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28 SOCIEDADE PÚBLICO • QUARTA-FEIRA, 22 NOV 2006 CIÊNCIAS Chimpanzés preferem acasalar com fêmeas mais velhas O facto de os nossos parentes mais próximos serem promíscuos e as fêmeas permanecerem férteis toda a vida pode explicar esta diferença de comportamento em relação aos humanos, dizem os cientistas que observaram uma comunidade de chimpanzés durante oito anos. Por David Marçal Os machos chimpanzés e os humanos são diferentes no que respeita a preferências na idade das fêmeas para acasalar. Apesar de, tal como nos humanos, preferirem algumas fêmeas em vez de outras, os chimpanzés sentem-se mais atraídos por fêmeas mais velhas. São as conclusões de um trabalho realizado por cientistas das universida- des de Harvard e de Boston, publicado ontem na revista Current Biology. Enquanto os chimpanzés têm um sistema de aca- salamento promíscuo, os humanos formam relações de acasalamento invulgar- mente longas, o que torna as fêmeas jovens, com maior potencial repro- dutivo, mais atraentes. Estudos multiculturais indicam que a atractivi- dade feminina humana tem, em geral, um pico antes da maternidade e decai com o envelheci- mento. Pensa-se que a menopausa, que limita a ferti- lidade fu- tura, acentua a preferência por mulheres jovens. Teoricamente, numa espécie sem menopausa nem relações duradouras, os machos não deviam sentir-se mais atraí- dos por parceiras jovens. Esta foi a hipótese que a equipa de Martin Muller, da Universida- de de Boston, testou, estudando os nossos parentes mais próxi- mos, que são promíscuos e as fêmeas permanecem férteis toda a vida. Os cientistas estudaram as preferências de acasala- mento da comunidade de chimpanzés Kanyawara do Parque Nacional Kibale, no Uganda, durante oito anos. É complicado inferir as prefe- rências a partir dos dados de acasalamentos efectivamente consumados, porque cada có- pula reflecte sempre algum compromisso entre as duas estratégias reprodutivas, do macho e da fêmea. Os machos nem sempre conseguem acasalar com as suas parceiras preferidas. Se- ja porque a competição com outros machos é intensa ou porque as fêmeas expressam preferências conflituosas. Por isso, os investigadores usaram múltiplas abordagens para avaliar a atractividade das fêmeas. O primeiro é a abordagem para a cópula. As cópulas de chimpanzés são frequentemente precedidas por comportamentos de corte masculinos, como observar fi- xamente a fêmea com o pénis erecto. Depois, tanto o macho como a fêmea se podem apro- ximar para acasalar. Os investigadores verifica- ram que as cópulas iniciadas por iniciativa do macho aumentam com a idade das fêmeas. E o número de ma- chos num grupo é maior se estiverem presentes fêmeas mais velhas. Uma terceira análise demonstrou que as fêmeas mais velhas têm uma taxa de cópula mais alta com machos de elevado estatuto. Como os machos dominantes têm mais possibilidades de realizar as suas preferências de acasalamento, trata-se de uma indicação da preferência masculina. Segundo os autores, os da- dos distinguem solidamente os padrões de preferências de humanos e chimpanzés, indicando que a preferência dos homens por mulheres jovens é uma característica que surgiu como resposta adaptativa à tendência hu- mana para formar ligações duradouras. As cópulas iniciadas por iniciativa do macho aumentam com a idade das fêmeas. E o número de machos num grupo é maior se estiverem presentes fêmeas mais velhas E nos humanos, como é? Será certo que os ho- mens preferem mesmo mulheres mais novas? Há algumas explicações para isso: o pico da fer- tilidade nas mulheres é entre os 20 e os 24 anos, e pelos 50 anos chega à menopausa. Mas os ho- mens, em teoria, podem continuar a fazer filhos até morrerem. Por outro lado, diz-se que as mu- lheres preferem homens mais velhos por terem uma posição social mais elevada. Estas ideias são explicadas, por exemplo, no livro A Sobrevivência dos Mais Belos, de Nancy Etcoff (Replicação). Mas o primatólogo Frans de Waal, da Universidade de Emory (EUA), disse à revista Science que os dados sobre os há- bitos de acasalamento em várias culturas não permitem fazer compa- rações com os chimpan- zés: “Toda a gente pensa que os homens preferem mulheres mais jovens. Mas todos os resultados humanos se baseiam em questionários e na selecção de fotografias de mulheres que consi- deram atraentes. Não sabemos se na vida real fariam o mesmo.” C.B.

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2 8 S O C I E D A D E PÚBLICO • QUARTA-FEIRA, 22 NOV 2006 C I Ê N C I A S

Chimpanzés preferem acasalar com fêmeas mais velhas

O facto de os nossos parentes mais próximos serem promíscuos e as fêmeas permanecerem férteis toda a vida pode explicar esta diferença de comportamento em relação aos humanos, dizem os

cientistas que observaram uma comunidade de chimpanzés durante oito anos. Por David Marçal

Os machos chimpanzés e os humanos são diferentes no que respeita a preferências na idade das fêmeas para acasalar. Apesar de, tal como

nos humanos, preferirem algumas fêmeas em vez de outras, os chimpanzés sentem-se mais atraídos por fêmeas mais velhas. São as conclusões de um trabalho realizado por

cientistas das universida-des de Harvard e de Boston, publicado ontem na revista Current Biology.

Enquanto os chimpanzés têm um sistema de aca-salamento promíscuo, os humanos formam relações de acasalamento invulgar-mente longas, o que torna as fêmeas jovens, com maior potencial repro-dutivo, mais atraentes. Estudos multiculturais indicam que a atractivi-dade feminina humana tem, em geral, um pico antes da maternidade e decai com o envelheci-mento. Pensa-se que a

menopausa, que limita a ferti-

lidade fu-tura,

acentua a preferência por mulheres jovens.

Teoricamente, numa espécie sem menopausa nem relações duradouras, os machos não deviam sentir-se mais atraí-dos por parceiras jovens. Esta foi a hipótese que a equipa de Martin Muller, da Universida-de de Boston, testou, estudando os nossos parentes mais próxi-mos, que são promíscuos e as fêmeas permanecem férteis toda a vida.

