cinema-história: entre espressões e representações. barros, josé d'assunção....

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  • 8/14/2019 Cinema-Histria: entre espresses e representaes. BARROS, Jos D'Assuno. Cinema-Histria, Apicuri, 2008.

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    CINEMA E HISTRIA ENTRE EXPRESSES E REPRESENTAES

    Jos DAssuno Barros

    As diversas formas de interao entre Cinema e Histria

    O Cinema foi considerado por muitos como a Arte do s-culo XX. Forma de expresso artstica para a qual concorremdiversas outras artes como a Msica, o Teatro, a Literatura, aFotografia e as demais Artes Visuais o Cinema constituiu apartir de si mesmo uma linguagem prpria e uma indstria tam-bm especfica, e ao par disto no cessou de interferir na histriacontempornea ao mesmo tempo em que seu discurso e suas pr-ticas foram se transformando com esta prpria histriacontempornea.

    Neste sentido, o Cinema incluindo todo o imenso conjun-to das obras cinematogrficas que j foram produzidas e tambmas prticas e discursos que sobre elas se estabelecem pode serconsiderado nos dias de hoje uma fonte primordial e inesgotvelpara o trabalho historiogrfico. A partir de uma fonte flmica, e a

    partir da anlise dos discursos e prticas cinematogrficas rela-cionados aos diversos contextos contemporneos, os historiadorespodem apreender de uma nova perspectiva a prpria histria dosculo XX e da contemporaneidade. De igual maneira, como sever mais adiante, os historiadores polticos e culturais podemexaminar os diversos usos, recepes e apropriaes dos discur-sos, prticas e obras cinematogrficas.

    Para alm do fato mais evidente de que o Cinema enquan-to forma de expresso cultural especificamente contempornea

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    fornece fontes extraordinariamente significativas para os estu-dos histricos sobre a prpria poca em que foi e est sendo pro-duzido, uma outra relao fulcral entre Histria e Cinema podeaparecer atravs da dimenso deste ltimo como representao.O Cinema no apenas uma forma de expresso cultural, mastambm um meio de representao. Atravs de um filme repre-senta-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, ou sejaum mundo imaginrio livremente criado pelos autores de um fil-me1.

    Para o mbito das relaes entre Cinema e Histria, interes-sa particularmente a possibilidade de a obra cinematogrfica fun-cionar como meio de representao ou como veculo interpretantede realidades histricas especficas, ou, ainda, como linguagemque se abre livremente para a imaginao histrica. Em um caso,estaremos tratando dos chamados filmes histricos entendidosaqui como aqueles filmes que buscam representar ou estetizareventos ou processos histricos conhecidos, e que incluem entreoutras as categorias dos filmes picos e tambm dos filmes his-

    tricos que apresentam uma verso romanceada de eventos ouvidas de personagens histricos. Em outro caso, ser possvel

    1 A polmica que indaga sobre a essncia do Cinema como arte voltada para orealismo (fonte para retratao da realidade) ou como arte voltada para arepresentao (no sentido de recriao da realidade ou criao de uma realida-de inteiramente nova) remete aos prprios primrdios do cinema. Os irmosLumire, por exemplo, viam o cinema como recurso para retratar a realidade, e

    se empenharam em filmar cenas do cotidiano em filmes como A Chegada deum Trem, a Sada da Fbrica, ou a Alimentao de um Beb. Mas na mesmapoca, por volta de 1902, j se iniciavam os filmes de George Melis, que sepropunha a utilizar o cinema como fonte para truques ilusionistas, experimen-tando distorcer ou alterar imagens, introduzir ou fazer desaparecer pessoas eobjetos em suas tomadas. Nas suas mos, o cinema converteu-se em um mundocom suas prprias leis, e no em uma tentativa de retratar a realidade. Maistarde, a polmica avanaria pelo confronto entre as concepes de Eisenstein que ao inventar a montagem afirmava que o cinema existe precisamente quando

    o cineasta contrape dois takes para obter um terceiro significado e AndrBazin, que sustentava que o Cinema consiste simplesmente de Fotografia emmovimento.

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    destacar ainda aqueles filmes que chamaremos de filmes de am-bientao histrica, aqui considerando os filmes que se referem aenredos criados livremente mas sobre um contexto histrico bemestabelecido.

    Ao lado dos filmes histricos e dos filmes de ambienta-o histrica, uma terceira e importante modalidade ainda a serdiscutida neste tipo de relao entre o Cinema e a representaohistrica a dos documentrios histricos que podem ser de-finidos mais especificamente como trabalhos de representaohistoriogrfica atravs de filmes, diferenciando-se dos atrs men-cionados filmes histricos seja pelo rigor documental em que seapiam, seja pelo fato de que neles o fator esttico deslocadopara segundo plano e no quem conduz os rumos da narrativaou da construo flmica. Desta maneira, enquanto o filme hist-rico narra criativamente um evento ou processo histrico, to-mando-o para enredo, o documentrio historiogrfico analisa osacontecimentos maneira dos historiadores, comparando depoi-mentos e fontes, sobrepondo imagens da poca, analisando situa-

    es atravs da lgica historiogrfica e do raciocnio hipottico-dedutivo, e encaminhando uma srie de operaes que so algosimilares quelas das quais os historiadores lanam mo ao exa-minar um processo histrico em obra historiogrfica em forma delivro. Assim, o fio condutor do documentrio historiogrfico essencialmente a anlise de eventos e processos histricos, e noa mera narrao destes processos mediada pelo mesmo tipo de

    estetizao que aparece nos filmes ficcionais. Vale ainda lembrarque, enquanto o filme histrico oculta as fontes em que se apoi-ou, o documentrio histrico desenvolve-se habitualmente ex-plicitando suas fontes para os espectadores e marcando uma dis-tncia clara entre o discurso do cineasta-historiador e estas mes-mas fontes (o discurso dos outros, as imagens e documentos depoca, e assim por diante). Em suma, ressalvadas as especificida-

    des de cada linguagem e as caractersticas pessoais de cada autor,

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    o cineasta-historiador age analogamente ao que faria um historia-dor tradicional que escreve um livro de Histria nos dias de hoje.

    Em sntese sobre o filme histrico, o filme de ambien-tao histrica, e o documentrio histrico, entre outros tipossimilares que poderiam tambm ser mencionados pode-se dizerque estas trs modalidades flmicas relacionadas Histria (con-siderada aqui como objeto de conhecimento) correspondem res-pectivamente, na Literatura, ao romance histrico propriamentedito, obra de fico com ambientao histrica, e s prpriasrepresentaes historiogrficas produzidas pelos historiadoresprofissionais ou diletantes.

    Sobre todos estes tipos de filmes de Histria (no sentidoamplo), importante ressaltar ainda que eles possuem uma duplanatureza, uma espcie de duplo vnculo em relao Histria.Alm de serem fontes importantes para a percepo de proces-sos histricos diversificados que se do na prpria poca de suaproduo, tal como alis ocorre com os demais filmes (inclusiveos de fico), os filmes de Histria so tambm fontes primor-

    diais para o estudo das prprias representaes historiogrficas.Neste sentido, alm de ser possvel neste tipo de fontes cinemato-grficas estudar a Histria (enquanto objeto de conhecimento), possvel estudar a partir deles as prprias representaes e con-cepes historiogrficas (isto , a Histria enquanto campo deconhecimento), discutindo a Historiografia nos seus diversos n-veis. Pode-se dizer que atravs dos filmes de Histria de diver-

    sos tipos o Cinema comea a penetrar de diversificadas maneirasno prprio mundo dos historiadores, e no apenas no mundo deacontecimentos histricos que os historiadores examinam comalgum tipo de distanciamento.

    As possibilidades acima apresentadas de relacionar Cinemae representao histrica levam a pensar tambm em uma terceirarelao importante que, agora, aparece atravs da mediao dos

    saberes pedaggicos e educativos. O Cinema atravs de sua pro-duo flmica, e no apenas dos documentrios histricos, tam-

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    bm pode ser utilizado para ensinar Histria ou, mais ainda,para veicular e at impor uma determinada viso da Histria. En-tramos aqui em uma outra possibilidade de apreenso das rela-es possveis entre Cinema e Histria. Tanto os historiadorespodem estudar os usos polticos e educacionais que tm se mos-trado possveis atravs do Cinema, como de igual maneira ospedagogos (e tambm os professores de histria) podem utilizar oCinema para difundir o saber histrico e historiogrfico de umadeterminada maneira2.

    Para alm do papel do filme como veculo final de uma de-

    terminada representao historiogrfica isto , como um meiopropriamente dito para esta representao historiogrfica im-portante ressaltar que a filmagem pode funcionar ainda comoinstrumento de pesquisa importante para a prtica historiogrfi-ca, tenha esta como produto final um filme ou um livro. Assim, seo uso do gravador e da fotografia veio trazer instrumentos impor-tantssimos para os antroplogos e socilogos dos ltimos tem-

    pos, as prticas cinematogrficas vieram trazer uma contribuiofundamental ao acenarem com a possibilidade do uso filmagemnas pesquisas ligadas s cincias humanas, aqui considerando quea filmagem permite a captao de imagens-som em movimentopara posterior anlise (por exemplo, o ritual de uma tribo indge-na ou as imagens de um determinado distrbio social).

    O Cinema, assim, apresenta-se como tecnologia adicional

    para aHistria Oral acrescentando uma nova dimenso coletade depoimentos mas tambm para outras inmeras modalidadeshistoriogrficas como aHistria da Cultura Material ou aHist-ria do Cotidiano (basta pensar na filmagem de estruturas urbanaspara posterior anlise pelo historiador da cultura material, ou nafilmagem de situaes da vida cotidiana para interpretao poste-

    2 Sobre as possibilidades de relacionar Cinema e Ensino de Histria, veja-se J.E. MONTERDE,Historia, cine y enseanza. Barcelona: Laia, 1986.

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    rior pelo historiador do cotidiano)3. A tecnologia cinematogrfica,por fim, mostra-se magnfico instrumento para aHistria Imedia-ta, aqui entendida como aquela modalidade da Histria em que ohistoriador participa mais diretamente do prprio processo ousituao histrica que est investigando.

