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METODOLOGIA DO ENSINO DAS CIENCIAS SOCIAIS I Alexandro dantas trindade simone meucci valeria floriano machado 2009

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METODOLOGIA DO ENSINO DAS

CIENCIAS SOCIAIS I

Alexandro dantas trindade

simone meucci

valeria floriano machado

2009

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© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

T833 Trindade, Alexandro Dantas; Meucci, Simone; Machado, Valeria Floriano / Me-todologia do Ensino das Ciências Sociais I / Alexandro Dantas Trindade;

Simone Meucci; Valeria Floriano Machado. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009.120 p.

ISBN: 978-85-387-0999-2

1. Ensino de Sociologia. 2. Teoria Sociológica. 3. Sociologia no Brasil. 4. So-ciologia da Educação. I. Título.

CDD 300.72

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Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp). Especialista em Formação de Quadros Profissionais pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Graduado em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor de Sociologia do Departamen-to de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (DECISO/UFPR).

Alexandro Dantas Trindade

Doutora e Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Depar-tamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisadora que investiga a História do Ensino da Sociologia no Brasil.

Simone Meucci

Doutora e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Faculdade de Ci-ências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Tem se dedicado à pesquisa sobre intelectu-ais e a formação do campo educacional no Brasil.

Valeria Floriano Machado

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SumárioO estatuto científico das ciências sociais na escola ....................................9

Método como caminho ........................................................................................................................... 9Conceitos como ferramentas ...............................................................................................................11As ciências sociais: definição, natureza e pressupostos .............................................................12A partir de que pressupostos as ciências sociais estudam os fenômenos sociais? ..........21

Ciências sociais e a modernidade ...................................................................31

As ciências sociais como manifestação da modernidade..........................................................31A tessitura da modernidade: uma revisão histórica ....................................................................32As características da modernidade ....................................................................................................34

A modernidade em Marx ...................................................................................47

Marx e a Filosofia Clássica alemã ........................................................................................................48Da filosofia para a política: o contexto revolucionário de 1840 ..............................................50A incorporação crítica da Economia Política ..................................................................................52Os fundamentos do modo de produção capitalista ....................................................................58A contribuição de Marx para pensar a sociedade atual .............................................................61

A modernidade em Weber ................................................................................69

Um breve percurso intelectual ............................................................................................................69O processo de racionalização ..............................................................................................................72Conceitos fundamentais da sociologia weberiana ......................................................................75A dominação burocrática ......................................................................................................................78Religião e sociedade: A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo ................................80A contribuição de Weber para pensar a sociedade atual ..........................................................83

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A modernidade em Durkheim .........................................................................93

O autor e seu contexto ...........................................................................................................................93A natureza dos vínculos sociais na modernidade ........................................................................95Um método para a sociologia..............................................................................................................98Anomia e individualismo .......................................................................................................................99

Gabarito .................................................................................................................109

Referências ...........................................................................................................117

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Apresentação

O recente ingresso da sociologia no Ensino Médio exige que mobilizemos esforços para traduzir os conteú-dos clássicos e o conhecimento produzido nas universida-des para o ambiente escolar.

Neste livro propomos uma reflexão acerca da natu-reza do conhecimento sociológico, seus principais pres-supostos, autores e conceitos, os papéis que assumiu ao longo do tempo e em que condições apareceu no sistema escolar brasileiro. Compreendemos que essa reflexão é fecunda para que o futuro professor de sociologia pense nas suas estratégias e alternativas pedagógicas. Nosso ob-jetivo é, pois, provocar uma reflexão sistemática acerca do significado das Ciências Sociais não apenas na escola, mas também na vida social.

Nessa perspectiva, o capítulo I inaugura o volume propondo uma discussão acerca da natureza científica da sociologia.

Em seguida, no capítulo II, discutimos a origem his-tórica da sociologia, indissociavelmente ligada à consti-tuição da modernidade. Esse capítulo tem, de um lado, a função de sintetizar as características fundamentais do contexto histórico no qual as ciências sociais emergiram. De outro, tem o objetivo de promover um deslocamento temporal que possibilite uma visão mais crítica acerca do nosso mundo social contemporâneo.

Na sequência, nos capítulos III, IV e V, apresentamos três autores paradigmáticos das ciências sociais: Marx, Weber e Durkheim. Os textos procuram deslindar as condições intelectuais e sociais nas quais esses autores produziram e, ao mesmo tempo, demonstrar como seus conceitos e teorias são fecundos para a compreensão da sociedade atual.

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O estatuto científico das ciências sociais na escola

Simone Meucci

Método como caminhoA sociologia – na condição de representante das ciências sociais no Ensino Médio

– figura agora ao lado de disciplinas como biologia, matemática, língua portugue-sa, história e física. Ganhou finalmente, após um embate político que perdurou pelo menos seis anos, o status de disciplina escolar obrigatória.

Isso quer dizer que educadores, responsáveis pela definição dos currículos esco-lares, consideraram o conhecimento acumulado das ciências sociais necessário para a formação intelectual dos jovens.

Segundo as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, documento elaborado pelo Ministério da Educação, a finalidade da nova disciplina (que justifica seu ingresso no currículo) é permitir o desenvolvimento de uma perspectiva científica sobre os fe-nômenos sociais do mesmo modo que a física e a química permitem compreender, de modo aprofundado, fenômenos relativos às suas áreas de conhecimento. Nesse senti-do, a sociologia é parte importante do processo de “alfabetização científica” e possibili-ta ver, de maneira nova e surpreendente, fenômenos sociais do nosso cotidiano1.

Depois de um longo processo de implementação, devemos finalmente nos inda-gar acerca do modo como os professores deverão mobilizar os conhecimentos das ci-ências sociais para que efetivamente os alunos desenvolvam um olhar mais sofisticado e crítico acerca do mundo social que os cerca.

Com efeito, a recente introdução da sociologia nos currículos escolares exige que pensemos em caminhos para se chegar a esse fim. Dito de outra maneira, precisamos pensar em métodos de ensino que permitam a mobilização fecunda do conhecimento

1 A síntese do processo de instituição e um debate sobre a relevância da sociologia no Ensino Médio, bem como diversas outras orientações importantes aos professores, podem ser encontradas no já citado Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), em seu terceiro volume, Ciências Humanas e suas Tecnolo-gias. O material encontra-se também disponível no site: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2009.

