cidadania, confiança e instituições democráticas

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josé álvaro moisés

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  • CIDADANIA,CONFIANAEINSTITUIESDEMOCRTICAS

    JoslvaroMoiss

    Atrecentemente,noeraevidentequeexistissemquestesrelevantes,tantode ordemtericacomoprtica,envolvi-dasnasrelaesentrecidadaniaeconfianaeminstituiesdemocrticas.A teorialiberalclssicanasceudadesconfian-

    adiantedasestruturastradicionaisdepoderealiberdadedosmodernoscomparadaa dosantigos,comoBenjaminConstantmostrouem suaclebreconfernciade 1819,limitoua soberaniadoscidadosaoinstituiro sistemade

    representaobaseadona idiade quequemescolheumrepresentantedelegao seupoderdedecidir.

    Foramasextraordinriastransformaespolticasdastrsltimasdcadasdo sculoXX, queculminaramcoma democratizaodevriospasesdaEuropa,daAmricaLatina,dasiaedafrica,queprovocaramaretomadadasabordagensqueassociamademocraciacomaexpansodosdireitosdoscidados,retomando,mas,aomesmotempo,indoalmdoqueT. H. Marshall(1965)eR.Bendix(1977)haviampropostosobreo temaemmeadosdosculopassa-do.Defato,emborao vnculoentredemocraciae osdirei-tosdoscidadossejapartedatradiodascinciassociais,anovidadedasabordagensatuais,depoisdedcadasdedesu-

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    so do conceito de cidadania,estna importnciaatribuda confiana dos cidadospara o funcionamento das insti-tuies democrticas.O que estem questoagora no apenasaadesoou obedinciacegasinstituiespblicas,masa confianaderivadade suajustificaoticae norma-tiva,assimcomo de seudesempenho.

    No Brasil, vrios autores trataram das relaes entre

    os efeitosdas transformaesdecorrentesdo fim do regi-me autoritrio e a consolidao dos direitos de cidadania,

    e alguns reconheceram a centralidade da questopara oprocesso de democratizao,mas raramente o problemafoi posto em termosdasrelaesentre confianae institui-espblicas.O historiadorJos Murilo de Carvalho umaexceo.No livro Cidadaniano Brasil - O longocaminhoeem outrostextosrecentes,ele argumentouque o complexoprocessode reconstruodasinstituiesdemocrticasnopas converteuo temadosdireitosde cidadaniano foco dasexpectativasgeradaspela reforma dasinstituiesque, em1988,concluram com apromulgaoda ConstituioCida-d. Mas no deixou de chamara atenoparao fato de quea reconquistada liberdade e a ampliaode direitossociaise da participaopoltica no impediram que, o fenmenode desencantopoltico ede dficitde confianadoscidadosnas instituiesdemocrticas,emergisseassociadocom asdificuldadesdos governosdemocrticos,parasolucionar osproblemassociaise econmicosdo pas

    Outros autorescomo Elisa Reis (1998),emborapartin-. do de premissastericasdiferentes,perguntaram,recen-

    temente,por quefomoslevadosa deslocargradualmentea discussoda democratizaoparao terrenoda consoli-daoda cidadania.Suasrespostassugeremque o renas-cimentodo conceitoestassociadoao fatoda cidadania

    constituir-seemumaespciede princpio de articulaodasdemandaspor emancipaoe por inclusosocialqueemergemno contextodo conflitodeinteressesdivergentes

    {

    que caracterizaas sociedadescomplexas,desiguaise dife-renciadas.Suasabordagensretomama anlisede Marshallsobre a expanso tridimensional da cidadania, relativa adireitos civis,poltkos e sociais,e incorporam a importn-cia daformaodasidentidadesdosatoresede seuimpactosobreasrelaesde raa,etnia,gnero,etc.parao processode consolidao da cidadania; alguns se refrem tambmao papel da participaopoltica para a educaodo cida-do ativo, chamando a atenopara a inovao represen-tada por mecanismossemi-diretosda democracia como oreferendo, o plebiscitoe a iniciativapopular de lei. Nessescasos,superando a perspectivaevolucionistae seqencialdas anlisesde Marshall, h uma evidente ampliao doconceito de cidadania,masa questode saberse,por queecomoos cidadosconfiam nasinstituiesdemocrticasnoestsuficientementedesenvolvida,indicando a necessidade

    de novosestudose pesquisassobreo tema.Em mbito maisamplo, o registro de mudana da ati-