    Em vista do que se disse at aqui, cada vez mais a historio-grafia dos ltimos tempos tem se dado conta das mltiplas poten-cialidades do Cinema simultaneamente como fonte para o estudoda histria, como veculo privilegiado para a difuso das prpriasrepresentaes historiogrficas, e como tecnologia auxiliar para aHistria. Naturalmente que, j que o prprio Cinema relativa-mente recente na histria, seu uso pela Historiografia tambm recente. Alm disto, acresce que tambm no deixa de ser recentemesmo a utilizao pela historiografia de fontes no propriamentedocumentais ou textuais. A primeira metade do sculo XX, comose sabe, marca precisamente a expanso das concepes de fontehistrica, j que trouxe tona um interesse mais vivo por fontesiconogrficas, por fontes da cultura material, pela histria oral, e

    por tantas novas possibilidades de materiais para serem trabalha-dos pelos historiadores. A fonte flmica, que alis integra ao dis-curso verbal as dimenses da visualidade e da oralidade, enqua-dra-se compreensivelmente neste mesmo movimento de expansode temticas e de possibilidades de novas fontes historiogrficas.

    Uma ltima relao possvel entre Cinema e Histria paraalm de suas dimenses como expresso, representao e tec-

    nologia vincula-se ao fato de que o Cinema tambm pode cor-responder a uma ao que interfere na Histria (no mais a His-tria no sentido de campo do saber, mas a prpria Histria

    3 alis interessante perceber que desde a sua origem o Cinema, nas mos dosprprios irmos Lumire, j mostrava este caminho de estreitamento de relaescom a Histria atravs dos j mencionados filmes que exploravam a possibili-dade de registrar cenas da realidade vivida. Um exemplo a pelcula La sortiedu train de la ciotat (1895), onde se registra a cena da sada de operrios deuma fbrica, ao final do expediente.

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    realizada pelos homens na sua vida social). Veremos mais adianteque, do Cinema, podem se apropriar poderes diversos que agemna Histria; e que, de outro lado, o Cinema tambm pode se apre-sentar como campo de resistncia a diversos poderes institudos.Por isto, vale dizer que, em todos estes casos, o Cinema tem sidoum poderoso agente histrico desde os anos que o viram surgir.

    O Cinema apresenta-se como agente da histria seja atra-vs da Indstria Cultural, seja atravs das aes estatais e dosdiversos usos polticos, seja atravs da difuso de diversificadasideologias, ou seja atravs da resistncia a estas mesmas foras.Isto sem contar que atravs de uma obra flmica mais especfica diversos agentes esto freqentemente atuando de modo bastan-te significativo na Histria. Aqui, portanto, o Cinema assume para muito alm de sua dimenso como meio e como objeto deestudo a funo de sujeito da Histria.

    CINEMA

    Fonte

    Histrica

    RepresentaoHistrica

    Tecnologia deapoio para a

    Pesquisa Histrica

    Instrumentopara o Ensino

    da Histria

    AgenteHistrico

    Quadro 1: Cinco relaes entre Cinema e Histria

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    O Cinema como agente histrico

    Acompanhando as dimenses norteadoras atrs citadas, se-r possvel adentrar em seguida a complexa relao entre Histriae Cinema a partir de alguns ngulos que convm precisar. Discu-tiremos trs dos eixos fundamentais atrs estabelecidos, quepermitem avaliar o cinema como agente da histria, como fontehistrica, e como meio para produzir uma nova forma de repre-sentao historiogrfica ou de transmisso do conhecimento his-trico.

    Em primeiro lugar, consideraremos a idia de que acima detudo o Cinema pode ser visto ele mesmo como agente histrico.O Cinema mostra-se um agente histrico importante no sentidode que interfere direta ou indiretamente na Histria. Ou, maispropriamente, poderamos acrescentar que o Cinema tem se mos-trado como instrumento particularmente importante ou comoveculo significativo para a ao dos vrios agentes histricos,para a interferncia destes agentes na prpria Histria. O Cinema,

    ento, mostra-se como poderoso instrumento de difusoideolgica, ou mesmo como arma imprescindvel no seio de umbem articulado sistema de propaganda e marketing. Por issomesmo, em uma primeira instncia j se mostra muitointeressante para os historiadores a possibilidade de examinarsistematicamente as relaes entre Cinema e Poder, o que comose ver adiante far da arte flmica e das prticas

    cinematogrficas importante objeto de estudo para a HistriaPoltica (e no apenas para a Histria Cultural).Essa relao entre Poder e Cinema mltipla e igualmentecomplexa. Desde cedo, as diversas agncias associadas aos pode-res institudos compreenderam a importncia do Cinema comoveculo de comunicao, de difuso e at de imposio de idias eideologias. Trate-se de um documentrio, de um filme de propa-ganda poltica, ou de uma obra de fico cinematogrfica, o Ci-

    nema tem sido utilizado em diversas ocasies como instrumentode dominao, de imposio hegemnica e de manipulao pelos

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    agentes sociais ligados ao poder institudo (instituies governa-mentais, partidos polticos, igrejas, associaes diversas), e tam-bm por grupos sociais diversos que tm sua representao social

    junto a estes poderes institudos. Essa tem sido sem dvida umaprimeira relao poltica importante a ser considerada4.

    Por outro lado, o Cinema tambm conservou obviamente asua autonomia em relao aos poderes institudos, e por isso ocor-re que tambm tenha funcionado como Contrapoder. Neste senti-do, se o Cinema com sua produo flmica pode ser examinadocomo instrumento de dominao e de imposio hegemnica,ele tambm pode ser examinado como meio de resistncia. Daque as fontes ligadas ao Cinema podem ser analisadas tanto comodocumentao importante para compreenso dos mecanismos eprocessos de dominao, como tambm podem ser vistas comodocumentao significativa que traz e revela dentro de si mlti-plas formas de resistncias, diversificadas vozes sociais (inclusiveas que no encontram representao junto ao Poder Institudo), ede resto os variados padres de representao relativos a uma

    sociedade.O Cinema e a sua realizao ltima que o Filme

    sempre uma construo polifnica, para utilizar uma metforaemprestada Msica. Nele cantam inevitavelmente todas as vo-zes sociais, no apenas as que invadem a cena atravs de seusdiscursos como tambm as que nela penetram atravs da imagem.Ainda que uma determinada produo flmica seja montada para a

    expresso de um modo de vida que o de alguma classe domi-nante, ou ainda que o filme seja empregado como parte de estra-tgias polticas especficas e ainda que os dilogos principaispostos em cena atendam ou expressem interesses sociais e polti-

    4 Marc Ferro j observava a este respeito: Paralelamente, desde que o cinemase tornou uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na histria com filmes,

    documentrios ou de fico, que, desde sua origem, sob a aparncia de repre-sentao, doutrinam e glorificam (Marc FERRO, Cinema e Histria, Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1992, p.13).

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    cos especficos haver sempre algo que se impe ou d-se aperceber atravs da imagem e que pode revelar inesperadamenteos demais modos de vida, ou algo que se h de impor como con-tra-discurso e entredito que se constri sombra dos dilogos queentretecem o discurso principal.

    Apenas para dar um exemplo de estudo de caso que permitetrazer tona estas relaes, o Cinema apresentou-se no Brasil doEstado Novo com todas estas facetas. Foi utilizado como instru-mento de doutrinao poltica atravs dos documentrios produ-zidos pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda doGoverno Vargas), como veculo para alienao atravs de algunsfilmes e chanchadas de fico, e tambm como instrumento deresistncia e contrapoder a partir diversos outros filmes de fico.Para considerar o caso dos filmes satricos, sempre importantelembrar que a obra de humor artstico pode veicular por diversasvezes crticas ao Poder Institudo que no poderiam circular atra-vs do discurso srio. Essas relaes vrias, por outro lado,podem aparecer em algumas ocasies dentro de um nico filme, o

    que mostra a potencialidade da obra cinematogrfica como produ-to complexo.

    Um filme, enfim, pode se apresentar como um projeto paraagir sobre a sociedade, para formar opinio, para iludir ou denun-ciar. Portanto, um projeto para interferir na Histria, por trs doqual podem se esconder ou se explicitar desde os interesses pol-ticos de diversas procedncias at os interesses mercadolgicos

    encaminhados pela Indstria Cultural. E, certamente, atravs deum filme podem tambm agir os indivduos que representam po-sies especficas. Lembremos aqui os polmicos documentriosde Michael Moore como Tiros em Columbine (2002) ou Fahre-nheit 9/11 (2004) onde o autor, valendo-se do gnero Documen-trio, na verdade o utiliza de uma nova maneira, no apenas pararegistro e interpretao da realidade como tambm com vistas a

    uma explcita e imediata interferncia nesta realidade. Assim, aoocupar a posio de entrevistador, o autor instiga, provoca, assu-

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    me nitidamente uma posio, impe situaes que querem mudaro curso da realidade examinada. Age, portanto, sobre a Histria5.

    Naturalmente que, alm dos usos polticos voluntrios e in-voluntrios, conscientes e inconscientes, os filmes tambm seapresentam como registro das representaes e vises de mundopresentes nas sociedades que os produziram. Tal como se disse,atravs de uma obra flmica expressam-se de maneira complexavrias vozes sociais e diversificadas perspectivas culturais. OCinema, considerado como agente histrico, pode ser por istocompreendido mais propriamente como um feixe de agentes his-tricos diversos e se ele permite um estudo sistematizado dasrelaes polticas, permite tambm um estudo acurado das prti-cas e representaes culturais. Da seu simultneo interesse tantopara a Histria Poltica como para a Histria Cultural.

    O Cinema como fonte histrica

    Se o Cinema agente da Histria no sentido de que inter-fere direta ou indiretamente na Histria, ele tambm interferidotodo o tempo pela Histria, que o determina nos seus mltiplosaspectos. Vale dizer, o cinema produto da Histria e, comotodo produto, um excelente meio para a observao do lugar queo produz, isto , a Sociedade que o contextualiza, que define a

    5 EmBowling for Columbine (2002), a pretexto de investigar a fascinao dosamericanos pelas armas de fogo, Michael Moore questiona a origem dessacultura blica e busca respostas visitando pequenas cidades dos Estados Unidos,onde a maior parte dos moradores guarda uma arma em casa. O ponto de parti-da o colgio Columbine, na cidade de Littleton, onde dois adolescentes usa-ram as armas dos pais para matar 14 estudantes e um professor no refeitrio. /Em Fahrenheit 9/11 (2004), a pretexto de investigar como os EUA se tornaramalvo de terroristas por ocasio dos eventos ocorridos no atentado de 11 de se-tembro de 2001, encaminha-se a denncia de uma rede de poderes polticos e

    econmicos que entretecida atravs de paralelos entre as duas geraes dafamlia Bush que j comandaram o pas, discutindo-se ainda as relaes entre oatual Presidente americano, George W. Bush, e Osama Bin Laden.