Os cientistas estudaram as preferências de acasala-mento da comunidade de chimpanzés Kanyawara do Parque Nacional Kibale, no Uganda, durante oito anos. É complicado inferir as prefe-rências a partir dos dados de acasalamentos efectivamente consumados, porque cada có-pula reflecte sempre algum compromisso entre as duas estratégias reprodutivas, do macho e da fêmea.

Os machos nem sempre conseguem acasalar com as suas parceiras preferidas. Se-ja porque a competição com outros machos é intensa ou porque as fêmeas expressam preferências conflituosas. Por isso, os investigadores usaram múltiplas abordagens para avaliar a atractividade das fêmeas.

O primeiro é a abordagem para a cópula. As cópulas

de chimpanzés são

frequentemente precedidas por comportamentos de corte masculinos, como observar fi-xamente a fêmea com o pénis erecto. Depois, tanto o macho como a fêmea se podem apro-ximar para acasalar.

Os investigadores verifica-ram que as cópulas iniciadas por iniciativa do macho aumentam com a idade das fêmeas. E o número de ma-chos num grupo é maior se estiverem presentes fêmeas mais velhas. Uma terceira análise demonstrou que as fêmeas mais velhas têm uma taxa de cópula mais alta com machos de elevado estatuto. Como os machos dominantes têm mais possibilidades de realizar as suas preferências de acasalamento, trata-se de uma indicação da preferência masculina.

Segundo os autores, os da-dos distinguem solidamente os padrões de preferências de humanos e chimpanzés, indicando que a preferência dos homens por mulheres jovens é uma característica que surgiu como resposta adaptativa à tendência hu-mana para formar ligações duradouras. ■

As cópulas iniciadas por iniciativa do macho aumentam com a idade das fêmeas. E o número de machos num grupo é maior se estiverem presentes fêmeas mais velhas

E nos humanos, como é?

Será certo que os ho-mens preferem mesmo mulheres mais novas? Há algumas explicações para isso: o pico da fer-tilidade nas mulheres é entre os 20 e os 24 anos, e pelos 50 anos chega à menopausa. Mas os ho-mens, em teoria, podem continuar a fazer filhos até morrerem. Por outro lado, diz-se que as mu-lheres preferem homens mais velhos por terem uma posição social mais elevada. Estas ideias são explicadas, por exemplo, no livro A Sobrevivência dos Mais Belos, de Nancy Etcoff (Replicação). Mas o primatólogo Frans de Waal, da Universidade de Emory (EUA), disse à revista Science que os dados sobre os há-bitos de acasalamento em várias culturas não permitem fazer compa-rações com os chimpan-zés: “Toda a gente pensa que os homens preferem mulheres mais jovens. Mas todos os resultados humanos se baseiam em questionários e na selecção de fotografias de mulheres que consi-deram atraentes. Não sabemos se na vida real fariam o mesmo.” C.B.

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3 0 S O C I E D A D E PÚBLICO • DOMINGO, 26 NOV 2006 C I Ê N C I A S

A CIÊNCIA DO ORGASMO ALEATÓRIOA iniciativa Orgasmo Global (http://globalorgasm.org) quer organizar um orgasmo sincronizado à escala planetária no próximo dia 22 de De-zembro (ponha na agenda). O primei-ro Orgasmo Anual Sincronizado com o Solstício pretende que os participan-tes concentrem os seus pensamentos na Paz, durante e após o orgasmo. Se-gundo os promotores, a combinação de alta energia orgásmica com uma intenção mental dirigida poderá ter um efeito maior do que meditações e orações em massa. No site, é enfatiza-da a urgência da acção com o facto de mais duas frotas norte-americanas equipadas com equipamento anti-sub-marino estarem a caminho do Golfo Pérsico. Não lhes restará alternativa senão fazer meia volta, arriscando-se mesmo a abalroar um farol caso parte significativa da tripulação se encontre a aderir à iniciativa.

E se fosse mesmo verdade? Se acon-tecimentos de consciência colectiva à escala global pudessem influenciar

a energia e a matéria? Investigadores da Uni-versidade de Princeton descreveram a existên-

cia de uma correlação entre dados aleatórios gerados continuamente e grandes acontecimentos mundiais, como o 11 de Setembro ou a morte da princesa Diana.

A equipa, liderada pelo psicólogo Roger Nelson, do Departamento de Engenharia Mecânica e Aeroespacial, de Princeton construiu uma rede de 64 geradores de eventos aleatórios espalhados pelo mundo. Os gerado-res convertem ruído electrónico, com origens a nível quântico, numa sequência imprevisível de zeros e uns. Os autores defendem que os dados continuamente produzidos por estes instrumentos tendem a divergir do esperado quando acontecimentos globais de grande relevo estimulam a coerência de pensamentos e emoções de muitas de pessoas. Como num gran-de orgasmo colectivo pela Paz.

Roger Nelson esclareceu recente-mente que o laboratório não está li-gado à iniciativa GlobalOrgasm.org, mas que irão estar atentos e olhar para os números aleatórios caso o or-gasmo pareça “verdadeiramente glo-bal”. Não esclarece que métodos serão utilizados para tal averiguação.

A ideia é que haja um novo orgas-mo todos os anos até ao solstício de Dezembro de 2012, quando acaba o calendário Maia e começa uma nova era. Por esta altura, o mundo já estará eventualmente preparado para uma grande orgia global que, a acontecer, certamente acabará com todas as guerras. Durante 15 minutos, pelo menos.

O artigo dos investigadores de Prin-ceton foi publicado em 2002 na revista Foundations of Physics Letters e, não obstante a vasta quantidade de mate-mática pouco trivial, será certamente uma boa fonte de frases de engate para dia 22.

A revista consta na lista do Science Citation Index e tem um factor de im-pacto de 0,5. Isto significa que é uma publicação credível mas não muito importante. A Nature e a Science têm factores de impacto à volta dos 30.

No fundo, talvez haja uma ténue evidência científica de que o orgasmo global resulte: quem não participar é porque apoia a guerra no mundo e não quer que as frotas anti-submarinas voltem para trás. ■ DAVID MARÇAL

Análise

Será que os peixes conseguem sentir dor?