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produzido no campo das ciências sociais. Não nos referimos aqui a recursos didáticos, mas a uma maneira de apresentar o conteúdo que possibilite aos estudantes a com-preensão da realidade social da qual são, a um só tempo, sujeitos e agentes. Trata-se de apontar numa direção que leve ao encontro dos alunos os conhecimentos socioló-gicos – tanto os clássicos das ciências sociais quanto aqueles atualmente produzidos na universidade, nos laboratórios de pesquisa social, nos programas de mestrado e doutorado em ciências sociais do Brasil e do mundo.

Não obstante, antes de propor um novo caminho, devemos identificar, ainda que de modo um pouco caricato, quais são os caminhos mais frequentemente escolhidos para o ensino de disciplinas como a sociologia. De modo bem geral, é possível dizer que há dois tipos:

O primeiro apresenta de modo escolástico o conteúdo das ciências sociais, fazendo com que os encontros entre professor e aluno objetivem tão simples-mente a apresentação cronológica dos principais autores e suas teorias.

O segundo transforma a sala de aula numa espécie de ponto de encontro ameno, onde cada aluno dá suas opiniões pessoais acerca dos temas polê-micos da sociedade. A polêmica sem orientação se torna, pois, uma fruição amena.

No primeiro caso, o professor é aquele que detém o monopólio do conhecimento enciclopédico: admirável, porém opaco e intangível. No segundo, o professor é me-diador de um debate-entretenimento que não disciplina o olhar e carece de qualquer propósito senão o de conhecer a “opinião do outro”.

Nos dois episódios – ora como bastião da erudição intelectual, ora enquanto re-produção do senso comum – as ciências sociais na escola tornam-se infrutíferas, nada fecundas. De um lado, teorias sem reflexão, de outro, reflexão sem teoria.

Para associar teoria e reflexão devemos optar por um caminho que permita que a ossatura conceitual das ciências sociais desperte nos alunos uma compreensão mais sofisticada do mundo social. Nesse sentido, os conceitos sociológicos devem ser, de fato, apresentados como instrumentos do pensamento.

Nesse sentido, acreditamos que é um imperativo afirmar o estatuto científico do conhecimento sociológico dentro da escola. É acerca desse estatuto e suas implicações para o “olhar” do aluno que discutiremos ao longo deste capítulo.

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Conceitos como ferramentasPode-se afirmar que as palavras, de modo geral, atuam como uma espécie de

ferramenta para pensar e organizar as ideias. Os conceitos, em especial, nomeiam e de-finem determinados fenômenos que são objetos particulares da nossa atenção. Sobre-tudo os conceitos científicos identificam características, estabelecem nexos e relações entre fenômenos diversos que, muitas vezes, são percebidos de maneira superficial e isolada pelo senso comum.

Os conceitos científicos trazem à consciência e agrupam fenômenos sobre os quais em geral não pensamos de modo sistemático e sistêmico. Isso quer dizer que os conceitos despertam o nosso olhar para fenômenos que antes não nos preocupavam. E, ainda que estivessem sob a mira de nosso olhar, a formulação científica permite que olhemos para os fenômenos de maneira nova.

Os conceitos científicos são “o concreto pensado” (MARX, 1973). Ou seja, conceito não é mera abstração: é mediador entre a realidade e o pensamento. Dito de outro modo, os conceitos científicos são como uma espécie de representação linguística da realidade, produzida a partir da observação paciente e disciplinada dos fenômenos concretos, empreendida por um grupo de especialistas altamente qualificados.

Não obstante, o conceito científico é, ele também, alvo de reflexão: sobre os con-ceitos elaborados pela ciência é realizada uma vigilância constante para conferir em que medida representam de modo preciso os fenômenos que são alvo de análise. Re-paremos, portanto, que os especialistas pensam simultaneamente sobre a realidade dada e sobre as condições e formas de representação dessa realidade que eles pró-prios elaboram. Ou seja, os conceitos científicos são palavras que resultam de condi-ções bastante específicas de produção do conhecimento. Por isso, tornam-se preciosos para compreender o mundo à nossa volta.

Quando uma ciência se transforma em disciplina escolar, os conceitos científicos, produzidos em situação tão particular, deverão ser rotinizados e transformados em ferramentas ao alcance não apenas de um pequeno grupo de especialistas, mas de toda uma geração de estudantes.

Nessa perspectiva, um dos grandes desafios dos professores é a mediação entre o saber acadêmico e o saber escolar. O docente deve adequar a linguagem e os temas para a fase de aprendizagem do aluno (BRASIL, 2006).

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A chegada da sociologia na escola deve ser entendida como oportunidade de celebrar uma relação entre o mundo da produção acadêmica em ciências sociais e o mundo da escola. Ao professor, cabe trazer os conceitos científicos para a reflexão acerca do espaço da escola, da casa, do trabalho, da balada. O professor pode equipar a imaginação dos estudantes com novas ferramentas – os conceitos sociológicos – para que eles possam esculpir o pensamento a fim de ver de modo renovado e crítico o mundo social que está fora e dentro de cada um. Os temas a serem discutidos deverão, pois, ser tratados à luz desses conceitos.

O professor deve apresentar as condições em que esses conceitos foram produ-zidos, como eles se articulam às teorias, de que maneira eles permitem iluminar a re-alidade social e como eles favorecem um novo olhar sobre os fenômenos sociais que nos cercam.

Observemos que há similitudes entre o trabalho mental exigido pelo pensamen-to científico e o trabalho artesanal. São necessários instrumentos precisos para refinar o olhar e a mente. Nesse sentido, o trabalho do professor de sociologia é artesanal como o aprendizado do aluno. Professores e estudantes de sociologia são, portanto, quase como artesãos que esculpem seu olhar através das ciências sociais.

As ciências sociais: definição, natureza e pressupostos

Antes que possamos iniciar uma incursão pelos autores e seus conceitos, deve-mos responder agora a uma incômoda pergunta: o que são, afinal, as ciências sociais? É necessário precisar o sentido dessa expressão para prosseguir em nosso trabalho de propor um caminho para o ensino das ciências sociais.

Como ponto de partida, pode-se dizer que ciências sociais é um grupo de disci-plinas científicas que estuda certos fenômenos relativos à vida social de um ponto de vista particular. Tal definição nos remete a algumas novas indagações:

Quais são as ciências que compõem o conjunto que chamamos de ciências sociais?

