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3 CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE Adoro romances em e-book apresenta! A Dama e o Rebelde Christine Dorsey IRLANDA, 1747 DE DIA UM LORDE ... À NOITE, O HOMEM MAIS PROCURADO DA IRLANDA! Padraic Rafferty é forçado a adotar uma segunda personalidade para escapar da perseguição religiosa na Irlanda. Quando passa a viver como lorde Dunlanoe, supostamente protestante, ele é apresentado ao alto círculo social irlandês frequentado por seu primo, Edwin, um homem superficial e devasso cujas perversões são notórias. É nesse círculo que Padraic põe em ação o Rebelde, contrabandista e ladrão que tira dos ricos para dar aos pobres e burla as leis inglesas para taxar o comércio irlandês. Mas tudo muda quando ele conhece

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Adoro romances em e-book apresenta!

A Dama e o Rebelde Christine Dorsey

IRLANDA, 1747

DE DIA UM LORDE ... À NOITE, O HOMEM MAIS PROCURADO DA IRLANDA!Padraic Rafferty é forçado a adotar uma segunda personalidade para escapar

da perseguição religiosa na Irlanda. Quando passa a viver como lorde Dunlanoe, supostamente protestante, ele é apresentado ao alto círculo social irlandês frequentado por seu primo, Edwin, um homem superficial e devasso cujas perversões são notórias. É nesse círculo que Padraic põe em ação o Rebelde, contrabandista e ladrão que tira dos ricos para dar aos pobres e burla as leis inglesas para taxar o comércio irlandês. Mas tudo muda quando ele conhece Lilianne, uma mulher ao mesmo tempo doce e forte, que tem o poder tanto para destruí-lo como para transformar sua vida... e a dela própria... com um amor destinado a triunfar sobre o impossível...

TITULO ORIGINAL: THE REBEL AND THE LILY

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Capítulo Um

Junho, 1747,

Próximo da Costa Oeste da Irlanda

Ela ainda estava lá. Agarrado à escorregadia balaustrada, o

capitão Padraic Rafferty observava as velas infladas da nau que

perseguia a The Rebel´s Pride. Fizera de tudo para despistá-la, mas a

embarcação, inglesa, a julgar por sua bandeira, ainda os perseguia.

E os alcançava. Normalmente, já a teriam despistado, mas depois

da tempestade violenta que haviam enfrentado na travessia do canal,

tudo mudara. Uma das velas se rompera, o que representava acentuada

lentidão.

— O que acha disso, Paddy?

Padraic olhou para o amigo, Coyle Burns, co-proprietário do barco

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The Rebel's Pride.

— O que acho é que vamos ter de dar muitas explicações, caso

eles nos abordarem.

— E se não nos abordarem? Eles nos afundarão, sem sombra de

dúvida.

Coyle empalideceu, mas sua voz permaneceu firme.

— A nau traz muitas armas, então?

— Pelo que posso ver daqui, sim. E se esperarmos mais um

quarto de hora, verei não só as armas da embarcação inglesa, mas os

botões da casaca de seu capitão, também.

— Maldição! Não há nada que possamos fazer?

— Não, a menos que tenha um dos seus milagres escondido na

manga.

Padraic arrependeu-se imediatamente do comentário sarcástico.

Não tinha o direito de debochar da fé de um amigo a quem devia tanto,

e por tanto tempo. A dívida de gratidão era antiga, desde os tempos de

seus pais. E se ele queria acreditar em milagres, fadas duendes,

homenzinhos verdes, enfim... Que acreditasse. Desde que não tentasse

convencê-lo de suas crenças malucas...

E por que se preocupava com isso agora? Em breve não estariam

mais ali para discutir crenças e milagres.

Padraic tomou uma decisão.

— Aos postos de batalha, homens! — gritou, para a tripulação. —

E tentem parecer espertos!

— Vai lutar contra eles?

— O que espera que eu faça? Sabe o que nos espera se formos

capturados.

— Sim, eu sei, mas estou pensando em Alison e... Deus, daria

tudo para ser como você agora. Tão destemido...

Padraic sabia que o amigo o julgava inconsequente, um simples

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amante da aventura. Discutiram várias vezes por isso, e a discussão

ganhara intensidade depois de Coyle ter se casado com a bela jovem

irlandesa chamada Alison Regis.

Coyle tornara-se mais cauteloso. Quanto a Padraic, cautela era

uma palavra que não fazia parte de seu vocabulário. Não era amante do

perigo, longe disso, mas, em alguns momentos, era preciso enfrentá-lo

sem pensar nas eventuais consequências.

Infelizmente, dessa vez não tinham escolha.

— Coyle, vamos ter de... Coyle? Coyle!

O amigo estava de costas para ele, olhando para algum ponto no

horizonte.

— O que falávamos há pouco sobre um milagre, Paddy?

— Dizíamos que...— Padraic parou, olhando por cima do sócio.

Um sorriso iluminou seu rosto moreno.

— Baixem as velas e preparem-se para a abordagem — gritou

alguém da outra embarcação.

A escuna britânica estava muito próxima do The Rebel's Pride,

mas Padraic tinha os olhos azuis muito brilhantes.

— Ponha essa sua língua de advogado para funcionar, meu caro.

Comece a falar. Faça-os pensar que vamos nos render, mas tente obter

condições vantajosas para nós.

— De quanto tempo precisa? — Coyle perguntou enquanto

esperava pelo autofalante em forma de cone.

— Todo que puder conseguir — Padraic respondeu correndo para

o outro lado do deque. — Impeça-os de atacar.

— Vamos desistir, capitão? — perguntou aborrecido lan Kelly, que

alé então havia manejado o timão, mas que agora cedia o lugar para

Padraic.

— Quando foi que o The Rebel's Pride se rendeu? Diga aos

homens para estarem preparados. Mande-os içar velas, mas que

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permaneçam no convés. Eles terão de ser rápidos quando eu mandar

baixá-las. E prepare as armas. Quero todos os canos voltados para

aquela nau. Quando eu der a ordem, vamos destruir suas velas. Espero

que o Sr. Burns consiga mantê-los ocupados por tempo suficiente para

que não notem o que estamos fazendo. Quando perceberem... será

tarde demais.

— Eles revidarão, por certo.

— Sim, mas então já teremos nos afastado. — A névoa densa já

começava a descer sobre a superfície da água, entre as duas

embarcações. Mesmo assim, ainda teriam de navegar um pouco antes

de mergulharem na parte mais densa da neblina.

Padraic movia o leme devagar, grau a grau, até tomar o curso da

névoa. A escuna inglesa mantinha as velas içadas para alcançá-los,

mas o piloto não se ajustava às mudanças promovidas por Padraic.

Excelente.

De onde estava, podia ouvir a troca de palavras entre o capitão da

embarcação britânica e Coyle. Pelo tom do perseguidor, o diálogo não

seria muito longo.

As velas estavam preparadas. O capitão da escuna inglesa já

ordenava a seus grumetes para lançarem ganchos, atrelando assim as

duas embarcações. Ele já preparava o momento da abordagem.

Era hora de agir.

— Fogo!

Um estrondo retumbante ecoou sobre o mar. The Rebel's Pride

balançou em consequência do solavanco provocado pelo tiro. Rápido,

ele conduziu a nau para o manto de névoa que seria sua proteção.

Ecos da madeira partida temperavam o ar acre e enfumaçado,

enquanto uma porção do mastro da escuna inglesa caía sobre seu

deque. O tiro de resposta foi imediato. Padraic conteve o fôlego,

esperando para descobrir onde seriam atingidos. Um jato de espuma

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lavou o convés, sinal de que as balas de canhão haviam mergulhado no

mar.

A névoa os envolvia e escondia.

— Graças a Deus pela neblina — Coyle murmurou ao entrar na

cabine de comando. — Deus nos deu uma bênção.

Por mais grato que fosse, Padraic duvidava de que o Senhor

houvesse mesmo enviado a neblina só por eles. A menos que se

importasse mais com ladrões e saqueadores do que se pensava

comumente.

— O Príncipe o está incomodando, Paddy?

Padraic riu e balançou a cabeça. A mão buscou a coxa direita,

exatamente no local onde recebera uma bala de mosquete em batalha

nos pântanos perto de Culloden.

— A maldita bala não me deixa em paz.

— É uma questão de tempo — Coyle opinou, seguindo o caminho

que ligava a enseada protegida ao topo dos penhascos. Padraic ia na

frente e mancava.

— Tempo? Já faz mais de um ano!

— E você não descansou mais de quinze dias desde que foi

ferido, nem mesmo quando foi vencido pela febre.

— Coyle, Alison o transformou em enfermeiro?

— Estou apenas dizendo a verdade. Precisa descansar, Paddy.

Todos nós precisamos.

— Descansar? E quem agitaria o país?

— Ninguém vai esquecer o Rebelde, se ele desaparecer alguns

dias.

— Não estou preocupado com isso.

— Então...? Temos suprimentos de sobra. Amanhã mesmo

tentarei vender o excedente.

— E eu? O que devo fazer? Acha ficar sentado olhando para o

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céu?

— Faça o que quiser. Leia, fique na cama...

— Como uma dama enferma?

— Paddy, só quero ajuda-lo, está bem? É só uma sugestão. Faça

como quiser.

Quando concluíram a subida acidentada e dificil, Coyle estava

ofegante e teve de apoiar as mãos nos joelhos para recuperar o fôlego.

Os dois homens começaram a rir.

— Talvez tenha me dado uma boa idéia. Ficar na cama

descansando...

— Não brinque. Nada vai mantê-lo na cama por muito tempo.

O Rebelde estará cavalgando pelos pântanos antes de a lua desa-

parecer.

— Não tenha tanta pressa. Gostaria mesmo de me livrar desta

dor...

Numa brincadeira entre amigos, haviam dado ao ferimento o nome

do príncipe Charles, que unira muitos clãs escoceses e alguns

aventureiros irlandeses, também, em torno de seu plano de reclamar o

irono inglês para seu pai. Mas o ferimento em si não era motivo para

riso. Era debilitante, e Padraic não estava habituado a ser incomodado

com tanta frequência.

Mas, apesar do que acabara de dizer a Coyle, sabia que não

ficaria na cama.

Gostava de ser o Rebelde. Nesse momento, ansiava por cobrir o

rosto com sua máscara, vestir suas roupas pretas e fazer uma visita

noturna a algum rico latifundiário inglês. Não era suficiente ter criado

uma fama temível ou levar o dinheiro confiscado aos bolsos dos pobres.

Queria os ingleses fora da Irlanda.

— Tenha cuidado, Paddy — Coyle pediu quando emergiram no

território que cercava Dunlanoe. — Se alguém o vir por aí esta noite, vai

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ser difícil comprovar que é o honrado e correto sir Padraic Rafferty,

décimo segundo barão de Dunlanoe.

—Acha mesmo?—Padraic riu. Estava sujo, barbado e cansado

demais para desfilar como o almofadinha que era. — Dê-me uma boa

noite de sono, um pouco de pó e seda, e o bom e velho lorde Dunlanoe

beberá chá inglês com os melhores membros da nobreza.

— Não duvido disso. Mas, no momento, você está parecido

demais com o Rebelde.

— Nesse caso, é bom que tenhamos voltado para casa sob o

manto da noite.

— Sim. Bem, já vou indo. Mande minhas lembranças a seu pai.

Em um ou dois dias irei prestar meus respeitos pessoalmente.

Os dois se separaram, Coyle para percorrer os cinco quilômetros

até o vilarejo de Kilroyne, onde Alison o esperava, e Padraic para

penetrar sigilosamente em Dunlanoe. Ele parou um instante para

admirar o castelo e suas muralhas de pedra envoltas na densa névoa.

Era como se a fortaleza se erguesse dos penhascos com suas torres

normandas. O lugar pertencia a sua família há séculos.

Seu lar.

Padraic passou os dedos pelos cabelos negros. Tudo ali era dele.

Pelo menos aos olhos da lei britânica.

Porque as Leis Penais comandavam a terra. E não era bom ser

irlandês na Irlanda, especialmente para quem seguia a religião católica,

como ele, seu pai e os pais dele haviam seguido. Homens haviam

perdido terras, fortunas... tudo, simplesmente por seguirem suas

crenças.

Mas Padraic via a Igreja de forma mais cínica e prática. Na sua

opinião, a religião era o martelo que os ingleses empunhavam para pôr

de joelhos os irlandeses. E era a pobreza e a ignorância que os

mantinha assim.

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Era impossível lutar abertamente contra a Inglaterra e vencer. Se

insistisse, tudo lhe seria tomado. A propriedade. O título. Há muito

decidira que era melhor representar seu papel.

Mas só se pudesse jogar à sua maneira.

No interior do castelo, Padraic passou pela porta dos aposentos do

pai na esperança de encontrá-lo acordado, mas o silêncio profundo o

demoveu da idéia de vê-lo àquela hora da noite. Ele já havia dado

alguns passos além da porta, quando o ruído das dobradiças

enferrujadas o deteve.

Padraic virou-se esperando ver o pai, e por isso se assustou com

a imagem da mulher no longo vestido branco. Por um momento, chegou

a acreditar na lenda sobre as almas que assombravam o castelo.

— Quem é você?

— Eu poderia fazer a mesma pergunta. — A desconhecida tinha

um ar cansado, mas firme. Não era tão frágil quanto poderiam sugerir os

finos cabelos loiros e os olhos grandes e vivos.

— Poderia — ele reconheceu embaraçado. Não era comum

encontrar uma mulher na alcova de seu pai. Por outro lado, se ele

encontrava felicidade nos braços da visitante, que a acolhesse em sua

cama quando e como quisesse.

Mas ela parecia jovem demais, e embora não pudesse criticar o

gosto paterno... Bem, quanto menos falasse, melhor.

— Vou me recolher. Diga a meu pai... Não, não se incomode.

Eu o verei pela manhã.

— Por favor, espere! Você é o filho de Oliver?

— Sim, sou eu.

— Meu nome é Lilianne.

— Encantado, senhora. E agora, se me der licença...

— Não, por favor... Parece que ainda não sabe...

— Não sei o quê?

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— Não sei como dizer... Peço que me desculpe, senhor.

Assustado com o tom aflito da mulher, Padraic entrou no quarto

envolto pela penumbra.

— Pai? Pai!

— Ele não esta aí.

— Então onde...?

— Seu pai está morto.

— Morto...? — Padraic a encarou pálido. — Como pode ser? Eu o

deixei há duas semanas, e ele estava bem!

— Sim, eu sei.

— Sabe?

— Sim. Seu pai me contou.

— Quem é você, afinal? O que faz aqui? E o que houve com meu

pai?

— Sei que está muito perturbado, mas...

— Fale de uma vez! O que aconteceu?

— Não sei ao certo. Ele saiu cedo há seis dias e... e um dos

colonos o encontrou naquela mesma noite. Ele havia sido alvejado por

um tiro.

— Quem foi?

— Não sei. O fazendeiro que o encontrou chama-se Regis Kelly,

mas não creio que possa contar muito. Seu pai já estava morto. Não

sabíamos quando voltaria... Quero dizer, não podíamos esperar. Seu pai

foi sepultado ao lado de sua mãe.

Padraic olhou para a janela e tentou se conformar com a cruel-

dade da notícia. Seu pai estava morto. Nunca mais o veria. Nunca! mais

ouviria sua voz.

Seu punho encontrou a vidraça com assustadora violência.

— Maldição! Encontrarei quem fez isso — ele gritou.

— Entendo o que sente. Também perdi minha mãe há pouco

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tempo. Ela adoeceu repentinamente e... Bem, não pude fazer nada.

— Sinto muito. — Padraic a encarou e foi tomado de assalto por

uma onda de ternura, como se a dor daquela mulher tão frágil

amenizasse a sua. Mas não queria esse consolo. Queria a revolta, o

desejo de vingança. — A morte nunca é fácil de ser aceita. Nem é o que

esperamos.

— E, no entanto, é a única coisa de que podemos ter absoluta

certeza.

— Sim, é verdade. Quem é você?

Mais uma pergunta que ela preferia ter evitado. A resposta cer-

tamente o incomodaria.

— Lilianne Rafferty.

— Uma prima distante?

— Não, eu... sou a viúva de seu pai. Um silêncio mortal invadiu o

quarto.

Alguns instantes se passaram antes que Padraic reagisse.

— Eslá dizendo que se casou com meu pai. Oliver Rafferty?

— Sim.

— Francamente, mulher! Se a piada não fosse tão infame a

momento tão impróprio, acho que rira de tamanha tolice. Mas, como não

sinto vontade de rir, peço que se retire.

— Entendo que considere tudo isso estranho, mas asseguro que...

que...

-— Por favor! Estive fora por menos de quinze dias, e quer me

convencer de que meu pai se casou?

—- Foi muito rápido.

— Rápido? Foi fulminante!

— Quero que saiba que gostava muito de seu pai.

— Gostava? É uma maneira estranha de descrever seus

sentimentos mentos por um... marido. E meu pai? Também gostava de

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você?

— Acredito que sim.

— Quantos anos tem?

— Completarei vinte e três no natal.

— Vinte e três! Quatro menos que eu!

— Sim, eu sei. Seu pai falava muito a seu respeito.

— Mas nunca falou de você para mim.

— Ele não me conhecia.

— E você também não devia conhecer meu pai, ou saberia que

seu ato foi inútil. Não há nada a herdar como viúva de meu pai.

Dunlanoe me pertence. E o título também é meu.

— Eu sei disso. E não espero nada.

— Ótimo! Pois é exatamente exatamente isso que vai ter. Nada!

Tem uma casa para onde possa voltar? Um pai?

— Meu pai está... — Lily deteve-se a tempo. Não havia motivo

para falar sobre seu passado com esse homem. — Não precisa se

preocupar. Entrarei em contato com ele amanhã.

— Ótimo. Estava dormindo nos aposentos... que foram de meu

pai?

— Sim, mas posso encontrar outro.

— Não se incomode. Já está quase amanhecendo, mesmo.

— De fato. Notei que está mancando. Feriu sua perna?

— É um velho ferimento.

— Espero que não o incomode muito.

— Quase nada. Bem, até amanhã — Padraic despediu-se.

Lily fechou a porta e, sozinha, deixou cair as lágrimas que ardiam

em seus olhos. Não sabia se chorava por Oliver ou por ela mesma.

— Paddy, pelo amor de Deus! Acorde! Padraic esfregou os olhos.

— Coyle?

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— Sim, sou eu. Levante-se, vamos! Onde está Shamus?

— Na última vez em que o vi, ele dormia. Que horas são? E o que

faz aqui? — Havia passado a noite no divã da biblioteca, e agora sentia

dores pelo corpo todo.

— São quase nove horas, e estou aqui porque minha presença é

necessária, obviamente. Andou bebendo?

Padraic olhou para a garrafa vazia sobre a mesa.

— Meu pai está morto, Coyle.

— Eu sei. Alison me contou. Teria vindo antes, mas achei melhor

não despertá-la ontem à noite, quando chegamos.

— Ela sabe quem o matou?

— Não, mas não conversamos por muito tempo. Vim assim que

soube, e tive de forçar entrada para encontrá-lo. O mordomo insistia em

dizer que você não estava em casa.

— Não acordei ninguém quando cheguei e... Por que está me

puxando pelo braço?

— Você precisa se banhar e vestir roupas limpas. Quem vai

acreditar que é o belo lorde Dunlanoe?

— Não me incomodo com isso.

— Paddy, eu soube de uma outra coisa.

— Sobre a esposa de meu pai?

— Então já sabe. Não disse que entrou sem acordar ninguém?

— E não acordei.

— Então, como sabe sobre a esposa de seu pai? Pensando bem,

como sabe sobre seu pai?

— Eu a conheci ontem à noite, quando me dirigia ao quarto.

— Quer dizer que a viu? E ela também o viu?

— Exatamente.

— Exatamente? Só isso?

Bem, não foi um encontro planejado. Ela saiu do quarto de meu

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pai quando eu passava por lá. Não me dei ao trabalho de perguntar

quem era. Deve ser filha de algum camponês, apesar de sua rara

beleza, e já disse a ela vai ter que deixar o castelo. A jovem viúva vai

entrar em contato com o pai ainda hoje e em breve estará partindo.

— Paddy... Disse que ela vai entrar em contato com o pai?

— Sim, é isso mesmo. E ela também me disse que enterrou meu

pai ao lado do corpo de minha mãe.

— Foi o que Alison me contou. Mas... há algo que você precisa

saber.

— Não pode esperar? Quero me lavar - Sentia dores na perna e

na cabeça, mas a expressão de Coyle sugeria grande urgência. — Vejo

que não. O que é?

— A viúva de seu pai vai mandar noticias para Lorde Robert

Tinsley.

— Por que ela faria tal coisa?

— Bem, foi o que você ordenou que ela fizesse.

— Coyle, pode ser mais claro, por favor?

— Não creio que seja necessário. Você entendeu...

— Está dizendo... que meu pai se casou com a filha do duque de

Westbury?

— Isso mesmo.

— Mas... isso é ridículo! Robert Tinsley é um dos mais ferrenhos

difamadores da Irlanda na Câmara dos Lordes. Ele defendeu a emenda

que taxou nossa lã. Meu jamais se casaria com a filha desse homem.

— Mas ele se casou com ela. Não há nenhum engano nisso.

Alison esteve presente no casamento.

— Mas... por quê? Ele deve ter dado alguma explicação.

— Não para Alison. Seu pai chamou minha esposa para vir até

aqui na última quinta-feira e servir de testemunha.

— E foi morto dois dias depois.

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— Acha que existe alguma ligação entre os dois fatos?

— Não sei, mas vou descobrir.

— O que vai fazer com relação à filha de Tinsley?

— Não sei. Mas não vou mandá-la de volta à casa do pai,

certamente. Não agora.

— E como ela poderia ficar aqui? E se ela quiser ficar?

— Ela não terá escolha. Não posso permitir que volte para a casa

de Tinsley. Não sei se meu pai disse, ou se ela descobriu alguma coisa

nesses dias em que esteve sozinha no castelo.

— E sobre ontem a noite?

— Ela não meu viu em melhor forma, isso é certo.

— Ainda não está em boa forma. Parece... Você sabe quem,

— Sim, eu sei. Mas quando conhecer melhor lorde Dunlanoe, a

jovem viúva esquecerá o que viu ontem à noite.

— Espero que saiba o que está fazendo. Esse seu jogo é

perigoso.

Padraic sabia que o amigo estava certo. Estava habituado ao

perigo, sem dúvida, mas isso era diferente. Lady Lilianne Tinsley vivia

sob seu teto sob o nome de Lilianne Rafferty. E com uma só palavra, ela

poderia mandá-lo para a prisão.

CAPÍTULO II

Lilianne não sabia o que esperar depois da noite anterior, mas não

contava com nada daquilo.

Da noite para o dia, lorde Dunlanoe parecia ter passado por uma

completa metamorfose. O rosto, antes barbudo, agora se apresentava

coberto por um pó quase tão branco quanto o de sua peruca, e

passamanarias douradas adornavam sua cintilante casaca de seda azul.

Ele ainda era alto e forte, mas agora lembrava um poodle, não o

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lobo selvagem em que ela pensara ao vê-lo na noite anterior. Não fosse

pelos olhos azuis e impressionantes, ela teria questionado a identidade

do filho de Oliver.

— Por Deus... — Padraic levou um dedo aos lábios pintados de

carmim. Esperava encontrar a sala de jantar vazia naquela manhã, mas

lá estava ela com seu rosto delicado emoldurado pelos cabelos loiros e

cacheados. Os olhos eram ainda mais verdes à luz do dia, e ela o

estudava como se soubesse seus mais sombrios segredos.

A idéia nao era nada confortável.

Padraic respirou fundo e manteve o sotque britânico afetado e

acentuado.

— Como devo tratá-la, minha querida? Não pode esperar que a

chame de... mãe.

— Não. — Lily deixou a xícara sobre o pires de porcelana. —

Lilianne seria mais apropriado.

— Sim, é claro, Lilianne. — Ele se sentou à mesa. — Soa doce

como uma flor. Lily... lírios!

Qual era o problema com esse homem? Por que mudara tão

radicalmente a forma de tratá-la?

— Não quer morangos, Lilianne?

— Não, obrigada. Estou sem apetite.

— Entendo. Deve ser o luto. — Ele suspirou dramático.

Lilianne bebeu mais um gole do chocolate quente. Ouvira rumores

sobre certos desentendimentos entre pai e filho. Diferenças religiosas,

certamente, agravadas pela decisão do jovem Rafferty de reclamar para

si o título e a propriedade. Tudo perfeitamente legal, mas nada familiar.

Mas Oliver sempre falara bem do filho. E lorde Dunlanoe se

mostrara genuinamente perturbado na noite anterior, ao tomar

conhecimento da morte do pai.

Mas agora era como se estivesse diante de outra pessoa.

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— Quero pedir desculpas por meu comportamento ontem à noite

— ele disse com um sorriso pálido.

— Estávamos muito perturbados, por certo.

— Sim, quando se recebe a notícia da morte do próprio pai... —

Padraic tentou conter as emoções. Não era famoso por seu amor pelo

pai, católico fervoroso. Destituíra o homem de seu título e de sua

propriedade, como bom protestante que era. Mas, é claro, esse homem

era só um mito criado por Padraic e por seu pai para manterem

Dunlanoe na família... e encobrir as nefandas atividades do Rebelde.

Normalmente, Padraic se divertia representando o afetado lorde

Dunlanoe, mas não nesse momento. Tudo que queria era poder chorar

em paz... e descobrir quem tirara a vida de seu pai. Infeliz mente, uma

coisa excluía a outra.

— De qualquer maneira, fui muito rude ontem à noite. Espere que

me desculpe — ele disse.

— Não pense mais nisso. Apenas lamento que tenha retornado de

sua viagem a...

— Londres. Desembarquei do navio em Cork e tomei uma car-

ruagem, mas uma das rodas se partiu no caminho e... Bem, foi horrível.

Tive de caminhar por aquelas estradas sujas e poeirentas, e por isso

cheguei naquele estado lamentável.

— Que horror! E ainda chegou em casa e recebeu a notícia sobre

seu pai...

Padraic viu os olhos de Lilianne se encherem de lágrimas e

admirou-a em silêncio por seu talento dramático.

— Disse a mim mesma que seria forte.

— Por mim? Que maternal!

Maldição! O que estava fazendo? Devia conquistar a confiança da

madrasta, convencê-la a ficar no castelo. Só assim saberia se ela tinha

informações sobre o assassinato de seu pai. Ou sobre o Rebelde. Só

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então a deixaria voltar para casa. Era um jogo, e não podia se esquecer

disso. Lilianne cumpria seu papel, o da viúva enlutada. Ele tinha de ser o

filho afetado, superficial e egoísta. Enfurecê-la não fazia parte de seus

planos.

Lilianne não sabia se o rapaz estava brincando, ou se pretendia

mesmo insultá-la. De qualquer maneira, não tinha interesse em discutir

com ele. Estava cansada e triste, e apesar de ter decidido anteriormente

não pensar em si mesma, não conseguia deixar de se preocupar com o

próprio destino.

Houve um tempo em que chegara a ter esperanças de terminar

sua vida ali, em Dunlanoe. Era tranquilo e seguro, e sentia-se aceita,

contente. Por alguns dias. Mas tudo mudara. O jovem lorde não parecia

ser muito semelhante ao pai.

— Por favor, peço mais uma vez que me desculpe. Estou sendo

rude novamente. Deve ser a dor causada pela irreparável perda... —

Conquistaria a simpatia de Lilianne a qualquer custo. Ela podia ter nas

mãos sua vida e a de muitas outras pessoas, e não queria correr o risco

de desperdiçá-las.

— Nós dois estamos muito abalados. Sendo assim, se me der

licença, creio que vou me retirar para os meus aposentos. Devo redigir

uma carta para meu pai e...

— Não se incomode com isso.

— Como não? Ontem à noite disse...

— Disse muitas coisas, eu sei. Minha jornada foi terrível.

— Sim, eu sei que foi, mas...

— Não é necessário que deixe Dunlanoe.

Era tudo que ela queria. Ficar no castelo. Sabia o que significara

retornar à casa paterna. E, no entanto, não sabia o que pensar do

sorriso gelado que via nos lábios do lorde.

— Pode ficar aqui, certamente, ao menos por algum tempo — ele

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

prosseguiu. — Esse teria sido o desejo de meu pai.

Era verdade. Oliver a acolheria em seu lugar, um paraíso seguro e

por isso, provavelmente, perdera a vida. Lilianne tentou não pensar

nisso.

— Como quiser. Obrigada. E agora, se me der licença...

— Fique, por favor. Gostaria de saber mais sobre você. Lilianne

decidiu suportar a incômoda companhia do lorde por mais algum tempo.

— O que deseja saber?

— Como se casou com meu pai, por exemplo.

— Como acontecem todos os casamentos, presumo. Nós nos

conhecemos e decidimos que combinávamos um com o outro.

— Só isso? É essa a bela história de amor?

Lilianne decidiu que não gostava muito do filho de Oliver.

— Nós nos casamos e viemos morar aqui. E então ele foi morto.

O tom de lorde Dunlanoe sugeria uma ligação entre os dois

eventos. Uma relação que ela não podia negar.

— Sim, ele foi morto...

— Ah, isso não importa. Devo dizer que meu pai sempre teve bom

gosto para escolher suas mulheres.

— Muito obrigada, mas duvido que a decisão de Oliver tenha sido

influenciada por esse... bom gosto.

Talvez não, mas ninguém podia negar a beleza de Lilianne.

— Nesse caso, o que promoveu a decisão de meu pai?

— Bondade — ela resumiu. — E era isso que eu mais admirava

nele. E agora, se me der licença, gostaria de me retirar.

Padraic a viu sair da sala e também se levantou para ir à cozinha.

— Ah, então está mesmo em casa, meu lorde. Tenho aqui pão e

presunto para alimentá-lo — disse a sra. Ferguson, sua cozinheira. Ela

colocou um prato sobre a mesa da cozinha.

— Obrigado, Sra. Ferguson, mas acho que não tenho muita fome.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Precisa comer alguma coisa. Deve manter suas forças.

— Há quantos anos diz a mesma coisa, sra. Ferguson?

— Desde que você aprendeu a andar e adquiriu o hábito de vir

visitar minha cozinha, sempre seguido por um ou dois cães. Antes de

partir.

— Meu pai e eu tivemos muita sorte por contarmos com seus

serviços.

— Não. A sorte foi toda minha.

— O que sabe sobre essa mulher que se casou com meu pai?

Estou absolutamente surpreso!

— Sim, também ficamos surpresos. Um belo dia ele a trouxe aqui,

e no dia seguinte eles se casaram diante do padre Samuel.

— Sem nenhuma explicação?

— Não, e não cabia a mim questionar a decisão do patrão.

A sra. Ferguson nunca questionava,as ocorrências em Dunlanoe.

Aceitava as idas e vindas de Padraic, seu comportamento inconsistente,

suas esquisitices, e nunca fazia comentários ou perguntas. Era uma das

poucas pessoas com quem Padraic podia ser autêntico. Seu pai

confiava inteiramente na velha cozinheira, como ele. Mesmo assim,

jamais havia revelado sua identidade secreta. O Rebelde.

A sra. Ferguson serviu chá com mel, e Padraic bebeu um gole da

bebida quente e doce.

— Vou sentir falta dele, sra. Ferguson.

— Todos nós sentiremos, lorde Paddy. Ainda não consigo

acreditar que ele tenha partido.

— Ou que tenha deixado uma viúva.

— Pobrezinha.

— Como ela é?

— Bem, ela me parece bastante doce, para alguém com o toque.

Padraic levantou a cabeça, mas a sra. Ferguson estava de costas

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

para ele, debruçada sobre uma panela.

— Toque?

— Ah, sim... Dizem que ela o tem. E eu acredito nisso.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Mas o que é... o toque?

— A capacidade de cura. Dizem que ela foi tocada por fadas.

Padraic teve de se esforçar para não rir. Respeitava todas a

crenças, mesmo as mais absurdas, mas fadas...

— Ria o quanto quiser, meu lorde, mas ouvi a história.

— Sobre o toque?

— Sobre sua capacidade de curar. A prima de meu marido

Mauve, de Dublin, ouviu dizer que ela ajudou uma mulher no parto.

Todos acreditavam que o bebê havia nascido morto, porque estava

azul como o mar... — Ela ia baixando a voz enquanto falava como

se temesse despertar as fadas e ser castigada por revelai segredos

tão sérios.

— E...?

— E ela o tocou.

— Continue.

— E trouxe o bebê de volta à vida.

— E a prima de seu marido viu tudo isso?

— Não exatamente, senhor.

— Entendo.

— Mas ela ouviu o relato de alguém que viu tudo. E tem de

admitir que lady Lilianne tem a aparência das fadas.

Ela era linda, realmente. Mas nem por isso Padraic acreditava

nessa conversa sobre poder de cura.

Irritado, ele desejou um bom dia à cozinheira e saiu para ir

procurar padre Samuel.

O velho clérigo estava na capela. Construída em uma alcova

em uma das alas do castelo, a pequena capela cheirava a incenso

e sempre despertava nele um sentimento de opressão. Pouco

iluminada e protegida por espessas paredes de pedra, ela havia

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

sido construída para suportar os ataques de bandos de salteadores

e inimigos dos antigos barões de Dunlanoe. O restante do castelo

passara por várias reformulações, mas a capela permanecia como

no início, uma relíquia do passado.

Padraic a visitava raramente.

— Padre Samuel. Gostaria de falar sobre...

O sacerdote o silenciou com um gesto, movendo as mãos

para Instruí-lo quanto às atitudes que devia tomar dentro da igreja.

Era evidente que o homem não percebia que ele havia deixado de

ser católico. Padraic renunciara à Igreja. Sim, tudo era apenas um

disfarce para enganar os ingleses, mas essa era uma parte do

disfarce que não o incomodava em nada. Apesar de ter sido

instruído secretamente na religião católica, sua mente, ou seu

coração, ou qualquer que fosse o órgão responsável pela crença

religiosa de uma pessoa, registrara muito pouco desses

ensinamentos.

Era um protestante declarado, um homem que se empenhava

o máximo, a ponto de arriscar a vida, para ajudar os católicos

perseguidos, mas, pessoalmente, não se sentia inclinado a

nenhuma dessas religiões.

Padraic esperou que o padre concluísse suas orações e se

levantasse.

Os dois se sentaram em um banco perto da porta.

— Veio por seu pai, é claro.

— Sim, padre. Tenho muitas dúvidas.

— Primeiro, deixe-me dizer que ele teve um funeral bastante

adequado.

Católico, certamente.

— onversamos muitas vezes sobre o assunto, e segui todos

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

os desejos de seu pai. Pode ficar tranquilo quanto a isso.

— Eu estou. E também sou muito grato por seu empenho.

Mas esperava que pudesse me dizer alguma coisa sobre como ele

morreu.

