ceticismo e filosofia construtiva · 2019. 12. 8. · ceticismo e filosofia construtiva assim como...

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C DD : 149.73 CETICISMO E FILOSOFIA CONSTRUTIV A LUIZ HENRIQUE DE ARAÚJO OUTRA Departamento de Filoso fia Univer sidade F ederal de Santa Catari na, Brasil e- mail : FILl LHD@BRUFSC.BITNET Perece ser impouí-11el de fen. der qu11lquer fi loaofi 11 dogmátic11 fre n. te 110a 11rgu- men. toa cético», jque é aempre poaaí vel opor 11 qualquer doutri n. 11 uma outm, tio p/11uaí11e/ qu11n. to ela, m/18 que t11mm n. io pode aer pro1111d11. Eatll equipon.cia leva o cético 11 pen.der o juí zo. Meamo aem 11ceif11r qu11/quer do·r&t ri n11 fi loaó fi c11, o cético J az fi loaofi a, compreen. dida como in.11eatig11ço perm11nente. Nest« art igo, auatenta-ae que e:nate também uma forma conatruti1111 de fi loaofi, 11 d11 in1teatig11çio permanente, aimi/11r 110 ceficiamo, m/18 di ferente de/e em aeua 06jeti11oa. I t aeema to 6e impoui6/e to defend 11ny dogm11tic pl&ilo,opl&y 11g11inat akeptical argumenta, ain.ce to any doct ri ne it ia poui6/e to oppoae anotl&er, equa.lly plau,i6le an.d equ11ll1 un.provd /e. Tl&ia equipollence /e a.da tl&e akeptic to au,pen.d judgemen.t. Wl&ile tl&ua rejraining fr om acce,ting any pl&ilo,opl&ical doctri ne, l&e ati/1 pl&ilo,opl&i- zes. I t ia ar gued in. tl&i , paper tl&11t a con. atru ct ive Jorm of perma.nent in11e,tigati11e pl&iloaopl&y aimilo.r to dcepticiam eziata, wl&icl& di flera 1u6atan.ti1dl11 fr om it in. ita a.im,. Enfrentar o desafio cético por meio de uma fil os ofia positiva é o gue muitos dos grandes fil ós of os têm feito des de a é poca moderna. Se- gundo R. Popkin (1979), a crise intelectual por que pass ou a Europa por ocasião da Reforma Protes tante foi acompanhada por um redes- cobrimento do ceticismo antigo. Alguns fil ósofos modernos chegaram a ass umir como uma das tarefas de sua fil osofia dar uma respos ta sa- tisfatória ao cetici smo, superá-lo de algum modo. Um dos exemplos mais notáYeis disso se encontra em Descartes, na primeira de suas Me- ditações. Um outro, em Hume. Cada um deles , a seu modo, procurou enfrentar o desafio cético. Contudo, as respostas de Des cartes e Hume, M an. u, cri to, Cam pinas, XVl(l):37-62, abr il 1993.

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CDD: 149.73

CETICISMO E FILOSOFIA CONSTRUTIVA

LUIZ HENRIQUE DE ARAÚJO OUTRA Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil e-mail: [email protected]

Perece ser impouí-11el defen.der qu11lquer filoaofi11 dogmátic11 fren.te 110a 11rgu­ men.toa cético», jtÍ que é aempre poaaível opor 11 qualquer doutrin.11 uma outm, tio p/11uaí11e/ qu11n.to ela, m/18 que t11mhém n.io pode aer pro1111d11. Eatll equipo/ên.cia leva o cético 11 •••pen.der o juízo. Meamo aem 11ceif11r qu11/quer do·r&trin11 filoaófic11, o cético Jaz filoaofia, compreen.dida como in.11eatig11ç1Ío perm11nente. Nest« artigo, auatenta-ae que e:nate também uma forma conatruti1111 de filoaofi,11 d11 in1teatig11çio permanente, aimi/11r 110 ceficiamo, m/18 diferente de/e em aeua 06jeti11oa.