Pode parecer algo inusitado, mas é motivo de discussão entre os cientistas se os peixes podem não sentir estímulos dolorosos; há quem diga que sim, e de tal forma que até deixam de alimentar quando estão a sofrerDAVID MARÇAL

Será que os peixes sentem dor? Este é actualmente um assunto controverso, com muitos estudos a demonstrar a possibilidade de os peixes sentirem não só dor mas também medo e stress. Os peixes fazem parte de muitas activida-des humanas, como aquacultura, pesca e investigação, pelo que a questão tem consequências éticas importantes no modo como devem ser tratados.

Lynne Sneddon, da Universidade de Liverpool, uma das investigadoras que acredita que devemos tratar os peixes com humanidade, esteve recentemente em Lisboa, no âmbito do um encontro dedicado ao bem-estar de animais aquá-ticos, que decorreu no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Sneddon defende que os peixes não só possuem todas as estruturas anatómicas necessárias à percepção de dor, como o seu comporta-mento normal é alterado em resultado de experiências dolorosas.

Mas detectar dor nos animais é algo

As carpas foram alguns dos peixes estudados por Lynne Sneddon: quando expostos a estímulos dolorosos, mostram alívio com analgésicos

DR

complicado. Os cientistas fazem deter-minações indirectas, principalmente baseadas em respostas a eventos poten-cialmente dolorosos.

Uma questão de córtex?A primeira questão é saber se os peixes possuem as estruturas neurológicas para sentir, processar e reagir a estímulos po-tencialmente dolorosos. Aparentemente sim. Estudos recentes mostraram que as trutas possuem fibras nervosas para de-tectar a dor semelhantes às que existem nos humanos. Estas fibras, chamadas noci-receptores, estão distribuídas pela face do peixe.

Nos mamíferos, o processamento da dor no sistema nervoso central en-volve áreas específicas do cérebro e os peixes têm todas essas áreas. Contudo, existe alguma controvérsia quanto ao tamanho do córtex, uma vez que este é essencial para o processamento da dor nos humanos.

O córtex dos peixes é relativamente muito mais pequeno e menos diferen-ciado que o dos humanos (o que também é verdade para todos os outros animais). Assim, segundo algumas opiniões, os peixes são incapazes de sentir dor porque têm um córtex muito pequeno.

No laboratório de Sneddon, alguns peixes foram sujeitos a estímulos mecânicos, térmicos e químicos poten-cialmente dolorosos. O resultado destas experiências demonstrou que os estes estímulos nocivos são acompanhados de alterações no cérebro.

Verificam-se modificações na expres-são genética em certas zonas do cérebro. Imagens obtidas por ressonância magné-tica também demonstram que o cérebro é activado pelos estímulos nocivos.

Outra abordagem são os aspectos psicológicos da possível percepção da dor. Peixes sujeitos a estímulos nocivos exibem um comportamento anormal por longos períodos, que podem durar até seis horas. Os comportamentos normais de alimentação são suspensos e os peixes descuidam as actividades de fuga aos predadores, atitudes que demonstram que a dor sentida é dominante na sua atenção.

A administração de morfina, um anal-gésico, atenua estes comportamentos adversos, mostrando que se tratam de reacções de resposta à dor. Outros estudos demonstram que os peixes são capazes de aprender a evitar os estímulos nocivos, o que também deixa de se verificar quando é administrada morfina.

“Eu nunca fui um peixe, por isso não posso garantir-lhes que eles sentem dor. É virtualmente impossível entrar na mente de um animal e saber o que ele está a sentir. Mas acredito que devemos dar aos peixes o benefício da dúvida e tratá-los como se eles fossem capazes de sentir dor”, afirma Sneddon. ■

Como humanos, é natural que já tenhamos sentido dor, por exemplo associada a uma experiência sen-sorial e física, como um corte ou uma queimadura, ou a um trauma emocional, sem que tenha ocorrido qualquer lesão. Isto faz com que a dor seja um conceito complexo, que compreende componentes sensoriais e emocionais. A dor pode ser definida com um estado emocional que leva a proteger-nos, a evitar situações ou estímulos no-civos e defender as áreas afectadas de mais dor, de modo a permitir a cura. Os humanos podem comu-nicar a dor uns aos outros. Mas

não há nenhum comportamento universal que indique que o ani-mal está a sentir dor. Em 1986, foi proposta uma definição para a dor animal, como uma experiência sensorial adversa causada por um estímulo nocivo ou potencialmente capaz de danificar os tecidos, tais como temperaturas extremas, pressão mecânica elevada ou químicos agressivos. O animal deve afastar-se do estímulo nocivo numa resposta motora defensiva, podendo também ser desencadea-das respostas vegetativas, como al-terações no sistema cardiovascular e inflamação. D.M.

Emoções fazem parte dos estados dolorosos

Critérios fisiológicos para avaliar se um animal é capaz de sentir dor

1. Noci-receptores presentes: ter um sistema nervoso com sensores específicos para a dor.2. Sistema nervoso central3. Noci-recepetores ligados ao sistema nervoso central4. Opiáceos endógenos: o animal tem a capacidade de fazer os seus próprios analgésicos5. As reacções podem ser modificadas com analgésicos6. Reacções a estímulos prejudiciais análogas às dos humanos

Alterações psicológicas indicativas de que o animal está a sofrer

1. Aprende a evitar os estímulos nocivos.2. Comportamento normal é suspenso. Alimentação e fuga aos predadores são descuidadas, por exemplo.

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S O C I E D A D E 2 9 PÚBLICO • DOMINGO, 10 DEZ 2006C I Ê N C I A S

Os dados registados pelo dectetor de partículas são lançados num computador portátil para serem analisados

RUI GAUDENCIO

Alunos do secundário medem a qualidade do ar que respiram por um diaEstudo europeu inovador avalia a exposição pessoal a partículas de poluição

DAVID MARÇAL

“Tive que pôr isto dentro do casaco”, diz Maria do Carmo Sousa, aluna do 11º da Esco-la Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa. Salvador Sobral, também com 16 anos e da mesma turma de Geografia, acha que teve azar com o dia que lhe coube para transportar o detector de partículas de poluição: “Calhou num dia de chuva e isto não pode apanhar água.”