O que é efetivamente uma ciência?

Quais as especificidades das ciências sociais e humanas?

A partir de que pressupostos particulares as ciências sociais estudam os fenô-menos sociais?

Tentaremos responder a cada uma delas.O e

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Quais são as “ciências sociais”?Há muitas ciências que se ocupam em estudar fenômenos sociais. Vejamos aqui

dois exemplos: a economia e a geografia humana. Rigorosamente, podemos chamá- -las de ciências sociais na medida em que os temas de seus estudos têm natureza social. No caso da economia, é impossível negar que as transações econômicas não sejam também relações sociais, não é? E, no caso da geografia, deve-se também atentar para o fato de que a ocupação do espaço é condicionada pela vida social, pela dinâmica das populações e suas atividades.

No entanto, o que chamaremos aqui de ciências sociais é um conjunto composto por particularmente três disciplinas: a ciência política, a antropologia cultural e a socio-logia. As três têm muita coisa em comum: tratam da vida em sociedade. Entretanto, cada uma delas tem sua especificidade, dedica-se a um aspecto particular da realidade social. É certo que estes aspectos que procuraremos definir como fronteiras são di-mensões que, no fluxo da vida em sociedade, por vezes se confundem. De todo modo, a diferenciação permite uma ilustração esclarecedora acerca das contribuições especí-ficas de cada uma das disciplinas.

A ciência política estuda as relações de poder, especialmente aquelas nascidas a partir da formação do Estado Nacional Moderno, por volta do século XVI. São temas de estudo no ramo da ciência política: as eleições, a emergência de partidos e lideranças, as relações internacionais entre os governos, as relações entre as diferentes institui-ções políticas numa determinada conjuntura histórico-social etc.

Resumidamente, a ciência política espera compreender o exercício de poder e seus efeitos, em particular na esfera das ações do Estado. Sabe-se que, no mundo mo-derno, as relações entre instituições e entre os diferentes Estados tornaram-se alta-mente complexas e a ciência política contribui, de alguma maneira, para a compreen-são dos processos decisórios e as condições de atribuição de poder a esta ou àquela instituição ou agente social.

A antropologia cultural é, por sua vez, uma ciência social dedicada a estudar a di-mensão cultural das relações humanas. É um ramo de conhecimento que se constituiu, no final do século XIX, para compreender a lógica cultural de povos exóticos e distan-tes que habitavam regiões que estavam então sendo colonizadas. Nesse período, eram comuns extensos relatos (que chamamos hoje de etnografias) sobre os aborígenes australianos, o modo de vida dos esquimós, das tribos africanas e dos índios da Amé-rica do Sul. A antropologia cultural, decifrando os fundamentos da vida religiosa, das trocas comerciais, das guerras locais e do sistema de parentesco desses grupos, trans-formava o que nos parecia exótico em algo familiar. Demonstrava, afinal, que havia racionalidade na conduta desses grupos, por mais estranha que nos parecesse. Além disso, ela possibilitou a compreensão dos simbolismos e representações de mundo

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que orientam as ações dos indivíduos pertencentes a essas sociedades tomadas, erro-neamente, por irracionais.

Atualmente, a antropologia não estuda apenas povos distantes, mas também as “tribos” que compõem a rotina da nossa vida social atual: skatistas, góticos, emos, mo-toqueiros, patricinhas, fiéis, líderes de determinados grupos religiosos, entre muitos outros. A complexificação da nossa sociedade permite que tenhamos – coexistindo e coabitando os mesmos espaços sociais – grupos sociais cujos valores e ideais de vida são completamente diferentes uns dos outros. Nesse sentido, a antropologia contribui para o entendimento dos universos simbólicos que compõem a trama da experiência social contemporânea. Seu tema fundamental é a diversidade cultural.

Finalmente, a sociologia é um ramo das ciências sociais que surgiu (como a antro-pologia), no século XIX. Seu nascimento está relacionado aos impactos das Revoluções Protestante, Francesa e Industrial sobre as relações sociais, que pareciam então se con-figurar de maneira nova e surpreendente.

Vejamos aqui apenas algumas das transformações sociais mais notáveis resultan-tes dessa tripla revolução:

a Igreja Católica perdeu o monopólio da interpretação da palavra de Deus e novas religiões foram fundadas, sugerindo formas novas de idealização de Deus e da conduta humana;

as formas de dominação patriarcal foram substituídas por modalidades im-pessoais de autoridade representadas, sobretudo, pela organização industrial e pelo Estado;

a família extensa deu lugar à família nuclear e a sociabilidade baseada nos laços familiares e comunitários foi substituída pela sociabilidade funda-mentada no indivíduo;

o trabalho artesanal, organizado segundo os saberes tradicionais, foi substitu-ído pelo trabalho fabril, organizado segundo critérios objetivos para atender a expectativa de lucro. (MARTINS, 2000)

Nesse sentido, diante dessas transformações, os temas clássicos da sociologia versaram sobre os seguintes problemas: a constituição da conduta humana orientada para o lucro e para a racionalização dos métodos, os efeitos da divisão do trabalho e da tecnologia sobre as relações sociais, a natureza dos vínculos sociais numa sociedade fundamentada no individualismo. Observemos que o problema crucial que mobiliza os estudos sociológicos é a natureza dos vínculos sociais na modernidade.

Mas atenção para um detalhe: a disciplina de sociologia que figura no Ensino Médio se apresenta como uma espécie de síntese dessas três disciplinas, cujos temas

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acabamos de circunscrever. Ou seja, entenderemos por sociologia, concomitantemen-te, a ciência política, a antropologia e a sociologia. Nesse sentido, o repertório de temas da sociologia, enquanto disciplina escolar, contempla os seguintes problemas: as mo-dalidades de poder, a dimensão cultural e a natureza dos laços sociais na sociedade contemporânea. São fenômenos que, ainda que artificialmente separados pela con-venção da ciência, estão inextricavelmente relacionados na vida social.

Essa reunião das três áreas sob a denominação de sociologia é possível porque a perspectiva analítica dessas três disciplinas, ainda que com diferenças importantes, é una. Há, portanto, cientistas sociais que estudam o poder, outros o sistema simbólico de diferentes grupos religiosos e, outros, a natureza dos vínculos amorosos no mundo contemporâneo, por exemplo. Todos esses temas se configuram como questões para serem discutidas pelo professor de sociologia em sala de aula.