— Ora, ele foi alvejado por um tiro. A bala penetrou bem perto

do coração, pelo que ouvi dizer. Não sei quem atirou. Não pude

sequer administrar os últimos sacramentos antes de sua morte.

— Tenho certeza de que suas boas ações o ajudarão a

chegar o Céu.

O padre assentiu e suspirou, e Padraic sentiu uma onda de

ternura pelo religioso. Ele havia sido amigo e confidente de seu pai

por muitos anos, desde que podia se lembrar.

— Há um outro assunto que gostaria de discutir. A esposa de

meu pai...

— Por favor, não posso falar sobre isso.

— Mas deve saber...

— Não devo comentar o que me foi dito no segredo do

confesionário, sir Padraic. Sabe disso.

Bem, por um lado, Padraic se sentia grato por esse dever de

segredo. Tinha certeza de que o padre sabia sobre o Rebelde. Se

pai devia ter confessado.

— Mas se o casamento teve alguma relação com sua morte

então...

— Ele foi encontrado por um de seus colonos. Duvido que a

jovem tenha tido alguma relação com a morte de seu pai.

— Sim, mas por que ele a desposou?

A resposta foi um silêncio gelado.

— Não pode ao menos me dizer o que tem contra ela? É

evidente que não aprecia essa jovem.

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— Eu mal a conheço. O que me faz lembrar, lorde Dunlanoe

que há muito não ouço sua confissão.

Padraic decidiu que era hora de deixar a capela. Antes disso,

porém, padre Samuel falou mais uma vez sobre o funeral realizado

ao lado do túmulo de sua mãe. A mãe que ele jamais conhecera.

O colono, Regis Kelly, não tinha nada de novo a dizer. Ele

conduzia seu rebanho por um caminho quando se deparou com o

corpo de Oliver Rafferty. Um tiro no peito tirara sua vida.

No final da tarde, sozinho em seu quarto, Padraic removeu a

peruca e a casaca de seda, lavou o rosto e olhou para o espelho

sobre o toucador. Lorde Dunlanoe e o Rebelde o encaravam,

unidos apenas pela dor.

Naquela noite, Coyle e Alison foram visitá-lo. Todos se

sentaram no salão para tomar chá, e o desconforto da reunião fez

Padraic perceber como seria sua vida, caso não se livrasse logo de

Lilianne Tinsley, ou Lilianne Rafferty, como se chamava agora.

Queria conversar com o casal de amigos, mas a formidável

viúva se recusava a deixar o salão. Assim, Coyle e a esposa

anunciaram o momento de partir sem que houvessem trocado uma

única palavra franca.

Depois de acompanhá-los até a porta, Lilianne se retirou para

seus aposentos.

Passava da meia-noite, quando Padraic abriu a passagem

secreta que ligava seu quarto à cozinha, e a cozinha ao estábulo.

Vestido inteiramente de negro e com a cabeça coberta pelo capuz

do manto e o rosto oculto por um lenço de seda negra, ele pôs a

sela em Raven, o garanhão que, de acordo com rumores, não

aceitava ser montado por ninguém. Essa era outra cortina de

fumaça, uma farsa para a afastar eventuais curiosos. Cavaleiro e

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montaria se entendiam muito bem e, juntos, tomaram a direção do

continente, afastando-se do litoral com seus rochedos escarpados.

A lua iluminava os caminhos. Não era uma noite ideal para o

Rebelde estar vagando por ali, mas pedira a Coyle para ir encontra-

lo, e tinha perguntas demais para ficar em casa esperando por uma

noite sem luar.

Padraic desmontou numa região protegida por árvores

frondosas. Ali, as folhas impediam a penetração da luz da lua.

Coyle já já o esperava no local de costume.

Paddy, quando é que vai me deixar dormir uma noite inteira?

— Oh, entendo... eu o tirei dos braços da mulher amada!

Alison está se queixando?

— Não. Às vezes me pergunto se não devia ser ela a estar

aqui tramando com você. Alison tem fortes sentimentos com relação

aos ingleses.

— E você não?

— Paddy, você sabe que sim. Estou apenas reclamando um

pouco, quando devia estar tentando consolá-lo.

— O que descobriu sobre a morte de meu pai?

— Ouvi rumores de que sir Edwin tenta culpar o Rebelde.

— O quê? E por que o Rebelde mataria meu pai?

— Ele era rico, e talvez o Rebelde quisesse atingir você, não

ele. Quem sabe? Eu não disse que a história fazia sentido. Mas

você conhece o clima. Tudo que acontece por aqui é culpa do

Rebelde. Por que dessa vez seria diferente? Além do mais... de

acordo com Alison, sir Edwin está muito abalado por conta da viúva

Rafferty, e você sabe o que ele pensa sobre o Rebelde.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Por que ele se incomoda tanto com Lilianne?

— Parece que tinha planos de desposá-la, mas seu pai o

superou.

— É difícil acredita nisso. Tão difícil quanto aceitar o que a

sra. Ferguson me contou hoje pela manhã. Dizem que a tal mulher

é... Como foi que ela disse? Ah, sim, ela foi tocada pelas fadas.

— Nunca ouvi nada parecido, mas devo reconhecer que ela

tem uma aparência típica...

— Aparência típica? Por Deus, homem, não me diga que

acredita nisso!

— Não sei se acredito ou não... e não importa. O que vai

fazer? Temos contrabando para vender e...

— Vou deixar esses assuntos com você e os outros, pelo

menos por enquanto.

— E você...?

Boa pergunta. Padraic tinha certeza de que Coyle já

imaginava a resposta.

— Acho que chegou a hora de fazer uma visita a Edwin.

— Talvez esteja certo. Sir Edwin sempre foi um grande amigo

de lorde Dunlanoe. Se souber de alguma coisa, ele certamente lhe

dirá.

— Certamente, e para isso pretendo visitá-lo amanhã

mesmo... como lorde Dunlanoe. Mas eu me referia a uma visita do

Rebelde.

Coyle o encarou como se estivesse diante de uma aparição. A

noite clara, a lua ia alta, e a idéia de se dirigir a winston Hall para

fazer uma visita noturna a sir Edwin White era perigosa, para dizer o

minímo. Mas, no momento, a idéia enchia Padraic de entusiasmo.

Além do mais, por ser tão audaciosa e arriscada, tal visita

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seria inesperada. E plantaria em Edwin a semente do terror, razão

mais do que suficiente para Padraic levar a idéia adiante. Além do

mais quando lorde Dunlanoe fosse visitá-lo, haveria muito sobre o

que conversar.

Decidido, Padraic montou. O vento agitava seus cabelos e

sua capa negra enquanto ele cavalgava para Winston Hall.

Que descuido de sir Edwin.

Padraic sorriu ao abrir a porta. Sem trancas ou vigias, sem

nenhum tipo de obstáculo a ser superado. Era quase entediante.

Padraic esperou que os olhos se ajustassem à escuridão,

aguçando os ouvidos para identificar qualquer sinal de aproximação

ou perigo. Depois, caminhando com passos silenciosos, afastou um

pouco as cortinas e empunhou a faca que levava no cano da bota.

Era fácil demais.

A cama sobre um pedestal era cercada por cortinas, e ele

levantou-as com cuidado, esperando encontrá-lo sozinho. Não

queria matar de susto uma pobre protistuta no cumprimento de seu

ofício. Felizmente, Edwin estava sozinho.

— Vamos, acorde e veja quem está aqui. — disse,

aproximando a faca do pescoço de Edwin para impedi-lo de gritar

por socorro. Ele abriu os olhos e sufocou um grito. A lâmina fria

pressionava sua pele.

— O que... o que você quer?

— o que eu quero? Isso é jeito de falar com um visitante?

— Você não é meu convidado, Rebelde. Não passa de um...

aiiiiiiiiiiii!

— Ora, ora... Por acaso cortei você? Por Deus, a faca deve

ter escorregado. Isso sempre acontece quando não sou bem-vindo.

Bem, parece que você precisa de um curativo, e eu odeio sujeira.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Talvez deva coletar sua generosa doação e me retirar.

— Doação? Do que está falando? Estou perdendo sangue!

Pelo amor de Deus!

— É só um arranhão. Agora vejamos... Onde acha que posso

encontrar algum ouro por aqui?

— Não guardo moedas em casa. Não há nada...

— sinto meus dedos escorregando novamente. Não tem idéia

de como me sinto cansado quando tenho de empunhar a faca por

muito tempo. E ainda sou forçado a olhar em volta, tentando

identificar um eventual esconderigo... Ah, não há como prever o que

pode acontecer.

— Não, não! Eu digo... Por favor, não me machuque mais!

Padraic virou o rosto para esconder um sorriso. Fácil.

— Muito bem, fale de uma vez, então. Estou perdendo meu

tempo.

Edwin se virou para abrir um baú ao lado da cama. Ele tentou

retirar alguma coisa do baú, mas Padraic o impediu.

— Ei, ei, deixe-me dar uma olhada nisso. O que temos aqui'

Uma pistola? Estava pensando em usá-la contra mim?

Edwin encolheu-se ao ver o cano da arma apontado em sua

direção.

— Está engatilhada e carregada! Muito astuto. Todo cuidado é

pouco quando o Rebelde está à solta.

— Não estará por muito tempo, juro! Cuidarei para que seja

enforcado por isso!

— Palavras corajosas para quem está diante do cano de uma

pistola. Bem, você nunca foi muito esperto. Agora, vou aliviá-lo do

excesso de ouro. — Padraic guardou dois sacos nos bolsos —

Pensando bem, creio que vou levar tudo. O povo da Irlanda saberá

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

apreciar a devolução de dinheiro ganho com tanto trabalho e

esforço.

— Não vai escapar ileso. Por que não mostra o rosto,

covarde?

— Ah, é meu rosto que desperta seu interesse. — Padraic

aproximou-se dele. — Não creio que gostaria realmente de vê-lo,

por que, nesse caso, eu seria forçado a matá-lo. Por favor, sente-se

ali e fique quieto. Isso, assim mesmo.

Padraic colocou-se atrás da cadeira e, usando um lenço que

retirou do cinto, amordaçou Edwin.

— Como pode ver, não sou completamente egoísta. Vou lhe

deixar algo em troca de tudo que fez por mim. Suas mãos, por

favor. Atrás da cadeira.

Depois de amarrá-lo, Padraic partiu. Era difícil conter o riso

diante da imagem patética de Edwin se retorcendo e gemendo, seu

rosto vermelho como se fosse explodir. Mal podia esperar para

retornar como lorde Dunlanoe e ouvir o que sir Edwin White teria a

dizer sobre o visitante noturno.

Lilianne olhava para o mar e para a lua. Erguendo os braços,

encheu os pulmões com o ar salgado do litoral. A noite era suave, e

a escuridão a envolvia como um casulo protetor. Não havia olhares

curiosos, perguntas inoportunas, dedos acusadores ou súplicas por

sua ajuda.

Às vezes, não sabia o que era pior: os que criticavam seu

dom, chamando-a de estranha ou coisas piores, ou os que

acreditavam, demais nele, os que esperavam demais dessa sua

habilidade.

Porque nem sempre podia dar a eles aquilo que esperavam

dela.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Não pudera ajudar Oliver, e havia tentado, embora já o

houvesse visto morto. Pusera suas mãos sobre o corpo inerte e

clamara pela ajuda dos seres preciosos para salvá-lo. Fechara os

olhos, e quando uno sentira nenhum poder inundando sua alma,

havia tentado curá-lo por conta própria.

Mas nada acontecera. Porque não era ela quem curava. Há

anos entendera que era apenas um instrumento para a atuação dos

poderes curadores. Não tinha controle. Era como um recipiente que

se enchia e esvaziava. Mais nada. E às vezes tinha de ver seus

rules queridos, aqueles que não eram escolhidos, morrerem.

E depois via a acusação nos olhos daqueles que haviam

pedido sua ajuda.

Pelo menos com Oliver fora poupada disso. Ninguém

testemunhara seu fracasso. Seu filho não estivera presente. Lorde

Dunlanoe. Lilianne não o entendia, mas podia jurar que ele não

gostava dela. E sabia que suas razões não eram as da maioria.

Porque ele parecia desconhecer o dom, ou a maldição que a

distinguia de outros seres humanos.

Lilianne caminhou ao longo do precipício. Estava descalça, e

de vez em quando pisava em um pedregulho e lamentava a própria

impetuosidade.

Mas quando despertara do pesadelo, sua única vontade havia

sido a de escapar do confinamento de seu quarto no castelo. Tivera

tempo para pegar um xale, e sentia-se confortável caminhando livre

pela noite morna e clara. Ela se voltou para o mar e ergueu os

braços novamente, deixando-se abraçar pela brisa.

Tão envolvida estava com a natureza, que nem ouviu o som

de cascos contra o solo. Quando percebeu a aproximação, o

garanhão negro já estava atrás dela.

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Sobre o animal, sombrio a ponto de misturar-se com a noite

havia um homem... ou um demônio, não saberia dizer com certeza

Inteiramente vestido de negro, ele desmontou e deu alguns passos

em sua direção. Seu rosto estava coberto por uma máscara, e uma

capa longa disfarçava os contornos de seu corpo atlético. A ima

gem era assustadora.

Ouvira falar sobre o Rebelde. Ele era temido ou reverenciado

dependendo da posição financeira e política do indivíduo em

questão. Sua fama, antes restrita à Irlanda, já havia invadido a

Câmara dos Lordes. Seu pai, por exemplo, era obcecado pela idéia

de leva] o patife à justiça e, por consequência, à ponta de uma

corda.

— O que faz aqui em uma noite como esta?

O receio que sentira ao vê-la ali com os braços erguidos dava

um tom furioso à voz de Padraic. Quem não teria pensado em

fantasmas diante de uma visão tão etérea? De sua parte, acreditava

apenas naquilo que podia ver. Nunca acreditara em fadas ou fan-

tasmas, ou em quaisquer outros vestígios dos antigos celtas. Mas a

visão da mulher loira e esguia com os braços erguidos para as

brumas chegara a abalar sua convicção. As palavras da sra.

Ferguson ecoaram em sua mente. Mas não... Essa mulher não era

tocada pelas fadas. Porque não existiam fadas. Ela era uma mulher

como qualquer outra.

E o que fazia ali no meio da madrugada?

Espionava-o, possivelmente? A farsa daquela manhã não a

enganara? Era como se os olhos profundos pudessem ler sua alma.

— Repito minha pergunta, senhora. O que faz aqui a esta

hora?

— Eu poderia perguntar a mesma coisa. — Por que se

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portava com tamanha ousadia, justamente agora, quando precisava

parecer passiva para sobreviver?

— Senhora, as regras sociais exigem que eu responda com

cortesia a todas as perguntas de uma dama, mas não sigo regras

sociais. Sendo assim, tenho todas as vantagens. Sou maior, mais

veloz, e estou armado. — E sabia que ela não estava, porque podia

ver nitidamente os contornos de seu corpo através do tecido

transparente de sua camisola clara. A reação de seu corpo foi

previsível, mas lembrar que ela era a viúva de seu pai ajudou-a a

recompor-se. Repito: o que faz aqui no meio da noite?

— Eu... não conseguia dormir. — E agora mal conseguia res-

pirar. — Gosto de caminhar nas noites de lua cheia. A hospedaria

estava muito cheia... — Por que falava em hospedarias? Porque o

Rebelde era amigo dos pobres e desfavorecidos? Sim. Não era

essa a essência da lenda sobre o moderno Robin Hood?

Ele odiava os ricos. Roubava-os e, em algumas situações, até

os assassinava. Por isso mentia. Temia pela própria vida.

— Vive em uma hospedaria? — Padraic insistiu admirado.

Como alguém podia mentir com tanta naturalidade?

— Sim, com sete irmãos. Todos roncam muito! Tanto, que às

vozes não consigo ouvir meus próprios pensamentos.

— Então, saiu para caminhar e veio até aqui, nos

penhascos... descalça...

— Não tenho sapatos.

— Ah, entendo...

— Os penhascos me acalmam. — Era impossível parar de

falar, Interromper o conto mentiroso. — Aqui, não penso tanto na

fome que me atormenta.

— Também não tem alimento? — Muito pouco.

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Mentirosa! Padraic não acreditava nos absurdos que ouvia.

— Não parece estar mal alimentada. Quem é esse pai que

não alimenta a própria filha? Talvez eu deva ir visitá-lo. Imagino que

ele tenha um estômago muito grande, como o de seus nove irmãos.

— Não faça isso!

— Por que não?

— Bem... meu pai é tão magro quanto eu... e meus irmãos.

— Seus nove irmãos?

— São sete.

— Ah, sim. Foi isso que disse.

— Somos muito pobres. Não se incomode conosco.

— Sabe quem sou eu? Já ouviu falar no Rebelde?

— Sim, ouvi falar em você.

— Então, deve saber que os pobres são minha causa. Devo

ajudar sua família.

— É muito bondoso, mas...

— Não, não, eu insisto. Onde mora? Na hospedaria, mas

qual? Quero conversar com seu pai.

— Não será possível.

— Não? Por quê?

— Ele é surdo. — Por Deus, de onde tirava tantas mentiras?

— Surdo? — Padraic sentia vontade de rir.

— E é mudo, também.

— Mudo? Quanto infortúnio!

— De fato, é muito triste.

— Triste... Fico me perguntando como ele consegue vesti-la.

Mas seus irmãos podem se comunicar comigo, não? Ou é a única

em sua família capaz de falar e ouvir?

Lilianne suspirou. Em que confusão se metera!

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Não. Meus irmãos falam.

— Mas não com a mesma graça exibida por você, presumo.

Lilianne calou-se. O Rebelde a segurava pelo braço e a conduzia

para o sul, na direção de Dunlanoe. Tentar resistir seria inútil

perigoso, por isso ela se deixou levar. Temia que ele descobrisse

sua identidade, especialmente depois de tantas mentiras. Precisava

fazer uma última tentativa.

— Agora devo voltar, antes que sintam minha falta.

— É claro. Não queremos que seu pai grite com você.

— Ele não poderia gritar.

— É verdade. Eu havia esquecido... Seu pai é mudo. Bem,

talvez eu deva levá-la para casa. Afinal, sou um cavalheiro.

— Pensei que não seguisse regras sociais.

— Foi o que eu disse, não? — ele sorriu.

— Sim, foi o que disse. Mas não preciso de companhia para

voltar para casa.

— Nesse caso, talvez aceite isto.

Ele retirou uma bolsa de um bolso interno da capa e colocou-a

na mão de Lilianne.

— O que é isto?

— Dinheiro. Vai servir para manter sua família. Poderá

comprar comida e, com sorte, talvez até encontre um bom médico

para seu pai.

— Não posso aceitar. — Pelo peso da bolsa, devia haver

muito dinheiro dentro dela. Que inglês havia sido saqueado dessa

vez?

— É claro que pode. Eu é que não poderia dormir sabendo de

suas dificuldades e de minha incapacidade para ajudá-la.

— É muita generosidade, mas...

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— Por favor, não diga mais nada. A expressão em seu rosto é

prova da sua gratidão. Por outro lado... Bem, talvez possa me dar

algo em troca.

— O quê? — Lilianne sentiu um arrepio de medo. — Não

tenho nada!

Ele sorriu, fazendo seu coração bater mais depressa.

— Não é verdade. Tudo que desejo é um beijo, senhora...

— Lily.

— Senhora Lily. Não estou pedindo demais.

— Senhor, eu... — Queria dizer alguma coisa que o detivesse,

mas não tinha palavras. O calor do hálito úmido em seu rosto a

desorientava.

Ele se aproximou ainda mais, e a escuridão a envolveu. Os

lábios sobre os dela eram quentes, firmes, e pareciam ter o poder

de roubar-lhe o fôlego. Sentia-se tonta, sem ar, e tentou retê-lo ao

sentir que ele se afastava, uma reação que gostaria de poder

atribuir ao receio de cair, mas que, sabia, era apenas a expressão

do desejo de prolongar o beijo.

Ele a estava deixando. Sem descobrir sua identidade. E a

deixava com uma pequena fortuna em ouro. O Rebelde montou e

desapareceu na noite.

Lilianne ficou onde estava, incapaz de acreditar que estava

salva. De repente, ela começou a correr. Quando chegou ao

castelo, linha os pés cansados e doloridos, mas não dava atenção

ao incômodo. Sozinha em seus aposentos, ela acendeu uma vela e

respirou fundo, tentando acalmar as batidas do coração. Não sabia

se estava arfante pela corrida ou pelo encontro com o Rebelde. Ou

pelo beijo que haviam trocado.

Lilianne abriu a bolsa e a esvaziou sobre o toucador.

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Conforme havia imaginado, havia ali uma pequena fortuna em

moedas de ouro.

Mas não eram as moedas que a enchiam de espanto. O couro

da bolsa exibia uma marca. Um selo.

O selo de sir Edwin White.

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CAPÍTULO III

A mosca caíra na teia. Padraic sorriu e disse ao lacaio que

anunciara a presença de sir Edwin para conduzi-lo ao salão, onde

iria recebê-lo.

— Oh, e peça a lady Lilianne para ir se juntar a nós —

acrescentou.

Na verdade, queria vê-la. Havia decidido tratá-la com mais

cordialidade, e começaria no dia seguinte, depois da visita de

Edwin.

Padraic terminou de comer o pão doce em seu prato, divertin-

do se com a idéia de fazer Edwin esperar. Depois bebeu o chá,

limpou os lábios com o guardanapo de linho, e só então se levantou

para ir receber o visitante. No corredor, olhou-se no espelho e

decidiu que sua imagem era suficientemente revoltante e, satisfeito,

seguiu em frente, praguejando contra o maldito Príncipe enquanto

caminhava mancando.

— Ah, aí está você, Edwin. E Lilianne, também. Conheceram-

se agora?

— Onde estava, Padraic? Estou aqui há quase meia hora!

— De fato? Que horror! Vou ter de conversar com a criada-

gem. Mas vejo que teve o prazer da companhia de minha querida

madrasta.

Edwin não disse nada. Apenas bebeu um gole da bebida

contida no cálice em sua mão. E sua mão tremia.

— Não acha que é um pouco cedo para conhaque, Edwin?

— Veja quem fala! — Ele deixou o cálice sobre a mesa e

levantou. — Podemos conversar, Padraic? Em particular?

— O que quer que tenha para dizer pode ser dito...

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Com licença, cavalheiros. Prefiro me retirar — Lilianne

interrompeu.

Padraic notou a palidez da jovem viúva. Mesmo sem entender

o que a levara a se casar com seu pai, tinha de reconhecer que

Edwin era um depravado. Não desejaria a má sorte de tê-lo com

marido nem mesmo para a filha de lorde Robert Tinsley.

— Se prefere sair... — disse.

— Obrigada. — Lilianne inclinou a cabeça e repetiu o gesto

para Edwin.

Assim que ficaram sozinhos, Padraic encarou-o.

— Parece um pouco aborrecido.

— Aborrecido? Não imagina o que aconteceu comigo! E

quando souber... — Ele pegou o cálice sobre a mesa e foi se servir

de mais conhaque da garrafa sobre o console da lareira. — Estou

certo de que ficará tão perturbado quanto eu estou.

— O que pode ser tão terrível? Que notícias tão excitantes o

tiraram da cama tão cedo?

Edwin bebeu mais conhaque e voltou a se sentar no divã

onde Lilianne estivera até pouco antes.

— Já ouviu falar no Rebelde?

— Quem não ouviu? Pensar nele me põe nervoso a ponto de

me deixar à beira de uma apoplexia! Mas o que fez o vilão? Oh, não

me diga! Ele roubou suas ovelhas!

— Pior. O bastardo esteve em meus aposentos ontem à noite.

— Em seus aposentos? Mas... como sabe disso?

— Eu estava lá, idiota!

— Não! — Padraic arregalou os olhos. — Como pode ser? Já

sei! Alguém deteve o facínora antes que ele invadisse seu quarto.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Acabei de dizer que ele esteve em meus aposentos.

Ninguém o deteve ou soube que ele estava lá. Eu lhe digo, Padraic,

o sujeito é como um fantasma atravessando paredes.

— Acha que ele é capaz disso?

— É claro que não! Falamos de um homem como outro

qualquer.

— Mas você parece estar muito perturbado. Mais uma dose?

— Por favor... Ouça, temos de fazer alguma coisa contra esse

homem. Caso não tenha percebido, você pode ser o próximo.

— Eu? O que esse homem horrível poderia querer comigo?

— O mesmo que queria comigo. Roubar. Matar.

— Ora, francamente, Edwin! Você está vivo!

— Isso não quer dizer que ele não seja capaz de matar... ou

que já não tenha matado.

— Edwin, agora está me assustando.

— Melhor assim. Há rumores de que o Rebelde matou seu

pai.

— Realmente?

Edwin continuou falando, embriagado ou assustado demais

pura perceber a mudança no tom de Padraic.

— Sim, é o que estão dizendo. Eu ofereceria minhas

condolências, mas sei que não nutria grande carinho pelo homem.

— Entendo. — Nunca havia sido tão difícil manter a farsa.

Estava tão furioso, que desejava arrancar a peruca, erguer os om-

bros e avançar contra Edwin, Mas, sob a fúria, ainda havia uma

medida de razão. Para encontrar o assassino do pai, tinha de

continuar personificando o Rebelde, e para isso devia sustentar a

farsa.

— Quem são essas pessoas que acusam o Rebelde pela

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

morte de meu pai?

— O quê? Oh, não sei... É só um boato.

— Entendo.

— Não pode estar pensando em vingança. Você o

desprezava!

— Eu? Deve estar brincando! Falar sobre o Rebelde é

suficiente pura me deixar apavorado!

— Hum. Mesmo assim, não podemos deixá-lo impune.

— Por ter matado meu pai, ou por ter ido visitá-lo?

— Isso importa? Ele nos causou grandes problemas. O

Rebelde deve ser detido! — Edwin esvaziou o cálice.

Padraic assentiu, encheu novamente seu copo e sentou-se.

Sua Intenção havia sido amedrontar Edwin para... para quê?

Arrancar dele uma confissão pela morte de seu pai? Improvável, ao

menos por enquanto.

Mas havia outras áreas de interesse. A adorável Lilianne.

Padraic suspirou.

— Por mais que desprezasse meu pai, ainda acho que sua

morte é lamentável. Ele havia acabado de se casar com uma

mulher jovem, atraente...

— Bah!

— Não a considera atraente? Ela é um pouco pálida, mas...

— A mulher é uma bruxa.

— Uma bruxa? Deve estar brincando.

— Não brinco com essas questões tão sérias. Ela é possuída,

em seu lugar eu ficaria atento.

— Hoje você está realmente assustador. Mas, por favor, satis

faça minha curiosidade. O que fez a pobre Lilianne para merece tal

condenação... ou lisonja, dependendo do ponto de vista?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Está debochando de mim, Padraic! Acha que estou

embriagado demais para perceber? Ouça o que eu digo: ela vai

usar seu encantamentos contra você.

— Sei que é sincero comigo, mas... Ora, Edwin, acaba de

conhecer essa mulher! Como pode saber tais coisas?

— Você faz perguntas demais. Use-a, se for preciso, mas não

espere favores dessa mulher.

— Depois de ouvir o que disse, prefiro ficar bem longe da

jovem viúva.

Eram amigos. O filho de Oliver e Edwin. E por que estava

surpresa com isso? Talvez fosse desapontamento. Ela olhou pels

janela. Com o auxílio do cocheiro, lorde Dunlanoe acomodou Ed win

em sua carruagem. O visitante partia visivelmente embriagado,

estado em que, infelizmente, já o vira antes.

Lilianne afastou-se da janela. Não queria ver mais nada. Er;

suficiente saber que não teria de voltar com ele para Winston Hall.

pelo menos por enquanto. Não suportaria tal destino. E quando

entrara no salão e o vira sentado esperando por Padraic, chegara a

acreditar que esse seria o desfecho da inesperada visita.

Não que ele ainda a quisesse como esposa. Por outro lado,

matrimônio nunca havia sido seu primeiro interesse. Edwin tinha

apenas um interesse nela. Ou dois, Lilianne reconheceu com

desgosto. E o maior deles era ser curado.

E isso era algo que não podia fazer.

E agora, o que devia fazer? Escrever para o pai pedindo

permissão para voltar para casa? E ele a aceitaria, se assim

agisse? Ou Insistiria para que cumprisse a promessa de se casar

com Edwin?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Uma hora mais tarde, ainda sem ter encontrado a resposta,

Lilianne foi informada de que lorde Dunlanoe solicitava sua

presença no salão.

Ele estava ao lado da janela, de costas para a porta. A luz do

sol iluminava sua silhueta. Não era possível ver a peruca, o rosto

empoado ou as roupas exuberantes e, por um breve instante, ele

pareceu ser muito diferente do homem que ela tanto detestava.

Lilianne piscou.

Padraic virou-se, levou o lenço de renda ao nariz e piscou.

Voltou a ser quem realmente era.

— Ah, aí está você, Lilianne. Sente-se aqui.

Ela o assustara entrando sem se anunciar. Estivera olhando

para as colinas, onde seus pais jaziam no descanso eterno.

Refletia sobre o dia em que fora enviado de Dunlanoe para a

Inglaterra, onde havia sido educado. Pouco antes de partir, ele e o

pai haviam visitado o túmulo de sua mãe.

— Não deve nunca esquecer que Dunlanoe é sua herança —

seu pai dissera.

Então, por que precisava partir? Aos oito anos de idade, a

questão parecera simples. Não compreendia por que tinha de

abandonar o lugar que mais amava no mundo, a única família que

tinha. E seu pai não pudera dar explicações. Anos depois,

compreendera que a única maneira de preservar tudo que tinha era

fingir ser alguém que não era.

Sonhar acordado era um luxo a que não podia se entregar.

Não com lady Lilianne morando na casa.

— Queria me ver por alguma razão específica? — Se Edwin a

queria de volta, precisava saber.

— Apenas para ver seu belo rosto.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

A resposta rápida era muito próxima da realidade, mas

também estava curioso. Ela havia encontrado o Rebelde na noite

anterior. E não dissera nada. Interessante. Ficara apavorada o

bastante para mentir e tremer. Sentira os ecos de seus arrepios

quando a beijara.

Um beijo que não passara de uma grande tolice.

— O que está achando de seus aposentos?

— Confortáveis. Tem certeza de que não prefere ocupá-los?

— Não, não. Deve ficar onde foi acomodada quando meu pai

era vivo. Meus aposentos são muito satisfatórios. — Sem falar que

precisava do túnel secreto.

— Bem, na verdade, estava pensando se... Se poderia ser de

alguma serventia, já que planeja manter-me aqui.

— Serventia? Não entendo...

Ele não questionou sua afirmação quanto a mantê-la no

castelo. Lilianne quase deixou escapar um suspiro de alívio.

— Bem, durante o tempo em que minha mãe esteve doente,

eu cuidei da casa e de meu pai.

— Ocupou o lugar da senhora da casa, então?

— Exatamente. Sei que sou pouco mais que uma hóspede

aqui, mas como não tem esposa, pensei que poderia...

— Era a senhora da casa de meu pai?

— Estive aqui por pouco tempo antes de ele morrer.

— Entendo.

— Se não gostou da idéia...

— Não, não... Seria ótimo. Isto é, se você quiser, é claro.

— Eu quero. E também pensei que poderia ajudar com o

jardim. Plantar ervas, se não se incomodar.

— Ervas? Sim, sim, é claro. Como quiser.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Ela se manteria ocupada e fora de seus assuntos.

— Minha conversa com sir Edwin foi muito interessante. Ele

estava... agitado.

— Realmente? E ele disse por quê?

— Oh, sim! Parece que recebeu um visitante ontem à noite.

Lilianne relaxou.

— O Rebelde.

— Quem?

— Deve ter ouvido falar no lendário mascarado. Ele vaga pela

noite, roubando dos ricos para dar aos pobres.

— Ouvi histórias — ela conseguiu murmurar.

— Bem, de acordo com nosso bom amigo sir Edwin, essas

histórias são verdadeiras. Ele jura que o homem esteve em seu

quarto ontem à noite.

— De fato? E o que mais disse sobre o Rebelde?

— O que mais? — Ele fingiu desinteresse. — Bem, várias

coisas.

— Ele foi roubado?

— Sim. E deve ter sido uma grande soma.

Lilianne podia imaginar. Parte dessa fortuna estava escondida

em seus aposentos, sob o colchão.

— É claro que ele jurou vingança.

— É claro.— Precisava pensar em um meio de esconder

melhor aquela bolsa.

— Ele jura que terá a cabeça do Rebelde e de qualquer

pessoa que o ajude em suas façanhas. Planeja trazer tropas

britânicas para ajudá-lo na captura. Está se sentindo mal, Lilianne?

— Sim, mas...

A resposta foi interrompida por batidas na porta. Coyle entrou

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

antes que o lacaio pudesse anunciá-lo. Ele parecia surpreso por ver

Lilianne.

— Ah, Coyle, chegou bem a tempo de participar da nossa

conversar sobre aquele horrível vilão, o Rebelde.

— Falavam sobre o Rebelde? — Coyle sentou-se.

— Sim. Ele esteve na casa de sir Edwin ontem à noite. E

roubou muito dinheiro.

— Que... infelicidade para ele.

— Realmente. Receio ter assustado a querida Lilianne com

essa conversa.

— Não se incomode — ela disse.

— Bem, pelo que Edwin disse, acho que eu devia estar

apavodo — Padraic suspirou.

Coyle sugeriu que Padraic o acompanhasse em um passeio

pelos penhascos, e os dois se despediram de Lilianne.

— Perdeu o juízo? — Coyle começou agitado assim que

passaram pela porta. — Tem idéia do perigo que está correndo?

— Acalme-se, por favor. Lilianne pode estar nos observando

pela janela.

— Bobagem! Ninguém pode nos ver aqui. E, mais importante

é impossível ouvir o que estamos dizendo.

Ele estava certo, ou Padraic jamais teria escolhido esse

momento para falar sobre as aventuras do Rebelde na noite

anterior.

— Você sabia que eu pretendia ir à casa de Edwin, Coyle.

— Sim, e nunca concordei com essa idéia absurda. De que

adiantou se expor a tão grande risco? Você já havia reconhecido

que ele não diria nada sobre a morte de seu pai.

— Isso era o que eu pensava. Mas ele teve a audácia de

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

acusar o Rebelde.

— Ora, o Rebelde é acusado por tudo, de donzelas deflorada

a dias chuvosos. Sabe disso, não?

— Sim, e... não tive nada a ver com o bebê de Nora Blaney.

— Oh, mas poderá dizer o mesmo de Lilianne Rafferty?

— Lilianne? Do que está falando?

— Não me contou que a encontrou no penhasco ontem à

noite

— Mas não aconteceu nada que possa resultar em um bebê,

eu garanto. Além do mais, a mulher já se casou. — Com seu pai...

— Mas não foi casada por tempo suficiente para ter um bebê.

— E daí? Isso não muda os fatos.

— Que fatos?

— Está brincando com fogo, Paddy. Acha que não percebo?

— Não percebe o quê? Coyle, está agindo como uma velho

outra vez.