Salvador Sobral e Maria do Carmo Sousa são dois dos cerca de 200 jovens portu-gueses que participam num projecto de investigação europeu chamado EuroLi-feNet. Durante um dia, cada um transportou um detector de partículas portátil e me-diu a qualidade do ar que respirou para os cientistas avaliarem. Em Portugal, estão envolvidos jovens das regiões de Viana do Castelo, Açores e Lisboa e Vale do Te-jo e, em Itália, da Lombardia. Os estudantes portugueses, do 9º ao 12º ano, são acompa-nhados por 20 professores. A primeira campanha de medições decorreu entre 3 e 24 de Novembro.

Os dados registados por Salvador e Maria do Carmo são descarregados para o computador portátil com a ajuda das professoras Ana-

bela Neves e Maria João Vieira. Em ambos os casos, os valores de partículas registados nas últimas 24 horas são baixos: “Não tinha ideia nenhuma, mas fiquei a saber que a minha casa não tem poluição”, diz Salvador. Maria do Carmo vai ainda mais longe: “Gostava que os valores fossem mais altos, era mais interessante.” Mas nem sempre é assim e não é por acaso que nem Salvador ou Maria do Carmo fumam, pois uma das causas fre-quentes para que os valores disparem é o fumo de cigarro (ver gráfico).

Os detectores medem as partículas mais pequenas, ou seja com dimensões in-feriores a 2,5 micrómetros (PM2,5). Estas são as mais perigosas pois podem chegar às regiões de trocas gasosas nos pulmões e algumas, mui-to pequenas, podem mesmo passar através dos pulmões para a corrente sanguínea e afectar outros órgãos.

De GPS na cidadeOs alunos levam também com eles um dispositivo de localização geográfica por satélite (GPS). Deste modo, as concentrações de partículas poluentes po-dem ser associadas a uma localização (desde que haja

satélites em linha de vista). Num percurso realizado por uma aluna entre o bairro de Campo de Ourique e a escola (que fica próximo do Parque Eduardo VII), foram atingi-dos por momentos valores de 700 microgramas por metro cúbico, devido ao intenso tráfego automóvel (mesmo assim, muito inferiores aos registados por outros alunos na proximidade de fumo de cigarro).

Para além da importância da investigação ambiental, o EuroLifeNet tem também uma importante compo-

nente pedagógica. Os dados recolhidos podem ser traba-lhados no âmbito de várias disciplinas, nomeadamente Área Projecto Química, Físi-ca, Química e Geografia.

Os alunos de Geografia da professora Maria João Vieira descarregaram todos os dias imagens de satélite da Internet, e vão procurar relacionar as concentrações de partículas com as condi-ções meteorológicas. Em que tipos de tempo há mais partí-culas no ar? “Hoje os valores são baixos, porque o vento também ajuda à dispersão de partículas”, comenta Ma-ria João, referindo-se aos dados de Salvador e Maria do Carmo.

João Joanaz de Melo, in-vestigador da Universidade Nova de Lisboa, destaca duas vertentes do projecto: “Cada um dos alunos que faz isto está a ganhar interesse pela ciência. Por outro lado, não seria possível recolher estes dados com os métodos tradicionais de investigação, com técnicos de laboratório e bolseiros, pois teria um orçamento enormíssimo.” Joanaz de Melo enfatiza o carácter inovador do projec-to: “A monitorização diária de uma pessoa é informação que não existe em mais lado nenhum.” ■

“Não seria possível recolher estes dados com os métodos tradicionais de investigação, com técnicos de laboratório e bolseiros, pois teria um orçamento enormíssimo”, frisa o investigador João Joanaz de Melo

Este gráfico mostra o registo de exposição pessoal a partículas PM2,5 do aluno X, ao longo de quase 24 horas. A interpretação é feita com base no “diário de bordo”, onde são registadas as experiências e os am-bientes por que passa em cada momento do dia.

A legislação canadiana (ver texto ao lado) apenas permite que a média diária para o ar ambiente ex-terior exceda os 30 microgramas por metro cúbico sete vezes por ano. O aluno X (que andou tanto no exterior como em interiores) tem uma média diária, neste dia 22 de Novembro, dez vezes superior: 300 microgramas por metro cúbico. O aluno X fuma ou tem amigos que fumam.

Há vários picos ao longo do dia, correspondentes a fumo de cigarro nas proximidades, que chegam às 11 miligramas por metro cúbico. Ou seja, por alguns instantes é atingido um valor 440 vezes mais elevado do que o limite médio anual proposto pela Comissão Europeia.

O aluno X passeou algumas horas num centro comercial, onde também encontrou concentrações muito elevadas de partículas nocivas. Os valores na sala de aulas são muito baixos. Na cozinha, a confecção dos alimentos faz subir os valores por momentos. Na sala, onde o medidor foi deixado du-rante a noite, o nível de partículas baixa durante a madrugada, devido à ausência de actividade, até ao acordar. D.M.

Tabaco é o agente mais nocivo

Os mais recentes conhecimentos científicos revelam que os principais riscos para a saúde não residem nas partículas maiores, mas sobretudo nas mais finas. Por essa razão a União Europeia prepara-se para, pela primeira vez, legislar sobre as partículas inferiores a 2,5 micrómetros (PM2,5), na nova direc-tiva sobre a qualidade do ar. O assunto é quente.

O valor limite constante da proposta da nova directiva comunitária para a concentração média anual de PM2,5 no ar ambiente (exterior) é de 25 microgramas por metro cúbico. A meta é para ser atingida até 2025.

O Parlamento Europeu aprovou em Setembro um relatório que considera o limite proposto pela Comissão Europeia pouco ambicioso e sugere um valor alvo de 20. Este padrão é assumido pelos au-tores do relatório como um compromisso entre as exigências de maior protecção da saúde humana e a exequibilidade.