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    sua prpria linguagem possvel, que estabelece os seus fazeres,que institui as suas temticas. Por isto, qualquer obra cinemato-grfica seja um documentrio ou uma pura fico sempreportadora de retratos, de marcas e de indcios significativos daSociedade que a produziu. neste sentido que as obras cinemato-grficas devem ser tratadas pelo historiador como fontes histri-cas significativas para o estudo das sociedades que produzemfilmes, o que inclui todos os gneros flmicos possveis. A maisfantasiosa obra cinematogrfica de fico traz por trs de si ideo-logias, imaginrios, relaes de poder, padres de cultura. Estaafirmao, que de resto tambm perfeitamente vlida para asobras de Literatura, d suporte ao fato de que a fonte cinemato-grfica tem sido utilizada com cada vez mais freqncia peloshistoriadores contemporneos.

    O lugar que produz o Cinema tambm o lugar que o rece-be, de modo que a fonte flmica pode dar a compreender umaSociedade simultaneamente a partir do sistema que o produz e doseu universo de recepo. O pblico consumidor e a crtica ins-

    crevem-se desde j na rede que produz o filme, conjuntamentecom os demais fatores que atuam na sua Produo, e isto porqueo pblico receptor sempre levado em considerao nos momen-tos em que o filme elaborado. As competncias e expectativasdo consumo, enfim, so antecipadas no momento em que pro-duzida a obra cinematogrfica, de modo que analisar um filme analisar tambm o pblico que ir consumi-lo6.

    6 Aqui poderemos importar para a compreenso da linguagem flmica, e dasprticas que a acompanham, toda uma abordagem dos sistemas de Comunicaoe da anlise de discursos que j vem avanando bastante no mbito da semiti-ca. Ser possvel estabelecermos, para o discurso mltiplo do Cinema, um para-lelo com o que disseram sobre os discursos da escrita e da oralidade estudiososcomo Bakhtin, que no deixam de observar a todo instante os modos complexos

    como o receptor inscreve-se no momento mesmo da produo de um discurso.Sobre isto veja-se as obras de Bakhtin Marxismo e Filosofia da Linguagem(1981) e Questes de Esttica e de Literatura (1983).

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    Com relao a estes e outros aspectos, a fonte cinematogr-fica, particularmente a fonte flmica, torna-se evidentemente umadocumentao imprescindvel para a Histria Cultural uma vezque ela revela imaginrios, vises de mundo, padres de compor-tamento, mentalidades, sistemas de hbitos, hierarquias sociaiscristalizadas em formaes discursivas, e tantos outros aspectosvinculados de uma determinada sociedade historicamente loca-lizada. Mas como a Indstria Cinematogrfica contempla em to-das estas instncias relaes de poder seja no que concerne sua insero no universo da Indstria Cultural, seja no que serefere sua apropriao pelos poderes pblicos e privados natural que pelos estudos histricos do Cinema se interessemtambm a Histria Poltica, a Histria Social, e mesmo a HistriaEconmica em sua insero com estas modalidades historiogrfi-cas.

    muito importante para o historiador avanar na compre-enso dos poderes que atravessam o Cinema, alguns interferindodiretamente na feitura de filmes. Apenas para nos atermos ao

    mbito dos poderes que circulam na esfera da Indstria Cultural,iremos encontrar todo um conjunto de poderes e micropoderesque enredam a feitura de um filme, e isto variando de acordo comos diversos contextos e com as diversas fases da Histria do Ci-nema. O Cinema que surge com os irmos Lumire ir logo em-preender uma criativa luta para se transformar de mera tecnologiaem Arte, e a partir da se empenha em construir uma linguagem

    inteiramente nova. O Cinema que convive com a Televiso, porexemplo, j outro e deve confrontar-se com a idia de que seusobjetos flmicos em determinado momento passaro das grandesTelas ao circuito da Televiso (e mais tarde, j nas ltimas dca-das do sculo XX, ao circuito da televiso por assinatura e daslocadoras do vdeo). Tudo isto interfere na sua feitura, porque aIndstria Cultural almeja explorar todas as mdias e mercados, e

    neste sentido seus produtos devem ser polivalentes e adaptativoscom vistas gerao de lucros sempre crescentes.

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    Haver mesmo filmes feitos especialmente pela Televiso,e outros previstos para gerarem sries para a Televiso. Quandose escreve um roteiro de filme para televiso, deve-se antecipar asreaes de um telespectador que no est mais preso por duashoras dentro de um recinto fechado de sesso cinematogrficapara a qual j comprometeu o valor de um ingresso. Esse novoespectador que assiste na televiso a um filme seja um filmeque j percorreu o circuito das salas de cinema ou um filme tipi-camente televisivo possui literalmente nas mos um novo po-der: ozapping esta possibilidade de apertar um boto no contro-le remoto e mudar o canal. Os roteiros, desta forma, no podemser concebidos livremente, pois desde o instante da sua gestao

    j sofrem a presena desta formidvel multido de micropoderes. preciso capturar a ateno do espectador comum, e neste senti-do as emissoras pressionaro roteiristas para fazerem cortes nosseus roteiros de modo a conseguirem mais excitao, mais sus-pense, por vezes maior velocidade ou maior nvel de adaptao competncia do espectador comum. Desta maneira, os grandes

    interesses das emissoras e as pequenas expectativas do telespec-tador comum se enredam para pressionar a feitura do filme. Emoperao inversa, ocorre ao historiador que ele pode partir de umfilme aqui tomado como fonte histrica para precisamentedesvendar esta rede de poderes e micropoderes, de expectativasde mercado e competncias espectadoras, de padres culturaisimpostos pela mdia e de representaes culturais que surgem

    espontaneamente. Ou seja, partindo de um produto, ele estarapto a decifrar a sociedade que o produziu.

    Em vista deste mundo de novas possibilidades historiogr-ficas, examinaremos nos prximos pargrafos os diversos tipos defontes relacionadas com o Cinema, e de que podem ser valer oshistoriadores do mundo contemporneo. Ser necessrio conside-rar aqui toda uma gama de fontes importantes, desde aquelas ge-

    radas para e pela produo de um filme como roteiros, sinop-ses, cenrios, registros de marcaes de cenas, mas tambm con-

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    tratos, propagandas, crticas de cinema, receitas e despesas deproduo at aquela que a fonte por excelncia: o filme.

    De fato, no que se refere s fontes primrias para o estudoda Histria do Cinema, ou ento da Histria atravs do Cinema, aprimeira fonte mais bvia a se considerar o prprio filme, oproduto final da arte cinematogrfica. Neste sentido, um ponto departida metodolgico para examinar sistematicamente a relaoentre Cinema e Histria deve vir ancorado na compreenso deque o filme, pretenda ele ser imagem ou no da realidade, e en-quadre-se dentro de um dos gneros documentrios ou dentro deum dos gneros de fico, em todos estes casos Histria. Noimporta se o filme pretende ser um retrato, uma intriga autntica,ou pura inveno, sempre ele estar sendo produzido dentro daHistria e sujeito s dimenses sociais e culturais que decorremda Histria isto independente da vontade dos que contriburam einterferiram para a sua elaborao.

    Assim, o mais fantasioso filme de fico cientfica no ex-pressa seno as possibilidades de uma realidade histrica, sejacomo retratao dissimulada, como inverso, como tendnciadiscursiva que o estrutura, como viso de mundo que o informa eque o enforma (que lhe d forma), e assim por diante. por isto,tal como se observou antes, que sempre possvel dizer que afico, por mais criativa e imaginativa que seja, permite em todosos casos uma aguda leitura da realidade social e histrica, o queimplica em dizer que o historiador ou o analista da fonte docu-mental cinematogrfica sempre poder almejar enxergar por trsde um filme algo da sociedade que o produziu, e que poder ana-lisar a fonte flmica como um produto complexo que se v poten-cializado pelo fato de que para ela confluem diversos tipos delinguagens e materiais discursivos denunciadores de uma poca,de caminhos culturais especficos, de agentes sociais diversos, derelaes de poder bem definidas, de vises de mundo multi-

    diversificadas.

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    Apenas para registrar um exemplo, a Los Angeles do scu-lo XXI que nos apresentada em Blade Runner(1982) um fil-me que intermescla os gneros da fico cientfica e do filmepolicial uma Los Angeles certamente fictcia, imaginada peloromancista de cujo texto foi extrado o enredo e pelo roteirista dapelcula7. Contudo, uma anlise acurada poderia nos mostrar co-mo so projetadas nesta Los Angeles imaginria vrios dos me-dos tpicos dos americanos ou do homem moderno, de modo ge-ral.

    A Los Angeles de Blade Runner, com seu submundo for-mado por ruas estreitas e poludas habitadas por uma populaoque se reparte em etnias e dialetos, e que se v contraponteadopor prdios de centenas de andares e por uma sofisticada tecnolo-gia, certamente o espao imaginrio de projeo de alguns dosgrandes medos americanos: a poluio, a violncia, a escassezalimentar, a opresso tecnolgica, a presena de migrantes vindosde outros pases, a ameaa da perda de uma identidade propria-mente americana, os desastres ecolgicos que no filme apare-

    cem sob a forma de uma chuva cida com a qual tm de conviveros habitantes deste futuro imaginrio. Os replicantes andridescriados pelos homens do futuro expressam com sua revolta ostemores dos homens de hoje diante de uma tecnologia que podesair do controle, da criatura que ameaa o criador tema que deresto sempre foi caro fico cientfica j clssica.

    7Blade Runner filme de Ridley Scott produzido em 1982 com base no roman-ce de Philip K. Dick traz uma viso apocalptica ambientada no incio dosculo XXI, poca em que uma grande corporao havia desenvolvido umandride que mais forte e gil que o ser humano. Estes replicantes eram utili-zados como escravos na colonizao e explorao de outros planetas, at queum grupo dos robs mais evoludos provoca um motim em uma colnia fora daTerra, e a partir deste incidente os replicantes passam a serem consideradosilegais na Terra. A partir de ento, policiais de um esquadro de elite, conheci-dos como Blade Runner, so orientados para exterminar qualquer replicanteencontrado na Terra. At que, em 2019, quando cinco replicantes chegam aTerra, um ex-Blade Runner encarregado de ca-los.