— Diga o que quiser, Paddy, mas eu vi como olhava para ela

— Quem?

Coyle não respondeu. Padraic sabia bem de quem estava

falando.

— Ela é linda, Paddy, e sei que mulheres bonitas são seu

fraco Mas deve lembrar quem ela é.

— Sei bem quem ela é e quem é o pai dela.

— Não pode se expor ao risco de ser reconhecido.

— Edwin estava preocupado demais com algumas gotas de

sangue para me reconhecer.

— E Lilianne?

Lilianne.

Naquela noite, Padraic sentou-se diante dela na sala de

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

música e pensou se teria sido reconhecido. Diria que não. Mas não

apostaria sua vida nisso.

Além do mais, não era apenas sua vida que estava em jogo

ali. Tinha de pensar em Shamus, Alison, Coyle, e na tripulação do

The Rebel's Pride. Embora participassem apenas do contrabando,

se Padraic caísse... Bem, não havia como saber quais seriam as

ramificações.

Lilianne havia sido enviada para espioná-lo? Coyle

considerava a possibilidade, e até Padraic a julgava possível. Por

que mais ela estaria ali?

Precisava ser cuidadoso. Não dissera nada a Coyle, mas ela

o atría. E a idéia não era das melhores. Não mesmo.

— Sabe tocar? — Padraic apontou para a arca em um canto

da sala. — É muito aborrecido ficar sentado aqui sem nenhum

entretenimento.

— Não sou grande musicista. O tutor contratado por meu pai

nunca escondeu seu desapontamento comigo.

— Não pode ser tão ruim! Por favor, toque. E cante, também.

Preciso me distrair.

Resignada, Lily levantou-se e caminhou até o instrumento.

Padraic também se levantou, mas não a acompanhou. Em vez

disso, sentou-se ao lado da janela, cercando-se pela escuridão.

Lilianne preferia assim. Não apreciava o código de vestuário

do filho de seu falecido marido, e quanto menos tivesse de vê-lo,

melhor. Ela começou a tocar.

Padraic pensou que já ouvira coisas bem piores. E melhores,

também. A verdade era que não havia nada de inspirador na

música. Não tinha importância. Normalmente, não passava suas

noites ouvindo melodias harmoniosas. Raramente passava a noite

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

como lorde Dunlanoe.

Antes de Lilianne, quando o pai era vivo, costumavam

dispensar os criados, retendo apenas Shamus, que sempre os

acompanhava à biblioteca. No aposento privado, jogavam xadrez,

falavam sobre o clima político ou liam.

Sentia falta dessas noites ao pé da lareira.

De repente, as notas extraídas da harpa soaram mais

harmoniosas e delicadas.

— Recebeu alguma instrução especial para tocar instrument"

de corda?

— Não. Na verdade, sempre tive um interesse especial pela

harpa.

O novo som o atraiu para o canto da sala onde ficava o

instrumento.

— A harpa...

— É linda! — ela suspirou.

— Foi de minha mãe.

— Oh... Desculpe-me. Não devia ter sido tão presunçosa.

— Não, por favor! Ela gostaria de saber que alguém aprecia

sua harpa.

— Sua mãe tocava bem?

— Não sei. Ela morreu quando eu era um bebê. Mas meu pai

sempre elogiava seu talento musical. Mesmo depois de tantos ano

sempre manteve a harpa afinada.

— Ele a amava muito.

Padraic encarou-a, e por um momento esqueceu que ela

também havia sido esposa de seu pai. A força daqueles olhos o

hipnotizava. Seria capaz de fitá-los para sempre. E poderia...

Padraic desviou o olhar, percebendo que o coração batia d

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pressa e a respiração era arfante. O que estava acontecendo? No

malmente, não se deixava abalar por olhos luminosos e rosto

delicados. De que estavam falando? Oh, sim, de amor.

— Suponho que sim — respondeu, voltando à cadeira. Estava

quase chegando, quando se lembrou do olhar afetado de lorde

Dunlanoe.

Maldição! Acabaria se traindo.

— Lilianne, acho que vou... — Planejava se retirar, mas o so

envolvente da harpa o interrompeu. Ele se sentou e calou.

Ela começou a cantar. Era uma história de amantes, um

inglês e uma irlandesa. Tristão e Isolda. Ouvira a história antes,

mas nunca cantada com tanta sensibilidade. Invejava a harpa pelas

carícias daquelas mãos delicadas.

A música chegou ao fim. O aplauso quebrou o encanto.

Surpreso, lorde Dunlanoe olhou para a porta e viu quase toda

a criadagem reunida, fascinada e emocionada.

Até Shamus tinha o rosto molhado, embora, mais tarde,

negasse as lágrimas.

— Afirmo que ela é do mundo das fadas — ele disse

enquanto pendurava a jaqueta amarela no cabide.

— Esteve conversando com a sra. Ferguson?

— E se estive? Tem de admitir...

— Só porque ela sabe tocar harpa?

— Ela não tocou a harpa. Ela a enfeitiçou! Você viu.

— Vi uma bela mulher executando uma melodia...

— Uma canção irlandesa.

— Que seja. Uma canção irlandesa.

— Por que insiste em negar o que viu com seus próprios

olhos? É teimoso demais para confessar um erro? Ela pertence ao

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

mundo das fadas, ou meu nome não é Shamus 0'Hare.

— Ele morrerá sem você, e só tem cinco anos de idade!

— Sra. Ferguson, por favor! E claro que farei tudo que puder

por seu neto. Se me disser onde ele está, mandarei vir um médico

da cidade. — Talvez houvesse encontrado um bom uso para o

dinheiro escondido em seu quarto.

— Nenhum médico poderá salvá-lo. Ele precisa da sua ajuda,

milady. Do seu poder de cura.

— Sra. Ferguson...

— É dinheiro que quer? Ou o meu trabalho?

— Não! Eu só... Não posso fazer o que me pede.

— Não pode... ou não quer?

Lilianne caminhou pela sala onde ficavam guardados os

lençóis, as toalhas e outros tecidos do castelo. A sra. Ferguson a

chamara ali para fazer seu pedido.

— Não posso. Essa idéia de que tenho o poder...

— Vai me dizer que nunca curou ninguém?

— Não é isso. Mas... Isso foi há muito tempo. — Antes de

tentar curar a própria mãe. E ter fracassado.

— Não estamos falando de uma habilidade que se pode

esquecer, mas de um dom. Ouvi você tocar ontem à noite.

— Foi só uma canção. E se algum dia tive um dom, ele me foi

tirado. Escute, já tentei... Tentei, e foi em um momento em qua

nada era mais importante no mundo do que poder curar alguém. E

não consegui. Não tenho esse poder. Não mais.

— Mas...

— Deixe-me providenciar um médico. E remédios. Deve have

algum no castelo. Mostre-me onde estão, e iremos juntas visits seu

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

neto.

— É inútil. O menino morrerá.

— Podemos dar a ele algum conforto.

No final, ela praticamente ordenou à governanta que abrisse

armário dos remédios. Depois, Lilianne enviou um criado à cidade e

ordenou que uma carruagem fosse preparada. Durante todo esse

tempo, pensou que lorde Dunlanoe poderia considerar suas

atividades um pouco ortodoxas. Mas ele saíra para passar o dia

todo fora, talvez mais tempo, e não deixara nenhum recado ou

aviso. Não que tivesse de dar satisfações, é claro. Não a ela.

Naquela manhã, quando fora fazer seu desjejum, Shamus a

informara sobre a saída de seu senhor. Só isso.

Melhor assim. Ele não era uma companhia agradável. E,

felizmente, obtivera sua autorização para atuar como senhora da

casa e agora se sentia à vontade para tomar decisões.

A carruagem seguia pela estrada de terra. Lilianne olhou pela

janela e viu, pela primeira vez, o território além do parque d castelo.

Os campos eram produtivos, e os agricultores pareciam mais

prósperos do que ela havia imaginado.

— Nosso senhor nos trata bem — comentou a sra. Ferguson

como se pudesse ler seus pensamentos. — Há sempre alimento um

lugar confortável para repousar a cabeça.

— É bom saber disso.

— Alguns não gostam dele por conta de seu relacionamento

com o antigo senhor.

— Por quê? - Ele tomou do pai a terra e o título. Não sabia?

— Sim, acho que sabia. — Oliver mencionou que o castelo

pertencia ao filho, como o título, mas nunca acusara lorde Dunlanoe

de nada.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Mas ele tem sido bom para nós. E também foi bom para

seu pai, que Deus o abençoe.

Isso parecia ser suficiente para a sra. Ferguson, Lilianne

decidiu Abster-se de qualquer julgamento.

A casa de colonos diante da qual a carruagem parou era feita

de pedra e telhado de sapé. Dentro dela, o ar cheirava a palha e

nulidade. A filha da sra. Ferguson caiu de joelhos diante de Lilianne,

segurando suas mãos e agradecendo emocionada por sua

presença.

A sra. Ferguson segurou a filha pelos ombros e a pôs em pé,

levando-a para o outro lado da cabana. Lá, em voz baixa, elas

conversaram, ambas olhando na direção da visitante.

Desconfortável, ela olhou em volta e viu o menino.

Ele estava deitado em uma cama estreita ao lado do fogo, seu

rosto pálido e os olhos fundos e apagados. Tocada pela cena de

dor e sofrimento, ela se aproximou dele e, ajoelhada no chão, sentiu

um desejo incontrolável de tocar a face magra. Os dedos tocaram a

pele seca e prolongaram o toque.

De repente, sua mão ficou quente. Palavras estranhas, quase

sons incompreensíveis, brotavam de seus lábios.

— Shawn. O nome dele é Shawn. Lilianne ouviu as palavras

muito distantes, mas incorporou-as à ladainha.

— Shawn, você precisa melhorar. Você vai melhorar.

Enquanto falava, sentia a energia fluir por seu corpo até as mãos,

por onde era transmitida para o corpo do menino.

— Não tenho medo, Shawn. Quero ajudá-lo. Deus quer ajudá-

lo.

O fluxo tinha mão dupla. A energia curadora fluía de seu

corpo para o dele. A enfermidade fluía do corpo da criança para o

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

dela.

Muito tempo depois, ela abriu os olhos e viu o sorriso aliviado

do menino.

— Agora descanse. Virei vê-lo novamente quando acordar. —

Lilianne disse enquanto se levantava.

Seus joelhos cederam, e um homem que ela não havia visto

antes correu a ampará-la. Tudo que Lilianne queria era se deitar e

dormir.

— É lady Lilianne Rafferty?

— Sim, sou eu.

— Sou o dr. Rufus Maxwell. Vim a pedido seu.

— Oh, sim... O menino... Shawn... Está muito doente.

— E o que fazia com essa criança?

— Eu... — O que poderia dizer?

— Como homem da ciência, não acredito em bruxaria.

— Nem eu, doutor. — Quantas vezes vivera essa mesma

situação antes? Velhas lembranças tentavam invadir sua mente. —

Talvez deva examiná-lo.

Sozinha, ela deixou a choupana e enxugou uma lágrima

furtiva Havia acontecido novamente. Como?

Depois da tentativa com a mãe, passara a ter certeza de que

havia perdido o dom, ou o que quer que fosse.. Naquela época,

havia implorado a Deus pela realização do milagre... pela salvação

de sua mãe. Mas nada acontecera.

Sua mãe morrera. E, com ela, morrera também todo o amor

que seu pai um dia havia sentido pelo fruto daquela união.

— Lady Lilianne.

Ela se virou e viu o médico correndo em sua direção. Seu

rosto estava vermelho.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— O que foi? Shawn piorou?

— Piorou? Francamente, não entendo por que me chamou

aqui.

— Porque... O menino está doente.

— Para mim ele parece ótimo. Para comprovar suas palavras,

Shawn apareceu na porta da casa e correu na direção de Lilianne.

Quando o menino a alcançou, ela estava de joelhos para recebê-lo

entre os braços.

— Mamãe disse que só estou em pé graças a você.

— Pois eu acho que é graças a você mesmo. Venha, vamos

falar com sua mãe e sua avó.

Em pouco tempo a notícia se espalhou por Dunlanoe. Lilianne

era assunto de todas as conversas, alvo de de todos olhares. Os

criados a tratavam com reverência, temor e, sim curiosidade.

Todos, exceto Shamus, um homem direto que, em sua

opinião, não combinava com o temperamento de seu senhor,

alguém que não tolerava familiaridades, especialmente seus

subalternos. Mas Shamus não parecia se incomodar com isso.

Falava sem pedir licença, expressava suas opiniões sem mede de

retaliação e parecia ser o orador da criadagem.

Naquele dia Lilianne o encontrou perto do estabulo, quando

se preparava para cavalgar numa tentativa angustiada de encontrar

paz.

— vai cavalgar, senhora?

— Sim, eu vou.

— Ouvi dizer que curou o jovem Shawn O'Mally

— A sra Fergunson adora aquele neto. Não imagina o bem

que fez a ela. Não me surpreenderia se sua refeição fosse especial

esta noite. Curar os enfermos é um gesto de nobreza, senhora. Não

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devia envergonhar disso.

— Não me envergonho.

— Ah, é bom saber disso! Dons como o seu devem ser

celebrados.

— O que sabe sobre mim?

— Sei mais do que pode imaginar.

Nesse momento, lorde Dunlanoe saiu do estábulo puxando

um animal pela rédea.

— Decidi acompanha-la, embora deteste cavalgar. Não

suporto O cheiro dos cavalos, sabe?

— Senhor, não se incomode por mim. Cavalguei todos os

desde que cheguei e não tive problemas.

— E o Rebelde?

— Não creio que deva temê-lo.

— Pois minha opinião é outra, senhora.

— Lorde Dunlanoe, nada possuo de valor. Nada que o

Rebelde possa roubar.

— Não se subestime, Lilianne.

Havia algo em seu tom, algo diferente que a fez interromper o

gesto de montar. Os olhos azuis tinham um brilho diferente, uma

luminosidade que...

Não. Devia estar imaginando coisas. Os olhos de lorde

Dunlanoe eram frios e superficiais como sempre.

Ele se aproximou para ajudá-la a montar e, sem hesitação ou

esforço, segurou-a pela cintura e a pôs sobre o cavalo. O homem

era mesmo surpreendente. Mesmo depois de acenar e partir num

trote lento, ela ainda levava a impressão das mãos em sua cintura e

sentia o calor de um rubor intenso no rosto.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic esperou alguns instantes. Depois chamou um

cavalariço e ordenou que a seguisse.

— O que está tentando fazer, Paddy?

— Ela precisa de um acompanhante. Só isso.

— Para mantê-la a salvo do Rebelde? — Shamus continha o

riso.

— Não se esqueça de que meu pai foi morto perto daqui. É

óbvio que há mais alguém a temer além do Rebelde.

— Sim, mas não era sobre isso que eu falava.

— Sobre o que falava, então?

— Você sabe. Para começar, teve sorte por ela ainda não o

ter surpreendido num momento de guarda baixa. Ela poderia ter

entrado no estábulo a tempo de vê-lo vestindo um de seus belos

casacos.

— Sim, mas não entrou.

Graças a mim, que a detive. E não foi fácil. A mulher é

determinada.

—Talvez ela tenha adivinhado que eu estava lá dentro

mudando de roupa.

— Gosta de pensar nessa possibilidade, não é?

— Do que está falando agora?

— Acha que a idade me fez cego? Ainda tenho bons olhos

para certas coisas.

— Que coisas?

— O que está pensando sobre essa mulher não é certo,

Paddy, Você sabe disso.

— O que estou pensando sobre ela? Ficou maluco? —

Padraic forçou uma gargalhada. — Oh, eu já devia esperar essa

atitude de alguém que disse tantas tolices sobre o neto da sra.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Ferguson. Pensou que eu não estivesse ouvindo?

— Mais cedo ou mais tarde vai ter de aceitar o que todos nós

sabemos. Essa mulher tem o toque.

— Oh, por Deus, essa tolice de fadas novamente? Não! Ela é

só uma mulher.

— Hum... Ela curou o neto da sra. Ferguson.

— Que devia estar apenas resfriado e melhorou com o tempo.

O que mais ela fez? Ah, sim, a harpa. Admito que ela toca o

instmmcnto como ninguém, mas isso só sugere que a mulher teve

um bom tutor.

— Ela não tocava tão bem no início da audição. De repente

adiquiriu essa habilidade?

— Shamus...

— Muito bem, se prefere acreditar nisso...

— Prefiro.

— Em seu lugar, eu ficaria mais atento, porque ela já o

enfeitiçou.

— O quê?

— Está dominado por um encantamento de amor.

Encantamento de amor. Francamente!

Padraic cavalgava sem pressa, protegido pelo manto escuro

da noite.

Uma noite perfeita para o Rebelde.

Ele se aproximou da bifurcação da estrada e esperou. Edwin

e seus convidados logo estariam passando por ali a caminho de

casa, de volta das tavernas de Kilroyne. O próprio Edwin enviara

um mensageiro convidando-o a integrar o grupo.

Padraic declinara pretextando cansaço.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Já podia ouvir o som de cascos se aproximando. A

antecipação o dominava. O momento da ação havia chegado.

Padraic sacou pistola e cravou os calcanhares nos flancos de

Raven.

— Quietos. Entreguem tudo que têm—ordenou, saltando com

uma aparição do meio das árvores.

Aparentemente, o cocheiro não tinha nenhuma intenção de

morrer defendendo seu senhor e o grupo de convidados, porque

deteve o veículo imediatamente. Ele e seu ajudante ergueram as

mãos.

— Desçam daí. E abram as portas. Os dois homens

obedeceram.

— E mesmo o Rebelde? — indagou o cocheiro com um mist

de temor e admiração.

— Sim, eu sou. Não é verdade, sir Edwin?

— Maldição! O que quer agora? Não basta ter ido à minha

casa.

— É evidente que não. Agora desçam. Todos vocês.

Três homens saltaram da carruagem com grande dificuldade

embriagados como estavam, e só então Edwin saltou.

— Cocheiro, recolha as armas desses cavalheiros —

determinou Padraic.

Um minuto depois, havia três pistolas e uma espada no chão.

— O que quer de nós, afinal? — indagou um dos integrante

do grupo, um cavalheiro cuja peruca insistia em cair para o lado

esquerdo de sua cabeça.

— Seu dinheiro, senhor. Por favor, comecem a se desfazer de

todos os bens que possuem.

— Isso é um ultraje! — protestou um dos nobres.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Chame do que quiser, cavalheiro, mas entregue o que tem

i ou, além de ultrajado, em breve estará morto.

— Não vai escapar ileso — Edwin o ameaçou.

— Não conte com isso. Agora, voltem todos para o coche. E

agradeçam a todos os santos por eu não estar com disposição para

derramar sangue. E você!

— Eu?

— Sim, você. Ponha essa peruca na pilha de objetos no chão.

Gostei dela.

O homem arrancou-a tão depressa, que causou uma nuvem

de pó. Depois de jogá-la ao chão, ele correu para dentro do veículo.

Padraic esperou até o grupo desaparecer além de uma curva

na estrada, e só então desmontou para recolher todos os bens

roubados e as armas. Queria concluir o episódio rapidamente.

Estava cansado, pois havia passado a manhã toda ajudando a

descarregar um contrabando de seu navio, e mal podia esperar

para ir para a cama.

Mas seus planos foram alterados pela imagem da mulher

sobre o penhasco.

Lilianne sabia que corria grande risco. Na última vez, quase

não conseguira escapar sem que o Rebelde descobrisse sua

verdadeira identidade. Então, por que desafiava a sorte?

Quando ouviu o ruído de cascos batendo contra o chão, ela

sentiu o coração bater mais depressa. Lá estava ele, desmontando

e caminhando em sua direção. Sentia medo, é claro. Mas não

conseguira apagar da memória a lembrança do beijo...

— Então, Lily, vejo que voltou a idolatrar a noite...

— Como você.

— E ainda está descalça. As moedas que lhe dei não foram

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

suficientes?

— Não gastei o dinheiro. — Lilianne ofereceu a bolsa que le-

vava sob o xale. — Não posso aceitá-lo.

— Por que não?

— Meu... pai não permitiria.

— O homem mudo?

— Sim. Não... Quero dizer, há meios de comunicação pelos

quais ele me faria saber sua opinião. Não que não seja grato, é

claro.

— É claro.

— Ele apenas... sente que não é correto ficar com o dinheiro.

— Por gostar de ver os filhos descalços?

— Não está sendo justo, senhor. Meu pai não tem culpa pelas

pelas diculdades que castigam nossa família.

— Não culpei ninguém.

— Além do mais, a relva é macia e morna, agora que a

primavera chegou.

— Estamos sobre as rochas, doce Lily. Ela se virou para

esconder um sorriso, tocada pela forma de tratamento.

— Talvez, se eu lhe der mais dinheiro...

— Por Deus, não! Por favor! — Havia sido difícil abrir daquela

quantia. Se tivesse mais... Já havia deixado algumas moedas com a

família de Shawn.

— Só queria que ficasse com uma pequena quantia para uso

pessoal.

— Não. Obrigada. Deve entender meu orgulho.

— Orgulho não alimenta nem veste crianças, não salva o que

resta da colheita de um homem depois de um longo período de

seca, não... — O Rebelde calou ao sentir o olhar intenso cravado

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em seu rosto.

Ela parecia fascinada. Normalmente, não manifestava sua

opinião sobre a pobreza que o cercava. Era Coyle quem filosofava.

Ele buscava aventuras.

— Diga a seu pai para ficar com o dinheiro, doce Lily.

— Então, preocupa-se realmente com eles, não é?

— É claro que sim. Já lhe dei dinheiro, não? Para seu pai

mudo e seus nove irmãos.

— Sete.

— Ah, sim, sete.

— Não vamos falar deles.

— Como quiser. Sobre o que falaremos, então?

— Não sei. Sobre a terra, talvez. Há uma beleza selvagem

nela não acha?

— Confesso que a paisagem que vejo agora me encanta.

Lilianne o encarou. Ele a fitava com uma intensidade que a

fez esquecer o vento frio. Foi impossível conter um sorriso.

Vivia uma fantasia. Esse homem não conhecia sua verdadeira

identidade. Podia ser quem quisesse. E era apenas Lily, filha < um

agricultor pobre. O sentimento de liberdade era inebriante.

Mesmo assim, não podia esquecer quem realmente era.

— Não devia estar dizendo tais coisas, senhor.

— Mesmo que sejam verdadeiras?

— Especialmente nesse caso.

— Bem, vejamos... Não podemos falar sobre seu pai. Nem

sobre seus sete irmãos. Não posso elogiar sua beleza. O que me

resta?

— Você?

— Um assunto interessante, sem dúvida, mas que não

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

devemos explorar.

— Tem razão. Não que eu tenha tentado...

— Descobrir quem sou?

— Sim. Quero dizer, não. Não estava.

— Não a acusei de nada.

— Então... sobre o que falaremos?

— Sobre a lua. As estrelas. O sol.

— Assuntos superficiais.

— Certamente. Mas você parece sentir frio, Lily. Não devia

retê-la aqui.

— Não, eu... estou bem. Realmente.

Mesmo assim, ele a abraçou e envolveu com sua capa. Devia

protestar, mas não se sentia capaz disso. Não conseguia

pronunciar as palavras. Estava tremendo, abalada, e precisou

segurar-se nos ombros fortes para não cair.

O gesto foi o incentivo de que ele precisava.

— Pensei muito em você, Lily. E não me diga que eu não

devia dizer isso. — Sabia que não devia nem estar ali, mas tudo era

mais forte que ele.

Sem tentar resistir ao impulso, Padraic beijou-a.

Lilianne correspondia ao beijo e queria mais. Muito mais.

Nada em seu passado a preparara para a experiência inebriante, e

ela nem pensava em resistir.

E de repente, tudo acabou. O Rebelde recuou um passo,

segurando-a pelos ombros. Impedindo uma reaproximação.

Estava perdendo o juízo? Padraic respirou fundo, tentando re-

cuperar a razão. A mulher diante dele não era filha de um colono,

nem uma criada da taverna. Aquela era a viúva de seu pai! Uma

inglesa cujo pai havia jurado levá-lo à forca. Beijá-la... tocá-la era a

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última coisa que devia estar fazendo. Mas a tentação era grande.

Muito grande.

— Devo estar louco. E você também.

— Sim, sim, é claro. Tem razão. Eu não... — Uma mistura de

choque, temor e vergonha a impediram de prosseguir.

Padraic não tentou detê-la quando ela se afastou correndo.

Perturbado, aproveitou esse momento para desaparecer na noite

escura.

Lilianne parou depois de alguns instantes, tentando recuperar

o fôlego. O que estava fazendo?

O primeiro encontro com o Rebelde fora acidental, mas hoje...

Soubera exatamente o que esperava quando deixara sua cama

para ir ao penhasco. A esperança de revê-lo a levara para fora do

castelo na calada da noite. E ansiara pelo beijo, pelo toque

daquelas mãos.

Não podia mais se expor dessa maneira. Nunca mais. E essa

certeza fazia pesar seu coração encantado.

Temia estar apaixonada por aquele que todos chamavam de

Rebelde.

— O amor o transformou numa velha.

— Não me venha com essa, Paddy. É você quem está em

discussão aqui. Alison não tem nada a ver com isso — Coyle

protestou com firmeza.

Havia entrado no quarto do amigo cerca de quinze minutos

antes usando o túnel secreto. Padraic lamentou ter ensinado esse

caminho ao companheiro de aventuras. Desde esse dia, nunca

mais conseguira dormir em paz.

— Tem razão, não sei mais o que estou pensando —

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

confessou resignado. — Não quis desrespeitar sua esposa. Longe

disso.

— Eu sei disso. Caso contrário, já o teria esmurrado.

Os dois riram. Sabiam que jamais haveria qualquer tipo de

embate entre eles.

Padraic reconhecia que Coyle estava certo em chamá-lo à

razão. Era um idiota por arriscar tudo por um encontro clandestino

no penhasco. Sabia disso, e em nenhum momento planejara

informar o amigo sobre sua aventura, mas... Coyle era astuto e

observador. E sabia como arrancar as informações que julgava

necessárias.

O dinheiro roubado de Edwin havia sido a primeira pista. O

que fora feito dele? Padraic entregara as duas bolsas que deveriam

ser repartidas entre os pobres. E, sem pensar, mencionara a

terceira como Lilianne havia tentado devolvê-la na noite anterior.

— Ontem à noite? Você a viu novamente ontem à noite?

Padraic revelara tudo sobre o encontro, provavelmente por

estar acordando de um sonho muito doce e quente. Não tivera

nenhuma chance de defesa.

— Tem certeza de que ela não o reconheceu?

— Sim, eu tenho. — Padraic prendeu os cabelos com uma tira

de couro e colocou a horrível peruca empoada. A metamorfose

começava. Sabia o que Lilianne pensava sobre lorde Dunlanoe. I la

nunca o confundiria com o ousado Rebelde. — Ela jamais vai

imaginar que o Rebelde e lorde Dunlanoe são o mesmo homem.

— Ótimo. Não...?

— Sim, é claro. Não tenho intenções de me deixar arrastar

para a forca. Deve ser muito... desconfortável.

— Mas...?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Mas o quê? Do que está falando?

— É você quem deve me dizer. Sinto uma certa hesitação de

sua parte.

— Não tenho idéia do que pode significar esse seu

comentário.

— Não? Paddy, está sentindo alguma coisa por essa mulher?

— Você perdeu o juízo? Ela é viúva de meu pai! E é filha de

um lorde inglês, um homem que jurou capturar-me e enforcar-me.

— Padraic sentou-se ao toucador para empoar o rosto. A nuvem de

pó provocou um ataque de tosse que atraiu a presença de Shamus

ao quarto.

— O que está acontecendo aqui?

— Maldição! Um homem não tem privacidade em seus

aposentos?

— Ei, não tenho culpa se ficou até tarde sobre o penhasco

cortejando uma mulher — Coyle respondeu ofendido.

Shamus olhou para os dois com surpresa e curiosidade.

Padraic decidiu que, se tivesse dois ou três anos, talvez

pudesse lembrar por que Coyle era seu melhor amigo.

Shamus arrancou da mão de seu senhor a esponja com pó.

— O que está tentando fazer? Sufocar-se? Por favor, deixe

isso comigo, sim? E que história é essa sobre ter ido encontrar uma

mulher ontem à noite?

— Pelo amor de Deus, parem de me interrogar como se eu

fosse um garoto! E você, Coyle, o que veio fazer aqui?

— Esse seu mau humor, Paddy... — Shamus interferiu.—

Deve ser a dor na perna. Por que não pede a lady Lilianne que dê

uma olhada no ferimento?

— Ninguém vai me submeter a encantamentos.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— A menos que ela já o tenha encantado.

— Pare com isso!

— Parar com o quê?

— Ah, esqueça... — Lilianne, ou Lily... Enfim, ninguém havia

lançado encantamento algum sobre ele. Primeiro, porque ela não

era bruxa ou fada, nem tinha qualquer poder mágico como suge-

riam todas as pessoas por ali. E segundo, porque... Ah, porque não

estava apaixonado. — E então, não vai me dizer por que veio?

Coyle balançou a cabeça.

— Não trago boas notícias. Estão dizendo no vilarejo que sir

Edwin enviou um mensageiro a Dublin.

— E daí?

— Ele solicita a presença de tropas britânicas na área.

— Já aconteceu antes — Padraic respondeu, apesar da

evidência preocupação em seus olhos.

— Sim, mas parece que, dessa vez, sir Edwin solicita alguém

especial no comando das tropas.

— Quem?

— Não ouvi nenhum homem, mas parece que o homem esta

confiante demais. Bem... Acho que devemos recuar.

— Está sugerindo que o Rebelde saia de cena? Não podemos

fugir assustados cada vez que alguém ameaça capturar-nos!

— E também não podemos andar por aí correndo riscos

inúteis.

— Ah... E a escuna? Já foi descarregada?

— Sim, conseguimos levar toda a mercadoria para as

cavernas. Paddy, não quero que pense que sou ingrato ou...

— Não precisa se justificar, Coyle.

— Mas é você quem arrisca a vida e... vive essa mentira.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic levantou-se para vestir a casaca coberta de rendas e

passamanarias. Sentia-se ridículo. Antes até apreciava personificar

o lorde ultrajante e exagerado. Era uma diversão. Mas depois da

morte do pai e da chegada de Lilianne ao castelo, tudo perderá a

graça. Não gostava de ver a repulsa no olhar dela.

De qualquer maneira, não podia simplesmente interromper as

atividades do Rebelde. Ainda havia muito a ser feito. Muitos

irlandeses mal conseguiam alimentar e vestir seus filhos.

— O Rebelde vai continuar agindo, mas creio que deva ir

buscar suas vítimas em locais mais distantes.

— Vai deixar sir Edwin em paz? — quis saber Coyle.

— Não sei se será possível.

— Mas...

— Acredito que ele está ligado à morte de meu pai. E

pretendo descobrir se minhas suspeitas são verdadeiras.

— Como?

— Não sei. Mas, se confirmar minha desconfiança, pretendo

matá-lo. E agora, se me dão licença, ofereci-me para conduzir

minha querida madrasta a Kilroyne.

Um dia inteiro com lorde Dunlanoe. Lilianne não sabia se

poderia suportar. Mas era preciso. Havia sido gentileza dele sugerir

a excursão ao vilarejo, embora, francamente, não pudesse entender

suas razões para tal feito.

Ele não parecia apreciar sua companhia. Não aceitara com

alegria seu casamento com Oliver. Por outro lado, também não a

expulsara do castelo. Não a obrigara a voltar à casa do pai. E, mais

importante, nunca comentara a cura que realizara em sua

propriedade.

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Ainda não.

Em resumo, seria capaz de sobreviver ao dia na companhia

do enteado. E se alguma coisa a aborrecesse, deixaria as

lembranças distraírem seus pensamentos. Recordaria o calor dos

braços Rebelde, a paixão de seus beijos, e assim tornaria o dia

muito m agradável.

— Ah, aí está você, Lilianne, querida. Ela forçou um sorriso e

virou-se para cumprimentar lorde Dunlanoe. Mas, em sua

imaginação, pensava estar diante do Rebel

— Não vejo nada de interessante aqui. Lilianne olhou pela

janela da carruagem.

— Não mesmo, lorde Dunlanoe? Considero o vilarejo mui

charmoso.

— Charmoso? — Precisava disfarçar sua satisfação. Sempre

havia apreciado Kilroyne com suas casas simples de pescadores

suas ruas movimentadas, mas não podia revelar suas verdadeira

preferências. — Não se compara a Londres. — Um lugar sujo

enfumaçado e barulhento que detestava.

— Não gosto muito de Londres.

— Por quê?

— Bem, talvez porque Londres também não gostou muito

mim.

O cocheiro parou a carruagem na principal rua de Kilroyne.

Padraic esperou que a escada fosse baixada e desceu, estendendo

a mão para ajudá-la, esquecendo-se de que lorde Dunlanoe jamais

faria tal coisa. Para compensar o deslize, ele se afastou assim que

a viu segura em solo firme, levando ao rosto um lenço de renda

perfumada.

— Peixe... — A palavra sugeria desdém.

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— É assim que os habitantes ganham a vida?

— Atualmente, sim. Kilroyne já foi um porto importante.

— O que aconteceu?

Padraic quase disse que os ingleses é que haviam

acontecido, mas deteve-se a tempo. O comentário não seria bem

recebido. Não que não fosse verdade. As Leis Penais haviam

estrangulado a indústria da lã, antes tão lucrativa. Agora, os

vilarejos tinham de tirar o sustento do mar.

— Não sei ao certo — mentiu. — E isto nem é uma cidade,

como pode ver.

Lilianne não concordava com o lorde. O lugar não era

luxuoso, certamente, mas tinha seus encantos. Crianças brincavam,

mulheres com as cabeças cobertas por lenços vendiam o peixe

pescado por seus maridos, e havia lojas, uma cafeteria e uma

hospedaria.

A área onde estavam abrigava casas espaçosas, embora

menores que as de seu pai. Mesmo assim, não podia dizer que o

vilarejo fosse miserável. O que faltava em indústria sobrava em

belezas naturais.

Encantador.

Lilianne lamentava que lorde Dunlanoe não pudesse ver o vi-

larejo dessa maneira. Eles caminhavam pela rua principal, quando

Lilianne notou um grupo de habitantes reunidos alguns passos à

frente deles. Todos olhavam na direção dos dois, e alguns falavam

com certa veemência.

— Lorde Dunlanoe...

— Sim? — Ele a encarou e estranhou sua palidez. O que

poderia incomodá-la tanto? — Lily?

— Senhor, aquelas pessoas... — Estava muito perturbada,

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

mas não sabia explicar o motivo de sua agitação.

— O que foi? Está preocupada com aquela gente? Ora, são

só pescadores e pastores inofensivos. Veja... — Ele se adiantou um

passo. — Vão cuidar de seus assuntos! — ordenou. — Agora!