O valor correspondente usado desde há quase dez anos pela Agência de Protecção Ambiental (EPA) norte-americana é de 15, e o valor em vigor no estado da Califórnia é 12. No Canadá, as leis proíbem que o valor médio diário de 30 microgramas por metro cúbico seja ultrapassado mais do que sete vezes por ano. A média anual recomendada pela Organização Mundial de Saúde é dez.

“Os dados científicos usados em todos estes casos são os mesmos; o que aparentemente difere, é o nível de ambição para reduzir a poluição”, pode ler-se na declaração aprovada em Setembro em Munique e Paris por cientistas da área da saúde e poluição atmosférica (http://www.apheis.net/). O grupo con-sidera o limite proposto pela Comissão Europeia demasiado permissivo e que está demonstrado que uma média anual entre 20 a 25 microgramas por me-tro cúbico de partículas inferiores a 2,5 micrómetros é gravemente prejudicial para a saúde. D.M.

Europa demasiado permissiva?

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S O C I E D A D E 2 7 PÚBLICO • QUINTA-FEIRA, 14 DEZ 2006C I Ê N C I A S

O Volaticotherium planava quando saltava entre as árvores

CHUANG ZHAO E LIDA XING

Os primeiros animais a voar podem ter sido os mamífe-ros, e não as aves, diz hoje, na revista Nature, a equipa que descobriu na Mongólia o fóssil de um animal que viveu há pelo menos 130 milhões de anos e que planava, como os esquilos voadores actuais. Isto revela que a evolução começou a fazer experiên-cias de voo nos mamíferos ao mesmo tempo que nas aves, ou até antes.

Os primeiros inventores do voo foram os pterossauros, animais semelhantes aos di-nossauros mas com asas, que apareceram há mais de 200 milhões de anos. A primeira ave primitiva, a Arqueopterix, só surgiu há 150 milhões de anos. Os mais antigos fósseis de mamíferos capazes de pla-nar encontrados até agora tinham 70 milhões de anos.

Os cientistas concluíram que este animal é tão diferen-te de outros conhecidos (ape-sar de parecer um esquilo) que funda uma nova ordem de mamíferos. Deram-lhe o nome científico Volaticothe-rium antiquus (que quer dizer “antigo animal planador”).

Os mamíferos podem ter

descoberto o voo antes das aves

Foi descoberto o esqueleto fossilizado do Volaticothe-rium, e também a impressão que deixou na rocha. Foi esta impressão que permitiu perceber que tinha uma mem-brana que ligava os membros dianteiros e posteriores, que se estendia quando o animal saltava de árvore em árvore, formando como que uma espécie de vela, ou pára-que-das, que lhe permitia planar. Os membros são alongados, o que é uma característica dos animais de hoje que planam.

Na rocha descoberta na Mongólia oriental vê-se tam-bém a impressão deixada por pêlos da membrana e de outras partes do corpo do animal, que não devia pesar mais que 70 gramas, para um comprimento entre 12 e 14 centímetros. Os dentes aguçados revelam que se alimentava de insectos.

Os cientistas calculam que tenha vivido entre há 130 e 164 milhões de anos e que, apesar de ter semelhanças com os esquilos planadores actuais (que pertencem à or-dem dos roedores), não será o seu antepassado directo, nem de outros mamíferos actuais. “Estamos a descobrir uma imagem muito diferente dos mamíferos que viviam na épo-ca dos dinossauros”, disse Jin Meng, do Museu Americano de História Natural, um dos autores da descoberta.

Fóssil da Mongólia revela mamífero

planador com 130 milhões de anos

CLARA BARATA

A dor actua a muitos níveis, voluntários e involuntários, mas são raros os indivíduos em quem o sentido da dor está ausente

M. LAKSHMAN/AP

Desde os dez anos que era bem conhecida pelos servi-ços de saúde locais a criança que inicialmente despertou o interesse dos cientistas. Actu-ava regularmente em espectá-culos de rua, espetando facas nos braços e caminhando sobre brasas, sem sentir dor. Morreu antes de completar o décimo quarto aniversário, na sequência de um salto do telhado de uma casa. Poste-riormente, os investigadores procuraram e estudaram três famílias consanguíneas do Norte do Paquistão, perten-centes ao clã Qureshi birdari, com histórias semelhantes de ausência de dor.

Os seis indivíduos afectados nunca tinham sentido dor em qualquer parte do seu corpo, nem mesmo enquanto bebés: nenhum fazia a mínima ideia do que é a sensação de dor.

Os mais velhos acabaram por aprender que certos acontecimentos provocam dor e chegam a fingir dor na sequência de entradas mais duras em jogos de futebol. Tinham lesões nos lábios e na língua, por se morderem nos primeiros quatro anos de vida. Alguns necessita-ram mais tarde de cirurgia plástica e, em dois casos, ocorreu a perda de dois ter-ços da língua. Todos exibiam feridas e cortes frequentes e a maioria tinha sofrido frac-turas que só foram diagnosti-cadas retrospectivamente. No

Conhecidas no Paquistão três famílias que não sentem dor

de sódio na dor veio de es-tudos com modelos animais: ratinhos modificados gene-ticamente para não o terem apresentaram uma reposta à dor reduzida.

Outra modificação conhe-cida neste canal é a causa de uma doença hereditária chamada eritromelalgia. Os pacientes sentem ataques de dores do tipo queimadura, co-mo resposta a calor modera-do. Tudo isto sugere que este canal específico estabelece uma espécie de factor multi-plicador (ganho) na sensação de dor nos humanos.

A dor é importante (ver caixa), mas o alívio da dor é essencial para a medicina moderna, de modo a permi-tir cirurgias e tornar certas doenças mais suportáveis. Mesmo assim, ainda há alguns tipos de dor que não reagem aos tratamentos actuais. Compreender o mecanismo desta ausência de dor poderá ajudar a en-contrar novos analgésicos. Como este tipo de canais de iões de sódio não existe no músculo cardíaco nem no sistema nervoso cen-tral, medicamentos que actuem como bloqueadores específicos destes canais deveriam em princípio ter menos efeitos secundários do que os actuais.

