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METODOLOGIA DO ENSINO DAS CIENCIAS SOCIAIS II Alexandro Dantas Trindade Simone Meucci ValEria Floriano Machado 2010

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METODOLOGIA DO ENSINO DAS

CIENCIAS SOCIAIS IIAlexandro Dantas Trindade

Simone Meucci

ValEria Floriano Machado

2010

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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

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© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images.

T833 Trindade, Alexandro Dantas ; Meucci, Simone ; Machado, Valéria Floriano. / Metodologia do Ensino das Ciências Sociais II. / Alexandro Dantas

Trindade ; Simone Meucci ; Valéria Floriano Machado. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2010.116 p.

ISBN: 978-85-387-1085-1

1. Ciências Sociais - Metodologia do Ensino. 2. Ensino - Metodologia. I. Títu-lo. II. Meucci, Simone. III. Machado, Valéria Floriano.

CDD 300.72

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Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp). Especialista em Formação de Quadros Profissionais pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Graduado em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor de Sociologia do Departamen-to de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (DECISO/UFPR).

Alexandro Dantas Trindade

Doutora e Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Depar-tamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pesquisadora da História do Ensino da So-ciologia no Brasil.

Simone Meucci

Doutora e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Tem se dedicado à pesquisa sobre intelectuais e a formação do campo educacional no Brasil.

Valéria Floriano Machado

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SumárioSociedade e indivíduo ...........................................................................................9

O processo de socialização dos indivíduos ....................................................................................... 9

Algumas formas de controle social ....................................................................................................11

A sociedade contra o indivíduo? ........................................................................................................16

Sociologia da educação .....................................................................................27

Educação como “objeto” de análise da Sociologia .......................................................................27

Educação como processo de socialização ......................................................................................30

Educação e instituições sociais ...........................................................................................................31

A escola e a organização da vida escolar .........................................................................................32

Os dilemas da escola no mundo contemporâneo .......................................................................33

Ciência social e cientistas sociais: negação, intervenção e interesse ....................................................................41

Convite à reflexão ....................................................................................................................................41

Ciências Sociais, utopia e evolução no século XIX .......................................................................42

Ciência social, antiutopia e utopia no século XX ..........................................................................45

Ciências Sociais, reforma e intervenção social...............................................................................47

Ciências Sociais, interesse e dúvida ...................................................................................................49

Sociologia no Brasil: autores e temas ............................................................59

Perspectivas de uma história da Sociologia no Brasil .................................................................59

A Sociologia e a transição do Brasil para a modernidade..........................................................63

Identidade nacional e a “questão racial” .........................................................................................67

Mudanças sociais e obstáculos estruturais .....................................................................................73

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História do ensino da Sociologia no Brasil ...................................................85

Intermitência da Sociologia na escola ..............................................................................................85

Limitações ao ensino da Sociologia nas faculdades de Direito ..............................................86

Sociologia nos cursos complementares ..........................................................................................88

Sociologia e a formação dos educadores ........................................................................................90

Sociologia hoje no ensino .....................................................................................................................93

Gabarito .................................................................................................................103

Referências ...........................................................................................................109

Anotações .............................................................................................................115

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Apresentação

O recente ingresso da Sociologia no Ensino Médio exige que mobilizemos esforços para traduzir os conteú-dos clássicos e o conhecimento produzido nas universida-des para o ambiente escolar.

Neste livro propomos uma reflexão acerca da natu-reza do conhecimento sociológico, seus principais pres-supostos e os papéis que assumiu ao longo do tempo, e em que condições apareceu no sistema escolar brasileiro. Compreendemos que essa reflexão é fecunda para que o futuro professor de Sociologia pense nas suas estratégias e alternativas pedagógicas. Nosso objetivo é, pois, provocar uma reflexão sistemática acerca do significado das Ciên- cias Sociais não apenas na escola, mas também na vida social.

Nessa perspectiva, no capítulo I discutimos de modo mais próximo, a partir das diferentes vertentes teóricas, um dos pressupostos fundamentais da Sociologia: a rela-ção indivíduo e sociedade.

No capítulo II, apresentamos os fundamentos da so-ciologia da educação, entendendo que esta é uma refle-xão importante para os futuros professores de Sociologia no sistema escolar.

O capítulo III trata dos sentidos que o conteúdo das Ciências Sociais assumiu em diferentes momentos históri-cos. Procuramos demonstrar que a produção do conheci-mento nas Ciências Sociais está relacionada com as expec-tativas de cada época.

O capítulo IV traz uma síntese da produção sociológi-ca brasileira e, por fim, no capítulo V discutimos a trajetória da disciplina no sistema de ensino brasileiro.