O que é ciência?Ciência é uma forma de conhecimento bastante recente se tomarmos como re-

ferência a longa história da vida humana. Há cerca de 500 anos a ciência se constituiu e, pouco a pouco, nos diferentes ramos, foi se fortalecendo como forma legítima de explicação dos fenômenos.

Podemos afirmar que a ciência é um modo de conhecimento que se forma jun-tamente com a modernidade ocidental. Ela é, pois, uma das manifestações da moder-nidade. Sua emergência ocorreu num enfrentamento com as formas tradicionais de explicação da Idade Média. Os primeiros cientistas se opuseram à instituição que tinha o monopólio da explicação dos fenômenos do mundo e do cosmos: a Igreja Católica.

Ao contrário da ciência, a Igreja (como as religiões de modo geral) compreen-de que os dogmas são os meios através dos quais os homens alcançarão a sabe-doria das coisas. Dogmas são verdades seguras e imutáveis, sobre as quais não se pode exercitar o questionamento.

A ciência é irmã mais nova da filosofia ocidental, outra modalidade de conheci-mento que, na história do Ocidente, contrapôs-se à Igreja. Mas o que há em comum entre a filosofia ocidental e a ciência? Ambas compreendem que a produção do saber ocorre através do exercício da dúvida. A elaboração de perguntas é, tanto para a ciên-cia quanto para a filosofia, o meio através do qual se produz conhecimento. Nesse sen-tido, na perspectiva da modernidade, ironicamente, as pessoas investidas de muitas certezas são consideradas menos capazes de produzir conhecimento do que aquelas que têm muitas perguntas! Isso porque, na concepção atual de conhecimento, são as dúvidas que nos permitem entender melhor o que nos cerca.

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Na ciência, como na filosofia, a dúvida não é uma contestação qualquer, mas uma formulação resultante de uma disciplina mental, da “alfabetização” científica e filosófica.

Na história intelectual do Ocidente, o exercício da dúvida foi inaugurado pela filo-sofia e teve grandes repercussões. Mas há também uma distinção fundamental entre a filosofia e a ciência. A filosofia exige a disciplina do pensamento, um rigor mental metódico no exercício da dúvida, na elaboração de novas respostas e na produção de novos questionamentos. Nesse sentido, a filosofia fundamenta seu conhecimento em argumentos metódicos. Lembre-se de algum texto filosófico que já leu: o autor faz in-dagações, em seguida formula respostas, desmonta seus próprios argumentos e ime-diatamente faz novas indagações, não é? Esse é o exercício filosófico por excelência.

A ciência, por sua vez, deve obrigatoriamente fundamentar seu conhecimento na observação dos fatos. Tal observação deve ser também orientada por método rigoro-so. A dúvida científica é seguida da formulação de hipóteses (hipóteses são respostas provisórias, possíveis) e estas, para serem confirmadas, exigem comprovação baseada na observação. Não há legitimidade do conhecimento científico se suas conclusões (sempre provisórias e submetidas a novas observações) não forem justificadas por meio da observação empírica (LUNGARZO, 1991).

Importante ressaltar que o plano empírico da ciência não é o plano imediato das sensações, pois os sentidos humanos, por vezes, nos dão falsas impressões acerca do verdadeiro funcionamento dos fenômenos. Com efeito, no final da Idade Média, para a emergência da ciência, foi necessário, além do questionamento dos dogmas da Igreja Católica, também o questionamento dos sentidos humanos. Isso quer dizer que, para a ciência, o mundo sensorial deve ser colocado em dúvida. Do ponto de vista da ciência, a aparência não permite compreender imediatamente a essência dos fenômenos.

Essa diferenciação entre o plano da aparência e o plano da essência é uma das características fundamentais que opõe à ciência do que chamamos de senso comum. O senso comum baseia seus conhecimentos na experiência sensorial sem que esta seja submetida a testes metódicos de verificação.

Para ultrapassar o mundo aparente, a ciência recorre a procedimentos cuidado-sos. A esse conjunto de procedimentos denominamos de método científico. Trata-se de uma maneira de disciplinar o olhar (torná-lo mais atento, rigoroso, crítico) para uma análise que não se deixe enganar e não se atenha apenas ao plano das evidências superficiais.

Um dos marcos da emergência da ciência moderna foi a “descoberta” de Galileu Galilei (1564 -1642) de que a Terra se movia em torno do Sol. Na verdade, antes de Galileu, Copérnico (1473-1543) já tinha reunido algumas evidências matemáticas favoráveis à tese heliocêntrica. A contribuição fundamental de Galileu – que o O

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torna personagem marcante para a fundação do pensamento científico – foi o aperfeiçoamento e a aplicação de um instrumento de análise que permitiu comprovar, através da observação metódica, aquilo que Copérnico havia concluído por meio da abstração dos números. Tal instrumento é a luneta (ARENDT, 2001).

A luneta de Galileu demonstrou cabalmente que as teses heliocêntricas estavam corretas. Assim, embora nossos sentidos sugiram que a Terra seja um planeta imóvel, não é exatamente isso que acontece. Afinal de contas, alguém aí sente que estamos girando numa velocidade orbital de 29,78 quilômetros por segundo?

Desse modo, Galileu, com o auxílio da luneta e de seu olhar dedicado e disci-plinado, cravou um punhal nas teses teocêntricas da Igreja e, de quebra, colocou em questão os sentidos humanos, especialmente a sensação do movimento e o olhar (o espetáculo diário do nascer e do pôr do Sol nos dá a impressão de que é o Sol que gira ao redor de uma Terra imóvel, não é?) (ARENDT, 2001).

Não é à toa que Galileu, dado o caráter subversivo de suas constatações, foi con-denado pelo Tribunal do Santo Ofício ao isolamento. Sua “descoberta” implica, sobre-tudo, o reconhecimento de que não é uma ordem sobrenatural, representada terre-namente pela Igreja Católica, que rege a organização do cosmos. E isso é uma das dimensões mais importantes da ciência: a atitude científica parte do pressuposto de que os fenômenos são regidos por uma ordem natural, cujos princípios fundamentais só são revelados através de um método cuidadoso de observação.

A rigor, a ciência reconhece que nem a vontade de Deus (ou dos deuses) nem a vontade humana determinam o funcionamento das coisas. Não obstante, a partir da descoberta dos princípios organizadores e das regularidades da natureza, o homem poderá intervir nos fenômenos. Um exemplo: foi necessária a acumulação de conhe-cimentos sobre a mecânica celeste para que o homem pudesse enfim enviar satélites para a transmissão de imagens para a Terra.