“Este estudo levanta a hipótese de se poderem de-senvolver fármacos que blo-queiem selectivamente este canal de sódio, o que poderá ter importantes implicações terapêuticas no tratamento da dor crónica”, comentou Ale-xandre Rainha Campos, do serviço de neurocirurgia do Hospital de Santa Maria. ■

Poderá ser possível desenvolver

analgésicos com menos efeitos secundários

DAVID MARÇAL

entanto, exames neurológicos cuidados revelaram que são capazes de sentir tudo o res-to: toque, calor, frio, cócegas, pressão e noção da posição dos membros.

Os estímulos dolorosos são transmitidos na forma de im-pulsos eléctricos, que viajam desde a extremidade das células nervosas na periferia do corpo até ao cérebro. Estes impulsos nervosos passam por canais de iões, que são proteínas na membrana das células que funcionam como portas de passagem para áto-mos ou moléculas com carga eléctrica.

Existem vários tipos de canais de iões, nomeada-mente de canais de iões de sódio, que contribuem para produzir estes impulsos ner-vosos. O tipo de canal de sódio importante para este estudo (designado por NaV1.7) está localizado nas extremidades dos nervos que sentem a dor (nociceptores). Estes canais de sódio comportam-se como uma espécie de amplificado-res dos impulsos eléctricos da dor: quando a diferença de potencial eléctrico atinge um determinado valor, o neurónio dispara.

Os investigadores descobri-ram que os elementos destas famílias têm modificações numa proteína que é uma espécie de “tijolo” da cons-trução destes canais e por isso não sentem dor. O trabalho, conduzido por uma equipa multinacional de cientistas, maioritariamente de ins-tituições do Reino Unido e Paquistão, é publicado hoje na revista Nature.

A primeira pista do envol-vimento deste tipo de canal

Enquanto indivíduos com ausência do sentido da visão ou audição são relativamente comuns, a incapacidade completa de sentir dor é muito rara.A dor é um sentido essencial que evoluiu em todos os organismos complexos para reduzir os danos nos tecidos e células, de modo a prolongar a sobrevivência. A experiência da dor resulta na adopção de comportamentos preventivos que tanto servem para afastar o organismo de um ambiente perigoso, como para permitir a reparação dos danos: por exemplo, deixar uma perna partida em repouso para que novo osso se possa formar. A dor também nos protege no nosso ambiente, ensinando-nos que situações e comportamentos podem provocar lesões. A dor percorre muitos caminhos no sistema nervoso. O bloqueio destes sistemas com analgésicos foi um grande avanço farmacológico. D.M.

Viver sem experiências dolorosas?

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2 4 S O C I E D A D E PÚBLICO • QUINTA-FEIRA, 21 DEZ 2006 C I Ê N C I A S

O vaivém Discovery já vem a caminho da Terra, depois de uma missão bem sucedida na Estação Espacial Interna-cional (ISS), mas ainda não é bem certo quando vai aterrar, porque as previsões meteorológicas não são boas para hoje em Cabo Canave-ral, na Florida, que devia ser o seu destino. Seja onde for, o vaivém tem de aterrar até sábado, porque se acaba o combustível que fornece electricidade à nave.

No Centro espacial Kenne-dy, na Florida, esperam-se hoje nuvens baixas, chuva e ventos fortes na base aérea de Edwards, na Califórnia, que é outro local possível para a aterragem. As melhores pre-visões meteorológicas são para White Sands, no Novo México, mas esta costuma ser a última escolha da NASA, porque em 1982 um vaivém que aterrou lá ficou com os travões danificados, devido à muita poeira desta pista no deserto. “É difícil decidir para onde vão e quando para lá vão”, disse o porta-voz da NASA George Diller, citado pela AP.

A tripulação do Discovery tem um pouco menos de mar-gem de tempo para aterrar porque a missão teve de ser prolongada por mais um dia, para terminar as reparações necessárias nos painéis sola-res da estação.

Mas, antes de regressarem à Terra, os astronautas lança-ram ontem dois pequenos sa-télites e fizeram uma última revisão do escudo térmico da nave — para se certificarem de que não sofreu danos que possam pôr a sua segurança em causa ao reentrarem na atmosfera, quando o vaivém

é submetido a enormes tem-peraturas. Para isso usaram o braço robótico do vaivém, munido de uma extensão de 15 metros com câmaras, para procurar buraquinhos feitos por micrometeoritos durante a estadia da nave no espaço.

Um dos satélite chama-se Mepsi, e é do tamanho de uma caneca. Servirá para testar se pequenos satélites autónomos como este po-dem servir para observar naves e satélites maiores. O outro pequeno satélite que a tripulação do Discovery deve lançar chama-se Raft, e foi construído por alunos da Academia Naval dos Estados Unidos, para testar os limites de um sistema de radar que detecta objectos orbitais que passem sobre os Estados Unidos. De regresso ao planeta vem o astronau-ta alemão Thomas Reiter, que passou os últimos seis meses na Agência Espacial Internacional. Foi substituí-do na plataforma orbital pela astronauta norte-americana Sunita Williams.

Durante a missão de oito dias na estação, a tripulação do Discovery fez quatro saí-das para o espaço, durante as quais instalaram novos painéis solares, arranjaram outro que teimava em não se dobrar bem e, de caminho, renovaram todo o sistema eléctrico da ISS. Com todas estas saídas para o espaço, o astronauta Robert Curbeam quebrou um recorde: fez qua-tro saídas e tornou-se assim a pessoa que mais passeios espaciais efectuou numa só missão.

São precisas pelo menos mais 13 missões de vaivém para terminar a construção da ISS, tarefa com a qual os Estados Unidos se comprome-teram — não há mais naves capazes de levar tanto peso para a órbita da Terra como os vaivéns norte-americanos. Mas as velhas naves têm de deixar de voar até 2010, por isso o tempo urge. ■

Vaivém já vem a caminho, mas não se

sabe onde aterrará

Robert Curbeam junto a um dos painéis solares da ISS

Mau tempo na Florida deixa em dúvida o

local de aterragem, que terá de ocorrer obrigatoriamente

até sábado

NASA

Ilustração artística que representa as bactérias que vivem no nosso corpo

LAURA KYRO, ZHEN HE, LARGUS ANGENENT, JEFFREY

GORDON

Para além de factores genéti-cos e dos hábitos alimentares, o controlo do peso corporal poderá também estar rela-cionado com o tipo de mi-crorganismos presentes no tracto gastrointestinal. Esta hipótese é levantada por cientistas da Universidade de Washington, em dois arti-gos publicados hoje na revista Nature.