Era como se nem o vissem. Todos olhavam para Lilianne, e

de um jeito que despertava nele o impulso de protegê-la.

— É verdade o que estão dizendo? — indagou uma das

mulheres do grupo, Moyia Dooley.

— Estou dizendo que vi tudo com meus próprios olhos! O

menino morria, e ela o curou — afirmou um homem.

Padraic reconheceu o genro da sra. Ferguson.

—É verdade?—Moyia insistiu. — Devolveu a vida ao menino?

— Sim — os outros confirmaram em uníssono.

— Queremos a verdade.

— Sim, desejamos saber se tem o poder de curar, como

dizem.

Havia escárnio nos olhares daquela gente. Lilianne vira o sen-

timento no rosto do pai. Jamais o esqueceria.

Por um momento, pensou em negar o que havia feito. Afinal

de contas, era uma lady, e estava diante de meros colonos, pesca-

dores, pastores e comerciantes. Refugiaria-se no castelo e lá per-

maneceria, enquanto lorde Dunlanoe assim permitisse. Conside-

rando seus sentimentos por ela, não teria muito tempo de paz e

proteção.

Mas não se sentia capaz de mentir, apesar do que a história

lhe havia ensinado. Curar o pequeno Shawn havia sido bom. Se

queriam chamá-la de bruxa ou herege, teriam de fazê-lo

abertamente, não por suas costas.

— É verdade. Eu o curei. Mas não fui eu, realmente. Foi algo

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que fluía por mim, algo que me usou como um instrumento.

Lorde Dunlanoe estava a seu lado. Sua expressão parecia

dizer seja forte. Era ridículo, sabia, mas ela se sentia mais forte.

Erguendo os ombros, olhou para o grupo que parecia crescer.

Já havia passado pela experiência antes. Sabia o que esperar.

Mas, por mais que olhasse para aqueles rostos, não via a

censura ou a revolta de antes. Tudo que via era... aceitação.

— Tínhamos a esperança de que fosse verdade — disse a

mulher que primeiro a questionara. Ela caiu de joelhos, as mãos

estendidas para Lilianne. — Tenho uma filha de quinze anos. Ela

acorda no meio da noite com terríveis dores de cabeça, gritando

como quisesse despertar os mortos. Todos aqui já ouviram seus

gritos.

Houve um murmúrio geral de concordância, e ela olhou nova-

mente para Lilianne.

— Por favor, cure-a.

— Não sei se posso.

— Por favor! — A mulher agarrou suas mãos, um gesto que

provocou uma imediata reação de lorde Dunlanoe. Ele se aproxi-

mou em guarda.

Lilianne não precisava de um defensor, mas, se assim fosse,

não seria o efeminado lorde Dunlanoe a salvá-la de algum perigo.

— Creio que não entenda — ela disse à mulher aflita. — Não

sou capaz de controlar esse... o que quer que seja. Existem

momentos em que tento... Tento realmente curar alguém, e nada

acontece. —Ela piscou várias vezes para conter as lágrimas,

lembrando como se esforçara pela mãe. — Não tenho poder algum.

— Mas... minha pobre menina! Ninguém irá se casar com ela

por conta de sua aflição. O que vou fazer?

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— Leve-me até ela. Quem sabe...?

— Oh, é um anjo que o Céu mandou para nós!

— Não, nada disso. — Não queria ser chamada de bruxa,

mas também não desejava ser tratada como santa.

Como se não a ouvisse, a mulher seguia com sua ladainha.

— É uma Dádiva Divina, um presente dos Céus...

— Escute, talvez eu nem possa fazer nada.

Lorde Dunlanoe assumiu o controle da situação, calando

aquelas pessoas e impondo uma autoridade da qual Lilianne nunca

suspeitara.

— A mulher que tanto admiram fará o que puder para ajudá-

los, mas devem manter a calma e lembrar que o dom de lady

Lilianne, seja ele qual for, é só isso. Um dom que ela não pode

controlar. Devem respeitá-la sempre.

Por que seu pai nunca havia tentado uma ação tão simples?

Era eficiente, sem dúvida. Não havia naquela gente escárnio,

acusação ou ameaça. E tudo que lorde Dunlanoe havia feito fora

silenciá-los com palavras firmes e sensatas.

— Para onde devemos ir, sra. Dooley? Onde está sua filha?

Todos seguiram em procissão para a área mais pobre da

cidade.

A sra. Dooley ia na frente, seguida por Lilianne e lorde

Dunlanoe, e atrás do trio caminhavam dezenas de cidadãos de

Kilroyne. A atmosfera era festiva.

Quando chegaram a uma cabana perto do cais, a sra. Doyle

parou e apontou para a porta.

— É aqui.

Lilianne se aproximou da porta.

— Quer que eu a acompanhe?

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Ela sorriu para o lorde, tentando demonstrar mais confiança

do que sentia.

— Não é necessário, obrigada.

— Não devia ir com ela, Moyia? — sugeriu uma voz no grupo.

— Sim, vá com ela — reforçaram outras vozes.

Mas Moyia balançou a cabeça e ficou onde estava, deixando

Lilianne entrar sozinha na cabana.

— Se é verdade o que dizem sobre a mulher do mundo das

fadas, não devo incomodá-la.

Padraic conteve um suspiro irritado. Mundo das fadas.

Francamente.

Lilianne viu a jovem sentada ao lado do fogo no interior da

choupana pobre e escura. Ela tinha as costas inclinadas sobre tricô

que mantinha bem perto dos olhos.

Sem saber o que fazer, Lilianne ficou quieta. Não queria

assustar a menina. Ela olhou em sua direção com ar sério.

— Sua mãe me pediu para vir... por causa da dor em sua

cabeça

— É a mulher das fadas, então?

— Bem, não. Quero dizer, não realmente.

— Não dança ao luar?

— Dançar? Não!

As agulhas voltaram a se mover entre os dedos habilidosos.

— O que está fazendo?

— Um xale.

— Ah... Sua cabeça dói agora?

— Um pouco. Ela sempre dói um pouco. Mas, mais tarde... —

Ela fez uma careta que expressava mais do que muitas palavra.

— Importa-se...? Posso tocar sua cabeça? Não vou feri-la.

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— É assim que faz?

— Não sei ao certo se alguma coisa pode ser feita, mas estou

aqui para tentar.

A jovem encolheu os ombros, e Lilianne tocou-a na testa,

esperando os conhecidos sentimentos.

Nada.

Ela abriu os dedos e usou a outra mão para amparar a cabeça

da menina.

— Como é seu nome?

— Sarah.

— Sarah... Um nome tão doce! Sou Lilianne, e desejo muito

que se livre da dor. — Mas não estava funcionando. Qualquer que

tosse a mágica, ela não se fazia presente agora. Lilianne tentou se

concentrar mais, implorando aos poderes superiores que a

usassem como instrumento para a cura de Sarah.

Era horrível. Não conseguia apagar da memória a lembrança

da noite em que entrara no quarto da mãe e a vira desfalecida.

Ouvia a voz furiosa do pai ordenando que ela fizesse alguma

coisa...

A energia não estava ali. Gostaria de senti-la, mas seu

esforço era inútil.

— Lamento... — Lilianne correu para a porta e saiu. O

contraste entre o sol radiante e a penumbra no interior da cabana a

fez proteger os olhos.

— E então? — Várias pessoas perguntaram. Estavam ali

esperando, olhando...

— Curou minha Sarah?

— Eu... Eu fiz o que pude, mas, às vezes, por alguma razão,

não acontece...

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Lilianne parou de falar, percebendo que ninguém olhava para

ela. Nem mesmo lorde Dunlanoe. Seus olhos azuis pareciam fixos

em alguma coisa atrás e acima dela. Lilianne virou-se e, boquia-

berta, viu Sarah Dooley parada à porta.

— Acho... que a dor se foi, mamãe — ela anunciou hesitante.

— Não pode ser. Eu não...

Mas as pessoas não a ouviam. Todos se aglomeravam em

torno de Sarah, perguntando como ela se sentia e como havia sido

a cura.

— Não se sente bem?

A voz de lorde Dunlanoe a arrancou do estado de

perplexidade.

— Não, eu... estou bem. — Não sentia a fadiga que

normalmente seguia uma cura, mas estava muito abalada com os

acontecimentos. — Podemos retornar a Dunlanoe?

— É claro. A carruagem está na rua. Quer que eu mande

buscá-la?

— Não, obrigada. A caminhada me fará bem.

— Está muito pálida. Não vai desmaiar, vai?

Lilianne parou para encará-lo. O tom de voz brincalhão e o

sorriso genuíno e radiante não combinavam com o afetado lorde

Dunlanoe.

Maldição. Por um momento, esquecera de representar o

personagem. Podia quase ver sua mente funcionando em

velocidade acelerada, imaginando-o sem a peruca e sem o pó.

Era a mesma expressão que ela exibia quando olhava para o

Rebelde. Tinha de fazer alguma coisa para mantê-la ocupada e

apagar de sua mente o que ela pensava ter ouvido e visto.

E Padraic via a resposta se aproximando deles nesse exato

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

instante.

Alison corria pela rua e acenava.

— Ah, aí está você, lorde Dunlanoe. Quando soube de sua

presença tratei de apressar-me. Temia não chegar a tempo.

— Alison. — Ele conteve o impulso de abraçá-la. Eram amigo

há anos, uma amizade que precedera sua partida para a Inglaterra

Poucas pessoas eram mais queridas que sua antiga companheira

de infância.

Alison colocou-se entre ele e Lilianne e, segurando-os pelo

braço, disse:

— Venham tomar chá comigo.

— Ah, bem... Seu convite é irrecusável. Isto é, a menos que

minha madrasta não se sinta bem.

— Não, não, sinto-me bem melhor agora.

— Esteve enferma?

— Apenas cansada. — Lilianne conhecera Alison no dia de se

casamento com Oliver Rafferty. A jovem havia sido a única con

vidada, e simpatizara com ela desde o início. Jamais imaginar que

Alison também era amiga de lorde Dunlanoe. Pai e filho eram muito

diferentes.

— Uma xícara de chá a deixará mais forte. Não acha que elal

vai ficar mais corada, Paddy?

— Sim. — Padraic tentou adotar um tom frio e um olhar

penetrante, única forma de prevenir a doce Alison sobre seu deslize

Por que ela o tratava dessa maneira em público? Coyle não havia

contado quem era Lilianne?

O chá foi servido pelo mordomo no jardim da casa de Coyle e

Alison, em um adorável caramanchão. Coyle juntou-se ao grupo

minutos depois de terem chegado.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Tommy me contou que estava aqui, Padraic. Espero que

isso signifique...

Lilianne não pôde ouvir o que a visita significava, pois Coyle

entrou no caramanchão e, ao vê-la, silenciou-se, absolutamente

surpreso. Recuperando-se rapidamente, ele a cumprimentou com

uma mesura e agradeceu a honra de recebê-la em sua casa.

Era evidente que os dois homens eram grandes amigos. Um

relacionamento que podia ser classificado como curioso, no mínimo,

levando em conta as imensas diferenças entre eles.

E, no entanto, o laço profundo e forte era evidente. Tão

evidente quanto o amor de Coyle pela esposa, Alison, que também

parecia apreciar muito a companhia de lorde Dunlanoe.

— Há quanto tempo conhece lorde Dunlanoe? — Lilianne per-

guntou quando as duas ficaram sozinhas.

— Desde sempre, praticamente. E Coyle também.

Brincávamos juntos na infância.

O que explicava a amizade. Mesmo assim...

— Eles parecem tão diferentes!

— Não realmente. Paddy é um pouco... colorido demais,

mas... — Ela parou e balançou a cabeça. — Já mencionei como

lamento por Oliver? Todos nós o amávamos muito.

— Sim, foi uma tragédia.

— E logo depois do casamento!

— De fato.

— Lady Lilianne, sei que está muito longe de casa e conhece

poucas pessoas aqui, e quero que saiba que pode contar com a

minha amizade. — Jamais errara ao julgar um caráter. Assim,

apesar dos avisos do marido, ela decidiu tentar uma aproximação

com a viúva de Oliver Rafferty. — Sempre que precisar de alguma

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

coisa, conte comigo. Se quiser conversar... sobre qualquer coisa...

Bem, estarei aqui.

— Você fez o quê?

Alison ajeitou os travesseiros e acomodou-se melhor, olhando

para o marido com expressão perplexa.

— Não sei por que está tão incomodado. Eu não disse nada!

Acha que sou alguma estúpida?

— Não, não, é claro que não. Apenas penso que devemos

manter uma certa distância dessa mulher. Quanto mais próxima

estiver, maior será a probabilidade de ver... ou pensar que viu

alguma coisa.

— Sei que a julga uma espiã ou coisa parecida...

— Nada disso. Nunca suspeitei de que ela tenha sido

mandada para cá com esse propósito. — Essa era a idéia de

Paddy. — Mas não creio que ela seja capaz de guardar segredo,

caso descubra sobre nossas atividades.

— Mas... ela mora com Paddy!

— Uma circunstância inevitável... ou é o que pensa nosso

amigo. — Estou certa de que ela não tem nenhuma relação com a

morte de Oliver. E Paddy deve pensar como eu.

— De onde tirou toda essa certeza?

— Oh, penso que ele está apaixonado por ela. É isso.

— Apaixonado? Ficou maluca? Não sabe o que está dizendo.

— Talvez seja você o maluco, meu marido? Não notou como

ele olha para Lilianne?

— Oh, meu Deus... — Coyle sentou-se na cama e passou a

mão na cabeça.

— Isso é tão terrível assim? Quero dizer, sei que para Paddy

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

a situação é delicada, pois o amor não correspondido é

desagradável, embora romântico, e ele sabe que não pode tê-la,

mas...

— Ele sabe que lorde Dunlanoe não pode tê-la.

— Não foi o que eu disse?

— Alison, escute. Creio que fez uma boa coisa oferecendo

sua amizade a lady Lilianne. Ela precisa de ajuda. Precisa de

alguém que a aconselhe.

— Sobre Paddy?

— Sobre o Rebelde.

— O Rebelde. Por que ela precisa de mim para falar sobre

ele?

Acho melhor nem mencionarmos esse assunto, Coyle. Sei

que já decidimos que ela não é uma espiã, mas...

— Ele a encontra à noite... no penhasco.

— Quem a encontra? Não entendo... — Alison cobriu a boca

com uma das mãos. — O Rebelde!

Coyle fechou os olhos e deitou-se lentamente.

— Sim — confirmou.

— Deus nos ajude!

Ele respirou fundo e assentiu.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

CAPÍTULO IV

— Você não curou aquela menina... curou? Lilianne olhou

para lorde Dunlanoe, tentando decidir como responderia à pergunta.

Era noite, e estavam no salão do castelo depois da agradável

visita à casa de Alison. O silêncio na viagem de volta a deixara

nervosa. Mesmo assim, cada instante sem nenhuma menção à

cena no vilarejo a enchera de esperança sobre uma eventual saída

fácil sem nenhum questionamento.

Devia saber que tal esperança era vã.

— Vi sua expressão quando ela surgiu na rua. Ficou surpresa

com as palavras da jovem — Padraic continuou.

Ela se levantou para ir até a janela. Por que se sentia tão

atraída pela lua, afinal? Não... Não era a lua que a encantava. Não

era por ela que olhava para a noite. Para o penhasco.

— De fato, fiquei surpresa.

— Devia tentar esconder melhor suas emoções.

— O quê? — Ela o encarou e foi invadida pelo pânico. Por

que ele a fitava como se pudesse ler seus pensamentos, como se já

soubesse sobre seu interesse pelo Rebelde?

Resignada, ela foi se sentar diante do lorde. Essas noites

eram insuportáveis, mas sentia que sua presença era necessária, e

temia tomar qualquer atitude que pudesse levá-lo a reconsiderar

sua decisão de deixá-la ficar.

Devia ter pensando nisso antes de ir à casa de Moyia Dooley.

— Certamente, deve entender por que é imperativo que de-

monstre confiança em seus poderes de cura.

— Eu... não entendo o que quer dizer.

— Ilusão, minha cara Lilianne. Muito do que fazemos depende

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

disso. Como vai convencer as pessoas de sua capacidade de curar,

se nem você mesma acredita nela?

— Lorde Dunlanoe, não é minha intenção induzir as pessoas

a acreditarem nisso.

— Não?

— Pelo contrário. Nunca afirmei ter poderes além do que é

considerado normal.

— Mas eu estava lá quando todos elogiavam sua habilidade.

— Não ouvi nenhum elogio.

— Então, não estava prestando atenção.

— Peço desculpas, lorde Dunlanoe, por qualquer embaraço

que possa ter sofrido com os eventos de hoje à tarde.

Compreendo...

— Embaraço? Engana-se quanto aos motivos que me levam

a abordar esse assunto.

— E que motivos são esses?

— Entretenimento. Esclarecimento. Simples conversa.

— Entretenimento... seu ou meu?

Ele sorriu, e pela segunda vez naquele dia, Lilianne se

espantou com a beleza daquela boca. Por que ele a escondia sob

tanto rouge?

— Creio que nós dois podemos ser beneficiados por essa dis-

cussão.

— Não entendo como. — No passado, sempre que seu pai

tentava discutir o assunto com ela, era para enfatizar o constrangi-

mento e o prejuízo que a família sofria por conta dessas suas

ações.

— Não precisa se mostrar tão devastada, lady Lilianne.

Saberei guardar seu pequeno segredo.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Duvido que seja possível. Muitas pessoas viram o que

aconteceu hoje.

— Ah, mas aquelas pessoas acreditam no que viram. Não

está preocupada com elas.

— Ah, sim... entendo. Mas você não crê no que viu.

— Nem você.

O homem era cínico. Mesmo assim, depois de anos de

silêncio, era intrigante poder discutir essa questão com alguém que

a deixava falar e ouvia o que tinha para dizer.

— Tem razão, certamente. Não curei aquela menina.

— Admiro sua honestidade. Mesmo assim, insisto na necessi-

dade de ser mais convincente. Por sorte, todos estavam tão admi-

rados com o "milagre", que não notaram sua incredulidade.

— Mas isso nunca aconteceu antes. Sim, houve momentos...

— Ela respirou fundo. — Infelizmente, houve ocasiões em que

fracassei. Mas foi sempre muito óbvio. Quero dizer, ou a pessoa é

curada, ou não é. E dessa vez...

— Espere um minuto. O que está dizendo, lady Lilianne?

— Apenas concordo com você. Não fiz nada com aquela

jovem. Não houve cura... não que eu tenha precipitado, pelo menos.

Talvez tenha acontecido algo diferente, mas não sei dizer o quê.

— E a criança? O neto da sra. Ferguson? Admite que aquilo

também foi uma farsa?

— Oh, não! Aquilo foi diferente.

—- Uma cura?

Era bom poder dizer:

— Sim.

— Lady...

— Não acredita, não é? Sua perna, por exemplo.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— O que tem ela?

— Como a feriu?

— Foi um acidente. Quando eu era jovem... na Inglaterra.

— E a dor é grande, mesmo depois de tanto tempo.

— Não, milady. Praticamente nem a percebo mais — Padraic

mentiu, censurando-se por não ter sido capaz de esconder seu

desconforto.

— Acho que posso curá-la.

A gargalhada incrédula cortou o ar.

— Como curou aquela jovem hoje, presumo. Vai pôr a idéia

na minha cabeça e esperar que eu proclame o milagre?

— Não. Acredito realmente que posso ajudá-lo, se me deixar

tentar. Preciso... tocá-lo.

Padraic levantou-se de um salto e quase derrubou o divã. Não

sabia o que o impelira a agir de tal maneira, mas era evidente que o

gesto a assustara... e insultara.

— Escute, não é que eu não... Não há nada errado com

minha perna. Não desperdice seus talentos comigo.

Em resumo, ele não queria que o tocasse. Ou queria muito

que ela o tocasse. Porque, nesse momento, vendo a dignidade

ofendida no olhar cintilante de lady Lilianne, Padraic sentiu um

imenso desejo de abraçá-la.

E esse seria um grande erro.

— Que desculpa patética! — Lilianne protestou em voz alta,

ajeitando o xale sobre os ombros.

Incapaz de resistir ao chamado da noite, voltara ao alto do pe-

nhasco, de onde sentia o ar salgado do mar trazendo o aroma de

lugares distantes.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Era sempre assim. Jurava nunca mais voltar ao rochedo, mas

era despertada no meio da noite e não podia se conter.

Dessa vez nem podia culpar o pesadelo, porque estivera dor-

mindo profundamente. Mas lá estava ela. Acordada, atenta à es-

curidão, ouvidos aguçados, tentando identificar o som de cascos

contra o solo.

Para tentar convencer-se de que não esperava pelo Rebelde,

ela recordou sua conversa com lorde Dunlanoe. Estranho. Na maior

parte do tempo, ele era uma pessoa difícil de se apreciar. A

amizade com sir Edwin, suas maneiras e sua aparência... Mas, em

outros momentos, suas idéias eram inovadoras, refrescantes.

O fato de ele não acreditar em suas curas não a incomodava.

Ela mesma teria recusado a idéia, se não fizesse parte dela. O que

a surpreendia era sua prontidão para aceitar que ela fingia curar as

pessoas. Quase como se tudo não passasse de uma grande piada.

Lily balançou a cabeça e olhou em volta. O céu parecia

clarear. Com um suspiro resignado e a promessa de nunca mais

voltar ao penhasco, Lilianne retornou ao castelo.

Padraic a vira sair. Só com grande esforço havia contido o

impulso de realizar a metamorfose e segui-la. Podia fechar os olhos

e imaginá-la em pé, com os cabelos ao vento, esperando por ele,

Lilianne sorriria ao vê-lo chegar, o rosto iluminado por uma re-

pentina alegria. E ele a beijaria.

Padraic esmurrou a janela. Em que estava pensando? Tinha

de tirar Lilianne Rafferty da cabeça. Ela era a viúva de seu pai. Filha

de um inimigo jurado. E uma ameaça para ele mesmo e todos a

quem amava. Por que não conseguia se lembrar disso? Por que se

sentia tão fascinado por aqueles olhos verdes?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Maldição! Se fosse menos sensato, acreditaria no que

Shamus dissera sobre ela pertencer ao mundo das fadas. Nesse

caso, julgaria estar enfeitiçado.

— Ridículo — ele resmungou. O relógio sobre a lareira

marcava cinco horas. Sua perna doía, e ele se sentia cansado.

Mesmo assim, esperou até ver Lilianne retornando ao castelo,

e só então foi para a cama.

— Ajude-me! Ajude-me, por favor!

Lilianne ergueu os olhos da linda rosa amarela que acabara

de colher e viu a menina correndo em sua direção. Com doze anos,

mais ou menos, cabelos vermelhos e pele muito pálida, ela se apro-

ximava arfante.

— Por favor, ajude-me! Minha mãe está dando à luz, mas o

bebê não nasce. Cullie pede sua ajuda.

— Quem é Cullie?

— A parteira. — A voz de lorde Dunlanoe anunciou sua pre-

sença. — Se Cullie já está com sua mãe, tudo vai ficar bem. É

melhor voltar para casa.

— Não! Não! Cullie disse que o bebê não virá. Os dois

morrerão. Foi o que ela disse. Sua ajuda é necessária, milady!

— Onde está sua mãe?

— Em nossa choupana. Fica perto daqui, senhora. Venha

comigo.

— Lily... Não creio que deva sair correndo dessa maneira.

— É necessário, milorde. Ouviu o que disse a menina. A mãe

dela pode morrer.

Dedos fortes seguraram seu braço. Sem pensar no que fazia,

ele a conduziu para um canto mais afastado do jardim e baixou a

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

voz.

— Dessa vez não vai poder fingir, Lilianne.

— Eu sei disso. Solte meu braço, por favor.

— Em um minuto. Antes quero que pense no que vai fazer.

— Já pensei.

— Lilianne, escute, não vai conseguir curar pela sugestão.

Não dessa vez. E se essa mulher morrer... Por favor, deixe Cullie

cuidar disso.

— Está me proibindo de ir? Porque, nesse caso...

— Não estou impondo nenhuma proibição. Estou apenas

tentando protegê-la.

— Lamento, mas não posso pensar em mim agora, porque

estou pensando naquela pobre mulher... uma de suas colonas. Não

se preocupa com essa gente? São sua responsabilidade, e parece

que... — Ela se deteve. Correr para ajudar alguém era uma coisa.

Criticar o homem que garantia um teto sobre sua cabeça era outra.

Especialmente porque, em sã consciência, sabia que ele não

merecia essa crítica. Pelo que vira até então, lorde Dunlanoe

tratava seus colonos melhor do que muitos latifundiários que

conhecia.

Ele a soltou, e Lilianne voltou para perto da menina que ainda

a esperava. Padraic virou-se para Shamus, que assistira à cena de

seu esconderijo entre as árvores.

— Mande uma carruagem à casa dos Healy. Essa menina é

filha de Connor Healy. Não é?

— Sim, Paddy.

— Mande levar toalhas, lençóis... Tudo que pode ser

necessário em um parto.

— Não acha que eu devia mandar um médico, também?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Não sei... Sim, mande chamá-lo. Essa mulher vai se meter

numa confusão dos diabos!

— Não tenha tanta certeza, Paddy.

— O que está dizendo?

— Talvez ela cure a sra. Healy. Sabe-se que já fez outras

curas antes.

Padraic balançou a cabeça e afastou-se. Shamus chamou-o.

— Devia deixá-la tentar alguma coisa com sua perna, Paddy.

Anda mancando demais, ultimamente.

— Ela não vai tocar em meu Príncipe. Isso é certo, Shamus.

Estou muito bem. Agora vá providenciar o coche.

A choupana era parecida com a primeira que Lilianne visitara.

Simples, feita de barro e sapé, era cercada por flores coloridas e

cabras que pastavam no terreno fértil. Tudo ali era verde, calmo,

pacato... A única nota dissonante vinha dos gritos angustiados no

interior da cabana.

Lilianne sugeriu que a menina ficasse do lado de fora. Preferia

poupá-la da cena que antecipava do outro lado da porta.

No interior dominado pela penumbra, uma mulher gemia e se

contorcia na cama, o ventre distendido coberto por um lençol. Havia

outra mulher debruçada sobre ela, mas esta se virou ao ouvir a voz

da recém-chegada.

— Ela está... melhor?

— Não há mais nada que eu possa fazer — lamentou a

parteira, mostrando as mãos cobertas de sangue.

Havia sangue no lençol, também. Lorde Dunlanoe estava

certo. Só havia duas alternativas ali a cura... ou a morte.

— O que está havendo?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Ela está sangrando. Vai morrer.

— Como ela se chama? — Ela pousou as duas mãos sobre o

ventre arredondado, rígido, e sentiu as contrações violentas.

— Mary — disse a parteira.

—Mary... Vim ajudá-la. — E esperava estar dizendo a

verdade. Os dedos abertos pareciam mais quentes. Lágrimas de

alegria inundaram seus olhos, pois sabia qual era o significado

desse calor.

Cullie a observava com atenção, os olhos treinados fixos nas

mãos da recém-chegada que, de olhos fechados, rezava para servir

de instrumento para um milagre de Deus.

Padraic tentava concentrar-se na tarefa de inventariar os bens

contrabandeados, mas mal podia ouvir a voz de Coyle recitando a

relação que ele devia redigir. Não conseguia esquecer Lilianne e o

que ela estava fazendo nesse momento. Depois de sua partida, ele

se obrigou a seguir os planos originais. Em seu quarto, removera a

horrível pintura do rosto, tirara a peruca e descera pelo túnel

secreto até a caverna onde ficavam as mercadorias. Tinha de con-

cluir o inventário para distribuí-las entre os comerciantes.

Normalmente, essa era uma tarefa que ele apreciava. Era

bom saber que estava fazendo algo de bom à população da região.

— Dezessete barris de carne salgada. Está ouvindo, Paddy?

— Sim, estou! Dezessete barris. Não precisa gritar.

— Não parece estar muito concentrado no trabalho.

— Tem idéia de onde ela está agora?

— Ela? Refere-se a lady Lilianne, por certo?

— É claro que sim! Quem mais?

— Não imagino onde ela está. Mas Alison gosta dela.

— Lilianne foi ajudar num parto.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Mary já está dando à luz?

— Sim, e parece que as coisas não vão nada bem por lá. De

acordo com Cullie, mãe e filho estão bem perto da morte.

— E Lilianne foi salvá-la.

— Sim. E não se atreva a rir.

— É claro que não vou rir! A pobre mulher está morrendo!

Mas, com Lilianne a caminho, talvez ela ainda tenha uma chance...

— Pelo amor de Deus, Coyle! Ela não pode fazer nada.

— As pessoas do vilarejo acreditam que pode. Todos estão

comentando como ela curou Sarah. Eu mesmo fiquei impres-

sionado.

— Não fique. Isso não aconteceu.

Coyle riu.

— Não vai conseguir convencer Sarah ou a mãe dela disso,

meu caro. Elas estavam lá. E viram...

— Viram o que queriam ver.

— Paddy, não pode desmentir que a jovem esteja curada.

— Lilianne me contou que não houve cura.

— Ela disse isso? É difícil de acreditar...

Padraic pensava diferente, mas não disse nada. Irritado,

levantou-se e caminhou até a escada estreita que ligava a caverna

ao túnel e a seu quarto. Nem respondeu quando, intrigado, Coyle

perguntou para onde ele ia.

Não queria confessar seu destino.

Aborrecido por ter enviado Shamus com a carruagem,

colocou-se diante do espelho e tentou repetir tudo que ele fazia com

pó e rouge. O resultado parecia grotesco, mas sua imagem de lorde

Dunlanoe não estava muito distante daquela caricatura colorida.

Vestido como o lorde, ele saiu sem olhar para trás, usando a

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

escada principal.

A bordo de uma carruagem de aluguel, Padraic reconheceu

que não tinha um plano. Pretendia apenas tirá-la de lá, levá-la de

volta ao castelo, salvá-la da ira das pessoas que ela estava

tentando ajudar... ou que fingia ajudar.

A porta da choupana estava aberta, e ele entrou sem bater. Já

estava no interior da humilde casa quando, intrigado, ouviu um som

fraco, hesitante...

Um choro!

Ele não parecia nada bem.

Padraic ergueu a taça de vinho e imaginou se o estilo de vida

de Edwin finalmente começara a debilitá-lo.

O homem perdera peso, o que não devia acontecer com

alguém tão magro, e apesar da elegante jaqueta, parecia emaciado.

— Aonde vai?

O tom angustiado deteve Padraic. Edwin chegava em sua

casa vindo diretamente de uma noite de devassidão e álcool? As

sombras escuras em torno de seus olhos sugeriam que sim.

Padraic chamou um serviçal valendo-se da corda do sino.

— Pensei que poderia estar com fome — disse.

— Não, não... Não consigo manter a comida no estômago...

Devo estar com algum problema digestivo.

— Se tem certeza... —Padraic sentou-se, decidindo não

chamar Lilianne para juntar-se a eles no salão. Preferia não expor a

doce dama aos vícios de Edwin.

O que era irônico, considerando a razão para a visita de

Edwin... ou uma das razões.

— Recebi uma mensagem do pai de Lilianne.

— Lorde Tinsley?

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— Sim — Edwin sorriu. — Naturalmente, ele deseja saber o

que aconteceu.

— Era de se esperar. Sobre o que ele quer saber,

exatamente?

— Como deve saber, lady Lilianne Tinsley veio a Winston Hall

para ser minha noiva.

— Mas como...?

— Como ela acabou casada com seu pai? Devia ir fazer essa

pergunta à querida lady.

— Não tem nenhuma idéia?

— Conjecturas, apenas. E não tem importância.

— Mesmo assim, conte-me. O que acha que aconteceu?

— Creio que ela foi raptada.

— Está sugerindo que meu pai...?

Edwin encolheu os ombros magros.

— Não acha que a dama em questão teria dito alguma coisa,

nesse caso?

— Não sei. Está afirmando que ela não disse nada?

— Nem uma única palavra — Padraic confirmou. — Podemos

chamá-la, se quiser. E interrogá-la.

— Não.

— Não?

— Não precisamos envolvê-la nisso. Trata-se de um assunto

entre homens. Seu pai, você e eu.

Padraic examinou as unhas, ajeitou os punhos de renda e

forçou um suspiro.

— Receio não ter captado em que parte dessa história eu me

enquadro.

— Ela está morando em sua casa. Sob sua proteção, em

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

última análise.

— Não por minha escolha.

— Exatamente. A megera foi imposta ao seu castelo.

— O que não quer dizer que eu não tenha responsabilidades

por ela.

— É claro que não — Edwin concordou apressado. — Afinal,

ela é uma dama, e como tal merece respeito de todos nós. No

entanto...

— No entanto?

— Ela é só uma mulher. Por isso não pode saber o que é

melhor para si mesma.

— E é aí que entramos? O pai dela, você e minha humilde

pessoa?

— Exatamente. — Edwin serviu mais vinho em sua taça, der-

rubando um pouco da bebida sobre a mesa.

— Ela parece contente aqui.

— O quê...? Oh... Contente, talvez. Ninguém questiona sua

exemplar hospitalidade. Mas é isso que o pai dela deseja?

— Imagino que você não acredite nisso.

— Eu sei que não. Tenho a mensagem para provar o que

digo. Lady Lilianne deveria ter se casado comigo.

— Sim, mas desposou meu pai.

— Foi um engano. Uma pequena confusão que não devia ter

ocorrido. Certamente pode entender...

— Sim, sim, eu posso. Uma tolice que não pode ser

explicada. Algo que você gostaria de poder modificar.

— Exatamente. E posso, por sorte.

— Ah, sim? — Padraic forçou um sorriso cordial. Afinal, eram

amigos tentando ajudar um ao outro.

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— Certamente.

— Conte com meu apoio.

— Otimo! Quando posso esperar Lilianne em Winston Hall?

— Não a reterei um momento além do necessário.

— Sabia que seria compreensivo. Quando devo esperá-la?

— Vejamos... Maio, talvez.

— Maio. Excelente. Terei um quarto... Maio? — Edwin ficou

sério. — Mas já estamos em junho!

— Oh, sim! Vê como o tempo passa depressa?

— Mas...

— Não pode estar esperando que ela parta imediatamente!

— Bem, eu...

— Ela está de luto, Edwin.

— Sim, mas certamente... Bem, o casamento foi tão breve!

Seu pai mal teve tempo para... Escute, não posso esperar tanto

tempo para tê-la.

—Edwin, controle-se. Sei que lady Lilianne é encantadora,

mas pode ter a mulher que desejar. — Uma terrível mentira, nas cir-

cunstâncias em que se encontravam. Padraic não conseguia ima-

ginar uma única mulher capaz de desejar um homem com a

aparência que Edwin exibia agora. Mas ele tinha dinheiro... e

posição.

— Mas eu quero Lilianne.

— E a terá. Só precisa esperar um pouco.

Sabia que a história ainda não havia chegado ao fim, mas foi

com um sorriso satisfeito que ele viu a carruagem de sir Edwin

desaparecer na estrada de terra. O sorriso ainda iluminava seu

rosto quando ele se virou... e viu Lilianne.

