidade e do conforto de viver.

Também no trabalho dos primeiros arquitectos paisagistas, ondese salienta a acção de Francisco Caldeira Cabral (1908-1992) 32, naárea do ordenamento da paisagem, podemos encontrar um conjunto desinais de um pragmatismo funcional, que valoriza a relação da cons-trução com a natureza em termos de qualificação da vida quotidiana,inspirados nos modelos como o da Cidade-jardim de Ebenezer Howard(1850-1928), publicados em 1898.

Um exemplo desta situação é o de Ordenamento Paisagístico e aUrbanização da Colónia Agrícola da Gafanha de António Campello,realizado em 1956, inserido num conjunto de projectos de ordena-mento agrícola e da paisagem para a Junta de Colonização Interna,onde se defende o ordenamento da paisagem como um assunto indis-sociável do ordenamento do território 33.

Este projecto aproxima as soluções preconizadas para o territórioagrícola, dos estudos realizados para implantação de novos aglome-rados urbanos entre a cidade e o campo, baseados no modelo inglês daCidade-jardim, já referido. Seria importante aprofundar a relação entreos dois tipos de intervenção, uma vez que apresentam semelhanças, notipo de traçado radioconcêntrico da rede urbana, localização centraldos serviços comunitários e edificação de baixa densidade baseada emcasas unifamiliares.34

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32 No início do século, o domínio do valor paisagístico interessa a arquitectos como Raul Lino, do qual Caldeira Cabral é grande amigo e a quem deve o incentivo paraa sua especialização em arquitectura paisagista na Alemanha, ver: ANDRESEN, Teresa,«Três Décadas de Arquitectura Paisagista em Portugal: 1940-1970», in Teresa Andresen(ed.), Do Estádio Nacional ao Jardim Gulbenkian: Francisco Caldeira Cabral e a primeirageração de arquitectos paisigistas (1940-1970), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,2003, p. 18-97.

33 Ibid.34 ANDRESEN, Teresa, CAMARA, Teresa B. da, CARVALHO, Luís G., «Lugares da Arqui-

tectura Paisagista Portuguesa 1940-1970», idem, p. 304-307.

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4. Hibridez, um compromisso de permanência e identidade

Estas obras que abriram o século XX, que designamos de produçãocorrente, podem ser observadas na sua época como a expressão maispróxima de uma condição de modernidade. Modernidade na respostaespacial e programática assente na depuração dos elementos e naessencialidade dos dispositivos arquitectónicos projectados. Moderni-dade, igualmente, na acção organizadora do próprio projecto, na suafabricação pragmática, eficaz e atenta à produção no atelier e depois àexecução da obra, tal como somos informados pela repetição dosdetalhes e materiais de construção e pela sua representação desenhada.

Podemos considerar que esta singular produção corrente, querecusa uma cenografia, característica eminente da arquitectura do finaldo século XIX e início do século XX, aproxima o projecto de umaautenticidade entre programa habitacional e forma, ditada por umaencomenda da casa atenta há necessidade de seguir parâmetros funcio-nais, económicos e de estilo de vida precisos. Esta perspectiva distinguee afasta esta produção da encomenda dominante da burguesia, cen-trada no programa oitocentista do palacete como local de residência,marcado pelo romantismo do estilo e da atitude.

Consideramos ainda, e atendendo a estes aspectos, que a diluiçãode uma cenografia que recobre a obra de arquitectura e particular-mente a grande casa burguesa no início do século XX, remetem estaoutra produção, dos mesmos ateliers dos mestres formados na tradiçãoacadémica, para valores que estão presentes na formação da moder-nidade, que se celebrará nas expressões da vanguarda moderna desde adécada de vinte na Europa.

«Não há romantismo sem cenografia», como refere Raquel Hen-riques da Silva a propósito das arquitecturas da transição de sé-

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Colónia Agrícola da Gafanha, lotes e casal agrícola (2003), António Campello, 1956

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culo 35, o que distingue a produção corrente como uma excepção, ouseja, a produção arquitectónica que mais se afasta do factor românticoda sua época, e portadora por isso de um sinal moderno.

Este sinal seria de menor importância se o percurso da moderni-dade portuguesa, ao longo do século XX, não fosse marcado por umaconstrução inacabada do moderno, que mantém ecleticamente as suasraízes, num contexto socioeconómico e numa cultura marcadas peloséculo XIX. Será contudo esta dissonância que molda a especificidadeda arquitectura portuguesa, assente entre continuidade e inovação,sempre marcada pelo fluir romântico entre passado e presente.

Podemos constatar, olhando hoje o processo histórico, que estacaracterística afinal terá estabelecido um compromisso essencial coma nossa tradição, que ditará uma implícita unidade do processo daarquitectura na primeira metade do século XX, e que certamente mar-cará a espontaneidade do seu dinamismo contemporâneo registado emmúltiplas correntes e tendências.

«Produções correntes» em arquitectura: a porta para uma diferente gramática […] 79

Colónia Agrícola da Gafanha, planta de conjunto, António Campello, 1956

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35 SILVA, Raquel Henriques da, «O neomanuelino do palace-hotel: pistas parapensar a memória», Monumentos, n.º 20, Direcção-Geral dos Edifícios e MonumentosNacionais, Lisboa, 2004, p. 49.

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RESUMO / ABSTRACT

«Produções correntes» em arquitectura – a porta para uma diferentegramática do projecto, no início do século XX.

A produção da grande casa burguesa, pelos arquitectos formados entretendências clássicas e românticas das escolas europeias do final do século XIX, ésimultânea a uma outra produção sistematizada e racional, de um vasto número decasas mais pequenas. Os mesmos ateliers respondem a uma nova consideração do espaço social da burguesia, registada nos contornos da vida privada, do espaçodoméstico e do seu investimento controlado.

«Current productions» in architecture – the gate for a differentproject grammar in the beginning of the 20th century

The bourgeois mansions were designed by architects trained in late 19th century European schools within classical and romantic tendencies. Simultane-ously, smaller houses were also built in a systematic and rational way. These same architecture practices took into account a new concern for the bourgeoissocial space, abiding to the shape of private life of the dwelling space under a con-trolled investment.

Rui Ramos80