Nesse sentido, é estreita a relação entre as descobertas científicas e a tecnologia. Ou, dito de outro modo, pode-se afirmar que é contraditória e fascinante a relação entre a humildade científica diante dos fenômenos e a pretensão de intervir sobre a natureza a partir das revelações da ciência!

Quais as especificidades das ciências humanas e sociais?Observemos que a astronomia – em especial o ramo que hoje denominamos de

mecânica celeste – é mãe de todas as ciências. De fato, a ciência moderna se fundou tendo como primeiro objeto de análise os céus. O homem moderno voltou antes seu olhar para o cosmos e apenas depois de alguns séculos começou a indagar cientifica-mente acerca dos fenômenos mais próximos, mais “humanos”. Isso quer dizer que as ciências chamadas “da natureza” surgiram bem antes das “ciências humanas”.

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Essas classificações são, pois, sempre complicadas. Mas o que, em geral, denomina-mos de ciências humanas são aquelas que têm como objeto de análise fenômenos que são especificamente humanos. Ou seja, fenômenos que não se verificam em outros ani-mais. Assim, embora a biologia possa ter alguns dos seus ramos voltados para o estudo do homem, ela não o vê do ponto de vista propriamente “humano”, mas o compreende a partir dos seus instintos, mecanismos e processos biológicos. As ciências humanas, por sua vez, vão analisá-lo em suas expressões mais específicas como a constituição da personalidade de um indivíduo na trama das relações familiares, a língua e os símbolos partilhados por um grupo social, a memória sobre uma determinada época.

Com efeito, a psicanálise, a sociologia, a antropologia e a história são, pois, ciências humanas porque tratam de dimensões da vida do homem que não são encontradas em outros seres da natureza. São ciências que se ocupam do homem do ponto de vista propriamente humano – a capacidade singular de construir relações afetivas, formular sinais e símbolos, significar e ressignificar suas experiências individuais ou coletivas.

É interessante notar que as ciências ditas “naturais” se constituíram por volta do século XVI e XVII, ao passo que o mesmo olhar metódico e crítico sobre os fenôme-nos singularmente humanos só ocorreu no século XIX. Essa “demora” para a indagação científica acerca dos fenômenos propriamente humanos pode ter sido causada pela dificuldade de reconhecer que nossos sentimentos, nossa memória, nossa linguagem, nossos símbolos e representações (individuais ou coletivos) não estão sob o controle de um plano sobrenatural. E ainda mais dramático: as ciências humanas exigem também o reconhecimento de que esses fenômenos escapam ao nosso próprio controle.

O que estamos aqui considerando como hipótese é que o questionamento dis-ciplinado sobre os fenômenos propriamente humanos exigiu uma radicalização da perspectiva científica. Há um exemplo notável: a constituição da teoria psicanalítica (um ramo teórico da psicologia) implicou o reconhecimento de que o homem não tem controle total de seus próprios sentimentos e que o que se vê da pessoa é apenas uma manifestação aparente (por vezes enganosa) de um complexo processo psíquico que se oculta no inconsciente.

O paulatino reconhecimento de que os fenômenos propriamente humanos não podem ser controlados pelo homem deve ter sido um dos episódios mais dramáticos e fascinantes da constituição do pensamento científico!

As ciências humanas têm, pois, algumas especificidades em relação às ciências naturais. Uma delas é o fato de que não podemos – como fazem os físicos e os quími-cos – simular realidades em laboratórios. Como faria o historiador para reconstruir, em condições ideais, as relações entre senhor e servo na Idade Média? Ou como poderia um sociólogo recompor as relações parentais de uma determinada comunidade tradi-cional cujos costumes seculares estão desaparecendo?

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Ainda que esta especificidade não seja algo próprio das ciências sociais – pois não podemos esquecer que o astrônomo não pode refundar o Sistema Solar e que ao biólogo é também impossível recriar um complexo de vida marinha –, os cientistas sociais têm que lidar com recursos metodológicos que lhe permitam legitimar o co-nhecimento que produzem.

As discussões metodológicas são parte constitutiva das ciências humanas. Há, na história, procedimentos que ensinam a confrontar diferentes documentos a fim de compor um retrato mais fiel de uma determinada época. Nas ciências sociais, elabo-ram-se cuidadosamente entrevistas e questionários que fazem as mesmas perguntas de diferentes modos a fim de identificar contradições nas respostas.

Não podemos também esquecer o enorme auxílio metodológico da estatística para as ciências humanas, em particular para as ciências sociais. Certos fenômenos so-ciais são quantificáveis e os recursos estatísticos permitem colher e cruzar diferentes dados para perceber relações de causa e efeito entre diferentes fatos.

Há ainda técnicas de observação que recomendam ao cientista social acompa-nhar diariamente a vida de determinado grupo, anotando detalhes (a princípio insig-nificantes) num caderno que usualmente chamamos de diário de campo.

Esses são apenas alguns dos recursos metodológicos que vêm em auxílio dos cientistas sociais. Na falta da luneta de Galileu ou do microscópio de Hooke2, muitos recursos permitem ao cientista social enxergar além das evidências mais aparentes. Como qualquer cientista, o pesquisador social deve disciplinar o olhar, fazer uso de métodos e seguir criteriosamente etapas do método científico a fim de alcançar a ver-dade que se oculta do olhar. Dessas observações metódicas é que resultarão os concei-tos e as teorias das ciências sociais.

Um dilema metodológico, que é, também, particular às ciências humanas e so-ciais, é a possibilidade do sujeito investigador se confundir com o objeto de investiga-ção. Um biólogo jamais se sentirá identificado com a espécie de vegetal ou animal que estuda, mas um sociólogo que analisa a violência no trânsito, por exemplo, é também ele, motorista e pedestre. Isso exige uma vigilância metodológica permanente, que resulta em discussões importantes acerca da neutralidade e objetividade no campo da produção científica nessa área. É necessário, pois, que o pesquisador olhe para o fenô-meno de modo novo. Como no exemplo do estudo sobre o trânsito, o cientista social não pode produzir conhecimento legitimamente científico se olhá-lo apenas do ponto de vista do motorista ou do pedestre. Para isso, ele deve disciplinar seu olhar para ver “de fora”. E ainda que a neutralidade absoluta não seja possível, o cientista social deve buscar a objetividade demonstrando ao leitor do seu trabalho as escolhas metodoló-gicas e, sobretudo, revelando os limites e alcances dessas escolhas.

