cinema e arquitetura: o conflito do homem em seu tempo e espaço por matheus pichonelli

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46 cinema e arquitetura o conflito do homem em seu tempo e espaço A miséria ou fortuna (real ou psicológica) de um personagem é definida pelo enquadramento. Por meio da câmera, sabemos quem tem direito ou não a um lugar ao sol Matheus Pichonelli Formado em jornalismo e ciencias sociais pela USP, é colunista e editor-assistente do site da Carta Capital. “O que você quer ser quando crescer”, pergunta o garoto aos amigos em um fim de tarde do fim do século XIX. Uma a uma, as respostas provocam risos e reflexões entre as crianças enfileiradas em uma porteira de madeira. Estão em um local indefinido entre o campo e a cidade. “Não sei o que vou ser. Só sei que serei grande”, respon- de o jovem John Sims, pouco antes de visualizar uma ambulância estacionar em sua casa. Grande ironia aquela. A ambulância era o prenúncio de um destino amargo: seu pai estava morto. O garoto segue em direção à sua casa. Já dentro, sobe lenta- mente as escadas em direção ao abraço da mãe. A câmera, estática no último degrau, permite um enquadramento amargo: à medida que sobe o lance da escada, a casa diminui e o garoto cresce. Ama- durece. Será, a partir de então, o homem da casa. Mas a casa está pequena diante da responsabilidade que se anuncia: ser o sujeito e o objeto de uma história em permanente transformação. Corta a cena e o que se vê é o resultado da mudança geo- gráfica do novo século. As casas e os campos ficaram pequenos.

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O artigo faz parte do terceiro número da Revista Contraste, iniciativa de alunos da FAUUSP, que teve como tema "Arte que te habita" e foi lançada em novembro de 2014 no MAC-Ibirapuera.

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cinema e arquiteturao conflito do homem

em seu tempo e espaço

A miséria ou fortuna (real ou psicológica) de um personagem é definida pelo enquadramento. Por meio da câmera, sabemos quem tem direito ou não a um lugar ao sol

Matheus PichonelliFormado em jornalismo e ciencias sociais pela USP, é colunista e

editor-assistente do site da Carta Capital.

“O que você quer ser quando crescer”, pergunta o garoto aos amigos

em um fim de tarde do fim do século XIX. Uma a uma, as respostas

provocam risos e reflexões entre as crianças enfileiradas em uma

porteira de madeira. Estão em um local indefinido entre o campo

e a cidade. “Não sei o que vou ser. Só sei que serei grande”, respon-

de o jovem John Sims, pouco antes de visualizar uma ambulância

estacionar em sua casa. Grande ironia aquela. A ambulância era o

prenúncio de um destino amargo: seu pai estava morto.

O garoto segue em direção à sua casa. Já dentro, sobe lenta-

mente as escadas em direção ao abraço da mãe. A câmera, estática

no último degrau, permite um enquadramento amargo: à medida

que sobe o lance da escada, a casa diminui e o garoto cresce. Ama-

durece. Será, a partir de então, o homem da casa. Mas a casa está

pequena diante da responsabilidade que se anuncia: ser o sujeito e

o objeto de uma história em permanente transformação.

Corta a cena e o que se vê é o resultado da mudança geo-

gráfica do novo século. As casas e os campos ficaram pequenos.

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Do alto, a câmera percorre o futuro: ruas em polvorosa, portos

abarrotados e os primeiros arranha-céus, alguns já em estilo art

déco, a detonar a vista. Como uma montanha russa, a câmera es-

cala um dos prédios e entrega o destino do menino que prometia

ser grande: ele é só mais um funcionário padrão de um escritório

gigante composto por centenas de baias com centenas de mesas e

centenas de empregados espalhados em linha reta, como em uma

esteira de produção, uniformes e milimetricamente bem dividi-

dos. Do alto, parece uma composição geométrica sintonizada en-

tre o cubismo e o concretismo, um movimento ainda em gestação.

Este futuro, no século das luzes, não guardou lugares ao sol. Pelo

contrário: confinou seus personagens ao mofo e à própria miséria.