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    De igual maneira, na temtica de um mundo dominado econtrolado por uma mega-corporao, aparecem nos labirintosdiscursivos deBlade Runneros receios diante de um futuro ondea Empresa Capitalista passa a assumir o papel de Estado e a terplenos poderes sobre a vida e a morte de todos os indivduos oque, em ltima instncia, traz tona o temor diante da possibili-dade da perda de liberdade individual. Para alm disto, as rela-es entre os homens e a Memria, na qual se apiam para aconstruo de sua identidade individual e que no entanto lhes to inconsistente, so trazidas a nu na famosa cena que se refere auma replicante que no possui sequer a conscincia de ser umareplicante (isto , no-humana), e que se depara com a cruel rea-lidade de que a memria que foi nela implantada no correspondea nenhuma vivncia efetiva8. As relaes com Deus e a Morte porfim, aparecem na parbola que d forma geral ao filme atravs deum enredo onde os replicantes procuram obstinadamente os seuscriadores na esperana de prolongarem a prpria vida, e que trazcomo um dos desfechos a cena da Criatura que termina por assas-

    sinar o seu Criador, evocando as intrincadas relaes psicolgicasque permeiam desde sempre as relaes entre o homem e Deusatravs das realidades religiosas por ele mesmo engendradas nahistria real. Por fim,Blade Runnerlevanta em diversas ocasies

    8 No filme Blade Runner, os replicantes no possuem memria, visto que jnascem prontos, preparados que so para durarem apenas quatro anos. No casoda replicante mencionada (Rachel), tratava-se ainda de um caso especial: umareplicante que fora programada para pensar que era humana, e que por issopossua uma memria implantada que acreditava corresponder a vivnciasefetivas (e que era reforada por fotografias que ela possua e que acreditavaserem fotos suas de infncia). O filme deixa no ar, alis, a possibilidade de queo prprio Deckard (o caador de andrides) poderia ser ele mesmo um replican-te que acreditava ser humano, tal como a replicante Rachel. Como saber, enfim,se as memrias que possumos so realmente nossas, correspondentes a experi-ncias efetivas que um dia foram vividas por ns (?) tal a reflexo percorri-da nas cenas de Blade Runnerque evocam as relaes dos personagens hu-

    manos ou replicantes com a Memria. A este propsito, cumpre lembrar queRidley Scott procurou dotar seu filme de uma srie de ambigidades, permitin-do que dele surjam diferentes leituras.

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    um questionamento tpico desta nossa poca que entremeia o Reale o Virtual e que, para alm disto, ensejou perturbadoras reflexesfilosficas sobre a desconstruo do sujeito, esta desconstruoto tpica da ps-modernidade e que vem abalar fortemente ascertezas do homem contemporneo em relao sua prpria exis-tncia objetiva9. Eis, portanto, um exemplo entre tantos que pode-riam ser dados de que toda a fico est sempre impregnada darealidade vivida, seja com a inteno ou sem a inteno de seuautor.

    por isto que, a princpio, qualquer filme seja um polici-al, um filme de fico cientfica, uma porn-chanchada, um filmede amor pode ser constitudo em fonte pelo historiador que este-

    ja interessado em compreender a sociedade que o produziu e queo tornou possvel como obra. Desnecessrio dizer que um filmeambientado na Idade Mdia que seja elaborado hoje falar aohistoriador muito mais sobre a Idade Contempornea do que so-bre a Idade Mdia. Seria de se perguntar o quanto o filme Cruza-da de Ridley Scott (2005) que acompanha a narrativa de uma

    cruzada medieval ocorrida em 1185 fala-nos por exemplo doimpacto da Guerra do Iraque e de outros confrontos contempor-neos envolvendo naes ocidentais e o mundo islmico. Ou, paralembrar outro filme de Scott, at que ponto O Gladiador(2004) ao abordar o Imprio Romano no nos fala do Imprio Ameri-cano, do Jogo de Poder, da corrupo e decadncia? Por outrolado, um filme ambientado na Idade Mdia que tome para base

    um texto medieval comportar em si um importante dilogo entreduas pocas, de grande interesse para os historiadores.

    ainda oportuno lembrar que os filmes tambm podem sertrabalhados em srie, e no apenas a partir de anlises individua-lizadas de seus discursos e de seu enredo. Pode-se estudar a evo-luo de interesses temticos a partir de um levantamento geral de

    9

    Neste sentido, Blade Runnerprenuncia uma discusso sobre o verdadeiroestatuto da realidade que mais tarde seria a temtica de base de outro grandemarco do Cinema Americano, o filmeMatrix (2003).

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    obras flmicas em um determinado perodo. Se os tempos recentesmostram a renovao de interesses por filmes ambientados naIdade Mdia ou em tempos antigos, isso certamente diz algo aohistoriador sobre o atual contexto scio-cultural, ou mesmo pol-tico, que permitiu a renovao deste interesse. Com a produoligada ao Cinema ocorre, de resto, o que tambm se verifica paraa produo literatura ou artstica em geral. A emergncia de de-terminado tipo de obras, os temas que por elas circulam, o seuvocabulrio, as novidades formais que se tornam possveis ... tudoisto nos fala ainda mais dos receptores da obra do que de seusprprios autores individualizados.

    As possibilidades de fontes histricas relativas ao Cinemano se esgotam nesta obra final que o filme propriamente dito.Para alm desta fonte mais bvia, e que pode ser examinada sobsua forma de registro em Vdeo, preciso considerar ainda que afonte flmica gera outros tipos de fontes como substratos, etapas einstrumentos de trabalho. Por exemplo. O Roteiro mostra-secomo um tipo de transposio literria do filme, que ter sido em

    algum momento tanto um instrumento de trabalho para os produ-tores do filme, como ter se convertido em outro momento emobra literria por si mesma, posta venda para a leitura de inte-ressados. Este tipo de fonte tambm apresenta grande utilidadepara o historiador e estudiosos de Cincias de Comunicao queestudam o Cinema. Naturalmente que os mtodos de anlise quese direcionam para o filme na sua forma de imagens projetadas

    na tela e que deste modo se apresenta como uma obra integralque incorpora diversas linguagens devem ser diferenciados dosmtodos a serem empregados para a anlise do Roteiro, transpo-sio do enredo e dilogos do filme para o texto escrito.

    Para alm disto, outros tipos de substratos de filmes tam-bm podem ser considerados, como a Sinopse que consiste emum tipo especializado de Resumo do filme, e que se diferencia

    radicalmente do Roteiro pelo seu carter breve e sinttico. Poroutro lado, preciso ainda considerar que o Filme tambm gera

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    documentao sobre o Filme. Por exemplo, a Crtica deixa regis-tros textuais de suas leituras sobre filmes especficos atravs deCrnicas Especializadas, normalmente publicadas em Jornais eRevistas. Este tipo de fonte tambm deve ser abordado pelo histo-riador do Cinema, com a plena conscincia de que neste caso eleno estar mais estudando o filme como fonte direta, mas simexaminando um discurso que se estabelece sobre o filme. Os de-poimentos dos prprios autores e envolvidos na produo do fil-me tambm podem ser enquadrados nesta modalidade de fontessobre o Cinema, e um outro substrato possvel so as propagandassobre o produto cinematogrfico, seja a propaganda sobre o filmeque vai s telas de cinema (ou de televiso, posteriormente), sejaa propaganda sobre o filme convertido em vdeo para circular naschamadas locadoras.

    H ainda a documentao propriamente dita sobre Cinema(no sentido de documentao registrada atravs da escrita). Talcomo j se disse o Cinema tambm gera apropriaes, manipula-es e resistncias. Estas relaes, que permeiam a prpria intera-

    o entre Histria e Cinema, tambm geram inmeros tipos dedocumentao que podem ser utilizados pelos historiadores. Po-de-se estudar por exemplo a documentao oficial, institucional egovernamental sobre a produo cinematogrfica: Legislaosobre a normatizao e controle do Cinema, documentos da Cen-sura, e assim por diante. Apenas para dar um exemplo, os suces-sivos governos brasileiros exerceram cada qual um tipo de polti-

    ca cultural para a produo cinematogrfica; alguns, como o go-verno do Estado Novo, criaram mesmo rgos para produzir fil-mes para fins de Propaganda Governamental, para a difuso deideologias, e assim por diante. O Cinema, enfim, est sujeito aeste tipo de apropriaes, embora ao mesmo tempo tem um graude autonomia enquanto obra de arte que deve ser considerado.

    Fontes ensasticas sobre o Filme, escritas nos vrios pero-

    dos da Histria do Cinema, tambm podem revelar como o Cine-ma tem sido visto pela Sociedade, por setores especficos desta

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    sociedade, e por agentes histricos e artsticos vrios. Desta for-ma, os Ensaios sobre o Cinema podem ser tomados como fontespara a anlise das vrias vises de mundo sobre o Cinema. Assim,por exemplo, diversos cineastas escreveram textos importantessobre o Cinema, como Jean Epstein10, Jean Renoir11, Serguei Ei-senstein12, Jean-Claude Carrire13, Franois Truffaut14, e tantosoutros. Da mesma forma, outros escreveram autobiografias quecertamente elucidam suas relaes com o Cinema, bem comoaspectos de sua insero como cineastas em uma sociedade pro-dutora e consumidora de filmes. Entre estes podemos citar LusBuuel15 e Frederico Fellini16, que tambm nos oferece outroexemplo de fonte importante para compreender o pensamento, asprticas e as representaes dos autores de filmes: a Entrevista17. tambm o caso das entrevistas de Franois Truffaut 18. Todosestes tipos de fontes podem ser trabalhados pelos historiadoresem conexo com fontes flmicas propriamente ditas, apenas paraconsiderar os textos de autoria dos prprios produtores diretos defilmes19.

    10 Jean EPSTEIN, "O Cinema e as Letras Modernas" (1921) In: XAVIER, Ismail(Org.).A Experincia do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1991.11 Jean RENOIR, Escritos sobre o Cinema: 1926-1971, Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 1990.12 (1) Serguei EISENSTEIN,A Forma do Filme, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,1990. (2) Serguei EISENSTEIN, O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahareditor, 1990.13 Jean-Claude CARRIRE,A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira, 1995.14 F. TRUFFAUT, Os filmes de minha vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989.15 Luis BUUEL,Meu ltimo suspiro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.16 Frederico FELLINI, Fellini por Fellini, Lisboa: Don Quixote, 1985.17 Frederico FELLINI, Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Petti-grew,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995.18 Franois TRUFFAUT. Truffaut / Hitchcock Entrevistas. Brasiliense, So Paulo,1986.19 J nem mencionaremos a vasta literatura ensastica e de crtica cinematogrfi-

    ca que trazem a nu as diversas representaes. vises de mundo e anlises indi-viduais sobre o cinema ou sobre filmes especficos, e que podem ir desde asobras filosficas de DELEUZE at as crnicas dirias sobre a produo flmica.