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— Receio que tenha perdido a visita de sir Edwin, milady.

— Lástima...

— Ele a quer de volta.

— Não sei o que quer dizer. — Não podia demonstrar pânico.

— Não? Edwin se mostrou aborrecido por ter sido preterido.

— A culpa é unicamente dele.

— Ah, então foram mesmo noivos. O que aconteceu? Uma

discussão entre amantes?

Padraic odiava causar tão grande desconforto a Lilianne, mas,

para descobrir se Edwin estava ou não envolvido na morte de seu

pai, precisava de respostas.

— Ele pode ser... desagradável.

— Não, o senhor que é desagradável. Quanto a sir Edwin, ele

é um verme da pior espécie.

— Julga-me desagradável?

— Às vezes — Lilianne admitiu, surpresa com o brilho de seu

sorriso.

— Suponho que não possa esperar mais do que isso.

— O que me surpreende é que minha opinião seja tão

importante.

— Agora me insulta, senhora. Por que não me importaria com

a opinião de minha madrasta?

— Senhor, francamente! — ela riu. — Se até questionou meu

casamento com seu pai quando nos conhecemos!

— Mas acreditei em você.

— De fato...

— E me neguei a atender ao pedido de Edwin.

Lilianne encarou-o surpresa.

— Cometi um erro, milady? Talvez prefira ir para Winston

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Hall...

— Não! Prefiro ficar aqui.

— Ele tem uma mensagem enviada por seu pai.

— Ah, uma mensagem... Milorde a viu?

— Não. Duvida da existência desse papel?

— Suponho que seja possível. Não escreveu para meu pai,

também?

— Não. Milady disse que não seria necessário, lembra?

Lado a lado, eles deixaram a casa para caminharem pelo

jardim, mas Padraic se perguntava se ela tinha consciência da

direção adorada por seus passos.

Devia voltar, mas a mesma força o mantinha em movimento.

Caminhavam em silêncio, aspirando o perfume das rosas e do ar

salgado.

A subida do penhasco tornou-se mais íngreme, e a perna dele

reclamou do esforço. Lorde Dunlanoe não devia estar ali. Não com

lady Lilianne.

Ela ergueu o rosto para o céu e respirou fundo.

— Foi mesmo noiva de Edwin, então?

— Isso importa?

— Imagino que tenha sido importante para meu pai.

— Não foi. O que mais sir Edwin disse em sua visita?

— Ele afirma que seu pai deseja seu retorno a Winston Hall.

— E você disse não? Por que não? — Era surpreendente.

— Eu disse que você podia ficar. E sou um homem de

palavra. Mas...

— Mas?

— Você é uma mulher de mistérios, Lilianne.

— Não. — De repente, sentia-se perturbada na presença de

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lorde Dunlanoe. Ele parecia diferente, como se... Era estranho.

Havia algo de familiar nele. E atraente. Como, se seus

maneirismos efeminados a repeliam? — Sim, fomos noivos —

disse, optando pela honestidade. — Nosso casamento deveria ter

acontecido em... — Que dia é hoje?

— Doze de junho.

— Há quinze dias.

— Mas você se casou com meu pai. Um homem que nem

conhecia.

— Sim, mas eu conhecia o sr. Edwin... seu amigo.

O tom de repugnância não o surpreendia. Sabia que Edwin

era um homem de excessos e perversões. Muitas de suas atitudes

o enojavam, mas Edwin sempre encontrava mulheres que

partilhavam de suas preferências. Padraic imaginava-o controlado o

bastante para manter sua devassidão restrita a outras mulheres,

longe daquela que teria sido sua esposa.

Padraic fitou-a e viu a inocência em seu rosto. E ansiou pela

noite que escondia pensamentos feios, que protegia mistérios...

Desejou a lua e a capa preta sob a qual podia agir como quisesse.

Desejou poder tocá-la.

Só mais tarde, já no final da noite, Padraic perguntou sobre

Mary Healy e seu bebê. Estavam no salão de música, e Lilianne

ocupava o assento diante da harpa. Ela se preparava para começar

a tocar, quando ouviu a pergunta:

— O que aconteceu ontem na choupana?

Lilianne já esperava pela pergunta. Recordando-se que após

o nascimento do bebê, ela olhou para a porta e surpreendeu-se

com a presença de Padraic na humilde cabana. O olhar dele era de

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surpresa ao ver que a criança que acabara de nascer estava bem.

Se Mary não houvesse interrompido o silêncio perplexo,

estariam lá até agora, olhando um para o outro.

— Já viu meu bebê, milorde? O menino é saudável e forte!

Impelida pela voz da mãe orgulhosa, Lily exibiu o bebê aninhado

em seus braços.

Padraic se retirara pouco depois, não antes de dizer à colona

que seu filho era mesmo forte, saudável e belo, e colocar uma

moeda em sua mão.

Durante todo o tempo, Cullie assentira como se conhecesse

um segredo mágico. Depois da partida de lorde Dunlanoe, ela

recordara o dia do nascimento de Padraic, declarando que nunca

vira, em toda a sua experiência, um bebê mais forte.

— Lembro-me do dia em que ele nasceu e do dia em que foi

enviado para a Inglaterra, pobre menino. Sofreu muito por ter de

deixar Dunlanoe. Ele ama a terra e sua herança.

— Por que ele teve de partir? — Lilianne perguntara curiosa.

— Por conta da Igreja.

— Da Igreja?

— Sim. O jovem lorde não poderia ser criado na Igreja, por

isso foi mandado para ir viver com o sr. Burns e sua família. Então,

quando chegou o momento de começar a estudar, ele foi para a

Inglaterra.

— E há quanto tempo voltou?

— Não muito. Menos de cinco anos, acho.

Lilianne pensava em sua conversa com Cullie, por isso não

percebia que lorde Dunlanoe se levantava e caminhava em sua

direção.

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— Recusa-se a responder?

— O quê? Não, não! Só não sei ao certo o que deseja saber.

— A mulher estava fadada à morte. E o bebê também.

— Foi o que disse a filha daquela pobre mulher.

— Mas eles sobreviveram. Não só isso, mas gozam de

excelente saúde.

— O que quer ouvir, milorde?

— A verdade.

— Não creio que queira ouvir o que tenho para dizer.

— Está insinuando que curou mãe e filho?

— Está dizendo que acredita em mim?

Padraic balançou a cabeça, tentando dissipar o estranho

sentimento que o invadia. Ela ainda nem tocava, apenas verificava

a afinação do instrumento, mas era como se a música o envolvesse

como uma teia invisível.

— Você mesma admitiu que a menina do vilarejo não foi

realmente curada.

— Não por minha mão.

— Mas essas duas pessoas foram?

— Não sei por que precisa ouvir as palavras de mim, mas...

sim, é verdade.

— Que outros encantos sabe criar, Lily?

Queria explicar que não lançava encantamentos, que apenas

servia de instrumento para a cura de enfermos necessitados. Mas

não podia dizer nada.

Porque, assim que formulou a pergunta, ele se virou e saiu.

Lilianne baixou as mãos. Perdera o desejo de tocar.

— Vá embora!

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Padraic bebeu o conhaque do copo e tentou ignorar as

batidas na porta. O que Shamus queria àquela hora? Padraic serviu

mais uma dose no copo e decidiu que não tinha importância.

Shamus, por outro lado, julgava seus motivos mais do que im-

portantes. Ele bateu novamente, chamando pelo nome de Padraic.

— Lorde Paddy, trago uma mensagem.

— Jogue-a por baixo da porta.

Shamus ignorou a ordem e entrou no quarto portando uma

bandeja de chá.

— Mas o quê...?

O criado olhou em volta, estranhando a confusão de roupas,

peruca e acessórios espalhados pelo quarto.

— Agora que já entrou, entregue-me a mensagem e saia.

— Vinho é agradável, desagradável é o preço.

Mais uma gota de sabedoria. Padraic balançou a cabeça

devagar, porque começava a pagar o preço da noite de

embriaguez.

— Não é vinho.

Shamus serviu o chá em uma delicada xícara de porcelana,

adoçou a bebida e entregou-a ao seu senhor, que a aceitou

resignado e sorveu um pequeno gole.

— Sente-se melhor?

— Eu já me sentia bem antes. Não devia estar dormindo? Não

vou precisar de seus serviços esta noite.

— Já notei.

— Onde está a mensagem?

— Aqui. — Shamus pegou o pergaminho na bandeja. — Sir

Edwin vai oferecer um baile.

— Mais alguma coisa que eu deva saber? — Padraic

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perguntou com ironia antes de remover o lacre da mensagem.

— O baile vai acontecer na próxima sexta-feira. Ele convidou

todos os seus conhecidos. Oh, e lady Lilianne, também.

— Todas essas informações estão aqui?

— Falei com o mensageiro. Um certo Billy O'Brian. Talvez se

lembre dele.

— Billy O'Brian? Ah, o mesmo Billy cuja mãe foi expulsa de

sua choupana depois da morte do marido.

— Exatamente. Ele ainda é grato por tê-la acomodado em

outra casa.

— Não fui eu.

— O que está dizendo? É claro que foi você!

— Foi o Rebelde.

— E quem é ele?

Padraic bebeu um gole de chá.

Não este frangalho de homem, pensou Padraic, ignorando a

pergunta de Shamus. Suspirou e olhou para o espelho que exibia

uma imagem lamentável. Começara a beber antes de limpar-se, e

por isso o resultado era tão terrível. A água removera apenas parte

do pó, e lábios e faces ainda ostentavam traços visíveis de rouge.

Parecia realmente a farsa em que se transformara.

De olhos fechados, deixou cair a cabeça contra o encosto da

cadeira

— Devia deixar lady Lilianne tentar, lorde Paddy.

— Tentar... o que?

— Sua perna. Ela tem mesmo o poder de curar. Devia tentar

Não seria ótimo livrar-se da dor e de todo o desconforto?

— Receio que não seja possível. — A dor parecia pior a cada

dia. E antes que Shamus pudesse argumentar, como era evidente

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que pretendia fazer, Padraic encerrou a conversa. - Agora quero ir

me deitar.

— Quer que eu arrume o quarto antes?

— Não. Amanhã você poderá cuidar disso.

— É claro. Então, até amanhã, milorde.

— Até amanhã, Shamus.

— Oh, há algo que já ia esquecendo. Algo que Billy

comentou...

— O que é?

— Os reforços estão a caminho. Mais um destacamento com

a missão de capturar o Rebelde.

— Não é nenhuma novidade. Coyle já me disse o mesmo há

quinze dias.

— Ah, e ele também disse que o homem no comando é seu

amigo?

— De quem está falando?

— Do coronel Foxworth Morgan.

Shamus se retirou. Antes de fechar a porta, ainda olhou uma

última vez por cima do ombro. Ele adorava fazer isso. Dizia alguma

coisa profunda, divertida ou importante, depois se retirava. Padraic

sempre havia pensado que tanta vocação para o palco não podia

ser desperdiçada.

Então, Fox Morgan comandava a captura do Rebelde. Notícia

interessante... E possivelmente letal.

Maldição.

Padraic apagou todas as velas, disposto a ir para a cama,

mas, na escuridão do quarto, o luar chamou sua aten çã o para fora,

al é m da janela.

Não saberia dizer com certeza quanto tempo passou ali,

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parado diante da janela, olhando para o jardim. Mas sabia precisar

o momento exato em que a viu. E apesar da necessidade de

preservar a razão, soube o que faria.

Lilianne disse a si mesma que só estava ali pela paz, pelo

sossego. Mentiras, sempre mais agradáveis que a verdade. E não

queria admitir o que realmente buscava. Mas, no instante em que

ouviu o som de uma montaria se aproximando, seu coração bateu

mais forte.

Ele estava ali.

Como um predador da noite, ele desmontou e caminhou em

sua direção.

Devia estar com medo. Era o que ditava a razão. Mas, antes

que pudesse raciocinar, Lilianne atirou-se nos braços do lendário

herói mascarado.

Quando o beijo chegou ao fim, ele sorriu.

— Esperava encontrá-la aqui — disse. Ao vê-la deixar o

castelo, não pudera conter o ímpeto de tocá-la, tê-la em seus

braços. Lavara-se rapidamente para remover todos os vestígios de

lorde Dunlanoe, lamentando ter de esconder-se, e saíra para ir

encontrá-la.

Havia sido a primeira vez que vestira as roupas do Rebelde

sem ter em mente algum saque. Dessa vez havia apenas o desejo,

a paixão.

— Temi que houvesse partido — ela respondeu, sem

mencionar as inúmeras noites em que fora esperá-lo em vão, ou as

outras em que tivera de fazer grande esforço para conter-se.

— Estive afastado. — Era muito fácil mentir com uma

máscara cobrindo sua identidade. — Nunca consigo passar muito

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tempo no mesmo lugar.

— E claro... Eu devia ter pensado nisso. E não quero que

corra riscos por minha causa.

— Aqui é seguro — Padraic argumentou, rezando a Deus

para estar certo. — Mesmo assim, vamos caminhar. Oh, espere.

Antes, tenho algo para você.

— Para mim?

Ele retirou de sob a capa um par de finíssimos calçados de

damasco.

Lilianne notou que ele sorria.

— São... lindos.

— O estilo é um pouco antiquado.

— Não, não, eu... aprecio muito o estilo.

— Pensei em você caminhando sobre as rochas e achei que...

— Não se justifique. Nunca calcei nada mais fino.

Sabia que ela mentia, mas mesmo assim, sentia-se

gratificado. Ela não era de fato a filha de um colono forçada a andar

descalça. Era filha de um lorde que devia gastar uma fortuna

comprando vestidos de baile e sapatos delicados para a filha. Mas,

estranhamente, parecia estar feliz com os calçados que Padraic

encontrara no velho baú que pertencera a sua mãe.

— Posso calçá-los em seus pés?

— Por favor.

Lilianne sorriu ao vê-lo abaixado e ergueu a barra do vestido,

apenas o suficiente para expor um pé. O contato dos dedos mornos

com a pele fria produziu um forte tremor. O desejo carnal era tão

forte quanto a ternura que a inundava.

De repente, ele se levantou e a tomou nos braços,

acariciando-a com ousadia e fervor.

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— Lily... — A voz soou rouca. — Desejo-a tanto, que sinto

esse desejo como uma dor física.

Ela reconhecia o sentimento, porque também o

experimentava.

As mãos dele acariciavam suas pernas sob o vestido,

arrancando gemidos de seu peito arfante. A boca encobria a dela,

sufocando qualquer eventual protesto que pudesse surgir.

— Vamos sair daqui — ele sugeriu, assobiando para chamar

o cavalo. — Aqui está ele. Dócil e obediente. Pronto para levar-nos

para onde quisermos.

Lilianne sabia que o acompanharia ao fim do mundo, se ele

quisesse levá-la. E era isso que mais a amedrontava. A disposição

para acompanhá-lo sem restrições ou perguntas.

— Aonde vamos? — ela indagou quando partiram num trote

lento.

— A um lugar especial. Um lugar que será apenas nosso.

Seguiram para o norte, afastando-se do castelo ao longo da linha

litorânea. Era noite. Apesar da escuridão, ela sabia que estavam

mais afastados do que jamais havia estado antes. Mas não tinha

importância.

O Rebelde deteve sua montaria no alto de um penhasco e,

diante deles, estava a mais bela paisagem que Lilianne jamais

poderia ter imaginado. Uma catarata poderosa despencava das

rochas banhada pelo luar, e era como se milhões de diamantes

fossem transportados pela água. O estrondo era impressionante.

Padraic estava intrigado. Jamais havia levado nenhuma outra

pessoa àquele local. Nem mesmo Coyle, seu fiel amigo. Sabia que

outros conheciam a região, apesar do difícil acesso, mas desde que

ali estivera pela primeira vez, antes de ser enviado para a

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Inglaterra, convencera-se de ter encontrado a entrada para o

Paraíso.

Eles desmontaram e caminharam de mãos dadas até o lago

ao pé da catarata. Lilianne sentiu os respingos gelados.

— Devia ver quando a lua está cheia — disse Padraic.

— Não consigo imaginar beleza maior do que a que vejo

agora.

— Nos dias claros, o lago reflete o sol. Nos dias nublados, é

como se as nuvens e a névoa impedissem o acesso à região.

— Já esteve aqui à luz do dia?

— Sim. Crê que nunca vejo o sol? Como os morcegos que

vivem em cavernas?

— Não sei... Não sei nada sobre você.

— E isso é muito ruim?

— Suponho que não. Há momentos...

— Continue.

— Há momentos em que gostaria de poder ver seu rosto. Sei

que é tolice, mas...

—Não é tolice. Mas é impossível. Entende o que estou

dizendo, não é?

— Sim, certamente. Não quero insinuar que deve remover sua

máscara.

— Mas ficaria satisfeita se eu assim fizesse.

— Sim, ficaria.

— Por outro lado, correria o risco de sofrer um

desapontamento

— Não acredito nessa hipótese.

Ela o beijou. Padraic correspondeu, mas pensamentos

obscuros invadiam sua mente. A mulher que tinha nos braços era

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filha de lorde Westbury, viúva de seu pai.

Não podia prosseguir com a farsa.

Tinha de desistir dela. Não podia ir além do ponto em que

estavam agora. Haviam trocado beijos e carícias, algumas bem

intimas, mas, além disso, nada mais seria possível.

Por isso, ele a afastou com gentileza.

— Dizem que pessoas de muita sorte podem ver o arco da lua

do ponto onde estamos.

— Arco da lua? Nunca ouvi falar nisso.

— Talvez não exista, mesmo. É só uma lenda, e não acredito

muito em tais tolices.

— Mesmo assim, fale-me sobre isto.

— Bem, dizem que quando a lua está cheia, baixa no céu, e a

névoa encobre o lago, forma-se um arco prateado sobre a

superfície da água.

— Mas você nunca o viu?

— Não, e duvido que realmente exista.

— Mas seria uma visão maravilhosa. Como um milagre.

— Sim, um milagre... — Padraic suspirou.

Lilianne e lorde Dunlanoe viajavam em silêncio na carruagem.

Ela sabia que era a falta de sono que a deixava naquele estado de

confusão e torpor.

O céu já se tingia de rosa quando finalmente se deixara

envolver pelo calor das cobertas em sua cama no castelo. E mal

pudera piscar antes de uma criada ter entrado com uma caneca

contendo chocolate quente. A jovem lembrara que ela deveria ir

visitar Alison Burns naquela manhã. Com lorde Dunlanoe.

Teria sido maravilhoso renunciar a visita e continuar

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dormindo, mas gostava de Alison. Por isso resignara-se com o

compromisso e a companhia de lorde Dunlanoe.

— Parece cansada — ele comentou.

Lilianne respirou fundo. Não queria conversar.

— Não dormiu bem?

— Dormi, obrigada.

— O colchão é macio demais?

— Não. É perfeito.

— Duvido que tenha tido pesadelos.

— E como pode ter tanta certeza?

— Você tem a expressão de quem teve sonhos doces.

Lilianne sentiu um rubor aquecer seu rosto. Era quase como se ele

soubesse...

— Já disse que dormi muito bem, obrigada. E não tive

sonhos, bons ou maus. Milorde também parece abatido. Teve

pesadelos?

Se ela soubesse...

Padraic ergueu os ombros, afetou um suspiro entediado e

disse estar bem. O que o incomodava era a umidade.

Depois disso, ambos seguiram em silêncio.

Padraic censurava-se por tê-la provocado. Tinha de parar com

isso. Precisava se lembrar de quem era, e por que jamais poderia

admitir ser o homem de seus sonhos.

Ela dormia. Profundamente.

Cansado, lorde Dunlanoe também adormeceu, e só se deu

conta disso quando acordou sobressaltado.

— O que foi isso?

Lilianne também havia despertado. Ela o fitava apavorada

enquanto a carruagem balançava, pendendo para um lado e para o

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outro. Houve um rangido e um estrondo. Depois disso, o veículo

ganhou velocidade, obrigando-os a se agarrarem ao assento para

não serem lançados para a frente.

Padraic agarrou a maçaneta da porta, preparando-se para

abri-la.

— O que está acontecendo? Por que estamos indo tão

depressa? Estamos desgovernados!

— O cocheiro deve ter caído. Estamos sem condutor —

Padraic imaginou. — Fique aqui e segure-se.

Segurar-se? Segurar-se! Era evidente que permaneceria ali,

agarrada ao banco. E ele devia fazer o mesmo, embora se

mostrasse disposto a saltar.

— Vai se matar!

Era tarde demais. O tolo e efeminado lorde Dunlanoe já

escalava a lateral da carruagem pelo lado de fora, tentando chegar

ao posto de condutor sem quebrar o pescoço.

— Padraic! Pare!

Como ele esperava poder fazer alguma coisa? A carruagem

seguia em sua frenética viagem, sacudindo e ameaçando tombar,

até que, de repente, o veículo começou a perder velocidade. Quan-

do finalmente pararam, ela saltou apressada. Lorde Dunlanoe es-

tava lá para ampará-la.

— Oh, meu Deus! — ela o abraçou aflita.

— Está ferida?

— Não, não. Mas você...

— Estou bem.

Sim, agora podia ver que ele não sofrera nenhum ferimento.

Apenas a peruca pendia torta sobre sua cabeça. A jaqueta de seda

azul se rasgara em uma costura do ombro, mas era só isso.

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Incrível, considerando o que o homem acabara de fazer. Lilianne

estava perplexa.

— Temos de voltar e encontrar o cocheiro.

Padraic foi o primeiro a vê-lo. O homem jazia inerte à beira da

estrada, entre alguns arbustos. Aparentemente, caíra sobre a pró-

pria cabeça.

— Fique aqui — Padraic decretou ao descer da carruagem. —

Não há nada mais a ser feito.

Devia ter imaginado que ela não acataria sua ordem.

— O pobre-coitado está morto? — ela perguntou, parando ao

lado do lorde na beira da estrada.

— Se não está, logo estará. Agora volte à carruagem. Ou vá

esperar à sombra das árvores. Longe daqui.

— Ele ainda está vivo. — Ajoelhada ao lado do cocheiro, Li-

lianne abriu as duas mãos sobre o corpo inerte.

O cocheiro abriu os olhos quando ela o tocou.

— Lilianne, pelo amor de Deus! — Padraic protestou.

Mas ela não o ouvia. Estava dominada pela forte energia que

fluía por seu corpo, penetrando pelo alto da cabeça e saindo pelos

dedos.

Lilianne cantava, ou murmurava alguma coisa. Estavam próxi-

mos, separados apenas pelo cocheiro ferido, mas era impossível

ouvir que palavras saíam de seus lábios.

E não tinha importância. O que quer que ela estivesse

dizendo, não faria diferença. O pobre homem morreria de qualquer

maneira. Ficaria ali para consolá-la depois do fracasso.

Padraic esperou, imaginando quando ela reconheceria a

derrota e desistiria do estranho procedimento. Intrigado, mudou de

posição para poder ver seu rosto... e quase desfaleceu de espanto.

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Ela parecia brilhar!

Ele olhou para cima, para o céu.

Lilianne suspirou.

— Como se sente agora? — perguntou sorridente ao

cocheiro.

— Como se o ar voltasse lentamente ao meu corpo, milady.

— Você vai ficar bem.

— Estou certo disso, milady. — O cocheiro sentou-se.

— Talvez lorde Dunlanoe possa ajudá-lo a se levantar —

Lilianne sugeriu.

Mas, ao olhar para Padraic, ela constatou que o lorde não

estava em condições de ajudar ninguém. Perplexo e pálido, ele a

fitava com a boca aberta e os olhos arregalados.

Centenas de velas iluminavam o opulento salão de baile de

Winston Hall. Padraic e Lilianne esperavam ser anunciados.

Enquanto aguardavam, ele identificou vários conhecidos de Londres

e Dublin, gente superficial que vivia para ir a festas e buscar pra-

zeres dos mais variados.

Lilianne tentara se recusar a acompanhá-lo. Havia sido

necessário um grande empenho para convencê-la, e agora não

sabia por que se esforçara tanto. Tinha um plano... Talvez ali

pudesse descobrir a verdade sobre Lilianne e sir Edwin. Sobre a

morte de seu pai. Ou, talvez, seu único objetivo fosse vê-la vestida

como uma princesa, pronta para o baile. Podia ser egoísta, às

vezes.

Queria abraçá-la. Beijá-la.

Impossível.

Sir Edwin aproximou-se para recebê-los.

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— Lorde Dunlanoe, lady Lilianne, é um prazer tê-los aqui esta

noite.

Seu traje de seda rosa ostentava pesado bordado, mas o

caimento deixava a desejar, resultado da súbita perda de peso. O

rouge e o pó não escondiam a palidez de seu rosto, nem

amenizavam a vermelhidão em seus olhos excessivamente

brilhantes.

Mas seus passos pareciam firmes quando, equilibrado sob os

saltos, ele conduziu Lilianne ao centro do salão para a primeira

quadrilha. Lilianne olhou para Padraic, e a aflição em seu rosto o

fez sentir-se um bastardo. Ela não queria dançar com Edwin. Não

queria estar perto dele. E quem poderia criticá-la por isso? Edwin

sempre fora repulsivo, e agora, emaciado como estava, portador de

uma enfermidade desconhecida... Bem, ele prometeu a si mesmo

que a levaria para casa o quanto antes, antes que a devassidão que

tornava famosos os bailes de Edwin se fizesse muito evidente.

Todos se comportavam bem, pelo menos por enquanto. As

mulheres estavam vestidas, embora rissem alto demais. Uma dama

que ele conhecera por meio de Edwin se aproximava, reforçando a

idéia de que não devia ter levado Lilianne àquele lugar. Ele mesmo

não devia ter ido.

— Lorde Dunlanoe, que encantador vê-lo!

— Lady Grey, o prazer é todo meu.

Lady Monique Grey era uma viúva entediada que dedicava

seu tempo e a considerável fortuna deixada pelo marido aos

prazeres da carne. Na última vez em que a vira, ambos estavam

nus e deitados sob um teto de espelhos. A lembrança não era

agradável.

— Esperava que viesse — ela disse, inclinando os seios em

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sua direção. — Apesar de Edwin ter comentado que, ultimamente,

tem preferido a solidão.

Razão pela qual decidira aparecer essa noite. Sua reputação

de almofadinha devasso tinha de ser alimentada. Se os poderosos

começassem a questionar a futilidade de sua existência, poderiam

se perguntar de que forma empregava seu tempo.

— Preferi, até recentemente. Deve ter ouvido a notícia sobre a

morte de meu pai. Mas, encontrá-la aqui hoje me faz ter certeza de

que fiz bem em abandonar o luto.

— Esteve de luto... por seu pai? Como é deliciosamente

esperto! Senti sua falta, Padraic.

— Digo o mesmo. — Padraic traçou o contorno do decote ge-

neroso com a ponta de um dedo.

— Então, talvez possamos fazer alguma coisa para aliviar

qualquer... desconforto que possa ter experimentado em minha

ausência.

Padraic notou que Lilianne olhava em sua direção.

— Agora não, Monique.

— Ora, ora, noto que esteve fazendo experiências nesse

período. Sempre reconheci sua habilidade como amante, mas

agora sinto um certo... fervor em sua atitude. Talvez esteja pronto

para ser introduzido nos prazeres da dor. Não imagina como ela

pode tornar o sexo mais delicioso.

Padraic sempre tivera conhecimento de algumas das

perversões praticadas por Edwin e seus amigos. E sempre se

sentirá repelido por elas.

Monique prosseguia.

— Ora, aquela com Edwin não é a viúva de seu pai? A filha

do duque de Westbury... Ela é linda! Não é de estranhar que Edwin

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esteja tão interessado pela jovem.

— Nesse momento Lilianne se encontra sob minha proteção.

— Oh, Padraic, é tão divertido quando você fala como se

realmente tivesse fibra! Não quero ofendê-lo. Considero-o perfeita-

mente delicioso como você é. De qualquer forma, deve saber que

Edwin tem planos para sua doce Lilianne.

Padraic não sabia como conseguira se livrar de lady Grey,

mas foi com enorme prazer que encheu os pulmões com o ar fresco

da noite. No jardim da mansão de Edwin, ele respirava fundo e

sentia-se... maculado.

Uma mácula que nem toda a água do mundo poderia lavar.

Por quase cinco anos, desde que retornara da Inglaterra,

levava uma vida dupla. Repugnava-o o grupo formado por Edwin e

seus amigos... amigos de lorde Dunlanoe. No entanto, sempre se

divertira enganando-os. Era um intruso no meio daquelas horrendas

pessoas, e nenhuma delas jamais suspeitara de nada.

Mas tudo isso mudara. Já não se divertia mais com a farsa. E

não tinha como encerrá-la.

Havia mais gente envolvida. O pai estava morto, mas

precisava pensar em Coyle e Alison, em Shamus, na tripulação do

barco, nos colonos de sua propriedade... em Lily.

Padraic olhou para os dançarinos no salão. Lilianne dançava

com Henry Wicklow, um indivíduo aparentemente inofensivo no

panorama geral. Ele o encontrou no salão de jogos.

Edwin estava reclinado sobre um divã, com a cabeça apoiada

em uma almofada de veludo, enquanto lady Grey distribuía as

fichas. Ele sorriu ao vê-lo entrar, um sorriso quase cadavérico.

— Aí está você, Padraic. Já me perguntava por onde poderia

andar. Sei que não aprecia muito a dança.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic aceitou uma taça de vinho do Porto, notando que

Edwin já estava embriagado.

— Estamos apostando algumas horas na cama com lady

Grey. Quer entrar no jogo?

Padraic balançou a cabeça.

— Não preciso desses artifícios para ter os favores de

Monique. Não é mesmo, minha cara?

Todos riram.

— Falta de esportividade, Padraic! Todos aqui sabemos que é

o preferido de lady Grey — Edwin comentou com voz pastosa. —

De minha parte, nem aceitaria o prêmio, se o conquistasse. Tenho

coisas mais importantes para fazer no momento.

— De fato? — Padraic indagou.

— Querido amigo, pretendo livrá-lo de um fardo esta noite.

— Oh... De que fardo estamos falando?

— Sua querida madrasta, é claro. Ela me pertence, como

sabe. E depois de hoje, pretendo tê-la de volta.

— Já discutimos isso antes, Edwin.

— Sim, sim, e você se comportou como o perfeito filho res-

ponsável. Muito astuto. Mas desnecessário.

— Não entendi.

— Lorde Westbury cedeu a mão da filha a mim, e agora ele

quer que eu a tome de volta.

— Ele disse isso a Lilianne?

— Não sei. Mas, depois de hoje, não terá importância.

— Por que não?

— Porque planejo... Ah, não. Antes, jure que não dirá nada a

ninguém.

Padraic jurou, sabendo que todos os presentes poderiam

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

ouvir a declaração de Edwin, se assim desejassem.

— Vou levá-la para o meu quarto. E vou cuidar para que ela

perca a virgindade de uma vez por todas. Não fique tão chocado!

Não acredita que seu pai foi capaz de penetrá-la, não é?

Padraic obrigou-se a relaxar lentamente. Seus dedos tremiam

em torno dos braços da cadeira, um artifício para conter o impulso

de agarrar o pescoço de Edwin. Ele ergueu as sobrancelhas de

forma a se mostrar indiferente.

— Por que se incomodar tanto com aquela mulher?

Francamente, prefiro me deitar com lady Grey. Ela tem mais...

disposição, se é que me entende.

— Ora, ora... Não está pensando em tê-la, está?

— Lilianne? — Padraic gargalhou. — Prefiro me deitar com

uma ovelha. O que me surpreende é que não sinta o mesmo.

— Digamos que algo nela me atrai.

— A fortuna do pai dela, por exemplo? — Sir Anthony

arriscou, provocando uma gargalhada de Edwin.

— Há isso, também. Prometi me casar com ela, e já a teria

deflorado e a deixado grávida de um herdeiro meu, não fosse por

aquele seu pai papista. E ela também poderia cuidar de mim. Mas

ela fugiu, e agora... — Edwin tocou o próprio rosto, puxando a pele

flácida. — Veja só como estou.

— Parece um pouco pálido.

— Amanhã terei uma aparência bem melhor.

— Não creio que deva levar esse seu plano adiante.

— Não crê... Ouviu isso, Anthony? Nosso amigo Padraic nos

aconselha a desistir do plano para esta noite.

— É mais provável que ele queira participar, só isso —

Anthony respondeu, a voz abafada pela boca de lady Grey. — E

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

não espere que eu esteja indisposto por ter vencido a aposta aqui.

Terei terminado antes que seja hora de pôr nosso plano em prática.

— Como vê, Padraic, você foi vencido pela maioria. E quanto

à sugestão de Anthony... Pode juntar-se a nós se quiser.

— Por mais delicioso que pareça, tenho de declinar.

— Ah, Padraic, perdeu mesmo o espírito esportivo! Mas sei de

algo que vai animá-lo. Recebi noticias de Kilroyne. O coronel

Morgan chegou. Logo aquele maldito Rebelde vai estar fora do

nosso caminho para sempre.

— Ah, essa é uma boa notícia.

— Sabia que a apreciaria. Não está contente por ter vindo ao

baile? Não vai arruinar minha surpresa para a bela Lilianne, vai?

— É claro que não.

Padraic mantinha o papel com grande dificuldade. E agora, o

que faria?

Lilianne atravessou o salão na direção da porta do hall. A

multidão parecia crescer com o com o passar o tempo. Havia

barulho, risadas, música... Queria ir embora. Devia ser quase meia-

noite, bora não pudesse encontrar um relógio para certificar-se

disso.

E não conseguia encontrar lorde Dunlanoe. Temia abrir as

meras portas alinhadas no corredor, porque já vira coisas horríveis

no salão, no hall e em outros cantos da casa.

Na verdade, a casa era um covil de más recordações.

Lembrava nitidamente a noite de sua fuga. Sim, a situação era

diferente. Para começar, estivera sozinha com sir Edwin, e agora

havia muita gente. Não se sentia tão vulnerável.

Mesmo assim, precisava encontrar Padraic. Queria ir embora

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

daquele lugar o quanto antes,

Depois de visitar quatro ou cinco cômodos, todos ocupados

por casais em situações mais do que repreensíveis, ela chegou a

um aposento bem iluminado onde várias mesas de bilhar e

carteado. Havia muita gente ali. Inclusive sir Edwin.

— Ora, ora, se não é nossa adorável Lilianne!

—- Eu... procuro por lorde Dunlanoe. Sabe onde ele está?

— Padraic? Não o vejo há algum tempo. Vejamos, em nosso

último encontro ele se retirava para... deliciar-se com os encantos

de lady Grey. Alguém o viu depois disso?

Ninguém respondeu. Todos olhavam para ela.

Lilianne tentou não demonstrar desconforto.

— Bem, talvez ele tenha voltado ao salão de baile. Vou ver

se...

— Não nos deixe, doce Lilianne. Não vê como estamos ávidos

por sua companhia?

— Preciso encontrar lorde Dunlanoe.