O início arrasador de A Turba, filme de King Vidor lançado

em 1928, foi um dos últimos gritos alegóricos do cinema mudo

(sim, o diálogo entre as crianças é narrado no começo da obra é

narrado pelos letreiros). O tiro sobre o futuro fora disparado por

um canhão do passado: um ano antes, o cinema mudo havia sido

atingido no peito pelo sucesso do musical O Cantor de Jazz, uma

obra menor que encantou multidões ao introduzir as primeiras

vozes em uma filmagem. A distância entre as produções, porém, é

assombrosa. A introdução de um novo recurso tecnológico, o som,

aprisionara o novo cinema até que ele se reinventasse: a câmera

não poderia ir longe sob o risco de não captar o som das pronún-

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cias e movimento dos personagens. Estava confinado aos quartos,

aos planos simples. A Turba, por sua vez, era uma espécie de últi-

mo tiro de liberdade. Sem a obrigação de absorver o som ambien-

te, a câmera voava, corria para onde bem quisesse e parecia estar

a anos-luz das produções que mal sabiam como se adaptar aos

novos recursos (os bastidores dessa transposição estão contados

em uma pequena obra-de-arte da própria linguagem: Dançando

na Chuva, de Stanley Donen).

Até se adaptar ao novo recurso, o cinema penaria para

repetir o feito de King Vidor, mas um destino parecia selado:

a arquitetura humana e a arquitetura cenográfica já não eram

elementos dissociados quando levados à tela. Eram, isso sim,

partes intrínsecas de uma mesma linguagem, uma mesma

forma de composição. Mudavam apenas a distância entre a

câmera e o cenário e seus personagens – e, mais à frente, a

intensidade das cores.

Os exemplos são fartos. Das psicoses dos ambientes claus-

trofóbicos de Alfred Hitchcock ao futurismo das produções dos

anos 80, com seus aliens e replicantes, o cinema se consagrou ao

longo do século como a arte que definiu olhares sobre conflitos

do homem em seu meio e o seu tempo. Como descrever a me-

galomania dos personagens de Martin Scorsese se não a partir

das pilastras do Casino do filme homônimo, dos ringues de Touro

Indomável, dos bankers do submundo reunido em Os Bons Com-

panheiros ou da cúpula da igreja em frente à janela do policial

criminoso em Os Infiltrados?

Em Ingmar Bergman, as cores vermelhas, incômodas, são

o elemento que berra nas paredes a testemunhar abusos, mágo-

as e a morte em Gritos e Sussurros. Da mesma forma, o branco

de uma casa com quintal e varanda prenuncia o tédio e o va-

zio ao qual está preso o casal desiludido nos EUA do pós-Guerra

em Foi Apenas um Sonho, de Sam Mendes. Ao se definir como

o retrato de um tempo, nada no cinema surge como aleatório: é

uma escolha arquitetada para definir inclusive a própria histó-

ria. Nem mesmo as cores são impunes.

No cinema contemporâneo, é quase impossível dissociar

o universo de seus personagens com o espaço em que a câmera

está encrustada. A análise passa por quartos, varandas, sala,

cozinha e quintal, como o branco das paredes de Amor, filme

de Michael Haneke vencedor do Oscar de melhor produção es-

trangeira em 2013: a morte, tema central, se espalha por todos

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os cantos do apartamento em Paris à medida que as cortinas

são fechadas para o mundo. Uma cadeira de quatro lugares co-

lada a um encontro de uma parede da cozinha diz mais sobre a

solidão a dois do casal de idosos do que qualquer diálogo auto-

explicativo: o fim da linha, para eles, está literalmente coloca-

do à mesa. Mas há formas e formas de o recurso ser aplicado.

No caso de Shame, de Steve McQueen, a solidão é lançada so-

bre outra ótica: a ótica da cidade grande, no caso, Nova York.

Quanto mais se embrenha pela cidade, mais o personagem de

Michael Fassbender se descobre só. As paredes de um aparta-

mento micro, que hesita em dividir com a irmã, e as vidraças

dos arranha-céus que parecem impedir a circulação do ar são

parte de uma mesma noção: a noção da insuficiência e do desa-

tamento dos vínculos familiares, afetivos, humanos enfim. Não

é outro o tema central no cinema dos anos 2000 se não a soli-

dão. Isso não só nas grandes cidades: na casa de campo do re-

cém-lançado Álbum de Família, de John Wells, os planos aber-

tos, de plantações e ar puro, não são suficientes para derrubar

a luta empreendida por um casal de idosos para escapar das

mudanças de seu tempo. Dentro daquela casa o século 21 não

chegou: não há sinais de computador, internet, iPads e iPods;

não há sinal sequer de tevê digital ou aparelho de CD. Tudo ali

está guardado como no tempo em que os filhos eram crianças e

permaneciam em seus domínios. Contra o tempo, viviam tran-

cafiados, com as paredes escuras e as cortinas venezianas pre-

gadas sobre as janelas. A luz, ali, não era bem-vinda, conforme

a determinação da matriarca, interpretada por Meryl Streep,

dona das chaves daquela casa e das mágoas guardadas em um

baú de pequenas tragédias de uma família em ruínas.