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Sociedade e indivíduo

Simone MeucciNeste capítulo, propomos algumas coordenadas para a reflexão sobre um pres-

suposto que serve de fundamento para as Ciências Sociais. O pressuposto refere-se à seguinte ideia: a sociedade molda os indivíduos, suas ações, seus pensamentos e até mesmo suas maneiras de sentir. Ou seja, para as Ciências Sociais, o ambiente social condiciona hábitos, valores e os sentimentos das pessoas. Ao longo das páginas se-guintes, discutiremos de que maneira a sociedade produz e reproduz nos indivíduos esses comportamentos.

O processo de socialização dos indivíduosCom efeito, a Sociologia entende que somos resultado da sociedade na qual vi-

vemos. Vejamos aqui um exemplo: um nativo criado numa distante sociedade tribal não terá o paladar preparado para apreciar sanduíches de atum com alface e tomate, não compreenderá a representação política parlamentar, tampouco identificará no beijo e no abraço manifestações de carinho. Em contrapartida, nós também não con-seguiremos apreciar os insetos que os nativos comem como iguarias. Será igualmente estranho para um membro de nossa sociedade que todos os dilemas da tribo (desde as contendas familiares até os assuntos de guerra) sejam decididos por um único líder espiritual. E, finalmente, não nos sentiremos comovidos ao testemunhar as expressões de afeto de um nativo para uma das suas numerosas esposas.

Todos nós, bem como os nativos do exemplo, fomos moldados pela nossa socie-dade para gostar de determinados sabores, para confiar em certas instituições ou lide-ranças, para sentir atração ou repulsa, tristeza ou alegria em determinadas condições e para expressar esses sentimentos de modo peculiar, conforme as convenções do grupo ao qual pertencemos. Nesse sentido é que afirmamos que maneiras de pensar, agir e sentir são socialmente determinadas (DURKHEIM, 1987).

Para agir, pensar e sentir de acordo com o que determina a nossa sociedade, nosso corpo e nossa mente foram objetos de longa artesania que, em Sociologia, denomina-mos de socialização.

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A socialização é um processo lento. Seu primeiro protagonista é a família. Os pais, ainda à beira do berço de seus filhos e ao longo de toda a infância, transmitem à crian-ça expressões da língua, gestos de despedida e afeto, maneiras corretas de sentar e se vestir. Os pais também ensinam aos seus filhos o uso de adornos e cores, a fruição de sabores de acordo com as convenções sociais: a fita no cabelo é adorno feminino, o bóton do homem-aranha, masculino; azul é cor de menino, rosa é de menina; o pão, um alimento matinal, ao passo que o bife deve ser consumido durante o almoço; já a compota e o pudim somente após as refeições principais.

Com efeito, a educação que nossos pais nos transmitem em pequenos atos coti-dianos constitui, em essência, o processo de socialização. A educação é, nesse sentido, a transmissão dos valores e convenções da sociedade em que vivemos para as novas gerações. Através da educação ocorre verdadeiramente a socialização, processo que permite que regras sociais se reproduzam, se renovem e se perpetuem.

Observemos as palavras do sociólogo Émile Durkheim (1987, p. 5) acerca do que estamos aqui denominando de processo de socialização:

Toda educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente. [...] Desde os primeiros anos de vida, são as crianças forçadas a comer, beber, dormir em horas regulares; são constrangidas a terem hábitos higiênicos, a serem calmas e obedientes; mais tarde obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, a respeitar usos e conveniências, forçamo-las ao trabalho etc., etc. [...] A educação tem justamente por objeto formar o ser social. [...] A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários.

Os pais, com a ação de outras instituições como a escola e a mídia, transformam a criança efetivamente num membro da sociedade. Para isso, especialmente os pais, personificam a coerção da sociedade exercendo sua autoridade e atribuindo punições caso as crianças não obedeçam às suas ordens. Trata-se de um processo demorado, delicado e, também, tenso.

Não obstante, embora exista de fato a coerção e ela, por vezes, se manifeste de modo notável, algumas das regras da sociedade são tão imperceptivelmente apreen-didas pelas crianças que até parecem “naturais”. Vejamos aqui um exemplo: as meninas mais delicadas e calmas e os meninos que, em geral, parecem mais levados e pouco sensíveis. Na verdade, essa diferença entre meninos e meninas nada tem de natural. Trata-se de uma diferença de gênero que se constituiu ao longo do processo de so-cialização e que foi sutilmente apreendida pelos pequenos a ponto de se pensar que é algo próprio da natureza. A socialização que ocorre na infância é denominada de socialização primária.