— E eu, cara Lilianne, devo insistir para que permaneça

conosco.

Um homem aproximou-se dela. Lilianne engoliu em seco. Não

se deixaria intimidar.

— Bem, talvez eu fique... até lorde Dunlanoe retornar.

Com toda a dignidade que podia reunir, ela caminhou até a

cadeira indicada por sir Edwin. Estavam próximos demais para seu

conforto.

— É tão ruim assim, minha cara?

— Francamente, sir Edwin, não creio que tenhamos alguma

coisa a conversar. — Estava farta desses jogos. Era hora de parar.

O homem queria intimidá-la, e já havia decidido que tal coisa não

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

ocorreria. Então, restava a ela se impor.

— Está enganada, Lilianne. E vamos... fazer muito mais do

que conversar.

— Vou me retirar e...

Edwin segurou-a pelo braço, impedindo-a de deixar o assento.

Desesperada, Lilianne olhou em volta, certa de que alguém a

ajudaria. Mas, embora todos ali acompanhassem a cena com aten-

ção e interesse, ninguém se mostrava disposto a interrompê-la.

— Falarei a lorde Dunlanoe sobre esse tratamento mais do

que reprovável — ela o ameaçou.

Edwin riu. E tossiu. Quando conseguiu recuperar o fôlego, ele

balançou a cabeça.

—Pobre Lilianne! Ilude-se pensando que o filho de seu

falecido marido se importa com seu destino... — Ele se inclinou, e o

hálito fétido a atingiu em cheio. — Ele não se importa.

Lilianne virou a cabeça, olhando em volta mais uma vez.

— Ninguém se importa, Lilianne.

Antes que Edwin pudesse reagir, ela se levantou de um salto

e correu. Tentou sair, mas um criado bloqueava a porta.

— Agora chega — decretou sir Edwin. - Leve-a para meus

aposentos. — Aos outros, ele acrescentou— É evidente que

Lilianne precisa acalmar-se.

— Não, não permitam que ele faça isso - Lilianne suplicou aos

gritos, enquanto dois outros criados agarravam seus braços. — Ele

já tentou me violentar antes. Vai repetir a tentativa!

Suas palavras não causavam nenhuma diferença. Lilianne

gritava, mas ninguém a ouvia. Sua única esperança era que, a

caminho dos aposentos de sir Edwin, encontrassem alguém que a

defendesse. Mas isso não ocorreu.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Ela foi levada para um quarto, um aposento que reconheceu

de imediato, e foi deixada lá dentro. A porta trancada por fora.

Não se deixaria vencer pelo medo. Preferia a fúria, a revolta, a

indignação...

Impelida a agir em defesa da própria integridade, ela acendeu

várias velas que encontrou na mesa da saleta e vasculhou o lugar

procurando alguma coisa que pudesse servir de arma. Não havia

nada. Ela ainda procurava, quando a porta se abriu.

— Agora somos só nós dois, doce Lilianne. Como devia ter

sido desde o início.

— Já disse que não posso fazer o que quer.

— Não pode... mas vai fazer. Sei que poderei persuadi-la.

temos todo o tempo do mundo.

— Nada que faça poderá me convencer. É mais forte do que

eu.

— Pensa que não ouvi falar em seus milagres? Colonos

MIseráveis e jovens vadias... Você os cura, mas prefere me deixar

afogado no sofrimento! Tem alguma idéia da agonia em que me

encontro?

— Solte-me!

Ele a segurava pelos braços com força imprecionante para um

enfermo.

— Oh, você terá sua liberdade... depois de me curar. Depois

de estarmos casados!

— Não posso... — Edwin torceu seu braço, e a dor a

silenciou.

— Não pode o quê? Casar-se comigo? Acha que me

incomodo com aquele falso casamento com o velho? Com seu luto?

Seu casamento poderia ser anulado! O velho era um papista!

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Mesmo que não estivesse morto, eu a teria tomado para mim, e

ninguém poderia ter impedido.

— Meu pai o fará...

— Não seja tola! Lorde Westbury encarregou-me de desposá-

la, e cumprirei meu dever. — Ele a jogou sobre a cama.

Lilianne levantou-se com a agilidade conferida pelo pavor.

Arfante, ela o encarou:

— Se me fizer algum mal, jamais o curarei!

A bofetada foi tão rápida, que ela nem teve tempo para

levantar a mão e defender-se. A violência do golpe a derrubou

sobre a cama. A dor alimentou a fúria que a enchia de coragem.

— Está morrendo, Edwin! Nós dois sabemos disso. E será

uma morte lenta e dolorosa...

— Sim, eu sei, mas se não me tocar com suas mãos

encantadas. .. se não me curar... seu sofrimento será ainda maior

que o meu. Serei o instrumento de sua dor, doce Lilianne. Farei

com que sofra enquanto estiver vivo, e depois de minha morte, por

meio do meu legado. Quanto tempo acha que terá até que as

pústulas marquem sua pele alva e imaculada?

CAPÍTULO V

— Você enlouqueceu! —Lilianne tentava controlar a res-

piração... e o medo. Uma coisa era imaginar a maldade de Edwin,

outra era conhecê-la de perto. Podia ver a loucura em seus olhos.

Ele já havia implorado por uma cura. Alegara uma

enfermidade digestiva. Não conseguia reter os alimentos no

estômago, e temia continuar perdendo peso até perecer. Lilianne

havia tentado, mas, como ocorrera com sua mãe e com outras

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

pessoas, não obtivera êxito. A fúria do lorde a assustara... mesmo

depois de ter lidado com pessoas como seu pai.

E agora entendia a razão do próprio medo.

— Louco, eu? — Ele riu. — Mesmo que esteja, a culpa é sua!

— Já disse que não posso fazer nada para curá-lo.

— Não quer fazer nada!

— Não! Não é verdade. — Ela olhou para a porta. — mas,

talvez... Talvez eu deva tentar novamente. Pode não ter funcionado

na primeira vez, mas agora... Agora devemos...

— Faça logo o que tem de fazer.

— Não posso. Não enquanto estiver segurando meu braço. —

Ele a soltou. — Agora deve deitar-se. Não posso curá-lo como está,

em pé e tenso.

Ele se deitou, atento aos movimentos de Lilianne.

— Feche os olhos. — Esperava poder fugir, mas, ao fechar os

olhos, ele a segurou por um braço.

Resignada, ela respirou fundo e estendeu as mãos, inclusive

aquela que ele segurava, sobre seu corpo. E esperou pela

sensação da energia fluindo. Nada. Rezando, pediu a Deus para

socorrê-la com mais um milagre. Os dedos de Edwin soltaram seu

pulso, mas agarraram seu vestido. Permanecia cativa.

De repente, sentiu que Edwin respirava mais lentamente. Os

dedos no cetim de sua saia pareciam flácidos, relaxados.

Ela decidiu aproveitar o momento. E correu.

Ainda estava longe da porta, quando ouviu o grito furioso e

som dos sapatos tocando o chão. Segundos depois, os braços a

enlaçaram pela cintura.

— Sua... prostituta mentirosa! Deus amaldiçoe sua alma

traiçoeira!

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Não, não! Eu tentei! É impossível! Solte-me!

— Vai aprender uma lição. Uma lição que já devia ter

aprendido há muito tempo. — Edwin a jogou sobre a cama. Lilianne

tentou escapar, mas ele a imobilizou com o peso do corpo. Mesmo

sabendo que ninguém a ajudaria, ela gritou. Não podia mais

controlar o pânico.

— Por favor, não. Não!

— Ah, agora está suplicando — ele riu, tocando seu corpo

como o devasso libertino que era. — Por que não experimenta

continuar implorando?

— Talvez você deva começar a suplicar por misericórdia.

Lilianne pensou ter ouvido a voz baixa, mas devia ser sua

imaginação, apenas. Ou não? Por que Edwin se virava com aquela

atitude sobressaltada? Por que estava tão pálido?

— Muito bem, levante-se devagar. Ei, ei, não tão depressa.

Não quer me assustar, quer? Posso escorregar, e então...

— O que faz aqui?

— Creio que a resposta é óbvia. Vim resgatar a dama. — A

ponta de sua adaga encontrou a pele de Edwin.

— Ela não precisa de resgate. — Edwin recuou, tentando se

esquivar do metal frio. Uma gota de sangue manchou a renda da

frente de sua camisa. — Ela será minha esposa.

— Sua esposa, é? E o que a dama tem a dizer sobre isso? —

Padraic acenou com a adaga indicando que Edwin devia se afastar

da cama. Lilianne levantou-se de um salto, empurrando os cabelos

para trás.

— Não me casarei com esse homem. Nunca!

— Veremos o que seu pai tem a dizer sobre isso. — Foi então

que Edwin cometeu o terrível erro de investir contra Lilianne.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic pressionou a ponta da adaga contra seu peito,

rasgando seda, renda... e carne. Um rastro vermelho surgiu onde

antes estivera o metal.

Edwin gritou, baixando a cabeça para examinar o ferimento.

Quando ergueu o olhar novamente, ele estava ainda mais pálido

que antes.

— Não se engane comigo — Padraic avisou por entre os

dentes. — Não vou admitir que volte a tocar nesta mulher. — Ele se

aproximou, apoiando a arma em seu peito mais uma vez. — Ou

terei de voltar para mais uma visita... e com uma espada ainda

maior e mais afiada. Entendeu bem?

— Edwin assentiu, tentando limpar o sangue que molhava sua

camisa.

— Agora sente-se. — Padraic apontou a cadeira ao lado da

escrivaninha.

— Mas eu estou sangrando.

— E perderá ainda mais sangue, se não fizer o que digo.

Ponha os braços para trás. — Padraic retirou do bolso da jaqueta

uma tira de couro. Entregando a adaga a Lilianne, ele amarrou os

pulsos de Edwin. Depois usou um pedaço de renda da própria

roupa do lorde para amordaçá-lo. Concluído o trabalho, ele

recuperou a adaga. — Vamos — disse, segurando a mão de

Lilianne. — Abra a porta, Lily, por favor. E verifique o corredor.

— Não há ninguém aqui — ela disse depois de olhar para a

porta.

— Que bom. Nesse caso, só nos resta dizer adeus.

— A casa está cheia de gente — Lilianne lembrou enquanto

ele praticamente a arrastava para a escada.

No andar de baixo, o primeiro, um homem visivelmente

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

embriagado os viu e, chocado, começou a gritar.

— O Rebelde! O Rebelde!

Portas se abriram. Cabeças surgiram. Dezenas de olhos

curiosos os estudavam.

Padraic segurou Lilianne bem perto do corpo e, empunhando

a adaga, sacou também a pistola que levava presa ao cinto. A sur-

presa a fez gritar, o que acrescentou um certo tom realista à cena.

— Um passo de qualquer um de vocês, e eu a mato!

Lentamente, ele a empurrava pelo corredor para a porta,

esperando poder alcançá-la antes de alguém resolver tomar uma

atitude heróica. A música parou. Uma pequena multidão se

aglomerava na porta de ligação entre o salão de baile e o corredor.

Em pouco tempo alguém lembraria que Lily não era

exatamente a convidada de honra, e que a morte do Rebelde

justificaria qualquer sacrifício que pudesse advir dela.

Padraic sussurrou:

— Ao meu sinal, grite. Depois, corra para a porta.

— Sim, mas...

O Rebelde começou a gritar ameaças, jurando matá-la se al-

guém se movesse. Enquanto isso, ela tentava adivinhar que sinal

seria esse.

Uma explosão ecoou em seus ouvidos.

Um tiro.

Ele nem precisava ter mandado. O grito foi uma reação

espontânea. Lilianne correu para a porta. O Rebelde a seguiu, e

ainda disparou mais um tiro antes de sair. Na varanda, ele segurou

sua mão e assobiou.

A aproximação de Raven provocou um arrepio que ela não

conseguiu conter. O Rebelde montou e, enlaçando-a pela cintura,

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

colocou-a sobre o cavalo.

Ainda estavam próximos de Winston Hall, quando Lilianne

perguntou:

— Como soube...? Desde quando sabe que menti? Em algum

momento acreditou que eu fosse mesmo a filha de um colono

miserável?

Padraic reduziu o galope de Raven a um trote.

— Sabia quem você era.

— Desde o início? Desde a primeira vez em que me viu no

penhasco?

— Sim.

— Então... por quê? Não entendo.

— Por que permiti que a farsa prosseguisse?

— Sim.

— Sou um homem que sabe sobre farsas, Lily. Não tenho o

direito de desmascarar ninguém.

Prosseguiram em silêncio. Quem quer que fosse esse

homem, ele tinha razões de sobra para esconder sua identidade.

Mas agora sabia quem ela era. Sabia e aceitava. Mas o Rebelde

ainda era um enigma para ela.

Padraic a levou novamente ao local onde havia a catarata.

— Acha que esta noite veremos o arco da lua?

— Não sei, mas... Bem, sempre há uma chance — ele

respondeu sorrindo.

— Uma chance... — O Rebelde desmontou e ajudou-a a

descer do cavalo. No chão, ela se afastou alguns passos. Era hora

de falar com seriedade. — Conhece Oliver Rafferty? Ou lorde

Dunlanoe? Ou meu pai, lorde Westbury?

— Conheço você, Lily. E já ouvi falar neles.

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— Seus inimigos.

— Alguns, sim, mas não todos.

— Julga-me tola?

— Lily, eu...

— Não, por favor, não me toque.

— Olhe para mim, Lily. — Ele esperou que Lilianne o enca-

rasse. — Como pode pensar que eu, um homem que usa uma

máscara, tem o direito de questioná-la ou julgá-la? Acha que não

quero me mostrar como realmente sou? Acredita que não desejo

revelar minha verdadeira identidade? A você, minha doce Lily?

— Eu... tive medo. Por isso menti.

— Lily...

— Não, escute. Só queria explicar, dizer que não tem nada a

temer comigo. Eu nunca o trairia. Por favor, acredite em mim.

— Lily. Não é esse o meu medo, minha querida.

— Então, qual é? Por que não permite que o veja?

— Temo por você, minha doce Lily. Só isso.

— Não entendo.

— Vivemos tempos perigosos.— Ele a tomou nos braços.

Chegava a desejar que ela resistisse, mas não foi o que aconteceu.

Lilianne estava tão entregue àquela paixão quanto ele mesmo. —

Não devia ter trazido você aqui.

— Salvou-me de Edwin.

— Sim, mas o simples fato de me conhecer é um risco.

— Um risco que estou disposta a correr.

Padraic não conseguiu conter-se. Beijou-a.

Pretendia parar no primeiro beijo, mas um levava a outro, e a

outro... As carícias ganhavam ardor, o desejo atingia um patamar

surpreendente, incontrolável...

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Lily... — Devia desistir dela, mandá-la para algum lugar

bem distante da Irlanda, mas sabia que não faria tal coisa. Porque

não era capaz disso.

Sem deixar de beijá-la, ele removeu a capa de sobre seus

ombros e a estendeu sobre a relva. Juntos, se sentaram. E se

deitaram. E se beijaram, e se tocaram...

Era inútil negar. Estava apaixonado por ela. Pela viúva de seu

pai. E a queria como jamais desejara outra mulher.

Por Deus, se Lilianne não resistisse, fariam amor ali mesmo,

sobre a relva, a céu aberto...

Ela nem tentou resistir. Pelo contrário, suas mãos hesitantes o

convidavam ao prazer. Um convite doce, quente, irresistível...

Lilianne entregava sua inocência ao Rebelde. Um homem que

não conhecia, alguém cujo rosto jamais vira. Mesmo tendo sido

casada, jamais havia estado com um homem. Ele seria o primeiro.

A experiência foi marcante. Inesquecível. Doce, apesar da dor

inicial.

— Espero que não se arrependa disso quando o dia chegar,

Lily.

— Não. Jamais lamentarei o que vivemos aqui esta noite.

Nem esquecerei um só momento desse nosso encontro.

— Então, devemos preencher todo o nosso tempo com

recordações significativas.

O sorriso que iluminou o rosto de Lilianne era tão cintilante

quanto a luz da lua. Jamais alguém depositara tão grande confiança

nele. Sem ver seu rosto, sem conhecer sua identidade, ela se

entregava por completo, sem reservas e sem condições. Sabia que

nunca mais a esqueceria. Nem poderia arrancá-la de seu coração.

— Antes de voltarmos à vida real, minha doce Lily, quero que

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

me prometa algo importante.

— O que é?

— Deve confiar em lorde Dunlanoe.

— Confiar...? Impossível! Edwin disse que ele sabia sobre

seus planos, e mesmo assim não tentou me proteger daquele

devasso insano.

— Não acredite em tudo que Edwin diz. Ou melhor, não

acredite em nada do que ele diz. Lorde Dunlanoe fará o que for

melhor para você, Lily.

— Mas...

— Prometa-me que vai fazer o que ele disser.

— Como posso fazer tal promessa. Não sei o que ele vai

dizer.

— Ele cuidará para que nada de mal aconteça com você. —

Estava falando demais. — Vamos, prometa que vai seguir todas as

orientações de lorde Dunlanoe. Não quero que sofra nenhum mal,

doce Lily.

— Está bem. Farei como está sugerindo.

— Ótimo. — Ele a abraçou aliviado. Depois se levantou e

anunciou o momento da partida.

Era hora de retornarem à realidade.

Mais tarde, sozinha em seu quarto, Lilianne lembrou-se de um

detalhe que havia ficado gravado em sua memória.

Azuis...

Os olhos do Rebelde eram azuis.

— Vai passar o dia todo na cama?

Padraic pôs o travesseiro sobre a cabeça. Shamus insistiu em

permanecer no quarto, abrindo e fechando gavetas e armários.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic explodiu.

— O que pensa que está fazendo? Estou dormindo! Ou

estava, até você chegar! Que horas são?

— Dez e meia.

— Dez e meia? — Voltara para casa perto do amanhecer. —

Preciso dormir mais.

— Lady Lilianne já está em pé.

— Ela é mais forte que eu, obviamente. E deve ter ido dormir

mais cedo do que eu fui — acrescentou, fingindo não entender a

insinuação do velho pajem.

— Realmente? Seria capaz de jurar que a vi entrando no

castelo pouco antes do amanhecer.

O homem tinha o instinto de um perdigueiro!

— Saia daqui. Mandarei chamá-lo quando quiser me levantar.

— Se continuar na cama, deixará de ver o cavalheiro que

agora se encontra com lady Lilianne no salão.

—Maldição! Edwin novamente? Dessa vez vou arrancar

seus...

— Eu disse que era Edwin? Sente-se. Precisamos cuidar

dessa barba. E onde pensa que vai vestido dessa maneira?

Não estava pensando. Essa era a verdade. Furioso, Padraic

sentou-se na banqueta diante do toucador, enquanto Shamus o

transformava em lorde Dunlanoe.

— Ainda não me disse quem está no salão com lady Lilianne.

Quando ouviu a resposta, ele se levantou de um salto.

— Por que não disse antes que ele estava aqui?

— Eu disse.

— Trate de se apressar. Preciso descer o quanto antes.

Quando Shamus terminou de ajeitar a peruca sobre sua cabeça e

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

retocou o pó e o rouge, Padraic estava a um passo de uma ex-

plosão temperamental.

— Maldição! O que Foxworth Morgan está fazendo aqui? —

Sabia que o coronel planejava capturar o Rebelde, mas... Por que

ali, em Dunlanoe. — Disse que ele perguntou por Lilianne? Não por

mim?

— Foi o que me disseram. O homem nem mencionou seu

nome.

Resignado, Padraic deixou o quarto caminhando tão depressa

quanto os sapatos altos e o ferimento na perna permitiam. Quando

se aproximou da porta do salão, a risada de Lily o fez parar.

Ela se inclinava para o coronel, a mão tocando delicadamente

a manga de sua jaqueta, um lindo sorriso iluminando seu rosto. Ao

ver lorde Padraic entrando no aposento, ela deixou de sorrir.

— Lorde Dunlanoe.

— Espero não estar interrompendo nada.

— Não, não, de jeito nenhum.

Morgan se pôs em pé, e Lilianne fez as apresentações.

— O coronel Morgan é meu primo — concluiu.

— Seu primo? — Temia ser reconhecido como o homem que

havia caído ferido no campo de batalha em Culloden, mas... Não.

Com a peruca, o pó e o rouge, isso seria impossível. Em alguns

momentos, nem ele mesmo se reconhecia. Mas não havia como

negar o intenso escrutínio de Morgan.

— Sim, nós nos víamos raramente, mas lembro-me de uma

visita que minha mãe e eu fizemos à casa dele em Londres. Foi um

momento delicioso.

— Principalmente por causa de minha querida irmã, se bem

me lembro.

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— Sim, lady Zoe. Espero que sua saúde tenha melhorado. Ela

era uma criatura muito delicada.

— Não a reconheceria agora. Na última vez em que a vi, Zoe

era a imagem da saúde. Ela se preparava para fazer uma viagem

por mar. Ela e o marido embarcaram para o Novo Mundo.

— Que aventura!

— Recebi uma mensagem pouco antes de deixar Londres.

Zoe agora é mãe, e eu sou tio. De um menino. Pretendo

empreender a mesma viagem para ir conhecer essa criança assim

que for possível. Assim que capturar o Rebelde. Então, pretendo

me demitir do cargo e ir viver uma vida pacata na América.

— Veio para capturar o Rebelde? — Lilianne empalideceu, e

Padraic decidiu que ela não era capaz de esconder as emoções.

— Excelente — disse, interferindo na conversa e capturando a

atenção de Morgan, desviando-a de Lilianne. — O infeliz anda por

aqui à vontade, assediando cidadãos honestos como... bem, como

sir Edwin.

— Sim, lorde Dunlanoe. Se bem me lembro, foi ele quem

solicitou nossa presença. Ou melhor, exigiu.

— E fez muito bem. Não concorda comigo, Lilianne?

— O quê? Oh, sim, é claro... Não podemos...— Estava

confusa, lenta. Dormira pouco, e agora pagava o preço da noite de

aventura e paixão. — Aceita mais chá, Foxworth?

— Não, obrigado. Na verdade, preciso ir. Tenho deveres a

cumprir. E agora que já entreguei a mensagem de seu pai, devo me

retirar.

O coronel retirou-se e, sonolenta, Lilianne seguiu para seus

aposentos levando a carta do pai.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Ele exigia que se casasse com Edwin.

Imediatamente.

Acusando-a de insanidade por ter deixado Winston Hall, ele

exigia saber por que ousava desobedecer a uma ordem sua, se a

enviara para lá com uma única finalidade, justamente a de se casar

com Edwin.

O casamento com Oliver Rafferty não parecia ter importância.

Seu único interesse parecia ser Edwin e o casamento.

Lilianne sabia que não poderia se casar com Edwin.

Especialmente depois da noite anterior. Sabia com certeza que o

homem era capaz de atos violentos, um homem enlouquecido por

uma enfermidade que ela, por mais que tentasse, não podia curar.

Odiava lembrar o olhar acusador do pai quando, derrotada,

confessara a incapacidade de salvar a vida da própria mãe. Por

que, em alguns momentos, detinha o poder de curar as pessoas, e

em outros nada acontecia?

Sabia que era só isso que Edwin esperava dela: a cura. E isso

era justamente o que não podia dar a ele.

— O que pode ser tão urgente a ponto de me tirar da mesa do

desjejum e da companhia de minha esposa?

Padraic viu Coyle entrar na caverna munido de uma lanterna.

Havia retirado a peruca, mas ainda tinha o rosto coberto de pó

e tingido pelo rouge.

— Fico feliz por ter vindo, embora não tenha ordenado a

Shamus para interromper seu desjejum. E por que estava tomando

café tão tarde?

— Nós, ah... dormimos até mais tarde. Não tinha nenhum

compromisso importante.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Bem, confesso que tudo isso também me surpreendeu,

embora já devesse saber...

— Saber o quê? O que faz aqui? Havíamos combinado que a

limpeza do lugar esperaria até a semana que vem, e só então

voltaríamos ao continente.

Padraic deixou os papéis que examinava sobre uma mesa

improvisada e encarou o amigo.

— Recebi um visitante hoje. O coronel Foxworth Morgan.

— O coronel esteve aqui?

— Em minha casa, sim. E é primo de Lilianne. Trouxe uma

mensagem do pai dela.

—Bem... presumo que ele não o tenha visto vestido de

Rebelde.

— É claro que não.

— Então, por que está tão preocupado? Já enganou pessoas

mais astutas do que esse oficial britânico.

— Não aposte nisso.

— Por quê? Acha que ele desconfia de você? De seu

disfarce?

— Não sei o que ele pensa... ou imagina saber. O que sei é

que já nos encontramos antes.

— Você e o coronel?

— Sim. Devia ter contado antes, mas não pensei que fosse

importante. Ou pensei... Não sei. Ele estava em Culloden.

— Como muitos ingleses.

— Sim, mas ele... Ele teve um papel diferente.

— Como?

— Bem, o combinado era que, caso a batalha parecesse ir

mal para os escoceses, e, francamente, nunca pensei que pudesse

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

ser diferente, eu deveria encontrar o príncipe na estrada para Inver-

ness, e de lá levá-lo para o The Rebel's Pride. A bordo do navio, ele

seria levado para a França, ou mais ao norte, para as Terras Altas.

— Um plano bem sensato.

— Sim. Mas ninguém contava com todo aquele pânico e com

a confusão. Ninguém esperava que eu fosse ferido logo no início da

batalha. Eu vestia uma túnica escarlate, um disfarce sem nenhuma

originalidade, mas que despertaria a ira de um terço dos homens ali

presentes. E isso fazia parte do plano.

— Ainda não entendo o que tudo isso tem a ver com o coronel

Morgan. Ou com o Rebelde.

— Cheguei à estrada para Inverness, e fui longe o bastante

para acreditar que poderia encontrar o príncipe. Mas a batalha era

uma incógnita... sempre mudando de direção... vindo na minha

direção. E eu perdia muito sangue. Finalmente, tive de me apoiar

em uma rocha. No estado delirante em que me encontrava,

imaginava que o príncipe iria até ali e me encontraria. Ou... talvez

tivesse simplesmente desistido do plano. Não sei. O fato é que fui

encontrado por um escocês. Ele carregava um homem idoso, seu

pai, e... Bem, quando nos encaramos, foi como se nos

conhecêssemos havia muito tempo.

— Talvez o conhecesse, mesmo. Já viajou muito, meu caro.

— Não. Como posso explicar? Não pensei tê-lo encontrado

nesta vida.

— Quando, então?

— Em outra vida, talvez? Não sei.

— Paddy, não existe outra vida.

— Eu teria concordado com você... antes de Culloden.

— Ah, bem... E o que aconteceu depois da chegada do

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

escocês?

— Tropas britânicas o seguiram. Houve uma luta feroz. Um

soldado o teria matado, mas eu o vi... e atirei contra ele.

— Uma aliança natural, considerando que o homem era um

escocês e partilhava de seus ideais.

— Sim, eu também acreditava nisso, até hoje... Mas agora sei

que foi mais do que isso.

— O que aconteceu depois de você ter atirado contra o

soldado inglês?

— Mais tropas chegaram. O escocês foi cercado, e era

evidente que estava fadado à morte. Então... Morgan apareceu.

— Ah, chegamos ao centro da questão!

— Tive o mesmo sentimento por ele.

— O de que já o conhecia?

— Exatamente. Todos nós sentíamos o mesmo. Era possível

perceber. Os escoceses se renderam ao coronel.

— Você disse que não havia esperança para eles.

— Sim, mas não foi esse o motivo. Sei que tudo soa muito

estranho, e nem eu mesmo consigo entender, mas... sei que foi

assim. E hoje de manhã, quando o coronel Morgan esteve em mi-

nha casa, tive o mesmo sentimento. E ele também. Reconheceu-

me. Ele sabe quem sou.

— Ele disse alguma coisa?

— Não.

— Então... Paddy, não acha que pode estar imaginando tudo

isso? Uma batalha como aquela de Culloden pode causar grandes

prejuízos ao equilíbrio mental de um homem. Não quero dizer que

esteja louco, mas...

— Não, Coyle. Morgan vai voltar. E não quero que vocês

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

caiam comigo. Acho que devemos remover nossos suprimentos

daqui. E estou pensando em me afastar por um tempo.

— Para onde vai? Por quanto tempo?

— Para o continente. Inglaterra, talvez. Não sei. Com o fim

das atividades do Rebelde, Morgan também partirá. Se eu ficar, o

Rebelde será capturado e desmascarado, e todos vocês correrão

riscos incalculáveis.

Há muito Padraic aceitara que a prisão seria seu fim. Não que

desejasse esse fim, mas tinha de conformar-se com o inevitável. O

que não admitia era a idéia de pôr em risco aqueles a quem mais

amava. Por isso, a farsa de lorde Dunlanoe deixara de ser um

disfarce seguro.

Lilianne olhou para a janela, esquecendo a bandeja com o

jantar intocado. A noite se aproximava, trazendo ânimo e

esperança. Em breve deixaria as paredes sufocantes do castelo

para ir ao penhasco. O dia havia sido longo...

Tinha dores na cabeça e nas pernas. Devia comer alguma

coisa, repousar... Devia ter descido para jantar com lorde Dunlanoe,

agido como se nada houvesse acontecido.

A preocupação dele havia sido evidente.

Um criado fora indagar sobre sua saúde. Não era sensato

despertar as suspeitas do lorde. Não com o plano que tinha em

mente.

Horas mais tarde, encoberta pela escuridão, Lilianne buscou a

saída dos criados levando um fardo oculto sob o manto. Meias, um

lençol, saiotes e um xale. Levava apenas o necessário e as moedas

que restavam da pequena fortuna que o Rebelde lhe havia dado no

primeiro encontro.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Se tudo acontecesse de acordo com seus planos, se pudesse

convencer o Rebelde a levá-la, ambos desapareceriam na noite.

Não retornaria a Dunlanoe. O bilhete para o lorde ficara sobre a

mesa. Pedia a ele para conter qualquer impulso de procurá-la. E

pedia também seu perdão por estar sendo tão ingrata.

Padraic a viu deixando o castelo. A nota ficou caída no chão,

esquecida por um momento, enquanto ele a seguia com os olhos.

Lily ficaria desapontada e magoada com a ausência do

Rebelde. Ele também sofria. Mas não havia nada que pudesse

fazer. Vê-la novamente só tornaria maior a dor quando tivesse de

partir. Lilianne precisava aceitar seu destino. E ele aceitaria o que a

vida lhe reservava.

Padraic permaneceu parado diante da janela, vendo o céu

mudar de cor até se tingir de rosa pouco antes do amanhecer. Dali

a viu retornar com os ombros caídos, decepcionada e triste. Só

então ele se abaixou para recolher a mensagem do chão,

devolvendo-a ao local onde a encontrara, na mesa ao lado da cama

dela. Depois, massageando a perna que doía sem parar, ele deixou

o quarto de sua amada Lilianne.

— Lorde Dunlanoe, não sabia que estava aqui.

Padraic levantou-se ao ver Lilianne entrar na sala de

desjejum, um aposento claro e ensolarado. Eram pouco mais de

nove da manhã e, embora houvesse dormido pouco, ela continuava

linda.

— Não quero ser inconveniente. Vejo que está ocupado.

— Não, não vá! — O que estava fazendo? Precisava lembrar

que estava ali representando um papel! Queria pôr tudo a perder?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Quero dizer... — Ele retomou com o tom agudo de lorde

Dunlanoe —, não estou fazendo nada importante. — E recolheu a

papelada espalhada sobre a mesa, entre os pratos com alimentos,

como se não tivessem nenhum significado. — Lidar com colonos 6

sempre um grande aborrecimento. Mas é o preço que se paga por

ser proprietário de terras.

— Seus colonos parecem muito satisfeitos, lorde Dunlanoe.

— É mesmo? — Não era essa a imagem que desejava

cultivar. A do senhor benevolente e justo. — Bem, quanto menos

reclamam, mais eles produzem, suponho.

— É uma maneira de tratar o assunto, suponho.

— Bem, devo me desculpar por tê-la abandonado no baile.

Devia ter conversado com você ontem, mas não a encontrei e... Ah,

o que importa é que conseguiu voltar para casa sem mim. Feliz-

mente, deixou a festa antes da chegada daquele maldito Rebelde.

— O Rebelde esteve lá... em Winston Hall? — E ele não sabia

que havia deixado a festa com o Rebelde? Ou que sir Edwin havia

tentado violentá-la?

— Foi o que ouvi por lá. Na verdade, eu estava... Bem,

digamos que eu estava indisposto naquele momento. Por isso não o

vi. Mas, pelo que entendi, o homem criou uma tremenda confusão.

Exibiu armas, inclusive, e fez ameaças horríveis. Vários cavalheiros

que tentaram se defender acabaram feridos. Felizmente, seu primo

chegou e se apresentou para capturá-lo.

— Oh... sim. E foi só isso que aconteceu?

— Só isso? O que esperava, minha cara? Cadáveres?

— Não, é claro que não. É que...

— Suponho que possa tentar curá-los, se quiser. Não foram

ferimentos mortais. Se achar conveniente, podemos ir à casa de

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Edwin e...

— Não! Por favor, eu... não desejo ver sir Edwin.

— É compreensível, considerando que Winston Hall é pratica-

mente um ímã para o Rebelde. Duvido que queira voltar lá.

Pode confiar em lorde Dunlanoe.

Lílianne fitou os olhos azuis. Lorde Dunlanoe estava

oferecendo uma desculpa para ela se manter afastada de Winston

Hall para sempre. E era isso que queria. Mas como lorde Dunlanoe

podia saber disso? Ele nem parecia ter conhecimento sobre o que

de fato acontecera no baile. Sobre o que sir Edwin havia tentado

fazer.

Lilianne aceitou a xícara de chocolate servida por um criado e

sorveu um pequeno gole.

— Sim — respondeu finalmente.— A idéia de voltar a Winston

Hall me amedronta. Não pretendo retornar.

— Excelente. Então, está acertado.

Sim, acertado. Era um alívio não ter de explicar aquela noite a

lorde Dunlanoe. Ele jamais acreditaria que seu amigo Edwin era

capaz de estupro, ou coisa pior. De qualquer maneira, Lilianne não

desejava insistir nesse assunto. Desde que estivesse protegida

contra Edwin e bem longe dele... Mas sabia que não estava. Não

depois da mensagem enviada por seu pai. Só se sentia segura na

companhia do Rebelde. Talvez o encontrasse mais tarde, sob o

manto da noite.

Quando terminou de beber o chocolate e deixou a xícara

vazia sobre a mesa, Lilianne descobriu que lorde Dunlanoe a

estudava com seus profundos olhos azuis.

— Há mais alguma coisa que queira dizer, milorde?

— Ah, sim. Ainda há uma coisa. — Padraic respirou fundo,

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

tentando formar as palavras em sua mente. No final, tudo que

conseguiu foi sugerir uma caminhada pelo jardim.

— Seu canteiro de ervas parece estar indo bem.

— De fato. Perdoe-me por perguntar, lorde Dunlanoe, mas

sua perna o está incomodando hoje?