Muito foi dito e escrito acerca da sequenciação do genoma humano, mas o nosso próprio genoma não é o único com que temos que nos preocupar: biliões de bactérias vivem no tracto intestinal humano e cada es-pécie traz o seu próprio ADN para a festa.

De facto, pensa-se que o número de genes dos micror-ganismos que vivem no nosso corpo é superior aos nossos, em várias ordens de magnitu-de. Os genomas microbianos conferem-nos capacidades que não temos, como digerir alguns componentes da nossa dieta.

Há dois grupos predomi-nantes de populações de bactérias no sistema diges-tivo humano: os firmicutes e bacteriodetes.

Os autores estudaram um pequeno número de pessoas obesas, e descobriram que a proporção de material genéti-co de firmicutes era mais alto do que em indivíduos com peso regular. Mais, quando indivíduos obesos perdem peso ao longo de um ano, a proporção de fermicutes tor-na-se mais parecida com a de pessoas sem obesidade.

No segundo trabalho, os au-tores descrevem as diferenças nos microrganismos do tracto intestinal de ratinhos obesos e não obesos, que confirmam a tendência: os ratinhos obe-sos têm uma proporção mais alta de fermicutes intestinais. Para além disso, os microrga-nismos dos ratinhos obesos eram mais ricos em genes que codificam enzimas que ajudam a digerir certos tipos de polissacarídeos (polímeros de açucares), que, de outro modo, seriam indigestíveis. Os ratos obesos também tinham mais produtos com calorias nas fezes, ou seja, as bactérias dos ratos obesos parecem ajudá-los a extrair mais calorias dos alimentos ingeridos.

Os cientistas fizeram ain-da uma outra experiência. Transferiram os microrganis-

Obesidade humana é controlada por microrganismos?

mos de ratinhos obesos para ratos sem micróbios e com um peso regular. Para outro grupo de ratinhos transferi-ram os microrganismos de ratinhos com peso regular.

Ao fim de duas semanas, verificaram que os recepto-res a quem foram dadas as bactérias dos ratinhos obe-sos extraíram mais calorias dos alimentos e tiveram um ligeiro aumento da gordura corporal. Embora pequeno, o aumento é estatisticamente superior ao dos ratinhos que receberam microrganismos

de dadores não obesos.Tudo isto sugere que dife-

renças na eficiência de extrac-ção de calorias dos alimentos podem ser determinadas pela composição bacteriana do tracto intestinal, o que jus-tificaria diferenças no peso corporal.

É uma ideia que muda a maneira como vemos as cau-sas da obesidade, mas que os próprios autores consideram que precisa de ser explorada. Por exemplo, as diferenças de peso são tão pequenas que poderiam ser eventualmente

explicadas pelas pequenas diferenças na quantidade elementos ingeridos.

“No todo, acho que o arti-go suscita a possibilidade de termos de considerar o tipo de população bacteriana no tracto intestinal como um factor que pode contribuir para a obesidade, embora se mostre que não será prepon-derante”, afirma João André Carriço, investigador em biomatemática do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores – Investigação e Desenvolvimento. ■

Diferenças na população

bacteriológica podem justificar diferenças na

absorção de calorias

BILIÕES DE BACTÉRIAS VIVEM NO NOSSO CORPO

DAVID MARÇAL

Está bem demonstrada a importância dos sistemas de controlo biológico que fazem com que haja uma grande proximidade entre as calorias adquiridas e as gastas pelo corpo. Para a grande maioria dos humanos (incluindo os obesos), a entra-da de calorias excede o gasto em menos de um por cento. Mas estas pequenas diferenças podem ter um efeito cumu-lativo ao longo dos anos e resultar em aumentos de peso significativos. Note-se que nem todas as calorias ingeridas são necessariamente adquiridas pelo corpo, podendo ser simplesmente rejeitadas, o que resulta em fezes mais calóricas. A capacidade do corpo equilibrar a toma e

o gasto de calorias depende da possibili-dade que o cérebro tem de monitorizar os níveis de gordura corporal. O cérebro é “informado” dos níveis de gordura cor-poral através de mudanças nos níveis de hormonas que circulam no sangue. Uma dessas hormonas é a leptina. Os níveis de leptina aumentam quando aumenta a gordura corporal. Em ratos e humanos que não tenham esta hormona, verifica-se que há uma aquisição descontrolada de calorias, o que tem como consequência um aumento rápido da gordura corporal. Reciprocamente, níveis baixos de lepti-na causam dificuldade em manter o peso corporal. D.M.

Regulação do peso corporal é uma afinação fina

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S O C I E D A D E 2 3 PÚBLICO • SÁBADO, 30 DEZ 2006C I Ê N C I A S

Fragmentos do debate sobre Portugal

“Preferem os defeitos dos de dentro às virtudes dos que vêm de fora”Carlos Fiolhais, Universi-dade de Coimbra

“Não é um problema exclu-sivo das universidades, é transversal a toda a socieda-de portuguesa. As carreiras nos hospitais são tão ou mais endogâmicas”António Coutinho, director do Instituto Gulbenkian de Ciência

“O Estado não deve pro-teger as instituições das consequências das suas más decisões”Diogo Lucena, Universida-de Nova de Lisboa

“Não podemos resolver um problema tão complexo de forma simples”Manuel Heitor, secretário de Estado da Ciência, Tec-nologia e Ensino Superior

A endogamia pode afectar a produtividade científica das universidades portuguesas

A endogamia tem um efeito claramente negativo na produtividade científica, segundo números da base de dados de publicações ISI Web of Knowledge, compilados por Arcadi Navarro.

No Reino Unido, apenas dois em cada dez elementos da faculdade são recrutados internamente, e foram em 2005 produzidos 1463 artigos cientí-ficos por milhão de habitantes.

E cada um deles foi citado nou-tros artigos em média mais de três vezes, o que é uma medida da sua importância.