It aeema to 6e impoui6/e to defend 11ny dogm11tic pl&ilo,opl&y 11g11inat akeptical argumenta, ain.ce to any doctrine it ia poui6/e to oppoae anotl&er, equa.lly plau,i6le an.d equ11ll1 un.provd /e. Tl&ia equipollence /e a.da tl&e akeptic to au,pen.d judgemen.t. Wl&ile tl&ua rejraining from acce,ting any pl&ilo,opl&ical doctrine, l&e ati/1 pl&ilo,opl&i­ zes. It ia argued in. tl&i, paper tl&11t a con.atructive Jorm of perma.nent in11e,tigati11e pl&iloaopl&y aimilo.r to dcepticiam eziata, wl&icl& diflera 1u6atan.ti1dl11 from it in. ita a.im,.

Enfrentar o desafio cético por meio de uma filosofia positiva é o gue muitos dos grandes filósofos têm feito desde a época moderna. Se­ gundo R. Popkin (1979), a crise intelectual por que passou a Europa por ocasião da Reforma Protestante foi acompanhada por um redes­ cobrimento do ceticismo antigo. Alguns filósofos modernos chegaram a assumir como uma das tarefas de sua filosofia dar uma resposta sa­ tisfatória ao ceticismo, superá-lo de algum modo. Um dos exemplos mais notáYeis disso se encontra em Descartes, na primeira de suas Me­ ditações. Um outro, em Hume. Cada um deles, a seu modo, procurou enfrentar o desafio cético. Contudo, as respostas de Descartes e Hume,

Man.u,crito, Campinas, XVl(l):37-62, abril 1993.

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assim como de diversos outros pensadores, são problematizáveis de um ponto de vista cético. Cada uma destas filosofias resolve o problema colocado pelo ceticismo, mas o resolve de uma forma que é satisfatória apenas para quem já aceitou uma destas filosofias, para quem já está convencido por uma delas. Os filósofos, que discordam entre si com relação a muitas questões, divergem também a respeito do que pode ser uma resposta satisfatória ao desafio cético. Não há, portanto, progresso nesta discussão se ela for travada por intermédio de filosofias particu­ lares, cada uma delas tentando superar o ceticismo de uma forma que não é aceita pelas outras. Cada doutrina providenciará uma desquali­ ficação de suas concorrentes, inclusive do ceticismo. Mas um observador imparcial não saberá com qual delas ficar.

Esse conflito das filosofias, como nota o professor Porchat {1981), nos deixa perplexos diante de todas as filosofias que se nos apresen­ tam, sem que nos vejamos na posse de um critério que nos permita fazer uma escolha acertada, uma escolha que se possa justificar sem desacordo. Para o cético, a única saída é abster-se de escolher uma filosofia, suspender o juízo. Agindo assim, o cético não entende estar abandonando a filosofia. Ele pensa, ao contrário, estar fazendo a única forma razoável de filosofia. Contudo, em seu artigo sobre o conflito das filosofias (conflito que leva inevitavelmente à suspensão do juízo), Porchat vai mais além, propondo "uma recusa não-filosófica e filosofi­ camente injustificável da filosofia" (p.21). Isto quer dizer: o abandono da filosofia em qualquer uma de suas formas possíveis.

Tal posição não mais é sustentada pelo professor Porchat. Mais re­ centemente, ele defende o que denomina neopirronismo, uma versão contemporânea do ceticismo pirrônico que permite reavaliar de um ponto de vista cético fatos da história do conhecimento humano posteri­ ores ao olhar cético de Sexto Empírico (Porchat 1991). Um destes fatos é o notável desenvolvimento das ciências da natureza, assim como o co­ nhecimento técnico que delas resultou, permitindo um extenso domínio do mundo pelo homem. Determinadas filosofias realistas podem ale-

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gar isto para argumentar contra o ceticismo e a favor da possibilidade de conhecer o mundo em seus aspectos não-aparentes. Mas, como co­ menta Porchat, o sucesso da ciência e do conhecimento técnico podem ser interpretados sem problemas de um ponto de vista cético. Já os ins­ trumentalistas tinham indicado o caminho: uma teoria pode ser aceita unicamente por ser empiricamente adequada, isto é, sem que entre em questão sua verdade, no sentido de sua adequação ao que o mundo real é. O debate entre instrumentalistas e realistas parece não afetar em nada o sucesso preditivo das teorias científicas, nem do conhecimento técnico. Para o cético são apenas mais duas filosofias em conflito a respeito do que não é aparente. A respeito do que é aparente, não há conflito: ninguém contesta o sucesso da ciência e da técnica - nem o cético.