Fazia um grande esforço para não mancar, mas era inútil.

— Bobagem. Não é nada. — E era melhor dizer logo o que

devia ser resolvido. — Ontem seu primo mencionou uma carta

enviada por seu pai. Tomei a liberdade de enviar uma mensagem a

ele, também.

— Escreveu para meu pai?

— Sim. — Sabia que ela não desejava voltar à Inglaterra, mas

era o melhor que podia fazer. O Rebelde não estaria por perto na

próxima vez em que Edwin decidisse importuná-la. — Deve

compreender que, quando acertamos sua estadia aqui em

Dunlanbe, fizemos apenas um arranjo temporário. Até se recuperar

do choque causado pela morte de meu... de seu marido.

— O que fiz para ofendê-lo?

— Ofender? Não, não, não é nada disso. Apenas penso que

estaria mais feliz com sua família.

— Entendo.

— É claro que não precisa partir imediatamente... Mas creio

que seria benéfico e vantajoso começar uma correspondência. As

passagens precisam ser providenciadas. Enviarei criados para

acompanhá-la, é claro.

— Não precisa se incomodar com uma viagem marítima. Meu

pai insiste em que me case com Edwin.

— Mas isso... maldição! — Padraic tocou a perna depois de

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

dar um passo mais largo. A dor era insuportável.

— O que foi? Oh, sua perna! Venha, sente-se aqui — Lilianne

o fez descansar em um banco.

— Não é nada. Lilianne, não...

— Não vou machucá-lo, Padraic.

— Mas... — Outra onda de dor o fez calar.

— Fique quieto.

— Pelo amor de Deus, Lily!

O olhar chocado da lady o fez silenciar. Esquecera-se de usar

o tom agudo de lorde Dunlanoe, o que a intrigava, certamente.

Precisava sair dali.

— Por favor, chame Shamus. Ele me ajudará a voltar para

casa.

— E então, tentará afogar a dor em uísque. Não olhe para

mim como se não soubesse do que estou falando, milorde. Tenho

visto como a bebida é sua companhia de todas as noites.

— Talvez eu seja apenas um homem que aprecia o torpor

proporcionado pelo álcool.

— Não acredito nisso.

— Isso prova que pouco sabe a meu respeito. Escute, não

quero que me cure. Não quero...

Mas era tarde demais. Lilianne deslizava as mãos por seus

joelhos, tocando levemente a seda fria. Se aquilo era um feitiço,

começou assim que se fez o contato. Era difícil conter os gemidos

de prazer.

Padraic respirou fundo, rezando para que o desejo não se

fizesse evidente demais.

De olhos fechados, ela entoava cânticos e orações, como os

que entoara com o cocheiro acidentado. Padraic não podia fazer

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

nada além de esperar. Sentia o calor que emanava daquelas mãos

delicadas, via a luminosidade em seu rosto... Não. Era melhor

pensar na batalha. Nos pântanos perto de Culloden. No frio, na

névoa e na confusão. Por Deus, como pudera acreditar que

encontraria o príncipe Charles naquele caos?

Mas havia tentado. Porque os que suportavam o príncipe

acreditavam no pior. E o pior acontecera.

Então, Padraic levara o The Rebel's Pride para a Escócia e

escondera a embarcação em uma enseada perto de Culloden.

Vestindo uma túnica escarlate do exército britânico,

desembarcara... e logo fora alvejado por uma bala de mosquete.

Não havia sido um desempenho brilhante. Não para alguém cuja

missão era salvar um príncipe. Ele mesmo necessitara de resgate.

E havia sido assim que conhecera Fox Morgan.

Por que pensava nisso agora? Não saberia dizer. Sua mente

não lhe pertencia. Seu corpo não estava mais sob seu comando.

Ele tentou concentrar-se no que acontecia. Lily estava

ajoelhada a sua frente. Seu rosto parecia brilhar. Padraic abriu a

boca para falar... mas nenhum som brotou de seus lábios. Estavam

no jardim. Tudo parecia estranho, fora de foco... Ou era ele? Não

sabia. A única certeza em seu mundo era Lily.

Lily e seu rosto radiante. Lily e sua pele acetinada.

Incapaz de conter-se, estendeu um braço para tocá-la. Ela o

encarou e sorriu. Nesse momento, Padraic esqueceu a realidade.

Fascinado, dominado pela paixão, tomou-a nos braços e beijou-a.

Foi um beijo longo, ardente e cheio de promessas. Um beijo que

chegou ao fim quando ela abriu os olhos e viu a peruca, o rosto

empoado.

— Oh...

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Lorde Dunlanoe também abriu os olhos... e empalideceu.

— Eu... eu...

— Por favor, lorde Dunlanoe, não se aborreça — ela o

interrompeu com voz calma. — Não foi... importante.

Absurdo! Como podia dizer que um beijo entre ela e o filho de

seu falecido marido não era importante? Era difícil resistir ao im-

pulso de tocá-lo, beijá-lo novamente.

Mas não podia. Considerando seus afetos por outro homem...

Era ela quem devia estar se desculpando.

Lily se levantou.

— Lorde Dunlanoe... Padraic... devemos esquecer o que

aconteceu aqui. Acha que é possível?

Ele se negava a encará-la.

— Por favor, entenda... Às vezes, quando a energia me

invade... a energia da cura, eu perco o controle.

— A culpa não foi sua, minha cara Lilianne. — Finalmente,

conseguia recompor-se. Ou melhor, recompor lorde Dunlanoe. —

Como disse antes, não teve importância. Foi... nada.

Lilianne piscou, espantada com a transformação, mas

satisfeita com a atitude do lorde. Era melhor assim.

— É bom saber que estamos de acordo. E agora, se me der

licença... Devo me retirar. Já tomei muito sol.

Padraic a viu se afastar com ar indiferente, até que, certo de

sua solidão, explodiu numa crise de revolta.

— Maldição! Mil vezes maldição!

Qual era o problema com ele? Teria perdido o juízo? Lorde

Dunlanoe jamais a beijaria.

Não. Essa era uma atitude do Rebelde. Não sabia mais onde

terminava lorde Dunlanoe e onde começava o Rebelde. Era apenas

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic. Um homem perdido de amor por Lily.

E Padraic não existia. Não podia existir. Não havia o suficiente

nele para preencher outra personalidade.

A situação, que já era difícil antes, agora se tornara

impossível. Como se manteria longe de Lily, amando-a como a

amava?

De volta ao castelo, Padraic notou duas coisas. Primeiro, os

dedos de seu pé direito doíam. Em seu acesso de revolta, chutara

uma pedra e os ferira. Segundo, o ferimento na perna não o

incomodava. A cicatriz ainda estava ali, mas, quando a tocava,

mesmo com força, não sentia nada. Nenhuma dor. Nenhum

incômodo.

Seria possível?

Sim. Lilianne devolvera sua perna ao estado original.

Removera toda a dor deixada pelo ferimento sofrido em Culloden.

Sorrindo, ele retomou a caminhada para o castelo.

Infelizmente, seu bom humor teve vida breve, porque Shamus o

recebeu na entrada com a testa franzida.

— Aquele coronel inglês voltou e deseja vê-lo. Eu o deixei no

estúdio.

— Há quanto tempo ele está esperando?

— Uma hora, mais ou menos.

— Por que não mandou alguém me avisar sobre a presença

do coronel?

— E arruinar seus momentos com lady Lilianne. Não julguei

conveniente.

Shamus o vira com Lilianne?

Não. Estava imaginando coisas.

— Na próxima vez em que recebermos visitas, informe-me

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imediatamente — ele disse, preparando-se para ir ao estúdio.

— Lorde Dunlanoe, é melhor retocar o rouge em seus lábios.

Não quer se apresentar ao coronel todo... borrado, quer?

Padraic precisou de dez minutos para consertar o estrago

causado pelo beijo ardente. Nesse período, perguntou-se se ela

também não havia entrado em casa exibindo as evidências de um

encontro mais íntimo.

Pensaria nisso mais tarde. Agora, precisava ir receber o

coronel Morgan. Ele o encontrou no estúdio, sentado em uma

poltrona de couro e bebendo conhaque.

— Ah, aí está você, lorde Dunlanoe. Já começava a me

perguntar se não desejava me receber.

— Estava fora, mas devia ter sido chamado imediatamente

após sua chegada. Por favor, aceite minhas desculpas.

— Não precisa dizer mais nada. Aproveitei o tempo para

analisar sua biblioteca. Notei que tem uma impressionante

variedade de livros aqui.

— Eram de meu falecido pai. Ler nunca foi uma de minhas

paixões — ele mentiu, levando o lenço de renda ao nariz.

— Realmente? Lamento. É possível aprender muito com os

livros.

— Devo mandar chamar sua prima Lilianne?

— Não foi ela que vim procurar.

— Não? — Experimentava novamente aquele sentimento

desagradável. O homem o reconhecia? E, caso o reconhecesse,

por que não enviara um regimento britânico para cercar o castelo?

— Tenho pensado em você desde o nosso último encontro —

Morgan comentou depois de sorver mais um gole de conhaque. —

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Sua fisionomia me é familiar. Quero dizer, não é sua aparência. É...

um sentimento, acho. Um sentimento de reconhecimento, entende?

— Bem, é possível que nos tenhamos encontrado antes.

Londres é...

— Não foi em Londres. Esteve na Escócia. Nos pântanos

perto de Culloden.

Não eram perguntas, mas Padraic se sentia obrigado a tratar

os comentários como tal.

— Receio não ter tido esse prazer.

— Não foi nenhum prazer, como bem sabe. Homens

morreram atingidos por artilharia ou cortados por baionetas.

— Bem, noto que você sobreviveu.

— Certamente. Mas alguns ferimentos são mais difíceis de

notar. O seu, por exemplo. Sua perna. Como vai?

— Não há nada errado com minha perna.

— Havia outro homem. Deve se lembrar dele. Um escocês.

Keegan MacLeod. Ele me culpou pela morte do pai. Ainda me

culpa, possivelmente.

— Duvido.

—Exatamente. Você o viu desde então. E minha irmã,

também. Fui eu quem providenciou para que você os levasse ao

Novo Mundo. Já sabia que era digno de minha confiança.

— Insisto em dizer, senhor, que está me confundindo com

outra pessoa.

— Não. Posso esquecer um nome, um rosto, quase tudo...

Mas não isso.

— Fala sobre coisas que não entendo.

— E acha que eu as entendo? Desde aquela manhã, tenho

sido assombrado por... Não sei. Mas existe uma ligação. Entre você

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e eu. Entre Keegan MacLeod e eu. Vai afirmar que não sente esse

elo?

Um desafio. Como negar? Padraic sabia exatamente o que

Morgan queria dizer. Naquela manhã em Culloden, arriscara a

própria vida para salvar a de MacLeod por causa disso. O escocês

compartilhara do sentimento. Jamais o haviam discutido, não tão

abertamente, mas quando Padraic o levara em sua embarcação

para as Carolinas, passaram uma noite toda acordados,

conversando, girando em torno da idéia. Nenhum dos dois se

dispusera a admitir o elo. Uma amizade que parecia ir além do

tempo. E a ligação não era menos forte com esse homem. Ele

salvara sua vida e a de MacLeod em Culloden, e lutavam em lados

opostos do campo. Mas Padraic não podia se dar ao luxo de

confiar.

— Não o conheço, coronel — ele disse, empregando uma

finalidade que, esperava, encerraria a discussão.

O coronel Morgan terminou de beber o conhaque, pôs o copo

sobre a mesa e encarou-o.

— Desliguei-me de minhas funções depois de Culloden, mas

ainda assim continuo me apresentando num uniforme. E nem sei

dizer por quê. Ou, talvez, eu saiba. Devo preveni-lo. Vim para

capturar o Rebelde. E posso reportar que ele deixou a área.

— O que significaria?

— Que teria realmente de partir — Morgan explicou sem

rodeios.

Padraic percebeu a referência a lorde Dunlanoe, mas fingiu

não ter notado nada ao responder:

— E se o Rebelde preferir não desaparecer?

— Nesse caso, não me deixará escolha.

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Lilianne estava aturdida.

Não havia mais dúvida alguma.

Lorde Dunlanoe. O Rebelde.

Impossível?

Não. Reconhecia as inúmeras diferenças entre as aparências

de um e outro, mas ambos beijavam com o mesmo ardor. Sim, o

mesmo beijo. E provocavam nela os mesmos arrepios. Se fossem

dois homens distintos, não exerceriam o mesmo efeito sobre suas

emoções e seu corpo. E ela não os teria afetado da mesma

maneira. E sentira a mesma reação em ambos.

Os olhos azuis... O Rebelde tinha olhos azuis. Pudera vê-los

algumas vezes por trás da máscara. A máscara... Por isso ele

nunca a tirava. Sabia que ela o reconheceria.

Os encontros no penhasco, tão perto do castelo... Ele devia

estar voltando para casa naquele primeiro encontro. Os olhares de

lorde Dunlanoe...

O Rebelde sabia quem era ela. Sempre soubera. Afinal,

nunca escondera seu rosto atrás de uma máscara.

Era... revoltante, para dizer o mínimo. O Rebelde a salvara de

Edwin, sim, mas quem a levara ao baile? E a deixara sozinha

naquele covil de loucos devassos?

Muitas falhas o delataram. Um esquecimento, uma palavra

impensada... As pistas sempre haviam estado ali, visíveis. Ela havia

sido inocente demais, ou estivera tão cega de amor pelo Rebelde

que não pudera perceber nenhuma delas.

Como pudera ser tão... estúpida?

E o que devia fazer agora?

Fugir com o Rebelde deixara de ser uma opção. Passara as

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

últimas duas noites esperando em vão no penhasco, enquanto ele

dormia em sua cama no castelo.

Como havia feito tal coisa com a mulher que dizia amar?

A resposta chegou lenta... dolorosa.

Ele não a amava. Nem como lorde Dunlanoe, nem como o

Rebelde.

Tudo havia sido uma farsa. Mais uma.

Depois de passar mais uma noite em claro, ela chamou a

criada para banhar-se, vestir-se e tomar o desjejum em seu quarto.

Fortalecida pelo alimento, dirigiu-se aos aposentos de lorde

Dunlanoe enquanto o sol ainda se erguia no horizonte.

Dormira pouco. E mal.

Por que Shamus espancava sua porta?

— Desapareça.

As batidas persistiram, mas cessaram bruscamente um

instante antes de a porta ser aberta.

— Lily? O que faz aqui? — E ele, o que faria? Estava sem

peruca, sem pó, sem rouge e sem roupas! — Não devia... Não

devia estar aqui.

— Eu sei.

— Lilianne, pelo amor de Deus! Ainda estou recolhido!

— Eu sei, mas não pude esperar até que se levantasse.

Precisava vê-lo.

— Não é um bom momento. — Onde estava Shamus? Por

que não aparecia quando era necessário?

Lilianne se aproximava da cama.

— Deve saber por que estou aqui. Tentei esconder, mas deve

ser mais do que evidente para você.

— Esconder... o quê? Minha cara menina, não sei do que está

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

falando. Mas poderemos discutir qualquer assunto que a esteja

incomodando, desde que me dê um instante para recompor-me.

Shamus! — Padraic gritou para a porta.

— Ele não está aqui. Na última vez em que o vi, comentou

alguma coisa sobre ir fazer o desjejum na cozinha. Sabia que você

estava dormindo, e tinha certeza de que ainda passaria muito

tempo na cama.

— E ainda assim, decidiu invadir minha privacidade.

— Não está feliz por me ver?

— Ah, sim, é claro que é sempre um prazer vê-la... Mas isso

não vem ao caso. Não devia estar em meus aposentos.

— Não considera apropriado? — Sua expressão era

absolutamente inocente.

— Não. Uma jovem dama não deve entrar nos aposentos de

um homem.

— Mas eu sou sua madrasta. Você mesmo disse.

— Não importa.

— O que não importa? Ter sido casada com seu pai? —- Ela

riu. — Tenho uma confissão a fazer.

— Talvez deva procurar um padre.

Lilianne ignorou o comentário.

— Nunca amei seu pai. Gostava dele, admirava-o, mas nunca

senti por ele o que sinto por você.

— Por mim?

— Deve ter percebido... especialmente depois de ontem.

O beijo. Maldição.

— Aquele beijo não significou...

— Para mim representou tudo. — Lilianne se inclinou sobre a

cama. Sobre ele. — Nunca senti nada parecido antes.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Nunca? E o Rebelde? E eu? Padraic sentia vontade de gritar.

E a noite que ela passara em seus braços? Não havia significado

nada? Ela esquecera?

Não podia dizer nada. Afinal, lorde Dunlanoe também era ele.

Ou não? Nesse momento, nada fazia sentido. Não conseguia pen-

sar com clareza.

— Lily, francamente, não...

— Diga-me que não sentiu o mesmo que eu.

— Sentir?

Lilianne fechou os olhos e sentou-se na cama.

— A terra se moveu...

— Sim, foi um beijo delicioso, mas...

— Ah! Sabia que concordaria comigo!

— Lily! Lilianne. Deve sair imediatamente, ou não serei

responsável por meus atos. — Pronto. Um certo temor a afugentaria

dali. Ameaçaria transformar-se em lorde Dunlanoe.

— Atos? Do que está falando?

— Ora, deve saber o que acontece entre um homem e uma

mulher... na cama.

— Já fui casada, lembra?

— Então, deve saber a que me refiro.

— Ohhhhh... — Lilianne passou a língua pelos lábios. —

Refere-se a nós dois? Juntos? Sob as cobertas?

Padraic fechou os olhos e respirou fundo. Era um tormento.

Um castigo. Só podia ser isso.

— Se continuar aqui com esse ar sonhador, serei levado a

pensar que espera que eu tire proveito de sua presença em meus

aposentos e...

— E? O que vai fazer comigo, lorde Dunlanoe?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

O que estava acontecendo, afinal? Lily sempre havia sido

doce, inocente... E agora tentava remover a coberta que cobria seu

corpo nu?

— Lily!

— Como está o ferimento? Consegui curá-lo?

— Sim. Não senti mais nenhuma dor. Muito obrigado, Lilianne.

— Por que não demonstra sua gratidão? — Ela se debruçou

sobre seu corpo até quase beijá-lo nos lábios. Depois de um ins-

tante, ergueu o corpo com um movimento brusco. — Oh, o que

estou fazendo? — gritou, levantando-se da cama e correndo para o

outro lado do quarto.

— Lilianne! Lily! O que houve? Volte...

Ela saiu e bateu a porta.

Mas o quê...?

Padraic pulou da cama e gritou por Shamus. Sabendo que

não obteria resposta, começou a se vestir sozinho, preparando-se

para compor o odioso personagem de lorde Dunlanoe.

Lilianne o reconhecera como o Rebelde? Não. Nesse caso,

teria dito alguma coisa. Teria ficado zangada, não... amorosa como

estivera.

E por que ela havia mencionado o beijo? Acreditaria em sua

paixão pelo Rebelde. Ela se dissera apaixonada. E agora, só

porque deixara de ir encontrá-la por duas noites, ela enchia a

própria cabebeça com noções românticas sobre lorde Dunlanoe

E se o Rebelde tivesse de se afastar em uma missão

qualquer? Salvar vidas. Roubar os ricos. Defender os oprimidos. E

ela ali, se atirando nos braços de outro homem! O fato de não ser

outro homem, mas o mesmo em outros trajes, não diminuís a

impotância de sua transgressão.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

O que fazia dele um perfeito idiota. Estava perdendo o juízo.

Era melhor que o Rebelde desaparecesse por um tempo. Afinal,

Padraic não podia mais manter os personagens.

Mas, antes de partir, tinha de fazer alguma coisa em relação a

Lily. E não sabia bem o que faria. Desceria ao salão de desjejum e,

quando a encontrasse, descobriria o que causra tão grande e

assustadora mudança.

Mas, ao descer, Padraic não teve tempo de procurar po

Lilianne, porque Edwin entrava pela porta principal, ainda pálido,

mas com uma aparência um pouco melhor do que na noite do baile.

— Ah, aí está você, lorde Dunlanoe. Gostaria de ir à cidade

comigo? Pretendo ir visitar o coronel Morgan e saber sobre o

progresso de sua investigação.

— Investigação?

— O Rebelde. Soube que o coronel tem uma pista. E, caso

não seja verdade, eu tenho.

— Interessante. Talvez devamos tomar uma taça de vinho

enquanto conversamos.

— Não posso ficar por muito tempo. Vai comigo à cidade?

— Lamento, mas estou cansado. Fui dormir muito tarde.

— De fato? — Edwin sentou-se e aceitou o vinho. — Alguém

que eu conheça? Ou agora convida as criadas para sua cama? Não

me diga... que lady Lilianne tem aquecido seus lençóis!

— Lilianne? Você enlouqueceu? Ela ainda está de luto por

meu pai! Além do mais, não me sinto atraído por seu tipo físico.

— Talvez por não ter provado de seus encantos ainda.

— E você já os experimentou, suponho. — Padraic forçou-se

a manter a calma.

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— Oh, sim. Em muitas ocasiões. A mulher não é tão virginal

quanto finge ser.

Padraic pôs as mãos nos bolsos da jaqueta para não apertar

o pescoço magro de Edwin.

— Aparentemente, não sou o único que a considera deliciosa.

Não quer saber quem mais a deseja? Lorde Dunlanoe, está

sentindo alguma coisa?

— Não, eu... estou bem. — Um dia o bastardo pagaria caro

pelas mentiras que estava contando. Estava tão distraído, que

quase não ouviu o que o infeliz dizia.

— O Rebelde...

— O que tem ele?

— Está muito interessado em Lilianne. Foi o que eu disse.

— Não seja ridículo.

— Ridículo? Não ouviu sobre o que aconteceu no baile? Oh,

sim... Já ia me esquecendo! Esteve ausente naquele momento de

crise. Muito... suspeito.

— Confesso que já havia encontrado meios para me entreter i

quando tudo isso aconteceu.

— Bem, o Rebelde invadiu o aposento e interrompeu um

interlúdio muito agradável... com lady Lilianne.

— Lástima.

— Sim, uma pena. Para ela, pelo menos. O sujeito a arrastou

gritando pelo corredor, e não se pode imaginar o que tenha feito

com a pobre dama antes de trazê-la para cá. Quero dizer... Ela

voltou para cá, não?

— Sim.

— Traumatizada?

— Lilianne nem mencionou o evento. Mais vinho?

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— Não — Edwin respondeu.

Mas Padraic já havia enchido sua taça.

O que foi inútil, porque ele não bebeu. Sóbrio, Edwin não re-

velava nada sobre os planos do coronel e as pistas relativas ao

Rebelde. Tudo que disse foi que, em breve, a população da região

saberia como o Rebelde havia sido levado à forca.

A lua se escondia atrás de nuvens baixas. Lilianne não

ousava portar uma tocha. Assim, montando uma égua que ela

mesma retirou do estábulo, seguia cautelosa pelo caminho para o

penhasco.

Por que havia invadido o quarto de Padraic naquela manhã?

Não teria sido mais simples revelar tudo que sabia?

Teria... se tivesse certeza de suas suposições.

Todas as evidências apontavam para Padraic e o Rebelde

serem a mesma pessoa. Eram muitas as indicações, mas só as

percebera depois daquele beijo. E agora estava ali, novamente no

penhasco, esperando, ouvindo...

Mas esta noite era diferente. Não estava ali para encontrar o

Rebelde, mas para segui-lo. Por isso se escondera entre as

árvores. Se sua teoria estivesse correta e ele fosse mesmo Padraic,

acabariam chegando ao castelo.

Lá ela o confrontaria e... O quê?

Não sabia o que ia fazer. O que diria. Certamente o acusaria

de ler mentido para ela. Mas poderia realmente culpá-lo? Esperava

que ele andasse pelo mundo revelando sua secreta identidade a

todos que encontrasse?

Mas ela não era como todos os outros. Era a mulher que o

amava. Que se havia entregado a ele. Que se dispunha a deixar

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

tudo para segui-lo.

A mulher que ele deixou no penhasco... esperando.

Era um idiota!

Padraic soube disso no instante em que invadiu o quarto de

Edwin e cutucou o corpo adormecido com o cano de sua pistola. Ou

Edwin se transformara em penas, ou estava cutucando uma

coleção de travesseiros.

A porta se abriu, e três soldados vestindo casacas escarlates

entraram no quarto. Edwin os seguia.

— Muito bem, Rebelde. Finalmente o peguei — Edwin anun-

ciou com um misto de triunfo e sarcasmo. — Agora vamos saber

quem você é realmente.

Padraic constatou que a porta principal estava bloqueada

pelos soldados, mas a outra, a que levava ao corredor, estava livre.

A chave pesava em seu bolso. Não poderia saltar sobre a cama,

correr até a porta, destrancá-la e fugir sem ser alvejado por uma

bala de mosquete.

Estava encurralado.

Mesmo assim, sorriu tentando parecer despreocupado.

— É, parece que dessa vez você conseguiu.

— Vamos ver se manterá esse sorriso quando estiver

balançando na ponta de uma corda.

— Uma forca? É isso que planeja para mim? Seria um evento

extraordinário. Espero que nesse dia esteja suficientemente

protegido. Porque receio que vá precisar de proteção.

— Ah! Palavras corajosas de alguém sob a mira de três

mosquetes. Deve estar imaginando que os camponeses

promoverão um levante para libertá-lo. Mas tenho a impressão de

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que eles pensarão apenas na própria pele. Esquecerão a suposta

lealdade que podem ter por você.

— Talvez. Mas, em seu lugar, eu permaneceria atento, sir

Edwin. Ou a morte já está tão perto, que não se preocupa mais com

ela?

O comentário enfureceu Edwin. Tanto, que ele se tornou

menos cauteloso.

Infelizmente, os três soldados não se abalaram com a

provocação. Todos continuavam apontando suas armas para o

peito de Padraic.

— Chega — Edwin gritou. — Chegou a hora de desmascará-

lo. Remova sua máscara.

— Não pode estar imaginando que divulgarei minha

verdadeira identidade. Isso removeria todo o mistério da lenda!

— Tire a máscara. — Ele apontava uma pistola para o peito

do Rebelde.

Padraic notou a própria arma esquecida sobre a cama. Não

poderia escapar dali atirando. As portas não serviriam de nada.

Havia uma janela atrás dele, mas os soldados não esperariam até

que saltasse para a liberdade. A menos...

Ele tomou uma decisão rápida.

Padraic agarrou a beirada do colchão e o jogou contra os

quatro oponentes. Depois pegou a mesa-de-cabeceira e a

arremessou contra a vidraça. Com um movimento da capa, saltou

para a noite.

Quando o primeiro tiro ecoou, ele já havia montado em Ràven

e galopava freneticamente para longe de Winston Hall.

Ela dormia sobre a relva quando ouviu o som de um animal se

aproximando. Lilianne se levantou depressa. Tentou montar, mas a

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égua, assustada, não se deixava dominar. Quando finalmente

conseguiu sentar-se sobre a sela, o som de cascos se perdera no

silêncio.

Seria difícil alcançá-lo. Mas, como estava quase certa de que

o Rebelde havia passado por ali a caminho do castelo, ela seguiu

na direção de Dunlanoe.

Quando deixou o esconderijo, um grupo de cavaleiros surgiu

no alto do penhasco. Lily tentou recuar, voltar ao esconderijo, mas

era tarde demais. Fora notada, e rapidamente cercada. Mas só

sentiu medo ao ouvir uma voz familiar.

CAPÍTULO VI

Quando Coyle invadiu o quarto, Paddy ainda dormia.

— Não pensei que o encontraria na cama com as coisas

como estão.

Padraic esfregou os olhos sonolentos e vermelhos.

— Bem, em algum momento eu tenho de dormir, não é? E de

que coisas está falando?

— Então não sabe?

— Não sei o quê?

— Lilianne está em Winston Hall.

— O quê? — Ele se levantou de um salto. — Isso é ridículo!

Ela está aqui!

— Não está. Sally, a jovem que ajuda Alison com o serviço da

casa, comentou que sua sobrinha viu Lilianne em Winston Hall.

— Ah, e você acreditou em fofocas de criadas? — Padraic

lavou o rosto para despertar.

— Paddy, lady Lily não está em seus aposentos, e ninguém a

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viu no castelo hoje — anunciou Shamus ao entrar.

— E ontem? Ela não desceu para jantar — Lorde Dunlanoe

começava a surgiu em suas vestes coloridas.

— Comeu em seus aposentos. Falei com uma das criadas e

soube que ela esteve no castelo até ontem à noite.

— O que mais essa tal sobrinha de Sally contou?

— Foi Alison quem conversou com ela. Imagino que tenha

sido só isso. Apenas que Lilianne estava lá.

— Ele... a feriu?

— Ninguém disse nada.

— E Alison não perguntou? Tem idéia do que Edwin pode

fazer com Lilianne?

— Paddy, ninguém sabe se ela está lá contra vontade. Você

mesmo confessou ter dúvidas sobre essa mulher. Acha que esta-

mos indo longe demais presumindo que voltou a Winston Hall por

vontade própria, ou para cumprir o desejo do pai?

— Ela não faria tal coisa. Shamus, o pó e o rouge, por favor.

— Vai sair?

— Vou visitar Edwin.

Edwin o fez esperar cerca de vinte minutos antes de

apresentar-se. Quando chegou ao salão, estava acompanhado pelo

coronel Morgan.

— Sua visita é inesperada, meu caro. A que devo a honra?

— Vim falar com lady Lilianne.

— Receio que ela esteja indisposta no momento.

— Então, ela está mesmo aqui.

— Oh, sim. Ela não o informou? Que falta de boas maneiras!

Deve ter sido a ansiedade para voltar a Winston Hall.

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— E por que ela estaria tão ansiosa?

Edwin serviu vinho em uma taça.

— Para voltar para mim, suponho. Foi o que ela alegou. Por

outro lado, quem pode entender as mulheres?

— Gostaria de falar com ela por um momento.

— Já disse que não é possível, mas direi a ela que esteve

aqui. Fique descansado.

Muito bem. Se não podia ver Lilianne, faria com que Edwin se

mantivesse bem longe dela até pensar em um plano. Até poder

retornar... como lorde Dunlanoe, ou como o Rebelde.

— Estou a caminho da cidade. Quer me acompanhar, Edwin?

Coronel?

Edwin não desejava sair de sua casa, por isso Padraic decidiu

ficar. O coronel Morgan se retirou, mas Paddy fingia ignorar as

insinuações sobre ser hora de se despedir. Depois de um tempo,

Edwin anunciou que estava se retirando para vestir-se para a

refeição. Como não foi convidado para ficar e comer com o grupo,

Padraic não teve alternativa se não ir embora.

Em sua casa, ele despiu o disfarce de lorde Dunlanoe e, com

o cair da noite, transformou-se mais uma vez no Rebelde. Já se

preparava para montar quando, sentindo uma certa agitação no

animal, ele olhou em volta. A mão buscou o cabo da pistola sob a

capa, mas uma voz o deteve.

— Não vai conseguir sacar e atirar antes de levar um tiro,

lorde Dunlanoe.

Sabia que esse momento chegaria.

— O que faz aqui?

— Vim salvá-lo de cometer um terrível erro — respondeu

Morgan, que dessa vez não usava o uniforme militar. — Presumo

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que pretenda resgatar Lilianne?

— E sua intenção é me impedir de sair?

— Se for necessário... Mas prefiro não ser forçado a tomar

medidas drásticas.

— Somos dois, então.

— Ele o espera. Sabe disso, não?

— Havia considerado essa possibilidade.

— E dessa vez não poderá escapar.

— O que sugere? Devo simplesmente desistir?

— Se eu quisesse realmente capturá-lo, você já estaria

amarrado.

— Não acredito que Lilianne esteja lá por vontade própria.

Acha que devo simplesmente fingir que não sei de nada?

— É o que o pai dela deseja.

— Lorde Westbury...

— O fato de terem visões políticas diferentes não significa que

o homem não tenha seus direitos.

— Vou buscar Lily. Se pretende mesmo impedir-me, vai ter de

usar sua pistola.

— Está sendo tolo.

— Não é a primeira vez.

— Se insiste mesmo em ir, espere ao menos até eu chegar

em Winston Hall. Manterei Edwin ocupado. Mas saiba que o lugar

está cheio de soldados.

— Sim, eu sei. Já os encontrei.

— Ah, então esteve em Winston Hall ontem à noite. Eu já

imaginava, embora Edwin não me tenha contado nada.

— Ele não deve ter ficado muito contente. Consegui escapar

do comitê de boas vindas que ele organizou para me receber.

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— Talvez hoje não tenha a mesma sorte.

— Veremos. Por que está fazendo tudo isso? Morgan

encolheu os ombros.

— Também tenho grande carinho por Lilianne.

Mas Padraic sabia que era mais do que isso. Não entendia a

que devia tão grande lealdade, mas, nesse momento em particular,

não desejava especular.

Talvez fosse um erro confiar em Morgan, mas... O que mais

poderia fazer?

Padraic cavalgou e esperou por Morgan em um recanto

escuro do jardim de Winston Hall. Quando o viu chegar, esperou

que o coronel batesse na porta e fosse atendido por um lacaio. Só

então ele saltou das sombras e, com uma pistola apontada para as

costas do coronel, ordenou:

— Leve-nos imediatamente a sir Edwin.

Mas isso não foi necessário. Quando atravessavam o hall de

entrada sob a mira da pistola de Padraic, Edwin abriu a porta do

salão e, com uma taça de vinho na mão, surgiu pálido e

cambaleante.

— O que está acontecendo aqui?

— Não acha que é óbvio? O coronel e eu viemos visitá-lo.

— Não vai conseguir escapar, Rebelde. Não permitirei!

— Realmente? Caso não tenha notado, está a um dedo da

eternidade. O meu dedo... sobre o gatilho! Traga lady Lilianne até

aqui — ordenou ao criado, os olhos fixos em Edwin.

— É melhor fazer o que ele diz — sugeriu Morgan com tom

nervoso.

O que não era compreensível. Não depois de tê-lo visto no

campo de batalha.

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— Não posso simplesmente entregá-la a esse... bandoleiro!

— Não há alternativa.

— Ouviu o coronel. Não creio que ele queira desistir da vida

por conta de sua obsessão.

— Isso não acaba aqui, Rebelde. Vamos capturá-lo.

— Ah, sim, estou certo disse.

— Duvida?

— Tenho certeza de que tentarão — Padraic riu, mais calmo

ao ver o sinal com que Edwin ordenou ao criado para ir buscar

Lilianne.

Minutos depois, ainda usando o coronel como escudo, ele

deixava Winston Hall levando Lilianne na garupa do cavalo.

— Faça alguma coisa — Edwin gritou. — Morgan, ele está

fugindo!

— O que quer que eu faça? Se atirar, correrei o risco de ferir

minha prima! Além do mais, sei que o pegaremos na próxima vez.

— Esteja certo disso, coronel. Nós o pegaremos, porque

agora sei quem está por trás da máscara.