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    Algumas questes de Mtodo

    Situadas as fontes possveis para uma Histria do Cinema,ou para uma Histria que construda atravs da observao daproduo cinematogrfica de um determinado perodo, podem sersituadas agora algumas coordenadas metodolgicas importantes aserem consideradas. No que se refere fonte flmica propriamen-te dita o objeto filme na sua realizao final uma coordenadametodolgica importante a ancorar a anlise de fontes a ser em-preendida deve estar apoiada na compreenso de que o Cinema ea obra flmica so construdos a partir de diversos discursos dis-tintos que se entrelaam e interagem entre si. Por isso, para com-preender tanto as possibilidades formais e estruturais como oscontedos encaminhados por um filme, faz-se necessrio ultra-passar a anlise exclusiva dos componentes discursivos associa-dos escrita (os dilogos e os roteiros, por exemplo).

    Obviamente que no suficiente examinar o roteiro trans-formado em obra literria (por exemplo, sob a forma de livro),

    embora este tipo de texto tal como j se disse tambm sejauma fonte importante para a anlise. Da mesma maneira, tambmno suficiente assistir ao filme na sua realidade projetada (ofilme assistido como pelcula cinematogrfica) se o olhar conti-nua a acompanhar analiticamente apenas os componentes discur-sivos escriturveis (isto , passveis de serem traduzidos em ter-mos de texto linear). Dito de outro modo, de nada adianta assistir

    ao filme como realizao integral se s direcionaremos a anlisepara o roteiro e dilogos que so sem dvida importantes masque, certamente, no constituem toda a realidade da fonte flmicaa ser examinada.

    Uma metodologia adequada anlise flmica necessita sercomplexa. Deve tanto examinar o discurso falado e a estruturaoque se manifesta externamente sob a forma de roteiro e enredo,

    como analisar os outros tipos de discursos que integram a lingua-gem cinematogrfica: a visualidade, a msica, o cenrio, a ilumi-

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    nao, a cultura material implcita, a ao cnica sem contar asmensagens subliminares que podem estar escondidas em cada umdestes nveis e tipos discursivos, para alm do subliminar quefreqentemente se esconde na prpria mensagem falada e passvelde ser traduzida em componentes escritos.

    Para dar um exemplo da importncia de uma anlise pluri-diversificada para o caso do Cinema, a Histria registra diversosexemplos de crticas a poderes e sistemas polticos que consegui-ram atravessar sistemas de censura bastante rigorosos pelo sim-ples fato de que os censores burocrticos eram desprovidos deuma cultura visual adequada para decifrar a ideologia de umaobra sem se ater meramente anlise superficial dos componen-tes escritos de um filme (roteiro e dilogos, basicamente). estenvel superficial de anlise que precisa ser ultrapassado pelo estu-dioso do Cinema como objeto de significao cultural e poltica,seja este estudioso um historiador ou um pesquisador daComunicao. Para superar limites deste tipo, a metodologia paraanlise flmica deve ser acima de tudo multidisciplinar e pluridis-

    cursiva.Em vistas disto, a metodologia utilizada para a anlise fl-mica deve considerar antes de mais nada que a obra cinematogr-fica dispe de determinado nmero de modos de expresso queno so mera contrapartida ou transcrio da escrita literria, masque tm, ao contrrio, a sua prpria especificidade.

    Uma dimenso fundamental dentro do feixe discursivo queintegra a linguagem cinematogrfica refere-se, naturalmente, ao

    discurso imagtico. Princpios metodolgicos anlogos aos queinspiraram os primeiros analistas modernos de documentaoiconogrfica devem ser, em uma primeira medida, considerados.Referimo-nos ao fato de que, tanto na iconografia como na ima-gem flmica, faz-se necessrio partir da imagem em si mesma ou seja, consider-la na sua especificidade. Dito de outra forma,no se deve buscar nas imagens somente o reflexo ou a ilustrao

    seja em forma de confirmao ou de desmentido de outrosaber que o da tradio escrita. As imagens, enfim, devem ser

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    consideradas como tais, a partir de sua natureza especfica, o queimplica para o historiador, por exemplo, lanar mo de outrossaberes para melhor compreend-las. Refora-se aqui, como sem-pre, a postura francamente interdisciplinar que deve estar envol-vida na metodologia de anlise flmica.

    A especificidade do discurso imagtico que se integra aodiscurso cinematogrfico e aqui estaremos falando de imagensque se colocam em movimento, o que j traz por si novas singula-ridades naturalmente apenas um aspecto. O filme, como sedisse, elaborado a partir de vrios substratos integrados. E preciso aplicar as diversas metodologias possveis a cada um des-ses substratos seja o das imagens (que podem ser imagens sono-rizadas ou no-sonorizadas), o da trilha sonora, o do cenrio, o dalinguagem da ao gestual e cnica, sem contar o substrato maisevidente do discurso falado que transparece atravs dos dilogose da estruturao lgica que d forma ao roteiro. Trata-se, ento,de analisar densa e integradamente a narrativa, o cenrio, a escri-tura. Sobretudo, trata-se de aplicar metodologia de anlise s re-

    laes possveis entre os componentes internos a cada um destessubstratos, e s relaes destes entre si.

    A compreenso de que cada tipo de registro discursivo quese integra obra flmica deve implicar em uma postura analticaprpria, que leve em considerao as especificidades do tipo dediscurso (verbal, imagtico, musical, etc ...), deve tambm seracrescida de uma preocupao com outro tipo de especificidades:

    o do gnero de cada obra cinematogrfica a ser examinada. Talcomo dissemos em pargrafo anterior, no importa se o filme documentrio ou fico ele sempre ser um produto Histricoque permite uma determinada leitura desta mesma Histria. Mas preciso estar atento para a singularidade de cada gnero cinema-togrfico seja o documentrio, o filme de propaganda, a intrigaautntica, a fico de ambientao histrica ou no. Cada um

    destes gneros ou qualquer outro possui, parte aquilo que tpi-

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    co da obra flmica em sentido geral, a sua prpria especificidadediscursiva.

    A mesma ateno metodolgica deve se direcionar para asmodalidades que atravessam os gneros cinematogrficos. Umfilme de fico, por exemplo, pode se apresentar como Drama,como Tragdia, como Comdia, e cada uma destas modalidadesdeve ser compreendida em sua prpria especificidade de modo apermitir uma aproximao metodolgica adequada. Uma Com-dia, cujo objetivo declarado o de fazer rir, no pode ser analisa-da da mesma forma que um Drama ou uma Tragdia.

    Voltaremos mais adiante com algumas exemplificaes re-lacionadas s modalidades e gneros flmicos, mais particular-mente abordando o caso dos filmes histricos e de suas relaescom os vrios tipos de fontes historiogrficas disposio doroteirista. Por ora, ainda para discutir algumas questes de mto-do, vale lembrar que para alm do filme em si mesmo conside-rado como objeto esttico e como produto constitudo a partir dedeterminados substratos que se interconectam na linguagem fl-

    mica a metodologia de anlise histrica que toma para objeto afonte flmica deve atentar muito sistematicamente para as rela-es do filme com aquilo que no propriamente o filme. Assim,em torno do filme que se toma para anlise, h que se consideraro autor, o sistema deproduo que o consubstancia, opblico aquem se dirige e que reprocessa diversificadas leituras do filmeconsumido, a crtica que o avalia de um ponto de vista menos ou

    mais especializado, e o regime de sociedade e poder que cons-trange ou delimita as possibilidades de elaborao deste filme. Apartir destes mltiplos aspectos que conformam os lugares deproduo, difuso e recepo da obra cinematogrfica, torna-seento possvel chegar no apenas compreenso da obra, mastambm da realidade que ela representa.

    Resta dizer que preciso captar com mtodo no apenas o

    que intencional no documento flmico, mas tambm aquilo que no-intencional, involuntrio, inconsciente, casual. Tomando-se

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    por exemplo o gnero documentrio, e considerando-se hipoteti-camente um filme que pretendesse registrar um determinado e-vento, o analista dever atentar para o fato de que, se a cmeradireciona necessariamente um determinado olhar para a realidadeenfocada (e este olhar direcionado deve ser ele mesmo objeto daanlise), essa mesma cmera ir inevitavelmente captar involunta-riamente muitos outros aspectos da realidade dentro da qual ocor-re o evento a ser filmado. Assim o evento a ser captado ser ine-vitavelmente invadido pelo inesperado e pelo involuntrio,sem contar o automtico e o imaginrio que se pode tornarperceptvel nos gestos, na indumentria do pblico indiferenciadoque faz parte da cena, nos padres de comportamento que serotrazidos cena embora no constitussem intencionalmente oobjeto da filmagem. Em suma, todo documento flmico tem umariqueza de significao que no percebida no momento mesmoem que ele feito, e o analista da fonte cinematogrfica deveestar preparado para captar estes aspectos e integr-los ao objetode sua anlise.

    A ideologia, por exemplo, est sempre a escapar atravsdesta fonte privilegiada que a obra cinematogrfica. Os extratosideolgicos, naturalmente, podem ser decifrados a partir dos ele-mentos aparentemente mais casuais, ou dos detalhes diversos.Neste sentido, possvel retomar as observaes de Marc Ferro20:

    [...] um procedimento aparentemente utilizado para exprimir

    durao, ou ainda uma outra figura (de estilo) transcrevendo umdeslocamento no espao, etc., pode, sem inteno do cineasta,revelar zonas ideolgicas e sociais das quais ele no tinha neces-sariamente conscincia, ou que ele acreditava ter rejeitado

    Enfim, tanto o intencional como o no-intencional devemser objetos da ateno daquele que analisa a fonte flmica. Nestesentido, pode ser empregada para a anlise historiogrfica da fon-

    20 Marc FERRO, op.cit., p.16.

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    te flmica uma espcie de contrapartida da chamada anlise in-tensiva ou da descrio densa que tem sido empregadas pelosmicro-historiadores e pelos antroplogos nos seus respectivoscampos de investigao. Trata-se, ento, de direcionar ateno emtodo para aspectos casuais, detalhes, indcios, dimenses darealidade flmica da qual freqentemente no se apercebem mes-mo os profissionais envolvidos com a sua produo.