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Sociedade e indivíduo

Essa socialização é, sobretudo, exercida pelos pais e pelas pessoas ou instituições cujo contato com a criança é constante. A socialização primária constitui apreensão das regras básicas para a circulação no mundo social. É uma etapa necessária na vida de um indivíduo porque o torna capaz de reconhecer a si e aos outros como parte de um grupo social que tem convenções próprias e inescapáveis.

Não obstante, quanto mais complexa a sociedade, mais complexo também o pro-cesso de socialização. Na sociedade em que vivemos, a socialização é um processo contí-nuo, constante, que acompanha toda a vida da pessoa. Isso ocorre porque há, em nossa sociedade, muitas instituições e diferentes papéis sociais a serem desempenhados.

Observemos o seguinte exemplo: um jovem rapaz, pai de dois filhos, casado há cerca de cinco anos, auxiliar de produção numa grande indústria, fiel de uma igreja evangélica, morador da cidade de São Caetano em São Paulo. No seu cotidiano, esse rapaz desempenha diferentes papéis sociais: de pai, marido, profissional, colega e amigo, cidadão do Estado brasileiro, membro da igreja e da associação de moradores do bairro, usuário do metrô, do sistema bancário e da internet etc. As funções desem-penhadas, a maneira de se vestir, o modo de olhar e de se relacionar com as pessoas é diferente em cada situação: na escola dos filhos, no ambiente doméstico, no fórum diante do juiz, nos rituais da igreja, durante as compras ou no futebol com os amigos. Ou seja, o que se espera do rapaz em cada situação e espaço social é diferente e houve um aprendizado (mais ou menos evidente) para isso. Na empresa, houve o período de treinamento que se renova a cada mudança organizacional, no banco, cartilhas orien-taram para o uso das novas tecnologias e serviços, na igreja ele foi lentamente apren-dendo novos cânticos, a impostar as mãos e dar testemunhos, para citar apenas alguns exemplos. A esse processo de aprendizado damos o nome de socialização secundária.

A socialização secundária compreende, portanto, o aprendizado nos diferentes contextos institucionais. O prerrequisito para esses sucessivos novos aprendizados é a socialização primária que oferece fundamentos para que o sujeito reconheça as bases do mundo social. Em sociedades onde a ossatura institucional é muito com-plexa e as transformações e inovações são constantes, os processos de socialização secundária nos acompanham durante toda a vida. A rigor, estamos sendo sempre socializados e ressocializados.

Algumas formas de controle socialTodo processo de socialização compreende, também, sistemas de coerção social.

A sociedade exerce coerção para que os indivíduos se comportem da forma conven-cional. No limite, sistemas de coerção social são indissociáveis da vida em sociedade

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(DURKHEIM, 1987). Mas é importante lembrar que, além das sanções repressivas, há também outras maneiras de se exercer a coerção social: a premiação àqueles que têm conduta exemplar e a idolatria a certas celebridades com comportamentos socialmen-te admiráveis são alguns dos exemplos.

Do mesmo modo que os pais punem os filhos quando não obedecem às suas ordens e os premiam em situações contrárias, as instituições têm possibilidades de coagir o indivíduo a agir conforme as regras sociais estabelecidas. Há, portanto, um sistema complexo de controle social em nossa sociedade e suas inúmeras instituições que compreende desde homenagens públicas aos funcionários obedientes, piadas re-lativas ao sotaque do novo morador do bairro, reprovação do aluno que ultrapassa o número de faltas, penalidades financeiras até o confinamento em presídios.

Observemos, portanto, que esse sistema assume tanto a uma dimensão mais formal (com regras, punições e promoções previstas em estatutos, portarias e ofícios) quanto uma dimensão informal (onde atos de controle social não são previstos em nenhum regulamento, mas se expressam em cenas cotidianas aparentemente banais e espontâneas).

Isso significa que há muitas modalidades de controle social. O sorriso, a fofoca, a piada, o olhar debochado ou repressivo são formas de controle muito eficazes na medida em que a sociedade e seus membros impõem ao indivíduo, através de gestos miúdos (por vezes quase que intangíveis), as consequências da infração às regras sociais vigentes. Quem já não debochou de um colega de trabalho que não combinou apropriadamente (conforme as convenções sociais) as cores da camisa, da gravata e do paletó?

A estigmatizaçãoNão obstante, por vezes o sistema informal de controle social nada tem de pi-

toresco. Arremessa os indivíduos para a marginalidade social, deixando-os circular apenas em lugares e condições que são limítrofes. Um exemplo disso são os homosse-xuais que ficaram, por muito tempo, limitados a relações afetivas e sexuais clandesti-nas, devido ao fato da sociedade não reconhecer a sua sexualidade. Os pontos de en-contros de gays foram sempre áreas bastante degradadas das cidades, onde pessoas consideradas “normais” não frequentavam. Atualmente, percebe-se que há movimen-tos importantes na direção do reconhecimento formal das relações homossexuais, a exemplo da permissão da adoção de crianças por casais gays e do debate em torno da institucionalização da união estável.