Não podia ir para o castelo. E se alguém os estivesse

seguindo? Padraic deteve a montaria em um bosque e, protegido

por árvores frondosas, desmontou. Queria saber por que Lily estava

tão silenciosa. Por que o tratava com rancor, como se o acusasse

de algo terrível.

— Lilianne, eu... — Ao ver seu rosto pálido e abatido, ele não

resistiu ao impulso de beijá-la.

Foi um beijo ardente, apaixonado, mas que terminou de

maneira brusca quando ela o empurrou.

— Essa é sua solução para todos os problemas, lorde

Dunlanoe? Um beijo?

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Lorde Dunlanoe?

— Desde quando...?

— Desde quando sei quem você é? Há tempo suficiente.

Padraic passou a mão pela cabeça, sem saber como reagir.

— Maldição! — explodiu. — Lily, eu... não queria que fosse

assim. Nunca tive a intenção de magoá-la...

— Eu sei. Mas eu... — Ela respirou fundo para conter uma

lágrima. — Ah, não sei mais nada! Sabia que havia decidido fugir

com você, com o Rebelde, e nunca mais voltar? Sabia disso?

— Sim, eu sabia.

— Estava disposta até a permanecer no castelo com lorde

Dunlanoe.

— Esse homem não sou eu!

— Não inteiramente, mas há pedaços seus nele. A bondade,

por exemplo.

— Por isso esteve no quarto dele naquela manhã?

— Não. Fui ao seu quarto para castigá-lo, para provar que

não poderia me fazer de idiota. Mas... foi tolice minha.

— Muitas vezes desejei contar toda a verdade, Lily.

— Mas não disse nada. Como eu também não fugi com o

Rebelde. Mais cedo ou mais tarde, a luz do sol nos teria alcançado,

e então... O que nos teria acontecido?

— Escute, devo deixar a Irlanda. Por um tempo, pelo menos.

O coronel Morgan sabe quem sou.

— Como?

— Não tenho certeza. Já o conhecia de outros tempos, desde

a Escócia, e... há um estranho elo entre nós. É algo que não

consigo descrever, como um sentimento de reconhecimento... Mas

eu não o conhecia antes daquele encontro. E também nunca havia

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encontrado Keegan MacLeod. Ele também estava lá. Mas Morgan

me reconheceu assim que chegou em Dunlanoe.

— E não o capturou? Mas... ele foi enviado para prender o

Rebelde!

— Sim, mas está me dando uma chance de partir.

— E voltar depois?

— Não sei. Oh, Lily, não posso lhe oferecer um futuro. Sou

um ladrão, um contrabandista! Mantenho uma embarcação

escondida em uma enseada sob o penhasco. Ao amanhecer,

partirei nela para... Nem sei para onde vou, ou se um dia poderei

voltar. Não posso deixá-la sozinha em Dunlanoe. Não com Edwin

por perto. Não há como imaginar o que ele é capaz de fazer.

— Por que não me leva com você?

— Não, Lily. Por mais que a queria a meu lado, seria egoísmo

levá-la. A vida a bordo de um navio não é para mulheres. Combinei

um encontro com Morgan para mais tarde. Ele cuidará de sua

segurança.

— Mas...

— Lily, sou um homem atormentado. Vivo uma mentira, uma

vida dupla na qual minha alma não cabe mais. Na verdade, não tive

vida até conhecer você. E não causarei nenhum mal à pessoa que

mais amo no mundo.

Ele a amava. E a estava abandonando. Lilianne sentia que

seu coração poderia explodir de dor. Mas recusava-se a exibir seu

sofrimento. Seria forte por ele. Como ele era forte por ela.

— Quando vai encontrar Morgan?

— Pouco antes do amanhecer.

— Então, ainda temos esta noite. A última.

Sem dizer nada, eles montaram e cavalgaram para o refúgio

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secreto perto da catarata.

Depois de um encontro apaixonado sob o céu estrelado, Lily

falou um pouco sobre seu passado. Padraic a ouvia interessado.

— Então, nasceu na Irlanda? E foi criada aqui?

— Não. Algo estranho aconteceu quando eu era um bebê. Fui

retirada do berço...

— Paddy lembrou as palavras da sra. Ferguson.

— Quem fez isso?

— Ninguém sabe ao certo. Meu pai culpou os colonos

irlandeses que trabalhavam em suas terras. No dia seguinte fui

encontrada, sã e salva, mas depois deixamos a Irlanda para nunca

mais voltar.

— No entanto, ele a mandou de volta para o casamento.

— Porque não teve escolha. Não havia nenhum pretendente

na Inglaterra. As pessoas em Londres me julgavam... estranha.

— Por causa das curas?

— Sim. Meu pai odiava quando uma delas acontecia. Eu

tentava evitar, mas era como se não tivesse nenhum controle sobre

o processo. Com o tempo, os rumores começaram.

— E os homens tolos da Inglaterra, obviamente cegos a sua

beleza, passaram a desprezá-la.

— Exatamente. Um dia, meu pai recebeu uma mensagem de

sir Edwin White. Eles eram conhecidos, embora distantes, e sir

Edwin pedia minha mão em casamento.

— Seu pai concordou?

— Não no início. Mas, depois da doença de minha mãe... e de

sua morte... Sim, creio que ele passou a ver os méritos desse

enlace.

— Não permitirei que ele a tenha, Lily.

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— Não quero falar sobre isso agora.

— Mais tarde, então.

— Sim, mais tarde. Agora, quero que me ame mais uma vez.

Mais tarde, ainda no cenário idílico composto pela catarata e

pela paisagem que a cercava, Padraic indagou:

— Lily, preciso saber: Edwin a feriu de alguma maneira?

— Não. Ele fez ameaças, e mesmo assim, poucas. Mas não

tentou cumpri-las.

— Ah... Fiquei preocupado quando o deixei furioso como

estava. Lorde Dunlanoe se recusava a partir, forçando-o a discutir

política e outras questões do mundo, ocupando-o até que, ao

anoitecer, o Rebelde pudesse ir resgatá-la. Mas houve um intervalo

entre a saída de um e a chegada de outro, e pensei que...

— Ah, então foi isso. Por isso ele não retornou.

— Suponho que sim.

— Como começou essa sua vida dupla?

— Quer ouvir a história do Rebelde e de lorde Dunlanoe?

— Sim, eu quero.

— Não é tão excitante quanto imagina. E não acredito que

meu pai e eu tenhamos imaginado que a farsa se estenderia por

tanto tempo. Não quando tivemos a idéia, pelo menos. Foi um plano

simples para mantermos Dunlanoe em nossa família. Edwin insistia

em tirar as terras de meu pai. Como parente protestante de um

proprietário católico, ele tinha esse direito. Na época, eu estava na

Inglaterra estudando e me divertindo, como muitos outros jovens.

Meu pai havia me mandado para lá sob a tutela do pai de Coyle

Burns, mais um truque para burlar as Leis Penais. A família de

Coyle é protestante, mas seu pai e o meu eram grandes amigos.

Enfim, quando meu pai entrou em contato comigo, voltei para casa

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tomado por uma indignação típica da juventude, pronto para ir bater

na porta de Edwin e dizer tudo que eu pensava dele e de seu plano

para roubar minha herança.

— E você fez isso?

— Não. Meu pai me convenceu de que seria inútil. Edwin era

amparado pela lei inglesa. Para manter Dunlanoe em nossa família,

teríamos de encontrar outro caminho.

— E foi assim que nasceu lorde Dunlanoe.

— Exatamente. No início, ele era apenas um almofadinha

superficial. Simplesmente um protestante. E um protestante da pior

espécie, alguém disposto a tomar a propriedade e o título que

pertenciam ao próprio pai.

— As pessoas não desconfiaram qual era seu verdadeiro

objetivo?

— Imagino que sim. Algumas, pelo menos.

— E o Rebelde? Surgiu na mesma época?

— Um pouco depois. Quando compreendi qual era a situação

na Irlanda, como não podíamos importar ou exportar sem esbarrar

na Inglaterra, como os ingleses arruinavam nossa economia... Bem,

decidi passar por cima das regras.

— Tornou-se um contrabandista.

— Sim, foi isso. A progressão desse estágio para o Rebelde

foi natural. Meu pai não gostou muito da idéia, é verdade...

— Ele temia por sua segurança.

— Sim, e por isso lorde Dunlanoe ganhou cores mais fortes e

o temperamento de um idiota. Ninguém imaginava que um homem

como ele poderia cavalgar pelo país criando confusão, seduzindo

belas mulheres...|

— Ah, e o Rebelde teve muitas delas?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Você será a última. Para sempre...

— Gostaria de acreditar em você, Padraic. Realmente...

— Lily... — ele murmurou, o rosto pálido e a voz embargada

pela emoção. — Olhe só para aquilo!

Lilianne seguiu a direção apontada por Padraic e ficou

fascinada pela imagem única, mágica.

Sobre a superfície do lago, pairando na névoa e brilhando

intensamente, um arco de prata emoldurava toda a paisagem.

— Oh, meu Deus — ele murmurou. — Então... é real! Não é

só uma lenda!

— Oh, Padraic, o arco existe de fato! E é nosso. Veio para

abençoar nosso amor, para nos mostrar que ainda podemos ter

esperança!

O arco da lua.

Um conto, um mito criado por crenças muito antigas, uma his-

tória de druidas e sonhos. Luna, a deusa da lua, já havia sido ado-

rada na Irlanda de seus ancestrais. A Irlanda que pulsava em seu

sangue, em seu coração. Padraic podia vê-la claramente naquele

arco. Era um sinal.

— Venha, minha doce Lily, vamos sair daqui antes que o arco

desapareça. Ele nos guiará e protegerá, seja qual for o caminho

que seguirmos.

A fantasia chegava ao fim. A noite logo se desmancharia em

mais um dia, e era hora de dizer adeus.

No penhasco sobre Dunlanoe, Padraic deteve o cavalo para

despedir-se de sua amada. Ali se separariam.

— Encontrarei Morgan em Dunlanoe, Lily. Procure-o, e ele a

protegerá.

— Padraic...

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Por favor, não diga nada. Não torne esse momento ainda

mais difícil. Se eu partir agora, Dunlanoe será poupada. Lorde

Dunlanoe será um senhor ausente. Como muitos outros. Meu povo

seguirá vivendo da terra. Não posso permitir que Edwin acabe com

tudo. Já viu do que ele é capaz.

— Mas... não voltarei a vê-lo? Não creio que possa suportar...

— Pode, porque é forte e sabe que a amo. Sempre a amarei.

E precisa pensar em algo maior do que nós dois.

Ele a beijou, e depois partiu sem olhar para trás. Desapareceu

na penumbra que precede o amanhecer.

Lily aproximou-se do penhasco e olhou para baixo. Em algum

lugar da enseada estava a nau que o levaria para longe dali. Para

sempre, possivelmente. Ela olhou para o abismo, sentiu o coração

oprimido... e aos poucos caiu de joelhos sobre a terra dura.

O castelo ainda estava escuro quando Padraic chegou.

Subindo pela escada da frente, ele removeu a capa enquanto

caminhava, e em seus aposentos trocou a vestimenta negra do

Rebelde por roupas comuns. Com os cabelos escuros presos por

uma tira de couro e botas nos pés, ele não lembrava em nada a

lendária figura misteriosa que assombrava protestantes ricos.

Também não havia em sua figura nenhum traço do detestável lorde

Dunlanoe.

Estava descendo a escada a caminho do salão, quando ouviu

as batidas na porta. Morgan não devia fazer tanto barulho. Mesmo

assim, ele foi abrir a porta, e recuou alguns passos ao se deparar

com inúmeras túnicas vermelhas que, uma a uma, foram invadindo

sua casa. Dois soldados o imobilizaram.

— O que significa isso? — ele indagou indignado.

— Padraic Rafferty, lorde Dunlanoe, está preso por traição —

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

anunciou um terceiro guarda.

— Traição? Mas o quê...? Exijo ver o coronel Morgan!

— E bom que queira vê-lo, senhor, porque ele espera por nós.

CAPÍTULO VII

Morgan acordou assustado e se vestiu a caminho da porta.

Por que alguém o acordava tão cedo? E por que tinha a impressão

de que as batidas na porta traduziam desespero?

— Já vou, já vou!

Empunhando uma pistola, ele abriu e se surpreendeu com o

rosto pálido do outro lado.

— Lilianne? O que faz aqui? Aconteceu alguma coisa?

Ela se virou, removeu o capuz com que cobria a cabeça e

virou-se para encará-lo. O sentinela sonolento foi deixado do lado

de fora.

— Como teve coragem? Não havia um acordo entre vocês?

Ele acreditava que sim.

— Lilianne, do que está falando?

— Não finja que não sabe!

— Eu não sei! Está me acusando de alguma coisa?

— Vai negar que fez um acordo com Padraic... com o

Rebelde?

— Você sabe...?

— Sim, eu sei, e também sei que haviam combinado um

encontro. Ele o esperava antes do amanhecer.

— Bem, se sabe disso, deve saber que compareci ao local do

encontro. E ele não estava lá.

— Mentira! Ele estava lá. Chegou antes da hora marcada,

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

como seus soldados.

— Do que está falando? Não levei nenhum soldado. O acordo

era que nos encontraríamos sem testemunhas.

— Você não cumpriu o combinado.

— Lilianne, fale de uma vez! O que aconteceu?

Eu estava lá. No penhasco. Vi seus soldados levando Padraic.

Prisioneiro. Tentei segui-los, mas eles já iam longe. Por isso vim

para cá.

— Eu... voltei para cá há menos de uma hora, certo de que

Padraic havia faltado ao encontro... Então... Ele foi preso!

— Quer me convencer de que não sabia?

— Eu não sabia!

— Eu estava lá! Vi os soldados com suas túnicas vermelhas!

— Podem ter sido soldados britânicos, mas não estavam sob

o meu comando. Disse que os seguiu?

— Tentei, mas foi impossível. Eles seguiam para o sul, na

direção de Kilroyne.

— Ou Winston Hall. — Fox vestiu a jaqueta e terminou de

ajeitar-se em menos de um minuto.

— Winston Hall? O que sir Edwin pode ter a ver com isso?

— Ele sabe quem é o Rebelde. E não fui eu quem o informou,

esteja certa. Essa era uma das coisas que eu pretendia dizer a

Padraic no nosso encontro. Maldição, ele já devia estar em mar

aberto!

— O que vai fazer?—Lily perguntou ao vê-lo guardar a

espada na bainha.

— Vou cuidar do assunto. Havia tropas na cidade antes da

minha chegada. Devo começar por elas, mas sei onde essa busca

vai me levar. Fique aqui. Mandarei notícias assim que descobrir o

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

que está acontecendo. E, se quer um conselho, é melhor esquecer

esse homem.

— Ah, sim? E você conseguiria?

Morgan suspirou e balançou a cabeça. Nunca esqueceria

aquela maldita batalha?

Lily o viu sair e fechar a porta. Sozinha, encolheu-se sob o

manto e puxou o capuz para cobrir os cabelos claros. Depois se

aproximou da janela e, com a testa apoiada contra o vidro frio,

esperou. Esperou até vê-lo cavalgar para longe dali, e só então

correu para a porta.

— Ora, ora, finalmente! — Edwin exclamou satisfeito ao entrar

na cela.

Padraic tentou agredi-lo, mas guardas armados o contiveram.

— Então, esse é o Rebelde em sua verdadeira pele! Não

parece tão formidável agora com essas correntes impedindo seus

gestos heróicos. O que houve? Esgotou seu sortimento de truques?

Não vai tentar me convencer de que é lorde Dunlanoe, o covarde

efeminado?

— Sou Padraic Rafferty, barão de Dunlanoe.

— Só até eu tirar de você título e terra. A corte decidirá a meu

favor, uma vez que você já terá sido levado à forca quando eu fizer

minha petição.

— Jamais terá Dunlanoe.

— Engana-se, meu caro.

— De fato? Acha que ninguém percebeu os olhos fundos, a

pele pálida. Você está doente, Edwin. E está no estágio final da

doença. Não viverá para reclamar Dunlanoe. Deve ter o corpo

coberto por pústulas.

— Isso não muda nada! — Edwin respondeu furioso. — Nada!

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

E ainda nem sei se o enviarei para a forca. Talvez o mantenha aqui,

trancado nesta masmorra. Sabia que ela existia? Não. Poucos sa-

bem. Sim, creio que o farei meu hóspede. Assim, poderá estar

sempre bem informado sobre os progressos de Dunlanoe... e da

doce Lilianne.

— Você nunca a terá.

— Acha que não? Pois saiba que a dama espera por mim lá

em cima. Na sala.

— Mentira!

— Se prefere pensar assim...

Edwin se virou para sair, acenando para que os guardas o

seguissem.

— Se encostar um dedo nela...

— O que vai fazer? Nada. Oh, sim, tê-lo aqui começa a me

entreter muito. Essa sua ira impotente é hilária. Em seu lugar, eu

não desperdiçaria tanta energia em vão.

— Que surpresa!

Lilianne removeu o capuz ao ouvir a voz conhecida. Ela en-

goliu em seco, tentando esconder a reação provocada por sua

aparência. Edwin estava pior do que na última vez em que o vira,

alguns dias atrás.

— A que devo a honra de tão inesperada visita?

— Você o tem, não é?

— De quem está falando?

— Não brinque comigo. Sei que Padraic está aqui. — Era um

blefe, mas Lilianne estava disposta a jogar e arriscar tudo pela vida

do homem que amava.

— Ah, refere-se ao Rebelde, presumo.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Quero que o liberte.

— Enlouqueceu, milady?

— Não, milorde. — Lilianne sentou-se no divã de frente para

ele, sentindo o peso da pistola que levava sob o manto. Sabia que

não poderia usá-la, mas era bom saber que a tinha ali, ao alcance

da mão. Ou melhor, não poderia usá-la... ainda. — Estou apenas

propondo uma barganha. A vida dele... pela sua. Solte-o. Permita

que ele deixe a Irlanda, e eu o curarei de sua enfermidade. Simples,

não?

— Não foi capaz de curar-me antes. Por que acha que poderá

fazê-lo agora?

— Porque agora tenho uma motivação que antes não existia.

— Padraic Rafferty?

— Sua vida pela dele, sir Edwin. Estas mãos — ela as exibiu

com movimentos graciosos—podem realizar milagres e mágicas.

Por elas flui a energia que cura. Já deve ter ouvido comentários

sobre o que fiz. O jovem O'Mally, o cocheiro, a mulher e seu bebê...

O que faria antes de tudo, sir Edwin, se não tivesse mais o medo de

morrer? Se sua carne revivesse e seu corpo se libertasse da dor, da

fadiga e fraqueza?

— Não posso libertá-lo.

— Nesse caso, não haverá acordo. — Lily ocultou as mãos

sob o manto.

— Posso obrigá-la a fazer o que eu mandar. — Edwin sacou a

pistola que levava no bolso e apontou-a na direção de Lilianne. —

Eu a forçarei a curar-me.

— Já tentou isso antes, Edwin. E não funcionou. Não vai

funcionar. Se me matar, não terá mais nenhuma esperança.

Morrerá.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Ele baixou a arma, deixando-a cair sobre a almofada a seu

lado. Depois se reclinou e fechou os olhos.

— Cure-me, e eu o libertarei. Lily riu.

— Não pode acreditar que sou tão ingênua! Só o curarei

quando Padraic estiver longe daqui, em segurança. Ele está aqui,

não é?

— Sim, está. Maldição, mulher, como poderei ter certeza de

que cumprirá sua parte no acordo? E se, depois de libertar o

condenado, você se recusar a agir em meu favor?

— Eu não seria tão tola. Conheço seu gosto pela tortura. Farei

o que estou dizendo. — Ou tentaria, pelo menos.

— Farei como diz. Eu o libertarei.

— Preciso vê-lo. Tenho de saber que está mesmo fazendo o

que diz.

— Acabe com isso e... cure-me.

— Deixe-me ver Padraic. Edwin chamou um criado.

— Traga o Rebelde até aqui — ordenou. Ele esperou que o

lacaio se retirasse para voltar a falar com Lilianne. — Percebe, é

claro, que ele não partirá, se pensar que está aqui contra sua

vontade.

— Farei o possível para convencê-lo de que não é esse o

caso. — Para isso, permaneceria impassível quando ele surgisse

na sala.

Ao vê-lo entre os dois soldados, Lilianne logo compreendeu

que Padraic havia sido espancado. Havia sangue seco sobre

diversos ferimentos, e seu olho esquerdo estava inchado e escuro.

Sentia as mãos quentes, prontas para tocá-lo. Podia sentir o fluxo

da energia. Mas conteve-se, fitando-o como se não tivesse nenhum

interesse pessoal em sua integridade física.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Padraic empalideceu ao vê-la ali.

— O que está tramando, Edwin?

— Ei, ei, acalme-se, meu caro. Estou considerando a hipótese

de salvar sua vida.

— Por quê?

— Por quê? Digo que pode ser poupado, e você me pergunta

por quê? Sempre o julguei um tolo.

— E você sempre foi um idiota, mas isso não faz nenhuma

diferença agora. A pergunta permanece. Por quê?

— Porque tomei essa decisão. Mas não pense que o deixarei

ficar na Irlanda, ou que ainda terá Dunlanoe. Terá sua vida, apenas,

por mais imprestável que seja.

— O que tem a ver com isso, lady Lilianne?

— Não sei do que está falando.

— Lily, se ele a está obrigando...

— Ele não me está forçando a nada que eu não queira fazer.

Winston Hall é meu lugar. É aqui que devo ficar.

— Maldição!

— Modere sua linguagem diante de minha noiva — Edwin o

censurou sorrindo. — Decidi libertá-lo, desde que deixe a Irlanda

ainda hoje. E nunca mais volte.

— Vá para o inferno, Edwin. Não quero...

— Lamento se dei a impressão de que pode escolher. Não é

esse o caso. Guardas, levem-no para o navio. E cuidem para que

zarpe imediatamente.

Lily não olhou para Padraic quando os guardas o levaram da

sala. Não tinha forças para isso. Ela nem percebeu que Edwin

também havia saído, até ouvir o som da chave girando na fecha-

dura. Emocionalmente abalada, tanto que nem se importava por ter

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

sido trancada no salão, Lily sentou-se em uma cadeira e, de olhos

fechados, tentou não chorar.

O esforço foi inútil.

Estavam atrás do estábulo de Winston Hall. Os guardas o

jogaram no chão, e um deles apoiou o pé em suas costas,

imobilizando-o. Pálido pelo esforço da caminhada, Edwin parou a

seu lado e, empunhando uma pistola, riu.

— Não pensou que teria mesmo sua liberdade, não é,

Padraic? O que acabamos de ver lá dentro foi só uma

representação... para acalmar lady Lilianne.

— Seu... seu...

— Não devia ofender quem tem uma arma apontada para sua

cabeça. Na verdade, não tem importância. Morrerá de qualquer

maneira. Sua adorada Lilianne veio aqui barganhar por sua vida,

suplicar por você, oferecer-se em sacrifício para libertá-lo. E até se

ofereceu para curar-me, a doce dama. Deve entender que não pude

resistir a tão tentadora proposta.

— Bastardo.

— Sendo assim, enquanto você empreende a grande viagem

rumo ao desconhecido, eu estarei recuperando minha saúde e

saboreando as delícias de sua adorada Lily. Fico imaginando se ela

saberá apreciar os prazeres da dor... E para completar a agonia da

sua morte, quero que saiba de um último e importante detalhe.

Pense nisso, Padraic. O homem que matou seu pai encontrará

grande prazer em torturar a mulher que você ama. Sim, porque eu

matei Oliver. O que mais poderia fazer? Ele tinha Lilianne e se

negava a devolvê-la. Depois de ouvir rumores sobre seus poderes

de cura, não medi esforços para convencer lorde Westbury a ceder

a filha em casamento. E quando consegui o valioso prêmio, ele me

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

foi roubado.

— Edwin, você merece a pior de todas as mortes.

— Por ter matado seu pai? Tolice! Nunca suportei aquele tolo

papista. Sempre tentando proteger os oprimidos, os fracos... Ele

encontrou Lilianne, que havia fugido de Winston Hall, e aceitou sem

reservas o relato de ameaças e cativeiro. O homem teve a ousadia

de vir até aqui me interrogar por causa dela. Entende agora o que

acontece com quem se opõe a mim?

Edwin virou-se, dando a última ordem por cima do ombro.

— Levem-no para o bosque e matem-no. Tragam o corpo

para que eu o veja.

Padraic foi tomado por uma fúria cega e até então

desconhecida quando, violentos, os guardas o levantaram do chão.

Sem pensar nas consequências, abriu os braços e, com toda a

força que ainda restava, golpeou o nariz dos dois ao mesmo tempo.

Depois, rápido como um raio, agarrou-os pelos cabelos e bateu a

cabeça de um contra a do outro.

Os guardas, pegos de surpresa, nem tiveram tempo para

tenta reagir ou impedir a ação. Desarmados, caídos, eles viram

Padraic empunhar suas pistolas sem poder contê-lo.

Mas, antes que pudesse se levantar, ele foi retido por uma

bota sobre seu punho direito. Um terceiro guarda, vindo não sabia

de onde, apontava a pistola para seu corpo. O disparo provocou um

estrondo que sacudiu a calma do campo.

— O que foi isso? — Lily desviou os olhos da xícara de chá

Havia convencido Edwin de sua fadiga, e solicitara um tempo para

recompor-se e alimentar-se antes de dedicar-se à dura tarefa de

curá-lo. Difícil era conseguir engolir o alimento. O pão caseiro

coberto por uma generosa camada de geléia de frutas jazia

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

intocado no prato de porcelana.

Ela se levantou.

— Você ordenou sua morte! — Por que não pensara nessa

possibilidade?

— É um caçador, mais nada.

— Está mentindo! — Lily correu para a porta, mas ela estava

trancada. — Abra-a! Se quiser ver o próximo verão, abra a porta

agora!

— É inútil. — Edwin levantou-se com dificuldade. — Ele já

deve estar morto. E você terá o mesmo destino, se não cumprir o

que prometeu.

— Não farei nada para curá-lo. Recuso-me a tocá-lo. Você

acabou de matar sua última chance de recuperar a saúde.

— Então, você também morrerá. — Lily saltou para o lado

quando ele correu em sua direção.

Padraic só conseguiu entender o que havia acontecido

quando a fumaça se dissipou. Ele tossiu, surpreso por ainda estar

vivo.

— Mas o que...?

O guarda que pouco antes o ameaçara estava caído a seu

lado. Morto.

Morgan estava em pé ao lado do corpo. Havia uma pistola

fumegante em sua mão. Na outra, uma segunda pistola mantinha

imóvel os outros dois guardas.

— Parece que precisa de ajuda. Pegue a arma —

acrescentou, apontando para uma pistola caída bem perto dele.

Padraic recuperou a pistola, levantou-se e correu de volta

para a casa.

— Aonde vai?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Ele mantém Lily cativa! — gritou Paddy sem se deter.

— Maldição! — Morgan não se dera ao trabalho de retornar à

hospedaria para certificar-se de que a prima ainda estava lá. Devia

ter lembrado que uma mulher apaixonada é capaz de tudo. Rápido,

sem encontrar nada que pudesse usar para imobilizar os supostos

guardas, que apesar do uniforme escarlate não eram realmente

militares, ele atingiu a cabeça de cada um dos dois com o cabo da

pistola antes de deixar o local. Padraic precisava de ajuda.

Felizmente, Morgan conseguiu alcançá-lo ainda do lado de

fora, já diante da porta da casa.

— Não tente me impedir...

— Deixe-me cuidar disso, Padraic. Ele confia em mim.

— Sou eu quem não deve confiar.

— Pense em Lily! Quer que ela seja ferida? Ou morta? Só

preciso de cinco minutos para tirá-la da linha de fogo.

— Terá apenas três — Padraic concedeu contrariado. — Vá

de uma vez.

Morgan entrou. Da varanda, colado à parede ao lado da porta,

Paddy ouviu o coronel perguntar ao mordomo que o recebeu:

— Onde está Edwin? — Ele se dirigiu ao salão e, encontrando

a porta trancada, esmurrou-a. — Edwin, ordeno que abra!

O coração de Lily saltou. Precisava reagir! Ela mordeu a mão

que cobria sua boca e, aproveitando o momento de surpresa de

Edwin, gritou.

— Lily? Edwin, abra a porta! Tenho soldados aqui em número

suficiente para arrombá-la, se não atender à minha exigência. Trago

boas notícias. O Rebelde está morto. Nós o encontramos no

bosque. Abra...

A porta se abriu. Edwin surgiu desfigurado, pálido e arfante.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

Ele empunhava uma pistola que mantinha apontada para o peito de

Morgan.

— Ele está morto?

— Sim, sim, nós o encontramos... Onde está Lilianne? —

Morgan parou ao entrar na sala. Lily investia contra Edwin com uma

pistola na mão.

— Não quero mais esperar para vê-lo morrer enfermo —

gritou.

Edwin se virou com a arma na mão.

— Não! — Morgan se jogou entre os dois.

Nesse momento, alguém empurrou a porta e invadiu o salão.

O eco do grito de Lilianne se misturou ao estampido do tiro.

Ela correu para o primo e o amparou em seus braços, caindo com

ele. Mal teve tempo para perceber que Morgan havia sido alvejado,

quando viu Padraic surgir no salão. Vivo.

— Padraic!

Ele olhou em sua direção.

E esse foi seu maior erro. Edwin apontou a segunda pistola

para o Rebelde. Lilianne não teve tempo para pensar. Apenas

empunhou a pistola e apertou o gatilho. A explosão sacudiu seu

mundo.

— Lily! Lily! Abra os olhos, por favor.

— Padraic..?

— Oh, meu Deus! Você está bem?

— Sim, sim, estou... Pensei que... Morgan!

— Sim. Tentei escutar seu coração, mas...

— Deixe-me tocá-lo.

— Faça o que puder para salvá-lo, doce Lily. Ele salvou minha

vida.

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— E a minha, também. — Lily fechou os olhos e abriu as

mãos sobre o corpo inerte do primo. — Por favor... Por favor...

Ela murmurava palavras num idioma estranho. Uma língua

que nem ela mesma podia compreender. E essas palavras se

uniam numa ladainha pela vida.

Padraic assistia a tudo com ar fascinado. A luz... A luminosi-

dade em seu rosto...

Estava acontecendo. Lilianne salvava mais uma vida. Lily

caiu, enfraquecida pelo esforço.

— O que aconteceu? — Morgan abria os olhos devagar. —

Lilianne? — Ele a viu nos braços de Padraic. — Oh, não! Eu tentei...

— Lily está apenas cansada. E você, como se sente?

— Eu... não sei. Tonto.

— Descanse.

— Onde está Edwin?

— Morto — Lily respondeu, recuperando os sentidos e a

força.

— Eu o matei.

— Você não teve escolha.

— Eu sei, mas...

— Ele matou meu pai. Edwin confessou o crime quando dava

minha morte como certa. E, não fosse por você, Lily, eu estaria

mesmo morto.

Fox sentou-se.

— Precisam sair daqui. Agora.

— Mas eu não posso...

— Edwin não guardou segredo sobre sua identidade, Padraic.

Ele escreveu para lorde Westbury contando tudo.

— Meu pai?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Sim. E não poderei fazer nada para impedir o que

acontecerá em breve. Devem deixar a Irlanda o quanto antes.

— Ele tem razão, Padraic. E eu vou com você.

— Não posso pedir...

— Não está me pedindo nada. Não vou deixar que saia daqui

sem mim.

— Lily, sou um proscrito, um fora-da-lei... Nunca mais poderei

voltar à Irlanda. E não poderei ir para a Inglaterra, também.

— Não tem importância.

— Padraic, por que não segue os passos de Keegan

MacLeod? — Morgan sugeriu. — Vá para a América. Esqueça o

Rebelde. Comece uma nova vida.

— E Dunlanoe? Meus colonos? Quem cuidará deles?

— Leve os que quiser com você. Os outros...

— Você vai ficar com Dunlanoe.

— O quê? Padraic, nunca...

— A propriedade terá um senhor inglês, seja como for. Agora

as coisas são assim. E eu confio em você. Sei que vai cuidar do

que teria sido meu legado... e de meu povo.

— Saberei honrar sua confiança... amigo.

Mais que amigo. Você tem em mim um irmão, Morgan. Nunca

se esqueça disso.

— Um dia você a verá novamente.

Padraic olhou para Lilianne, sua esposa, e sorriu com tristeza.

A costa da Irlanda se distanciava, envolta pela névoa densa da

manhã.

Um dia inteiro transcorrera desde os eventos em Winston Hall,

desde que planejara partir sozinho. Nesse tempo, Padraic informara

os colonos e reunira as famílias que desejavam acompanhá-lo na

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

aventura marítima. A sra. Ferguson estava a bordo, acompanhada

pela família, e Shamus, certamente. Alison e Coyle também haviam

concluído que a fuga era a melhor solução para eles.

No geral, quase todas as pessoas que apreciavam estavam a

bordo. A seu lado, Padraic tinha a criatura mais especial que jamais

conhecera. Seu grande amor.

— Não sei se vou querer voltar — ele confessou. — Acho que

já tenho comigo tudo de que preciso para ser feliz.

Lily sorriu.

— Padraic, há algo que me preocupa.

— O que é?

— Ainda estou pensando... O que seu primo deve ter pensado

ontem à noite, quando tirou a jaqueta e a viu furada pela bala da

pistola de Edwin?

— Não sei. Deve ter sido estranho, para dizer o mínimo.

— Devíamos ter contado a ele.

— E acha que ele teria acreditado? Morgan não parece ser o

tipo de homem que aceita coisas que não pode ver ou entender.

— Pode se surpreender com ele, meu querido Paddy. Certa

vez ele me contou que se sentia unido a você por um elo... Algo que

não podia explicar, mas também não conseguia ignorar. Ele disse

ter o mesmo sentimento pelo escocês de quem falaram no último

encontro.

— Keegan MacLeod? Sim, eu sei. Experimento sentimentos

idênticos aos dele. De qualquer maneira, devemos muito a Morgan.

— Acha que vão acreditar em seu relato?

— Se ele afirmar que matou o Rebelde, ninguém duvidará de

sua palavra.

— Sente-se triste pelo desaparecimento do Rebelde?

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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE

— Não. Prefiro ser Padraic Rafferty, marido de Lily Rafferty.

— Haviam se casado na noite anterior, na capela de Dunlanoe,

numa cerimônia realizada pelo padre Samuel. E passaram a noite

de núpcias nos aposentos da torre. Concebendo um herdeiro, Pa-

draic tinha certeza disso.

— Um herdeiro concebido no coração e no solo da Irlanda —

ele murmurara ao despejar a semente da vida no ventre de sua

amada. — Nascido no Novo Mundo. Esse será nosso legado ao

nosso primeiro filho.

Ele recordava as palavras agora. Segurando a mão de Lily,

virou-a para a proa, para o futuro que os esperava. O Novo Mundo.

Uma nova vida. Juntos.