    O Cinema na sua especificidade e em sua relao com outrasartes

    Do que se disse acima sobre algumas questes de mtodorelativas anlise histrica de filmes, pudemos ver que existemduas questes primordiais a serem consideradas antes da opera-cionalizao de qualquer mtodo. De um lado, o Cinema introduzno mundo da cultura uma linguagem nova, dotada de suas pr-prias singularidades. De outro lado, ele ponto de confluncia de

    diversas outras linguagens para alm daquela linguagem Verbal-Escrita com a qual os historiadores esto to acostumados, o queimplica tanto na necessidade de se conhecer cada um destes regis-tros de comunicao (a visualidade, a sonorizao, a oralidade, acenografia, a arquitetura, e assim por diante) como tambm nanecessidade de se compreender as relaes que podem ser estabe-lecidas entre a arte cinematogrfica e estes registros quando fora

    de sua aplicao mais propriamente integrada ao Cinema (porexemplo, no apenas o uso da msica no Cinema de modo a criaruma trilha sonora adequada, ou o uso da iconografia para constru-ir cenrios, mas tambm a possibilidade de a obra flmica citarintertextualmente obras musicais e iconogrficas j existentescomo se estivesse dialogando com elas). Vejamos todas estasquestes por partes.

    Mencionamos no incio deste ensaio o fato de que o Cine-ma veio trazer uma linguagem nova e singular cultura miditica

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    do mundo contemporneo. Iniciando-se em algumas de suas pri-meiras experincias como filmagem de um ambiente esttico, ocinema rapidamente evolui ainda em incios do sculo XX para a inevitvel descoberta de novos recursos que envolvem afilmagem da imagem em movimento, a mudana de cenas interre-lacionadas em novas formas de narrativa, a montagem, e tantosoutros fatores que vieram dotar o cinema de uma notvel singula-ridade.

    Nem sempre foi assim. Quando surgiu, o Cinema trouxe deimediato uma tecnologia radicalmente nova, mas no ainda umalinguagem nova. Tal como ressalta Jean-Claude Carrire em seulivro sobreA Linguagem do Cinema21, nos primeiros dez anos desua existncia um filme consistia em um encadeamento de diver-sas tomadas estticas, dentro de uma viso teatral que mostravauma seqncia ininterrupta de acontecimentos dentro de um en-quadramento imvel. Ou seja, assistia-se a um filme neste primei-ro momento como se assiste a uma pea de teatro, e somente sur-giu efetivamente uma linguagem nova quando os autores de fil-

    mes comearam a cortar o filme em cenas, dando origem aos pro-cedimentos da montagem e da edio. Neste ponto, o Cinemasurge j como uma linguagem nova que necessita ser aprendidatanto pelos produtores como pelos receptores de filmes, pois opblico precisava literalmente aprender uma nova gramtica queimplicava em se acostumar a relacionar entre si cenas que noestavam mais ligadas atravs de uma seqncia ininterrupta. O

    cineasta Jean-Claude Carrire registra um exemplo que ilustraperfeitamente a questo:

    21 Jean-Claude CARRIRE, A Linguagem Secreta do Cinema, Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1995, p.14. / Jean-Claude Carrire (1931 - ...) roteirista dediversos filmes importantes do Cinema Europeu, entre os quais O Tambor(1979), Brincando nos campos do Senhor(1991), A Bela da Tarde (1966), OFantasma da Liberdade (1973) e Este obscuro objeto do desejo (1977) estes

    trs ltimos em colaborao com Lus Bruuel e tambm de alguns roteirosque investem na relao com a Histria, comoDanton o processo da Revolu-o (1982) e O Retorno de Martin Guerre (1993), em parceria Daniel Vigne.

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    Um homem, num quarto fechado, aproxima-se de uma janela eolha para fora. Outra imagem, outra tomada, sucede a primeira.Aparece a rua, onde vemos dois personagens a mulher do ho-mem e o amante dela, por exemplo. Para ns, atualmente, a sim-

    ples justaposio dessas duas imagens, naquela ordem, e at naordem inversa (comeando na rua), revela-nos claramente, semque precisemos raciocinar, que o homem viu, pela janela, a mu-lher e o amante na rua. Ns sabemos; ns o vimos no ato de ver.Interpretamos, corretamente e sem esforo, essas imagens super-postas, essa linguagem. Nem percebemos mais essa conexo e-lementar, automtica, reflexiva; como uma espcie de sentido ex-tra, essa capacidade j faz parte do nosso sistema de percepo.H oitenta anos, no entanto, isso constituiu uma discreta mas

    verdadeira revoluo [ ... ]22

    O que Carrire ressalta no trecho acima fundamental paraque compreendamos como o Cinema comeou a constituir umalinguagem nova, bem diferente, por exemplo, da linguagem a queos espectadores j estavam acostumados com a sua arte irm, emuito mais velha: o Teatro. O espectador do teatro v as cenas

    uma atrs da outra, como se fosse um fio narrativo nico, ou pelomenos blocos maiores de narrativas unidirecionadas. O expecta-dor do Cinema, contudo, depara-se com cenas e tomadas que sealternam rapidamente, e que ele precisa correlacionar. Ele teve deadquirir um nvel de competncia que o habilitasse a uma novaleitura de imagens. Na cena acima descrita, ele precisa imediata-mente compreender que a cena do homem que olha pela janela e a

    cena seguinte, de um casal que se encontra na rua, esto relacio-nadas. Esse tipo de correlao pode parecer muito fcil para oespectador que j nasceu no mundo do Cinema e das novas m-dias, mas para os espectadores da poca esta nova forma de lerimagens e cenas precisou ser aprendida. Tanto que no princpio,era comum a figura dos explicadores, que eram pessoas queficavam ao lado da tela explicando o que acontecia.

    22 Jean-Claude CARRIRE, op.cit., p.15.

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    O Cinema, portanto, ao mesmo tempo em que avanou paraum tipo de linguagem bem diferenciada da narrativa teatral maistradicional, precisou criar no seu pblico novas competnciasleitoras (ou novas competncias espectadoras). Os filmes, com otempo, foram ensinando ao pblico uma nova maneira de ler ima-gens em movimento e entender a sua integrao no interior de umsistema de cenas cortadas e de montagens que foi se sofisticandocada vez mais at atingir recursos como os recuos de tempo, acriao de efeitos expressivos atravs dos vrios tipos de tomadasde cmara e ngulos de viso, e assim por diante. Enfim, haviaum novo cdigo a aprender.

    A nova linguagem trazida pelo Cinema ou a nova gra-mtica cinematogrfica, para utilizar uma expresso criada porJean Epstein em 192623 inclua possibilidades discursivas eexpressivas at ento inimaginveis. O simples deslocamento doponto de vista a partir da cmera podia criar espaos novos e situ-aes psicolgicas diferenciadas umas das outras. Podia-se utili-zar a cmera focalizar um personagem de baixo para cima para

    fazer com que ele aparecesse ameaador e todo-poderoso, ou pararessaltar a exuberncia fsica de uma mulher, ou, ao contrrio,focalizar um personagem de cima para baixo para mostr-lo ame-drontado, insignificante ou inexpressivo. Podia-se utilizar um tipoou outro de iluminao de baixo para cima, de cima para baixo,em ngulo, com maior ou menor intensidade, com insero de cor para ressaltar as rugas e as mas do rosto de modo a desenhar

    um personagem como depressivo e aterrador ou, ao contrrio, demodo a mostr-lo suave ou complacente ao fazer incidir sobre eleuma iluminao diluda, suave e impressionista.

    Para alm dos efeitos de cmera, luz e cenrios, a mera dis-posio de cenas na sua relao umas com as outras podia criarefeitos e situaes diversas como as sensaes de avano ou re-

    23 Jean EPSTEIN, Le Cinematographe Vu de lEtna In crits sur le Cinma,Tome I, 1927-1947. Cinma Club / Seghers, Paris : 1974, p.131-168.

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    cuo no tempo, ou de que se estava capturando os pensamentos, aslembranas ou as fantasias de um personagem. Se em uma cenaum personagem observa um outro encolerizado, e na cena seguin-te o personagem enraivecido aparece estrangulando o seu antago-nista, cria-se uma associao entre estes dois eventos como se eleestivesse acontecendo no presente do filme. Contudo, se em se-guida a estas duas cenas volta-se situao original do persona-gem que olha encolerizado para o seu oponente, imediatamente acena anterior do confronto fsico entre os dois personagens assimilada como um devaneio do personagem que desejaria estarestrangulando o seu oponente. Exemplos similares, poderiammostrar como a simples justaposio de cenas pode converteruma cena em lembranas de um personagem que remetem aopassado do filme.

    Recursos diversos de desintegrao da imagem, de desfoca-lizao, de flutuao da imagem tambm entram nessa gramtica,que nos dias de hoje perfeitamente compreendida pelo especta-dor mediano de Cinema. Uma desfocalizao ou flutuao de

    imagens, por exemplo, pode ser utilizada como recurso para re-meter aos pensamentos de um personagem ou ao seu universoonrico. Uma seqncia de cenas onde um determinado persona-gem olha para uma rua, fitando a mulher amada, e subitamente vessa imagem se esvaecer at que a rua fica vazia, focalizando-seem seguida uma lgrima lhe foge dos olhos, compreendida ime-diatamente pelo espectador como um conjunto de cenas em que o

    personagem esteve se lembrando de cenas de seu passado. Emsuma, atravs da mera disposio de cenas, o autor de filmes podesugerir a captura de todo um universo interior de seus persona-gens, de seu passado, de eventos que se deslocam no tempo, deestados emocionais diversificados. Tudo isso se tornou possvelporque o Cinema construiu uma nova gramtica, formada porimagens, sinais, padres de conexo entre as cenas, efeitos de

    foco, deslocamentos de cmera, tomadas a partir de vrios pontosde vista, tipos de iluminao e modos de justaposio de imagens.