A estigmatização opera como poderoso instrumento de controle social. Consiste na atribuição de certas características psíquicas a determinados grupos sociais como

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se estas fossem a “natureza” dos membros que os compõem (GOFFMAN, 1982). Veja-mos alguns exemplos de estigmas: os homossexuais são considerados devassos; as mulheres, intelectualmente inferiores aos homens; os judeus, desonestos; os negros, indolentes. Esses estigmas são geralmente revelados de modo muito informal: por meio das tradicionais anedotas de salão, brincadeiras e expressões populares. Con-tados de boca em boca, provocando o riso e o escárnio, estão, na verdade, sendo po-derosos instrumentos de estigmatização. Para análise sociológica, esse material (as piadas, quadrinhas e brincadeiras supostamente ingênuas) se revela farto de pistas acerca das formas de controle social da sociedade sobre determinados grupos e com-portamentos sociais.

A estigmatização resulta na marginalização de alguns grupos e na concentração do poder social na mão de outros.

Para os estigmatizados, a sociedade reduz as oportunidades, esforços e movimentos, não atribui valor, impõe a perda da identidade social e determina uma imagem deteriorada, de acordo com o modelo que convém à sociedade. O social anula a individualidade e determina o modelo que interessa para manter o padrão de poder, anulando todos os que rompem ou tentam romper com esse modelo. O diferente passa a assumir a categoria de “nocivo”, “incapaz”, fora do parâmetro que a sociedade toma como padrão. Ele fica à margem e passa a ter que dar a resposta que a sociedade determina. O social tenta conservar a imagem deteriorada com um esforço constante por manter a eficácia do simbólico e ocultar o que interessa, que é a manutenção do sistema de controle social. (MELO, 2009, p. 2)

A propósito, aconteceu no Brasil, no final do século XIX e início do século XX, um processo de estigmatização cujas consequências sociais ainda estão à vista de todos nós. Os ex-escravos, após a abolição, foram considerados inaptos para os estudos e para o trabalho livre. As constatações acerca da incapacidade mental e da falta de obs-tinação dos negros ocultaram a responsabilidade do Estado de oferecer escola e for-mação profissional para a população. Desse modo, a elite garantiu que o mercado de trabalho e a propriedade agrária ficassem sob seu controle.

Atualmente, no Brasil, as favelas e o trabalho informal são manifestações notáveis de marginalização social dos negros e seus descendentes, inscritas na estrutura urbana e ocupacional da sociedade. O mais grave disso tudo é que condições precárias de moradia, acesso à saúde, à alimentação e ao mercado de trabalho muito frequente-mente acabam reforçando a estigmatização. O menino negro faminto e sem formação escolar acaba mesmo tendo menos rendimento escolar e perspectiva de futuro do que o menino branco bem alimentado que goza de melhores oportunidades de estudos. Nesse caso, confunde-se o efeito da estigmatização como sua causa.

Nessa situação, é sempre muito difícil transformar esse circuito fechado que produz, reproduz e reforça o controle social sobre determinados grupos sociais. Obser-vemos, portanto, que a sociedade tem mecanismos muito poderosos para reprodução das estruturas de poder e das desigualdades.

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Tais mecanismos se expressam em dramas pessoais muito intensos. Todos nós conhecemos membros de grupos estigmatizados que sofrem com isso. Por vezes, co-nhecemos certos indivíduos que acreditam nos estigmas que a ele foram imputados, se vitimizam ou os reproduzem na própria conduta. Outras vezes, indivíduos lutam heroicamente contra os estigmas por meio de ações coletivas e engajamento em mo-vimentos sociais. Nas duas possibilidades, a sociedade parece se impor de modo muito violento sobre os indivíduos: de um lado, assume-se como inexorável a condição e o lugar social determinado a certos grupos e indivíduos; de outro, se empreende uma verdadeira guerra contra as forças (opressoras neste caso) da estrutura social.

A burocraciaOs sistemas formais mais conhecidos de coerção social compreendem sanções

jurídicas que vão desde multas em dinheiro ou prestação de serviços, passando pelo aprisionamento temporário ou vitalício do indivíduo criminoso, até a pena de morte. Deve-se lembrar que essas punições não servem apenas ao criminoso, mas também aos membros dessa sociedade: ver algemado e preso numa cela imunda um assassino, assistir os últimos momentos de vida de um estuprador antes de seu assento na cadei-ra elétrica é uma maneira de demonstrar a todos o drama e o sacrifício daqueles que desrespeitaram as leis. As cenas figuram como um testemunho do poder coercitivo da sociedade (representada pelo sistema judiciário) sobre os indivíduos. Por isso, pode-se dizer que frequentemente os julgamentos e as prisões têm algo de espetáculo público.