    tude dos cidados diante das instituies pblicas e, emespecial,dasinstituiesdemocrticas,originando ou apro-fundando o fenmeno de desconfianapoltica em vriaspartesdo mundo, foi documentadapor extensaliteraturadesde os anos 80. Estudos comparativoseditados recente-mentepor Dieter Klingemann (1998),Pippa Norris (1999),Margaret Levi (1998),Joseph Nye (1997) e Mark Warren(1999) apontaram para a complexidade e, principalmen-te, a grandevariaodo fenmeno. Nas democraciascon-solidadasem meadosdo sculo XX, como Itlia, Japo e,em menor grau, Alemanha, o cinismoeo desconfortocom ofuncionamento das instituies pblicas generalizou-seapartir das experincias continuadas de corrupo, enges-samentodo sistemade partidos polticos, e outros dficitsde desempenho institucional. Aonde as instituies res-pondem melhor suamissooriginal, como na Holanda,Noruega, Finlndia e Dinamarca,a confianados cidados

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    maisalta, mas tambmoscila.A variaorealmente dra-mticaocorreu nasdemocraciasmaisantigascomo EstadosUnidos, Inglaterra, Frana, Suciae Canad,onde pesqui-sasrealizadaspor mais de quatro dcadasmostraramquea confianaem autoridadese em instituiespblicas caiusistematicamente,nosltimos30anos,invertendoa tendn-

    cia de prosperidade econmica associada tranqilidadepoltica dominante entre o fim da 11Guerra Mundial e osanos 60. Enquanto naquele perodo cercade 3/4 de cida-dosdospasesmencionadosmostravam-sesatisfeitos,defe-rentese confiantesem governos,instituiese burocraciaspblicas,na atualidadeapenas25% expressamessaatitude,reagindo criticamentea crises,escndalose, principalmen-te, deterioraodo padrode funcionamentodasinstitui-es.Nessescasos,asmudanasafetaramo comportamentodos cidadosquanto a mecanismosbsicosda democraciarepresentativacomo partidose eleies.Caram astaxasdeidentificaopartidria,amobilizaodoseleitorespor par-tidos,o comparecimentoem eleiese o interessepor pol-tica nos EstadosUnidos, Inglaterra e boa parte da Europacontinental.

    A situaodos regimespolticos nascidosda "terceiraonda de democratizao",nos termosde SamuelHunting-ton, mais preocupante, embora tenha especificidadesprprias. Enquanto em vrios pasesdo Leste Europeu aavaliaodo regime democrticoainda no tinha ultrapas-sado,no incio dos anos90, os ndices favorveisao regime

    anterior,em boa parte dos paseslatino-americanos- ondea tradio democrtica sabidamentefrgil e descontnua- apenascercade 1/5 do pblico tm 'muita' ou 'alguma'confianaem parlamentose partidospolticos, e menosde1/3 confia em governos,funcionrios pblicos, polcia oujudicirio. As pesquisasrelatadasno livro do autor OsBra-sileiroseaDemocracia,do incio dos anos90,mostraramisso

    para o Brasil,e oslivros Ciudadanay CulturaPoltica,de Vic-

    torManuelDurand(2004)sobreo Mxico;e Chile,unpasdividido,deCarlosHuneeus(2003),tambmassociaramossentimentosdeapatiaoudeimpotnciapolticacomades-confianadoscidadosde instituiesdemocrticas.No diferentea situaodaCoriado Sulestudadapor DohC. Shin (2005).As instituiesdemocrticasnasceramapartirda estruturaautoritria,emboapartedessescasos,muitasvezesnosocoerentescomseusobjetivose,mesmoreformadas,notiveramaindaoportunidadedepassarpeloprocessoderotinizaoque,no casodasdemocraciasmaisantigas,malgradoseumal-estarrecnte,foi umingredienteimportantedeseuprocessodeconsolidaooriginria.

    verdadequeemtodosessescasosnoexistemsinaisdeprefernciaporumregimeantidemocrtico,masades-confianadoscidadosdeinstituiespblicasapontaparaum paradoxocujosefeitosparaa continuidadedademo-craciaemlongoprazoprecisamsermaisbemconhecidoseestudados. razovelsuporquea democraciapodeconvi-verindefinidamentecomo descrditodoscidadosemnor-

    mas,procedimentose instituiesque,por definio,tmafunodemediara competiode interessesdivergentese, ao mesmotempo,promovera coordenaoe a coope-raosociaisnecessriasaofuncionamentodassociedadescomplexas?A continuidadedoregimenotemposuficien-teparadirimirosefeitosdadesconfianapoltica?E comoavaliaraqualidadedeumregimecujosmecanismosbsicosdefuncionamentosuscitamtantadvidaentreoscidados,como o caodasinstituiesdemocrticas?Pararespon-der a essasquestessonecessriostrsargumentos.Emprimeirolugar, precisodefinircomoo conceitodecida-daniadeveserabordadocontemporaneamentea partirdacontrovrsiaentrea concepoliberalclssica,paraa quala cidadania essencialmenteum statusjurdico e adminis-trativoformal,eacrticacomunitaristaquepretenderesga-tara noocvico-republicanado tema.Em segundolugar,