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    O Cinema pde mesmo, atravs de seus fantsticos recursosa servio de uma nova gramtica, operar verdadeiros milagres atento impensveis. Filmar o lento e gradual desabrochar de umaflor, e depois passar estas imagens em cmera acelerada, permitiuao homem contemporneo enxergar o que at ento ningum ja-mais havia visto. A filmagem em cmera acelerada ou em cmeralenta, por assim dizer, veio a permitir que a partir do Cinema ohomem se transformasse no senhor imaginrio do tempo. Elepoderia comprimir o tempo vontade, estend-lo indefinidamen-te, interromp-lo subitamente ao congelar a imagem de um atletaem pleno salto, examinar em movimento lento os lances de umapartida de futebol que conduzem ao gol, voltar o tempo de trspara diante filmando ao avesso o milagre da vida. Da mesmaforma, o autor de filmes podia a qualquer instante imobilizar acena transformando a imagem-movimento tpica do cinema emuma simples fotografia; ou, ao contrrio, exibir uma singela foto-grafia e de repente gerar vida trazendo-lhe novamente o movi-mento. O Cinema, enfim, no cessou de trazer inovaes a esta

    nova gramtica que comeou a ser montada desde os anos trintado sculo XX. E, a par disto, o seu pblico ia se educando emuma nova maneira de enxergar o mundo de imagens que o Cine-ma lhe oferecia.

    A constante recriao da linguagem cinematogrfica e dascompetncias leitoras de seu pblico, alis, no cessa de ocorrer.Alguns filmes americanos mais recentes, por exemplo como o

    caso deMatrix (2003) ensinam aos seus espectadores um modode leitura que deve ser mais rpido, mais imediato, mais gil noque se refere necessidade do espectador correlacionar as cenas,sob o risco de perder o fio do sentido24. Ao mesmo tempo, exis-

    24 O enredo deMatrix gira em torno de um personagem chamado Thomas An-derson (interpretado pelo ator Keanu Reeves), que um jovem programador de

    computador que mora em um cubculo escuro e que freqentemente atormen-tado em seu sono noturno por estranhos pesadelos nos quais encontra-se conec-tado por cabos em um imenso sistema de computadores do futuro. Em todas

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    tem outros padres flmicos, trazendo outros modos rtmicos.Embora todos os autores de filmes lidem com recursos em co-mum que j fazem parte da arte flmica e de seu repertrio depossibilidades a montagem, os usos da cmera, e assim por di-ante foroso lembrar que no existe na atualidade uma nicalinguagem flmica no que se refere a aspectos como o ritmo deleitura, o estilo, ou a concepo da obra. Para a questo do ritmo,compare-se por exemplo Matrix de Andy e Larry Wachowski(2003) com Sonhos de Akira Kurosawa (1990), que nos apresentaum ritmo mais lento e em alguns episdios calcado em outro mo-do de leitura de imagens, quase pictrico25.

    De qualquer modo, imperativo reconhecer que o Cinemafoi com o desenvolvimento de suas prticas e representaes construindo a sua prpria linguagem, dotada de singularidadesque so s suas. Isto no nos impede de ressaltar, evidentemente,que o Cinema no deixa de se constituir tambm na conflunciade vrias linguagens ligadas a outras formas de expresso artsticaque o precedem como a Msica, a Literatura, a Iconografia, a

    Fotografia, ou o Teatro. Isso se d mais claramente em dois mbi-tos principais. Por um lado o Cinema vale-se, para a composio

    essas ocasies, acorda gritando no exato momento em que os eletrodos estopara penetrar em seu crebro. medida que o pesadelo se repete, Andersoncomea a ter dvidas sobre a realidade. Por meio do encontro com dois perso-nagens misteriosos Morpheus e Trinity Thomas terminar por descobrir que, assim como outras pessoas, vtima do Matrix, um sistema inteligente e artifi-

    cial que usa os crebros e corpos dos indivduos para produzir energia e queenquanto isso manipula a mente das pessoas, criando para eles a iluso de ummundo real em que estariam vivendo.25 Sonhos apresenta oito episdios, que no tm necessariamente relao unscom os outros, embora alguns possam apresentar uma mesma questo motiva-dora de fundo, como o caso dos episdios O Demnio Choro eMonte Fijiiem Vermelho, que se relacionam claramente ao trauma coletivo das bombas deHiroshima e Nagasaki. O mais famoso dos episdios de Sonhos o que se cha-ma Corvos no qual um homem, ao admirar em um museu um quadro de Van

    Gogh, v-se levado para dentro da obra. Aps passear por entre cenrios cons-trudos com as pinturas do artista holands, o personagem ir logo encontrar opintor e travar um rpido dilogo com ele.

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    integral de cada uma de suas obras, destas vrias outras formas deexpresso artstica da Msica para a composio de sua trilhasonora, da Fotografia como suporte para o dispositivo cinemato-grfico, ou da Literatura, por exemplo, para roteirizar ou trans-formar em enredo algo que eventualmente j existia em forma delivro26. Por outro lado, e de maneira nem sempre to bvia comoeste primeiro aspecto, o Cinema tambm se relaciona com estasvrias formas de expresses artsticas atravs do recurso s cita-es.

    Por exemplo, pode ser discutido como registro inicial de ci-taes possveis para o autor de Cinema e portanto como umdos nveis de citaes que o historiador analista deve conhecerpara empreender uma boa anlise o mbito das citaes relacio-nadas Iconografia ou Fotografia, isto , as citaes imagticasde que lana mo o autor de Cinema como um recurso que obvi-amente no percebido pelo expectador comum, mas que podeser percebido pelo espectador dotado de competncia mais espe-cfica.

    Podemos destacar como exemplo um dos filmes que j fo-ram citados neste ensaio. Diversos analistas do filmeBlade Run-nerocuparam-se em decifrar algumas citaes iconogrficas queaparecem nesta obra. Assim, por exemplo, alguns autores tmdiscutido a cena que, no filme, d origem ao processo de investi-gao que permite ao caador de andrides chamado Deckard(interpretado pelo ator Harrison Ford) localizar os replicantes que

    deve exterminar. Ao revistar o apartamento de um replicante queteria assassinado um outro caador de andrides, e que seria umdos replicantes rebelados que se sabia terem chegado ao planetaTerra, o caador de andrides Deckard encontra uma fotografiaque a pista introdutria para a busca que ir empreender. O en-redo no importa tanto aqui, mas sim o fato de que, segundo os

    26 As relaes entre Cinema e Pintura foram estudadas por Jacques AUMONTem O Olho Interminvel [Cinema e Pintura] (S. Paulo: Cosac & Naify, 2005).

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    diversos analistas de Blade Runner, seriam claras as refernciasdesta e de outras cenas a dois famosos quadros: O Casamento doCasal Arnolfini, do pintor quatrocentista Van Eyck, e Uma Jovem

    Adormecida, do pintor barroco Vermeer27.As possibilidades de citao de obras iconogrficas pela ar-

    te cinematogrfica tm sido exploradas com habilidade pelos au-tores de filmes. Exemplo est no episdio Corvos, do j mencio-nado filme Sonhos (1990) de Akira Kurosawa, no qual umpersonagem que contempla um quadro de Van Gogh em ummuseu acaba entrando por este quadro e viajando por dentro detodo um mundo imagtico que reproduz as pinturas do artistaholands.Para alm das citaes possveis no campo das formas deexpresso que lidam como a Imagem como a Iconografia ou aFotografia e para alm da prpria possibilidade inmeras vezesexplorada de um filme fazer citaes de outros filmes atravs decenas ou imagens marcantes, a arte cinematogrfica pode aindatrabalhar com inmeras citaes relativas Literatura, arte comquem o Cinema mantm um estreitamento to antigo que, j em

    1921, o cineasta Jean Epstein sentiu-se motivado a escrever im-portante ensaio sobre o intercmbio entre as estticas do cinema eda literatura moderna28.

    27 1 VAN EYCK, O casamento do casal Arnolfini, leo sobre madeira, 81.8 x59.7 cm, London: National Gallery. 2 VERMMER. Uma jovem adormecida,87x76, 1657, New York: Metropolitan Museum. A referncia ao quadro de VanEyck famosa pintura a leo em que um pequeno espelho preso parede revela

    a presena de um observador para alm do casal que est sendo retratado aparece atravs de uma fotografia que o investigador (o caador de andride)encontra no apartamento de um replicante. Atravs de uma imagem percebidaem um pequeno espelho captado por fotografia, o investigador consegue perce-ber a presena de uma pessoa que permitir dar continuidade sua investigao.Para citar as palavras de uma das analistas de Blade Runner, o caador de an-drides Deckard com o auxlio de recursos computacionais que aparecem nacena em que disseca a fotografia consegue literalmente encontrar uma figuraescondida na reentrncia de um quadro (Elissa MARDER, Blade RunnersMoving Still In Camera obscura, n. 27, p. 88-107, 1991, p.102).28 Jean EPSTEIN, "O Cinema e as Letras Modernas" In: XAVIER, Ismail(Org.).A Experincia do Cinema. Rio de Janeiro, Graal, 1991.

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    Alm da Literatura, a arte cinematogrfica tambm tem in-vestido em citaes relacionadas com a Mitologia, como ocorrepor exemplo em Matrix (2003), que contm inmeras citaesdeste tipo29. Estes registros intertextuais e intratextuais o dilo-go de um filme com outros filmes, o seu dilogo com obras per-tencentes a outros campos da criao artstica, e ainda o dilogode um filme com outras partes deste mesmo filme todas estaspossibilidades devem ser conhecidas e consideradas pelos histori-adores que analisam um filme ou que o tomam como fontes parao seu trabalho histrico.

    O Cinema como representao histrica

    Dizamos ao princpio deste ensaio que um importante cam-po de interesse em torno das relaes entre Cinema e Histriarefere-se ao fato de que o prprio Cinema, atravs dos filmesproduzidos, presta-se tambm representao historiogrfica.

    Naturalmente que, para adentrar a questo, importante aprofun-dar a reflexo a respeito do que so os filmes de Histria, sem-pre lembrando que a Representao Historiogrfica no a pr-pria Histria, mesmo no que concerne aos chamados document-rios histricos. Assim, tal como j se disse, devem ser considera-das como fontes flmicas interessantes para o estudo das relaesentre Cinema e Representao Historiogrfica no apenas os do-

    29 Vrias citaes deMatrix aparecem atravs do nome de seus personagens ouem detalhes e situaes especficas. Morpheus, o lder de humanos rebeladosque se empenha em despertar o personagem Neo para o fato de que a realidadeem que ele vive ilusria, o nome do deus grego do sono. Neo costuma guar-dar seu dinheiro dentro de um livro Simulacro e Simulao, do filsofo JeanBaudrillard o que possui evidente relao com o tema do filme. Em determi-nada cena, Neo segue uma instruo que remete ao coelho branco do livroAlice no Pas das Maravilhas de Lewis Carrol, que tambm est presente em

    diversas outras citaes. Existem ainda as citaes que remetem a outros filmes,como o filme expressionistaMetrpole, de Fritz Lang. A lista de citaes pre-sentes emMatrix seria interminvel, e vai de Plato s referncias bblicas.