O sistema jurídico está contido dentro da modalidade de controle formal que cha-mamos de burocracia. E o que é propriamente burocracia? Refere-se a um conjunto de regras racionais e impessoais que regulamentam o funcionamento das instituições (WEBER, 1994). Cada instituição (o banco, a faculdade e o Detran, por exemplo) tem regras próprias de funcionamento elaboradas por um grupo de homens especializa-dos que decidem, baseados em critérios racionais, os limites de crédito para cada faixa de renda, de faltas de um aluno de curso presencial, de velocidade em determinada via urbana. Os burocratas são também responsáveis pela definição dos critérios e compe-tências profissionais necessários para o exercício de algum cargo, pela elaboração do organograma e do estatuto de uma empresa, entre outras coisas.

Uma das características dos sistemas burocráticos é que o comportamento humano é antecipado. São fixadas condições (penalidades ou premiações) para cada uma das atitudes possíveis. Vejam, por exemplo, um contrato de compra e venda: ali estão identificados os agentes da compra e da venda (sob a forma de números de RG ou CPF), descritos em detalhes objetivos os objetos da transação, discriminadas as condições em que ocorreu o negócio e previstas cada uma das penas (caso não se cumpram na totalidade essas condições) ou o bônus (se o comprador antecipar alguma parcela do pagamento). Um contrato é, pois, um testemunho eloquente do

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modo como a burocracia antecipa o tempo e procura fixar todas as possibilidades da ação humana e seus efeitos.

Vivemos submetidos aos sistemas burocráticos das incontáveis instituições que nos cercam e prestam serviços. Ao teclar mensagens instantâneas no computador, ou participar de um site de relacionamentos, estamos submetidos às normas da empresa que fornece energia elétrica, da outra que presta serviço de acesso à internet, daquela que hospeda o site, além das leis do Estado brasileiro. Nesse sentido, os indivíduos na sociedade contemporânea estão presos a uma malha de regras racionais de comporta-mento. Muitas vezes, esta malha complexa de regras que se sobrepõe ao indivíduo se torna incompreensível e precisamos de um profissional especializado para nos ajudar: o advogado, um personagem imprescindível numa sociedade como a nossa.

Uma característica importante da burocracia é que suas regras, além de racionais, são também impessoais. A burocracia não nos reconhece em nossa particularidade, apenas objetivamente. Não é casual o fato de que, num contrato de venda de algum bem, os onze dígitos do CPF é que permitem a nossa identificação. Do mesmo modo, na condição de usuários do computador, somos identificados por um número de IP. Enquanto que o Detran não nos reconhece senão por uma combinação de algarismos e letras sob o qual está registrado nosso veículo. Ou seja, números e senhas nos iden-tificam diante das instituições. Somos quase que desumanizados: para o lojista do shopping não interessa nossa história pessoal, mas o número do cartão de crédito; para o médico, o número do cartão de saúde e do prontuário; para a faculdade, o número do registro acadêmico.

A tecnologia é uma aliada importante nesse processo de impessoalização das re-lações sociais na sociedade burocratizada. Ao oferecer o serviço de caixas eletrônicos e reconhecer o cliente por meio de um chip fixado num cartão e uma senha, o banco estabelece uma relação absolutamente impessoal entre o cliente e a empresa. O caixa eletrônico não pode permitir a retirada de um empréstimo senão estritamente dentro da classificação da renda do cliente. Aquilo que o gerente poderia relevar fica agora à cargo de um software a quem não será possível sensibilizar com algum argumen-to pessoal. Com a tecnologia, a sociedade aprofunda a impessoalidade e o controle sobre os indivíduos. Basta ver as câmeras, hoje onipresentes em todos os ambientes: olhos desumanos observam seres anônimos transitando nos elevadores, corredores, salas de aula e ruas da cidade.

Nessa perspectiva, a sociedade se impõe diante do indivíduo por diversos me-canismos (por vezes mais, por vezes menos sutis). Esses sistemas de controle social são reveladores da exterioridade e da coercitividade da sociedade em relação ao indi-víduo. Ou seja, demonstram que, de um lado, as regras de cada instituição e de cada grupo social existem independentemente da nossa existência ou desejo particular e, de outro, explicitam a pressão que a vida social exerce sobre o indivíduo.

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A sociedade contra o indivíduo?Mas a oposição indivíduo e sociedade por vezes não é tão clara. As regras da so-

ciedade não apenas aprisionam e coagem o indivíduo, mas também produzem sua identidade e passam a ser constitutivas de sua “natureza”.