2 O cientista inglês Robert Hooke dedicou-se à observação da estrutura da cortiça ao microscópio. Através das lentes de aumento, constatou que a cortiça era formada por um grande número de cavidades preenchidas com ar. Dois anos depois, Hooke publicou a obra Micrographia, onde denominou as estruturas ocas da cortiça de “células”. Ver mais no site: <www.invivo.fiocruz.br/celula/teoria_03.htm>.

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Outra especificidade das ciências humanas e, por extensão, das ciências sociais é o questionamento da exatidão de suas conclusões. Há, aliás, um critério de classifica-ção das ciências que as dividem entre “ciências exatas” e “ciências humanas”. Será que as ciências humanas não são afinal inexatas? Serão confiáveis as suas conclusões?

Com efeito, as ciências humanas e sociais assumem a impossibilidade de formular, a partir de suas pesquisas, leis universais – válidas, portanto, para todas as sociedades humanas em todos os tempos. Nesse sentido, a partir do acúmulo de pesquisas cientí-ficas nessa área, pretende-se encontrar regularidades (relações causais ou funcionais) válidas numa dada constelação social.

Essa controvérsia sobre a exatidão das ciências humanas e sociais está fundamen-tada na ideia de que, pelo menos a princípio, parece mais evidente identificar regula-ridades na vida de árvores da mesma espécie em determinadas condições climáticas do que identificá-las na conduta de homens e mulheres numa determinada forma-ção social. Isso ocorre porque a noção de liberdade individual é um valor muito cul-tuado entre nós e temos dificuldade para acreditar que a nossa vida pessoal e social é também regida por princípios reguladores que escapam ao nosso controle (ALVES, 2007). Não obstante, o comportamento dos indivíduos, os traços de personalidade e até as patologias psíquicas são mais ou menos regulares e típicos duma determinada época e sociedade. Somos, pois, produtos da sociedade a que pertencemos!

Mas não se pode dizer que as conclusões científicas das ciências sociais são limi-tadas a um contexto muito circunscrito. Tanto isso não é verdadeiro que há, tradicio-nalmente nas ciências sociais, pesquisas comparativas por meio das quais se cotejam a manifestação de determinados fenômenos sociais em contextos muito diferentes ou muito parecidos. Desse modo, espera-se compreender alguns dos nexos e algumas das variáveis que inferem sobre o desenvolvimento de determinados fenômenos.

Como exemplo paradigmático de análise comparativa, citamos o conhecido estudo sobre o suicídio, desenvolvido no final do século XIX por Émile Durkheim. Trata-se de um estudo fundamental para a legitimação da sociologia no quadro geral das ciências.

Acreditamos que não seria injusto afirmar que Durkheim ocupa na sociologia lugar equivalente àquele ocupado por Galileu na astronomia. Entendendo o suicídio como um fenômeno social, ele comparou as taxas de suicídio em diferentes países da Europa e as relacionou à vida religiosa e à complexificação da vida social. Concluiu, por meio de observações metódicas em tabelas estatísticas, que nos países protestantes, densamente urbanizados e industrializados, as taxas de suicídios são maiores do que em países onde predomina o catolicismo e a atividade rural. Durkheim pôde assim correlacionar alguns fatores percebendo como eles favoreceram o desenvolvimento de um fenômeno específico (DURKHEIM, 2000).

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Nesse sentido, o trabalho de Durkheim demonstra que há a possibilidade de en-contrar regularidades e nexos causais entre fenômenos da vida social. Esses fenôme-nos, apesar de sua particularidade, são, portanto, inteligíveis do ponto de vista da ciên-cia, o que assegura o estatuto científico das ciências sociais.

A partir de que pressupostos as ciências sociais estudam os fenômenos sociais?

Propomos agora uma espécie de exercício: comparemos as maneiras como os fenômenos da vida social são pensados a partir dos três pontos de vista: religioso, filo-sófico e científico.

Segundo a explicação religiosa, uma vontade sobrenatural (sobrenatural porque está acima do plano da “natureza”) determina a organização e o lugar de cada um na so-ciedade. Vejamos um caso bastante conhecido: a organização social da Índia tradicional nos sistemas de castas. O pertencimento a uma casta inferior ou superior é explicada a partir de princípios que estão descritos no livro sagrado hindu denominado Vedas. Nesse sentido, a religião hindu explica e legitima a organização da vida social e suas formas de estratificação social num nível sobrenatural, cuja inteligibilidade e controle não estão ao alcance de nenhum dos homens. Daí que não é possível nem investigá-la, nem questioná-la (já que está sujeita ao arbítrio dos deuses ou de um deus apenas).

Vejamos agora como é vista a organização social do ponto de vista da filosofia iluminista. Para a maioria dos filósofos, que convencionamos denominar de iluministas (entre os quais Hobbes, Locke e Rousseau), a sociedade é produto de um acordo coleti-vo entre os homens. A organização da vida social é, para eles, resultante de um contrato que foi celebrado num tempo remoto. A tarefa da filosofia, nessa perspectiva, é discutir a natureza desse contrato, questioná-lo e, se possível, refundá-lo. Foram as tarefas de questionamento da organização social estamental do Antigo Regime e a proposição de uma nova sociedade que tornaram os filósofos iluministas conhecidos ideólogos da Re-volução Francesa. Devemos perceber que, ao contrário da religião, a sociedade aparece aos filósofos iluministas como algo que é produzido pela vontade humana.

Não obstante, a sociedade do ponto de vista da sociologia é uma realidade que independe da vontade divina e é refratária aos desejos dos homens que a compõem. Essa foi a constatação dramática de Auguste Comte (1798-1857), considerado ao lado de Durkheim um dos pioneiros da fundação da sociologia (poderíamos afirmar que Comte ocupa lugar equivalente ao de Copérnico na Física).

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Comte considerava que os efeitos das Revoluções Francesa e Industrial tinham escapado ao controle dos homens e a sociedade que se tinha não era nem sombra daquela que a vontade filosófica dos iluministas queria ver realizada. Admitia que a organização social, suas mudanças e permanências obedeciam a um conjunto de leis desconhecidas que tinham que ser descobertas por meio do conhecimento científico (que ele chamava de conhecimento positivo). Apenas com o conhecimento dessas leis, suas regularidades, é que se poderia finalmente realizar um tipo de intervenção favorá-vel à reorganização da vida social.