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    cumentrios historiogrficos (representaes historiogrficas,propriamente ditas), mas tambm quaisquer filmes de ambienta-o histrica, e neste caso se enquadram, para alm dos filmeshistricos romanceados, mesmo os filmes de pura fico constru-dos sobre um contexto histrico bem definido. De fato, estesvrios tipos podem ser considerados em certa medida como umtipo de representao histrica atravessado pela fico (ou umtipo de fico atravessado pela representao histrica).

    Neste momento final, no intuito de iluminar os usos do ci-nema como meio mais direto para a representao historiogrfica,examinaremos os gneros de filmes que atrs definimos, em sen-tido mais amplo, como filmes de Histria, e que trazem no seuenredo e na sua temtica um fundo histrico que seja, quando noum projeto de representao da prpria Histria no que se refere aalgum evento ou processo considerado. Os exemplos escolhidosneste momento referem-se mais particularmente aos filmes hist-ricos relacionados com a Histria do Brasil. Mostraremos algu-mas situaes bem distintas de filmes que pertencem a gneros

    cinematogrficos diferenciados, embora todos se refiram a algumprocesso, evento ou personagem da Histria do Brasil. Os filmesescolhidos para essa exemplificao metodolgica so: Jango(1984), Carlota Joaquina (1995), Xica da Silva (1976), Guerrade Canudos (1997), Memrias do Crcere (1983) e Pra Frente

    Brasil (1983). Cada filme aqui tomado como exemplo, conformese ver, corresponde a um tipo de representao historiogrfica

    distinta atravs da linguagem cinematogrfica.Jango (1984) o tpico exemplo de documentrio de cunho

    historiogrfico e poltico30. Isto quer dizer que o filme se prope a

    30 O gnero de filme categorizado como Documentrio no necessariamente odocumentrio historiogrfico surge de maneira mais consolidada na Inglaterranos anos 1930 com o trabalho de John Grierson (1898-1972) sendo o seufilme Drifters (1929) a obra que marca o movimento documentarista britni-

    co. Uma curiosidade que no seu texto First principles of documentary,Grierson definiu o documentrio como tratamento criativo da realidade(HARDLY, Forsyth, Grierson on documentary, Los Angeles: University of

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    fazer explicitamente uma representao historiogrfica dos pro-cessos e acontecimentos que pretende descrever no caso a His-tria do Brasil perceptvel a partir da figura do ex-presidente daRepblica Joo Goulart. Este tipo de documentrio, naturalmente,deve ser examinado como se examina uma montagem historiogr-fica qualquer (um trabalho de historiografia, por exemplo), consi-derando-se, claro, as especificidades da prpria linguagem ci-nematogrfica e a necessidade de um certo vis narrativo que implcita a um tipo de filme que pretende alcanar o grande p-blico. Jango, como qualquer documentrio elaborado com serie-dade, construdo a partir de determinadas fontes. Isto no impe-de, naturalmente, que o analista o avalie como construo histori-ogrfica, inclusive atravessada por uma ideologia que pode serdecifrada (mas que, involuntariamente, traz nas suas vozes inter-nas diversos discursos polticos, e logo, novas ideologias na vozdos vrios personagens que so expostos no filme).

    Muito diferente de Jango o filme Xica da Silva (1976).Este filme, como Jango, tambm foi construdo com apoio em

    fontes histricas. Na verdade, o filme foi construdo sobre umanica fonte histrica: a Crnica de Joaquim Felcio dos Santos,um cronista da segunda metade do sculo XIX, sobre a clebrepersonagem do Brasil escravocrata que ficou conhecida comoXica da Silva. Pode-se dizer que este filme uma montagem li-vre, esteticamente orientada (o objetivo mais entreter do quedocumentar) sobre uma crnica histrica. O filme segue livre-

    mente, desta forma, o fio narrativo do prprio cronista do sculoXIX, mas desconstruindo esta narrativa em vista de um resultadocinematogrfico. evidente que temos aqui um efeito de realida-de distinto daquele que pretende obter o roteirista deJango.

    Califrnia Press, 1966, p.145-156). Destaque-se ainda que desde os irmosLumire que filmaram entre 1895 e 1896 pequenas pelculas como A Sada da

    Fbrica ouA Chegada do Trem tinha-se j um embrio do gnero documen-trio, considerando-se ainda que, em seguida, no incio do sculo, vrios opera-dores empenharam-se em filmar atualidades, noticirios ou cenas de viagens.

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    Guerra dos Canudos (1897) tambm um exemplo de nar-rativa cinematogrfica que se baseia em episdio retratado poruma fonte de poca, a crnica jornalstica Os Sertes de Euclidesda Cunha. Contudo, trata-se de uma elaborao mais livre, ondeno seguido propriamente o fio narrativo do cronista. Almdisto, a fonte primria de referncia de outro cunho, que no acrnica tradicional, mas sim uma crnica jornalstica que inter-mescla trechos ensasticos bem fundamentados em documentaodiversa. Mas por outro lado, temos uma diferena importante emrelao aos filmes anteriores, que giravam em torno de uma figu-ra histrica. Canudos no gira em torno da figura de AntnioConselheiro tomado como eixo narrativo central tem-se aquiuma narrativa multifocada a partir de diversos atores, inclusivealguns construdos ficticiamente embora a partir de um contextohistrico mais rigoroso. Trata-se, conforme se pode ver, de umarepresentao histrica e cinematogrfica complexa.

    Outro filme histrico que se destacou nos ltimos anos, deteor completamente distinto, foi Carlota Joaquina Princesa do

    Brasil (1995). Este filme o que poderamos chamar de ficohistrica. Os personagens centrais tm uma existncia histricaconcreta, mas o enredo na verdade construdo com liberdadeficcional, embora seguindo determinados balizamentos histricos.Este filme na verdade foi elaborado a partir do Romance hom-nimo de Joo Felcio dos Santos. Esta obra em que se baseiaenquadra-se no gnero literrio que pode ser denominado

    romance histrico. O gnero cinematogrfico fico histrica,na verdade, corresponde precisamente ao gnero literrioconhecido como romance histrico, do qual a Literatura nos dinmeros exemplos. No pode ser exigido, neste caso, umafidedignidade qual teve de se ater o documentrio histrico

    Jango (que seria, grosso modo, a contrapartida de um ensaio dehistoriografia profissional).

    Um exemplo singular o filme Memrias do Crcere(1983). Neste caso, temos uma narrativa cinematogrfica constru-

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    da sobre uma narrativa memorialstica. O filme refere-se vidado escritor Graciliano Ramos, particularmente ao perodo de suarecluso priso por motivos polticos na ocasio do Estado No-vo. Mas agora o texto bsico que informa o roteiro um livro deMemrias, escrito pelo prprio Graciliano Ramos, e que recebe omesmo ttulo. Temos ento mais um caso de obra cinematogrficaconstruda sobre uma nica fonte primria de natureza literria,mais especificamente um livro de memrias auto-referenciado(que marca sua distncia em relao ao exemplo que j vimosanteriormente, e que era a fonte primria de natureza cronsticaporm referenciada em um personagem que no se confunde como narrador). claro que este tipo de representao historiogrficatraz consigo suas prprias singularidades, e a obra flmica elabo-rada sobre este tipo de fonte literria tambm ter suas prpriasespecificidades.

    Um ltimo exemplo, completamente distinto dos anteriores,pode ser demonstrado com o filme Pra Frente Brasil (1983). Oque se tem aqui uma fico inteiramente livre sobre um contex-

    to histrico determinado: o da represso imposta pela DitaduraMilitar durante os chamados anos de chumbo da RepblicaBrasileira. O objetivo central do filme denunciar as prticasmilitares e para-militares do perodo, cujo mais vergonhoso des-dobramento foi a tortura imposta contra os prisioneiros polticos.O filme, contudo, construdo em torno da fico de um inocenteque teria sido confundido com um terrorista e que recebe em vista

    disto o tratamento que, historiograficamente se sabe, era dispen-sado aos presos polticos diversos. O personagem fictcio umindivduo comum, que poderia ser qualquer um da a sua foradramtica desde as primeiras cenas. Aqui, o que se tem umaambincia histrica muito precisa a dos tempos da cruel repres-so militar, contraponteada ironicamente pela euforia com a Copado Mundo mas a narrativa construda de carter ficcional. Os

    personagens no so histricos, embora a ambincia contextual oseja.

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    Todos estes filmes so fontes em diversos sentidos. Elesso fontes para estudar o perodo em que foram produzidos, per-mitindo decifrar ideologias e vozes sociais diversas. Mas so tam-bm fontes para o estudo dos tipos distintos de representaeshistoriogrficas, pois cada qual se refere de uma maneira espec-fica a algum elemento histrico. Por fim, todos estes filmes po-dem ser utilizados como instrumentos para a mediao na trans-misso do conhecimento histrico (atravs do Ensino, por exem-plo), seja para examinar os processos e eventos aos quais eles sereferem no plano narrativo, seja para examinar as vises de mun-do historicamente localizadas que eles trazem ao nvel da produ-o do sentido. Ou seja, a partir destes filmes possvel estudartanto Histria como Historiografia.

    Estes exemplos, a ttulo meramente demonstrativo de suaspotencialidades, do a perceber como importante compreender,para cada caso, o gnero de representao cinematogrfica (o tipode filme documentrio, fico, etc) na sua conexo com as mo-dalidades de representao historiogrfica que so tomadas como

    fontes para a recuperao da poca e dos acontecimentos (umacrnica, uma obra de historiografia, fontes de poca).

    Cinema e Histria, enfim, esto destinados a uma parceriaque envolve interminveis possibilidades. O Cinema enquantoforma de expresso ser sempre uma riqussima fonte para com-preender a realidade que o produz, e neste sentido um campopromissor para a Histria, aqui considerada enquanto rea de

    conhecimento. Como meio de representao, abre a esta mesmaHistria possibilidades de apresentar de novas maneiras o discur-so e o trabalho dos his