Esses anti-heróis, símbolo da desorientação humana, tor-

naram-se personagens recorrentes dos filmes que, mais do que

entreter, pretendem legar um recorte estético de um período

no qual as instituições tradicionais, como a família, o Estado e a

religião, estão em xeque. É quando a câmera penetra as frestas

dos espaços diminutos, muitos dos quais, por ironia, se entre-

laçam nas metrópoles expandidas de forma desorientada e mal

planejada. Na maioria das vezes este conflito é parte do subtex-

to, mas há ao menos um caso em que a metalinguagem rendeu

uma pequena obra-prima, talvez a que melhor define o homem

e seu meio na sétima arte. Logo nas cenas iniciais de Medianeas

(2011), de Gustavo Taretto, Martin, o personagem de Javier Dro-

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las, discorre sobre os problemas urbanísticos de Buenos Aires

antes de se declarar um sujeito fóbico e depressivo. Corre em

cena uma exposição fotográfica de contrastes da metrópole: pré-

dios baixos desaparecidos em meio a arranha-céus; construções

de costas para o rio, linhas de transmissão espalhadas como nós

a tampar a vista, e as medianeras, que não são nem a frente nem

o verso dos edifícios, mas uma fachada indefinida, geralmente

servida apenas para publicidade. “Estou certo de que as sepa-

rações e os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a

cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depres-

são, os suicídios, as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade,

a tensão muscular, a insegurança, a hipocondria, o estresse, o

sedentarismo são culpa dos arquitetos e incorporadores de Bue-

nos Aires. Entre estes males, exceto o suicídio, todos me acome-

tem...”, diz o personagem logo no início do filme. A partir dali, ele

terá a rotina filmada de perto, em sua caixa de sapato, como ele

mesmo define o lugar onde mora: nada é mais íntimo dele do

que o computador à beira da cama. A máquina que o conecta ao

mundo é o mesmo que o afasta do mundo real e o impede de ver

que a felicidade está à sua frente, mais especificamente no apar-

tamento do prédio da frente, onde uma mulher que, entre cafés

e cigarros, acorda, dorme, trabalha e luta contra as próprias pa-

redes de um duplex adaptado contra a própria sua solidão. Os

olhares só se cruzam quando resolvem arrebentar as paredes do

apartamento para deixar a luz entrar.

Vem também da Argentina um outro clássico, lançado no

mesmo ano, de temática semelhante: O Homem Ao Lado, de Gas-

tón Duprat. Desta vez, o conflito acontece quando Leonardo, um

designer consagrado interpretado por Rafael Spreguelburd, faz um

estardalhaço por causa de uma obra estridente no apartamento vi-

zinho onde mora um interiorano caricato: rude, machão, pragmá-

tico, sem modos e espalhafatoso. Para o designer, representante da

elite portenha, a existência ruidosa do vizinho era, em si, o cúmulo,

e a tentativa de aproximação deste, uma violência. Mas tudo o que

o vizinho queria era uma janela: uma janela que, por ironia ou azar,

dava de frente ao apartamento de um designer que não queria ser

vigiado e passa o filme todo tentando embargar a obra. Este desig-

ner que impedia o vizinho cafona de ter acesso à luz era o mesmo

que se gabava diante dos clientes e dos estudantes de sua faculda-

de por idealizar um conceito próprio de arquitetura e sofisticação.

Ele era o responsável por uma casa de paredes de vidro que servia

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como ponto turístico da cidade. Mais que um dom natural, a luz do

dia é, na trama, um objeto de distinção. A pobreza, como (não) se vê,

é escura e o embate entre os vizinhos, um resumo de um conflito

de classes: uma delas conhece, mas monopoliza, a luz do dia, e tudo

o que se enquadra nessa ideia, como o conhecimento, a sofisticação,

o bem-estar. Outra luta por um lugar ao sol. É como se a mitologia

se reconstituísse a partir de uma briga entre vizinhos separados

por uma janela: não é outro o esforço de Prometeu, que rouba o

fogo dos deuses e é punido pela ousadia. Não é outro o esforço das

classes menos abastadas quando levam no grito o entendimento

de que a luz é para todos, seja no cinema, seja na racionalidade dos

espaços da convivência humana, que define, afinal, a fortuna ou a

miséria de seus personagens. Reais ou fictícios, estes jamais se con-

tentam com as migalhas nem com as gaiolas – e as de concreto

nem sempre são só alegorias.