A partir desse exercício, podemos agora fazer brevemente uma síntese do que foi afirmado neste capítulo acerca da ciência de modo geral e das ciências sociais em particular. São quatro os princípios fundamentais do pensamento científico:

O primeiro que destacamos aqui é o princípio do exercício da dúvida que se re-aliza em duas dimensões: a) questionamento dos conhecimentos tradicionais (especialmente aqueles fundamentados no pensamento religioso); b) ques-tionamento dos próprios sentidos humanos: as sensações humanas de modo geral (como o olhar e a percepção de movimento) são colocadas também em dúvida. Tanto a religião como o senso comum são confrontados pela ciência.

O segundo princípio fundamental da ciência é a necessidade de rigorosa in-vestigação baseada na observação metódica. Esse princípio decorre do pri-meiro que acabamos de destacar, já que, da perspectiva da ciência, supõe-se que o método deve permitir que o investigador seja capaz de “ver além das aparências”. O cientista deve, pois, ultrapassar o senso comum através de pro-cedimentos de observação e análise bastante sofisticados.

O terceiro princípio da ciência é, na verdade, um pressuposto que enuncia que nem uma vontade sobrenatural, nem o desejo humano são determinantes para a manifestação dos fenômenos. Do ponto de vista da ciência, os fenômenos decorrem de certos princípios que são inteligíveis no plano terreno (“natural”, por assim dizer) e não são arbitrários. A ciência parte do pressuposto de que os fenômenos são regidos por leis regulares que independem da nossa vontade. O papel do cientista é nos fazer entender tais regularidades no funcionamento de fenômenos que se escondem sob uma aparência confusa ou enganosa.

Finalmente, o quarto princípio que destacamos aqui é aquele que admite que a descoberta de leis e regularidades no funcionamento dos fenômenos poderá permitir algum tipo de intervenção eficaz do homem sobre os fenômenos. Aqui, permanece o entendimento de que o homem não regula o funciona-mento dos fenômenos de acordo com seu desejo. No entanto, admite-se que a intervenção humana pode ocorrer de modo eficaz quando as leis que regem o funcionamento das coisas forem conhecidas.

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Nas ciências sociais, esses mesmos princípios gerais são válidos. O estudo das ci-ências sociais exige uma atitude de dúvida constante. Exige também um olhar metó-dico e o entendimento de que a manifestação de fenômenos sociais obedece a certos princípios que se deve investigar com cautela. Independe, portanto, da nossa vontade pura e simples a transformação de certos fenômenos da sociedade.

Não obstante, o cientista social compartilha com outros cientistas uma condição ambígua: de um lado, a humildade de considerar que o homem não controla rigorosa-mente os fenômenos sociais e, de outro, a pretensão de que os conhecimentos obtidos por meio da ciência social auxiliem numa intervenção humana positiva. Nesse sentido, cientistas sociais oscilam frequentemente entre a resignação e a esperança!

Texto complementar

Discurso preliminar sobre o espírito positivo(COMTE, 2009)

Estado positivo ou real

1.º Seu principal caráter: a lei da subordinação constante da imaginação à observação

12. Esta longa sucessão de preâmbulos necessários conduz enfim nossa inteli-gência, gradualmente emancipada, ao seu estado definitivo de positividade racio-nal, que deve ser caracterizado aqui de um modo mais especial do que os dois esta-dos preliminares. Tendo tais exercícios preparatórios mostrado espontaneamente a inanidade radical das explicações vagas e arbitrárias próprias à filosofia inicial, quer teológica, quer metafísica, o espírito humano renuncia de agora em diante às pes-quisas absolutas, que só convinham à sua infância, e circunscreve os seus esforços ao domínio desde então rapidamente progressivo, da verdadeira observação, única base possível dos conhecimentos realmente acessíveis, criteriosamente adaptados às nossas necessidades efetivas. A lógica especulativa tinha até então consistido em raciocinar, de modo mais ou menos sutil, segundo princípios confusos, que, não comportando nenhuma prova suficiente, suscitavam sempre debates sem resulta-do. Ela reconhece de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposi-ção que não é estritamente redutível à simples enunciação de um fato, particular ou geral, não nos pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os princípios que

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ela emprega não passam em si mesmos de verdadeiros fatos, apenas mais gerais e mais abstratos do que aqueles cuja ligação devem formar. Qualquer que seja, aliás, o modo racional ou experimental, de os descobrir, é sempre da sua conformida-de, direta ou indireta, com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica. A pura imaginação perde então de modo irrevogável a sua antiga supremacia mental e subordina-se necessariamente à observação, de manei-ra a constituir um estado lógico plenamente normal, sem deixar contudo de exercer, nas especulações positivas, um papel tão capital como inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de ligação, quer definitiva, quer provisória. Em uma palavra, a revolução fundamental que caracteriza o estado viril de nossa inteligência consiste em substituir por toda a parte a inacessível determinação das causas propriamen-te ditas, pela simples pesquisa das leis, isto é, das relações constantes que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores ou dos mais sublimes efeitos, do choque e da gravidade, quer do pensamento e da moralidade, deles não podemos conhecer realmente senão as diversas ligações mútuas próprias à sua rea-lização, sem nunca penetrar o mistério da sua produção.