Com efeito, em muitas situações as regras sociais se confundem com nossa per-cepção acerca de nós mesmos. Ou seja, as regras sociais manifestam-se como identida-de e vontade do indivíduo. Observemos dois exemplos: as mulheres frequentemente sentem-se mais femininas e sedutoras ao cruzar as pernas, usar saltos e vestidos. Do mesmo modo, o estagiário de medicina sente-se mais “profissional”, “sábio” e “podero-so” ao usar o jaleco e o estetoscópio e transitar pelos corredores do hospital. O jaleco branco e o instrumento de trabalho acionam algo dentro do jovem estudante que faz com que ele, orgulhoso, já se sinta um médico e se comporte enquanto tal (BERGER, 2007, p. 109).

Conclui-se então que a sociedade não se apresenta apenas externamente, mas se produz continuamente por meio dos atos cotidianos que executamos e que nos conferem identidade social. Dito de outra maneira: a sociedade se produz através de nós e dentro de nós. Pequenos atos, gestos e adereços produzem imediatamente em nossa consciência as condições para a ocupação de posições sociais determinadas. As normas da vida social e a nossa identidade são, pois, indissociáveis.

Certos valores sociais estão tão entranhados dentro do indivíduo que ele nem mesmo os reconhece como “sociais”. Vejamos um caso significativo: por vezes, quando o professor de Sociologia afirma que nossas maneiras de agir e sentir são socialmente condicionadas, alguns alunos contestam dizendo que em suas escolhas e no modo como se sentem e se comportam não foram influenciados pelos outros, tampouco pela sociedade em geral. Consideram sua autonomia individual como um valor positivo e o pressuposto da Sociologia lhes aparece como uma afronta à sua individualidade.

Esse é, pois, um valor fundamental da sociedade atual: todos os indivíduos consi-deram-se livres e, por isso, julgam que fazem escolhas próprias, têm rotinas diferencia-das e uma história pessoal irredutível a qualquer outra.

Nesse caso, especialmente interessante, é possível demonstrar para os alunos que o individualismo é, ele mesmo, um valor social que se impõe a nós e que reproduzimos em atos cotidianos mais ou menos sutis. Aliás, a cada dia, a positivização da individua-lidade torna-se mais forte em nossa sociedade.

O individualismo se manifesta no modo como se estimula certo tipo de diferen-ciação social entre as pessoas na sociedade contemporânea (ELIAS, 1994). Observemos como as crianças são socializadas hoje. As orientações pedagógicas contemporâneas

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orientam os pais para destacarem, em cada filho, suas características particulares, os gostos e habilidades que lhe são próprios. Ao afirmar para seu filho caçula o gosto pelo desenho, um casal não está fazendo apenas uma constatação: está, ao mesmo tempo, estimulando na criança um especial prazer pela atividade a partir da qual ela é reco-nhecida. Da mesma maneira, quando o mesmo casal de pais diz constatar uma notável aptidão matemática em seu filho mais velho, desenvolve as condições para a elabora-ção do gosto profissional do menino e nutre a diferenciação entre os dois filhos: um voltado para as habilidades técnicas, outro para as habilidades artísticas.

Isso só é possível porque a estrutura ocupacional dessa sociedade é também alta-mente diferenciada. Na verdade, a complexificação da divisão do trabalho não apenas possibilita, mas torna necessária a diferenciação sofisticada entre os indivíduos que a compõem.

A orientação pedagógica que favorece as diferenciações individuais é muito elo-quente quando há gêmeos idênticos na família: os pais são então orientados para não vestir as mesmas roupas nos bebês, não comprar brinquedos iguais e estimular a in-dividualidade de cada criança. Essa orientação era impensável no início ou na metade do século passado, quando crianças gêmeas vestidas do mesmo modo representavam uma imagem apreciadíssima por todos.

Algumas sociedades, com efeito, longe de estimularem a diferenciação entre os indivíduos, prezam sua inibição. Serve de anedota entre nós o fato de que crianças japonesas parecem todas iguais. Entretanto, dentro da organização tradicional japone-sa, a socialização primária destina-se a ocultar as diferenças individuais entre crianças. Ali, naquele meio social, a diferenciação dos indivíduos, sobretudo de crianças, é vista como algo negativo.

As escolas tradicionais japonesas procuram equalizar as individualidades de várias maneiras: exigindo o uso de uniformes escolares e de cortes de cabelo iguais, submetendo os alunos a processos de ensino que visam repetir o conteúdo sem per-mitir uma apropriação criativa e particularizada do conhecimento ensinado. E ainda, na vida adulta, quando profissionais dentro da empresa, a competitividade individual não é tão estimulada entre os jovens (BARBOSA, 1999).