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    necessrioenfrentar a premissadasteoriasdemocrticasoriginrias de que o risco de abuso do poder supe des-confiana e no confiana nas instituies.E, finalmente,admitida a relevnciada confiana poltica, preciso exa-minar, contra a tendncia usual que levaa v-Io como umfenmeno de face nica, a sua naturezamultidimensional

    e asimplicaesque issotempara a pesquisae o avanodoconhecimento.

    o seu direito de participar da escolha de governos e derepresentantes.

    A concepoliberal clssicaestbaseadaem uma pers-pectivaprotetor do cidado como membro da associaopoltica. O objetivoprincipal proteger o indivduo de ris-cos de arbitrariedade, opressoou violao de seusdirei-tospor parte sejade quem exerceo poder; sejados outrosindivduos.Locke formulou essaconcepode proteoemtermosdo direito natural vida, liberdade e proprieda-de. Por isso,asliberdadesmodernasso entendidascomo

    negativas,isto , como mecanismos.queinstitucionalizamaausnciade coeropara evitarque o indivduo sejaimpe-dido de realizaros seusinteresses.Associadocom essacon-

    cepo, o modelo de democracia minimalista supe umaestruturajurdico-legal que asseguraa separaode pode-res, o funcionamento do sistemade representao,a obri-gaode obedinciasleis e, finalmente,o direito de parti-cipar da escolhadaelite governante- que M. Weber (1974)eJ. Schumpeter (1975)viram como o principal objetivodademocracia.Em consonnciacom essaconcepo,tericosdo pluralismo comoRobert Dahl (1966)e NorbertoBobbio(1984)deslocaram,contudo, o foco da anlisedo indivduo

    parao papelde faces,gruposde pressoede interessesnacompetiopoltica, mostrandoque semo reconhecimentoda diversidadepoltica no existedemocracia. O modeloprotetor e minimalista da democracia,baseadono princ-pio normativo da igualdadeformal dos cidadosperantealei, supe que as diferenasde possesmateriais,poder oustatussocial no eliminam a igualdade diante da lei, fun-damento da igualdadede direitos, em especial,do direitode voto. Mas a igualdade no um fim em si, destinadoa fundar uma comunidade de interesses,mas instrumento

    de proteo do indivduo contra a opressoe a injustia.Diante disso, a objeo de K Marx e de seusseguidoresque a noo de cidadaniacentradanasformalidadesjurdi-

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    A Questoda Cidadania

    A palavra cidado provm do termo latino civitas,mascomo observaramvrios autores, suasfontes intelectuais

    encontram-senas religies da Antigidade e na civilizaogreco-romana,cujo legado remetesnoesde liberdade,igualdade e virtudes republicanas. As referncias idiaabstratade igualdadej estavampresentesem textosreli-giososantigos para os quais todo ser humano tinha statusigual diante de Deus. Mas foi na Antigidade gregaque osconceitos de igualdade e liberdade adquiriram relevnciano contexto da plis,isto , da cidade protegida da hostili-dade de vizinhos ou estrangeiros,cujos laosde lealdade ede identidade de seuscidadosformavama baseda comu-

    nidade voltadapara o bem pblico. Mais tarde, no pero-do medieval,o burgoocupou o lugar da plis,dando novasdimenses idia de liberdade, e o burgusconverteu-senoprottipo do cidado,sendo a cidade o seu habitatnatural.Na continuidade dessatradio, nos sculosXVII e XVIII,

    o contratualismodeJ. Locke e de J. J. Rousseau forneceuasbasesfilosficasdo conceitode cidadaniado liberalis-

    moeasrevoluesinglesa,americanaefrancesavalidaramseuusoao estabelecerum vnculojurdico-legalentreasnoesde liberdade,igualdade,fraternidadee o Estado-nao.O cidadopassoua servistocomodetentordeumstatusformalquereconheciao seupertencimento comu-nidadepolticanacionale, ao mesmotempo,assegurava

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