2.º Natureza relativa do espírito positivo

13. Nossas especulações positivas devem não só confinar-se essencialmente, sob todos os aspectos, à apreciação sistemática dos fatos existentes, renunciando a descobrir sua primeira origem e o seu destino final, mas importa também ainda compreender que este estudo dos fenômenos não deve tornar-se de qualquer modo absoluto, mas permanecer sempre relativo à nossa organização e à nossa situação. Reconhecendo sob este duplo aspecto, como são imperfeitos os nossos meios es-peculativos, vemos que, longe de podermos estudar completamente qualquer exis-tência efetiva, não poderemos sequer garantir a possibilidade de conhecer, mesmo de modo muito superficial, todas as existências reais, das quais a maior parte talvez nos deva escapar totalmente. Se a perda de um sentido importante basta para nos ocultar uma ordem inteira de fenômenos naturais, é perfeitamente razoável pensar--se, reciprocamente, que a aquisição de um novo sentido nos descobriria uma classe de fatos dos quais não temos agora nenhuma ideia, a não ser que acreditemos que a acuidade dos sentidos, tão diferente entre os principais tipos de animalidade, se acha elevada em nosso organismo no mais alto grau que possa exigir a exploração total do mundo exterior, hipótese evidentemente gratuita e quase ridícula. Nenhu-ma ciência pode manifestar melhor do que a Astronomia a natureza necessariamen-te relativa de todos os nossos conhecimentos reais, pois não podendo realizar-se nela a investigação dos fenômenos senão através de um único sentido, muito fácil é serem aí apreciadas as consequências especulativas de sua supressão ou de sua sim-ples alteração. Nenhuma astronomia poderia existir numa espécie cega, por mais

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inteligente que a supuséssemos, nem mesmo se somente a atmosfera através da qual observamos os corpos celestes permanecesse sempre e por toda a parte ne-bulosa. Todo este Tratado há de oferecer-nos frequentes ocasiões de apreciarmos espontaneamente, da maneira menos equívoca, esta íntima dependência em que o conjunto de nossas condições próprias, tanto interiores, quanto externas, mantém inevitavelmente cada um dos nossos estudos positivos.

14. Para bem caracterizar a natureza necessariamente relativa de todos os nossos conhecimentos reais, importa reconhecer, além disso, do ponto de vista mais filosófico, que, se quaisquer de nossas concepções devem ser consideradas como outros tantos fenômenos humanos, tais fenômenos não são simplesmente indi-viduais, mas também e sobretudo, sociais, pois resultam, com efeito, de uma evo-lução coletiva e contínua, cujos elementos e fases essencialmente se entrelaçam. Se, pois, sob o primeiro aspecto, reconhecemos que nossas especulações devem depender sempre das diversas condições essenciais de nossa existência individual, cumpre igualmente admitir, sob o segundo, que não se acham menos subordina-das ao conjunto da progressão social de modo a não poderem comportar jamais a fixidez absoluta que os metafísicos supuseram. Ora, a lei geral do movimento fun-damental da Humanidade consiste, a este respeito, em que nossas teorias tendem cada vez mais a representar exatamente os objetos exteriores de nossas constan-tes investigações, sem que, contudo, a verdadeira constituição de cada um deles possa, em caso algum, ser plenamente apreciada, pois a perfeição científica deve restringir-se a aproximar-se desse limite ideal, tanto quanto o exijam nossas diversas necessidades reais. Este segundo gênero de dependência, peculiar às especulações positivas, manifesta-se tão claramente como o primeiro em todo o curso dos estu-dos astronômicos, quando consideramos, por exemplo, a série de noções cada vez mais satisfatórias, obtidas desde a origem da geometria celeste, sobre a figura da Terra, sobre a forma das órbitas planetárias etc. Assim, posto que, de um lado, as doutrinas científicas sejam necessariamente de natureza bastante móvel de modo a evitar qualquer pretensão ao absoluto, suas variações graduais não apresentam, por outro lado, nenhum caráter arbitrário que possa motivar um ceticismo ainda mais perigoso. Cada mudança sucessiva conserva, aliás, espontaneamente, nas teorias correspondentes, uma aptidão indefinida para representar os fenômenos que lhes serviram de base, pelo menos enquanto não haja necessidade de nelas ultrapassar o grau primitivo de precisão real.

3.º Destino das leis positivas: previsão racional

15. Depois que se reconheceu unanimemente que a primeira condição fun-damental de toda especulação científica consiste em subordinar constantemente

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a imaginação à observação, uma viciosa interpretação induziu amiúde a exagerado abuso desse grande princípio lógico, para fazer a ciência real degenerar em uma espécie de acúmulo estéril de fatos incoerentes, sem oferecer essencialmente outro mérito senão o da exatidão parcial. Importa, pois, bem compreender que o genuíno espírito positivo se acha tão afastado, no fundo, do empirismo como do misticis-mo; é entre estas duas aberrações, igualmente funestas, que ele deve caminhar: a necessidade de semelhante reserva contínua, tão difícil como importante, bastaria, além disso, para verificar, de acordo com as nossas explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente preparada, e não pode, de forma alguma, convir ao estado nascente da Humanidade. É nas leis dos fenômenos que consiste realmente a ciência, à qual os fatos propriamente ditos, por mais exatos e numerosos que sejam, só fornecem os materiais indispensáveis. Ora, considerando o destino constante dessas leis, podemos dizer, sem nenhum exagero, que a verda-deira ciência, muito longe de ser formada por simples observações, tende sempre a dispensar, tanto quanto possível, a exploração direta, substituindo-a pela previsão racional, que constitui, a todos os respeitos, o principal caráter do espírito positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos no-lo mostrará claramente semelhante previsão, consequência necessária das relações constantes descobertas entre os fe-nômenos, jamais permitirá confundir a ciência real com a vã erudição que acumula maquinalmente fatos sem aspirar a deduzi-los uns dos outros. Este grande atributo de todas as nossas sãs especulações importa tanto à sua utilidade efetiva como à sua própria dignidade; porque a exploração direta dos fenômenos ocorridos não seria suficiente para permitir-nos modificar-lhes a realização, se não nos conduzisse a convenientemente prevê-la. Assim, o genuíno espírito positivo consiste em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais.

Atividades

Qual é, segundo o Ministério da Educação, a finalidade da sociologia no Ensino 1. Médio e qual método que se propõe neste volume para o cumprimento dessa finalidade?

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Descreva as principais características do pensamento científico.2.

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Discorra sobre as especificidades das ciências humanas e sociais em relação às 3. ciências chamadas de naturais.

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Ampliando conhecimentos

Contato, direção de Robert Zemeckis, EUA, 1997.

Baseado em livro homônimo do astrônomo americano Carl Sagan, esse filme é excelente para compreender a distinção entre filosofia e religião. Eleanor, a cientista que protagoniza o filme, relaciona-se com um (quase) padre. O diálogo entre ambos retrata o contraste entre as duas formas de conhecimento.

Descartes (título original: Cartesius), direção de Roberto Rossellini, Itália/França, 1974.

Esse filme de Rosselini retrata a vida de um dos mais importantes filósofos da modernidade: René Descartes, responsável pela racionalização do pensamen-to moderno, tanto na filosofia como na ciência.

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