Trata-se de um fenômeno bastante diferente da sociedade americana, por exem-plo, onde o individualismo é um dos valores mais fundamentais da organização social. Lembremos, aliás, que o individualismo da sociedade contemporânea se expressa também nos equipamentos que usamos. Há pouco mais de uma década, o telefone era um equipamento de comunicação familiar, de uso coletivo. As casas tinham apenas um aparelho telefônico que era colocado numa mesa especificamente para este fim que ficava frequentemente na sala de estar. Atendia-se à chamada recitando “residência da família tal” e a privacidade das conversas telefônicas era algo muito raro. Atualmente,

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o telefone é um equipamento individual e portátil, que registra a rotina e a agenda de um indivíduo apenas. O mesmo ocorreu com outros equipamentos. O carro é um dos exemplos mais significativos disso: nas classes sociais privilegiadas, o veículo de trans-porte é individualizado e, para constatar isso, basta notar o número de passageiros por veículo no trânsito de qualquer grande cidade ou observar atentamente os anúncios do mercado imobiliário que lançam apartamentos de quatro quartos com quatro vagas na garagem. Com o computador ocorreu algo parecido: os computadores de mesa estão sendo, pouco a pouco, substituídos pelos equipamentos portáteis, de uso pessoal e in-dividualizado. A redução dos micros não significa apenas um fenômeno tecnológico ou estético, mas manifesta uma mudança importante nas relações sociais.

Cabe aqui uma ressalva: a diferenciação dos indivíduos ocorre lado a lado com o fenômeno (já descrito acima) da impessoalização das relações. Ironicamente, a di-ferenciação das aptidões e dos gostos pessoais acontece numa estrutura social com-plexa onde os indivíduos são também igualados pelo anonimato diante das estruturas burocráticas.

O individualismo é, portanto, um fenômeno sociológico e, ao contrário de en-fraquecer o pressuposto sociológico de que as sociedades moldam os indivíduos, o fortalece.

Texto complementar

Neste texto literário, é possível encontrar alguns elementos para refletir sobre a relação indivíduo e sociedade, especialmente sobre o fenômeno da estigmatização.

O texto não está em sua versão integral. Recortamos pequenos trechos do ro-mance que tem como protagonista o jovem promissor Raimundo – brasileiro criado em Portugal, recém chegado ao Brasil. Durante sua estadia no Maranhão, Raimundo apaixona-se por Ana Rosa, filha de Manoel Pescada, membro de tradicional família local. O amor terá destino infeliz, pois o pai da moça impede o casamento dos dois enamorados.

Dividimos os trechos em quatro partes: 1) a descrição do jovem Raimundo ao desembarcar no Brasil; 2) a conversa de Raimundo com o pai de Ana Rosa após este recusar-lhe a mão da moça; 3) os pensamentos de Raimundo após a revelação de sua origem social; 4) a repercussão do rompimento do casal entre algumas pessoas da cidade.

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O mulato(AZEVEDO, 2009)

1.

Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não fossem os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos – grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporo-so e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz. Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política.

Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de im-pressões diferentes, tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo; não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se, no entanto, de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. [...]

2.

[...]

Depois da negativa de Manuel, Ana Rosa afigurava-se-lhe uma felicidade indis-pensável; já não podia compreender a existência, sem a doce companhia daquela mulher simples e bonita, que, no seu desejo estimulado, lhe aparecia agora sob mil novas formas de sedução. [...] Oh! Sim! Desejava Ana Rosa! Habituara-se impercepti-velmente a julgá-la sua; ligara-a a pouco e pouco, sem dar por isso, a todas as aspi-rações da sua vida; sonhara-se junto dela, na intimidade feliz do lar, vendo-a gover-

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nar uma casa que era de ambos, e que Ana Rosa povoava com alegria de um amor honesto e fecundo. E agora, desgraçado – olhava para toda essa felicidade, como o criminoso olha através às grades do cárcere para os venturosos casais que se vão lá pela rua, de braço dado, rindo e conversando ao lado dos filhos. E Raimundo ante-julgava perfeitamente que aquele empenho de Manuel em negar-lhe a filha, longe de arredá-la do seu amor, mais e mais o empurrava para ela, ligando-a para sempre ao seu destino.

– Terá sua filha alguma secreta enfermidade, que levasse o médico a proibir-lhe o casamento? Terá algum defeito orgânico?...

– Oh! Com efeito! O senhor tortura-me com as suas perguntas!... Creia que, se eu pudesse dizer-lhe a causa de minha recusa, tê-lo-ia feito desde logo! Oh!

Raimundo não pôde conter-se e disparatou, fazendo estacar o seu cavalo.

– Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem mais nem menos, a um homem que vem, legítima e conscienciosamente, pedir a mão de uma senhora, que a isso o autorizou. “Não lha dou, porque não quero!” Por que não quer?! “Porque não! Não posso dizer o motivo!...” É boa! Tal recusa significa uma ofensa direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de con-cordar que me deve uma resposta, seja qual for! Uma desculpa! Uma mentira, muito embora! Mas, com todos os diabos! É necessária uma razão qualquer!

– É justo, mas...

– Se me dissesse: “Oponho-me ao casamento, porque antipatizo solenemente com o seu caráter”. [...]

– Não! Não! Ao contrário, meu amigo! Eu até levaria muito em gosto o seu ca-samento com a minha filha, no caso de que isso tivesse lugar!... E só peço a Deus que lhe depare a ela um marido possuidor das suas boas qualidades e do seu saber; creia, porém, que eu, como bom pai, não devo, de forma alguma, consentir em se-melhante união. Cometeria um crime se assim procedesse!...

– Com certeza há parentesco de irmão entre ela e eu!

– Repare que me está ofendendo...

– Pois defenda-se, declarando tudo por uma vez!

– E o senhor promete não se revoltar com o que eu disser?...

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– Juro. Fale!

– Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava...

– Eu?!

– O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade...

Raimundo tornou-se lívido. Manuel prosseguiu, no fim de um silêncio:

– Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa, mas é por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que, para realizá-lo, teria que quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora.

– Eu nasci escravo?!...

– Sim, pesa-me dizê-lo e não o faria se a isso não fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.

Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. [...]

3.

Raimundo, pela primeira vez, sentiu-se infeliz; uma nascente má vontade contra os outros homens formava-se na sua alma até aí limpa e clara; na pureza do seu cará-ter o desgosto punha a primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operava--se dentro dele; ideias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança, iam e vinham, atirando-se raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros vagalhões encapelados. Uma só palavra boiava à superfície dos seus pensamentos: “mulato”.

E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa nuvem, que escondia todo o seu passado. Ideia parasita, que estrangulava todas as outras ideias.

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– Mulato!

Esta só palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que a so-ciedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!”; a razão pela qual, diante dele, chamavam de meninos aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia- -lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só po-derás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!”

– Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justa-mente que inventaram a escravidão no Brasil! [...]

4.

[...]

Falou-se em toda a capital do rompimento de Raimundo com a família do Manuel Pescada. [...] Durante aqueles dias não se falava senão em Raimundo.

– Desacreditou, para sempre, a pobre moça!... dizia um barbeiro no meio da conversa da sua loja.

– Desacreditar quis ele! responderam-lhe, mas é que ela nunca lhe deu a menor confiança! Isto sei eu de fonte limpa!

Na casa da praça, afirmava um comendador, que a saída de Raimundo da casa do tio era devida simplesmente a uma ladroeira de dinheiro, perpetrada na burra de Manuel, e que este, constava, já tinha ido queixar-se à polícia e que o doutor chefe procedia ao inquérito.

– É bem feito! É bem feito!... vociferava um mulato pálido, de carapinha rente, bem vestido e com um grande brilhante no dedo. É muito bem feito, para não con-sentirem que estes negros se metam conosco!

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Seguiu-se um comércio rápido de olhadelas expressivas, trocadas entre os cir-cunstantes, e a conversa torceu de rumo, indo a cair sobre as celebridades de raça escura, vieram os fatos conhecidos a respeito do preconceito da cor; citaram-se pes-soas gradas da melhor sociedade maranhense, que tinham um moreno bem sus-peito; foram chamados à conversa todos os mulatos distintos do Brasil; narrou-se enfaticamente a célebre passagem do Imperador com o engenheiro Rebouças.

Atividades

Explique o que é socialização e qual a sua relação com a ação educativa.1.

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Analise a relação entre sociedade, socialização e controle social. Cite uma forma 2. de controle social formal e outra informal.

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Por que o individualismo não contradiz o pressuposto fundamental da Socio-3. logia de que o indivíduo tem suas atitudes, sentimentos e pensamentos condi-cionados pelo ambiente social?

Ampliando conhecimentos

O Processo, de Kafka.

Este livro – do importante escritor tcheco que escreveu também A Metamor-fose – trata da experiência de um jovem junto à burocracia. Traços como a impessoalidade e o anonimato são tematizados através da aventura do pro-tagonista Josef K que, acusado de um crime, procura se defender junto às ins-tâncias jurídicas.

Billy Elliot.

Nesse filme, lançado em 2000 e indicado para o Oscar, o menino Billie quer ser bailarino, ao passo que seu pai deseja que ele seja lutador de boxe. O aluno pode ver, pois, através desse enredo, de que modo as convenções sociais se manifestam.

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