No caso espanhol, em que 19 em cada 20 professores universitários são recrutados na instituição, foram publica-dos 834 artigos por milhão de habitantes, citados 2,2 vezes. Portugal produziu 608 artigos por milhão de habitantes em 2005, citados em média

menos de duas vezes. Não há nenhum trabalho específico sobre a endogamia nas uni-versidades portuguesas. O Observatório da Ciência e do Ensino Superior (OCES) apre-sentou dados obtidos noutros estudos e apresentou-os quar-ta-feira no debate Endogamia e Mobilidade na Universidade Portuguesa.

Mas os números não são directamente comparáveis

com os publicados por Arcadi Navarro na Nature. Nos dados do OCES foram considerados os docentes que se doutoraram na própria instituição, ao pas-so que o critério usado por Na-varro para definir endogamia foi a instituição onde estavam quando publicaram o primeiro artigo científico. Também não são comparáveis com o estudo a nível europeu publicado por Manuel Soler na Nature (ver

gráfico), porque este apenas se refere a duas áreas (zoologia e ecologia).

No entanto, os números existentes permitem concluir que a endogamia é claramente predominante nas universi-dades portuguesas: segundo os números do OCES, sete em cada dez professores fizeram o doutoramento na mesma universidade em que agora têm um emprego. ■ D.M.

“As universidades devem competir pelo dinheiro com a investigação”

Arcadi Navarro em 2001 fez um grande estrondo quando publicou na Nature um artigo em que colocava em números o fenómeno da contratação de docentes universitários com base em critérios de proximidade social em vez de mérito científico. Acerca da situação das universidades espanholas, que não deverá ser muito diferente das portuguesas, chegou à conclusão de

que preferem os defeitos dos de dentro às virtudes dos que vêm de fora. Por David Marçal (texto) e Daniel Rocha (foto)

ENTREVISTA COM

ARCADI NAVARRO

A endogamia nas universidades é definida como a existência de uma rede social que, independentemente do mérito dos candidatos, sistemati-camente atribui posições aos amigos e conhecidos. O critério usado por Arcadi Navarro, especialista em biologia evolu-tiva da Universidade Pompeu Fabra de Barcelona foi muito simples: comparou a morada do primeiro artigo publicado numa revista científica pelos docentes universitários com a morada actual. Em Espanha era a mesma, em 95 por cento dos casos.

Dito de outro modo, apenas cinco por cento das vagas das faculdades são atribuídas a candidatos de fora. Nos Es-tados Unidos, a situação é exactamente inversa: o número de candidatos exter-nos a obter lugares é de 93 por cento. No Reino Unido é de 83 por cento e em França 50.

Tudo isto tem consequências na produtividade científica. Vários es-tudos demonstram que quando são escolhidos amigos em vez dos candi-datos com mais mérito, o número e o impacto das publicações científicas baixa significativamente. O PÚBLICO falou com Arcadi Navarro, à margem de um debate sobre a mobilidade e endo-gamia nas universidades portuguesas, no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras.

PÚBLICO — Quais são as conse-quências da endogamia nas univer-sidades?

ARCADI NAVARRO – São horríveis. As pessoas em vez de ciência estão a fazer política de corredores e a uni-versidade torna-se numa maneira de arranjar salários para os amigos.

Como se pode explicar as enormes diferenças entre os países?

Por sistemas muito diferentes. Há países onde é proibido arranjar um emprego na mesma universidade onde se fez o doutoramento, como na Alemanha. Em França, para entrar numa instituição do CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica), é preciso fazer um exame nacional muito exigente.

Já em Espanha as posições são atribuí-das por comités formados por pessoas de dentro da universidade. Seria um bom

sistema se as instituições competissem através da investigação que fazem. Mas as universidades espanholas recebem o financiamento com base no número de alunos de licenciatura. Outro factor é a escassez de recursos em países como Es-panha e Portugal, que cria um ambiente ultracompetitivo, e as coisas são organi-zadas um pouco ao estilo da máfia.

Que medidas poderiam ser toma-das para reduzir este problema?

Fazer as universidades competir. Permitir-lhes contratar quem quei-ram, mas fazer o seu financiamento depender da ciência produzida. E dar o dinheiro aos investigadores em vez de às instituições. E a agência de financia-mento avalia o investigador.

O favoritismo não pode passar para essas avaliações?

Pode acontecer. De modo a evitá-lo, as avaliações devem ser anónimas e feitas por comités maioritariamente

estrangeiros. Se a sua carreira depen-der de avaliações sérias por padrões internacionais, as pessoas trabalham. Há uns anos, em Espanha, houve quem obtivesse um lugar de professor cate-drático sem um único artigo publicado numa revista científica.

Como seria a receptividade das instituições a estas medidas?

Em relação a fazê-las competir e pensar na ciência que fazem (porque isto influenciaria o seu financiamen-to) são contra. Quanto a criar equipas de investigação que não dependem financeiramente das instituições, mas de uma agência de financiamento ex-terna, estão receptivas.

Tornar as universidades com-petitivas é uma grande mudança estrutural e cultural. Como é que pode ser feito?

[Risos] Essa é a questão. As coisas que se podem fazer não são revoluções,

mas pequenas mudanças que podem ter grandes consequências.

Por exemplo, em países de topo a ní-vel científico, a todo o financiamento atribuído a um projecto de investigação é cobrada uma enorme taxa (overhead) pelas universidades, que pode chegar até 50 por cento. O cientista recebe 100 e a instituição fica com 50 para gastar como quiser. Nos países com mais endogamia, os overheads tendem a ser baixos. Por exemplo, até este ano, em Espanha eram de 15 por cento.

Do ponto de vista dos administrado-res da universidade são trocos. Se bai-xar um pouco o dinheiro atribuído por cada aluno e aumentar o financiamento que vem dos overheads, a investigação torna-se importante porque define o di-nheiro que entra no sistema. E as uni-versidades começam a querer contratar pessoas que ganhem grandes projectos e tragam muito dinheiro. ■

Arcadi Navarro levou para a ribalta da ciência internacional o tema do favoritismo nas universidades espanholas