Assim sendo, diante do conflito das :filosofias, a única saída parece1

ser a de fazer filosofia à maneira cética, ou então não fazer nenhuma :filosofia, já que qualquer escolha parece estar já comprometida com uma determinada filosofia, levando, portanto, a um conflito indecidível. Fazer filosofia, no sentido de elaborar uma doutrina particular, ou es­ colhê-la como resposta para nossas indagações, parece ser um empreen­ dimento insensato. Deste modo, o ceticismo parece ser a única forma sensata de filosofia.

Contudo, talvez seja possível escolher uma filosofia e justificar essa escolha sem recorrer à própria filosofia escolhida. Em outras palavras, parece haver uma forma de dar uma defesa não-doutrinal para a es­ colha de :filosofias. Em outras palavras, uma forma de fazer filosofia que também é razoável, sem ser a forma cética. E isto não é outra coisa que enfrentar o desafio cético sem recorrer a uma :filosofia parti­ cular, mantendo a discussão em um campo comum que o cético e todos aceitam.

A forrua cética de argumentar (contra as doutrinas) não se baseia

1 Neste texto, 011 verbos "parecer" e "aparecer" serão 1111ado11 em sentido próximo, ambos referindo-se às aparências. Seu uso será, pois, não-tético.

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em uma certa doutrina ou, melhor dizendo, não consiste em defender uma determinada doutrina. O cético apenas descreve como as coisas lhe aparecem. Há uma forma de fazer o mesmo e enfrentar o ceticismo sem defender uma determinada doutrina (filosofia), mas mantendo a discussão restrita ao nível do discurso não-tético, que o cético aceita e também utiliza.

Embora seja possível, como argumenta o professor Porchat, que os conhecimentos científicos e técnicos sejam interpretados do ponto de vista cético sem problemas, ao mesmo tempo, a ciência e a técnica podem dar base para a defesa de uma forma não-cética, assim como não-dogmática, da filosofia. Tal forma de filosofia também pode ser defendida não-teticamente, do mesmo modo que o ceticismo pirrônico.

Uma objeção que se pode fazer aqui é que a própria distinção entre os discursos téiico e não-tético é tributária de uma filosofia. Esta é uma objeção que se pode fazer também ao cético. Mas não se trata disso. Não é preciso afirmar que há uma distinção real entre um discurso que diz o que é o caso e um outro que apenas descreve ou relata o que aparece a alguém. Para sustentar que há ou não tal distinção, é preciso, de fato, recorrer a uma filosofia particular. Mas se a distinção for tomada apenas enquanto uma aparência, que todos podem aceitar e que não envolve um juízo acerca de sua realidade, não há problema. Não há aí nenhum comprometimento doutrinal. É exatamente dessa forma que o cético usa a linguagem e é neste nível do discurso não­ tético que a discussão do desafio cético e da defesa de uma alternativa ao mesmo tempo não-dogmãtica e não-cética pode ser levada adiante.

Na falta de um nome que possa ser dado a tal forma não-cética, as­ sim como não-dogrnética, de filosofia, pode-se recorrer à terminologia tradicional, e ter como opção: filosofia zetética, ou filosofia da inves­ tigação permanente. Uma vez que o próprio pirronismo é também uma forma zetética (isto é, investigativa) de filosofia, a alternativa ora de­ fendida, como uma das duas variantes da filosofia zetética, pode ser

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denominada filosofia zetética construtiva, ou filosofia construtiva de in­ vestigação permanente.

1. CETICISMO: DESAFIO E CONDENAÇÃO A quem é dirigido o desafio cético e em que ele consiste? Estas

são questões que devem ser examinadas antes de mais nada. Sexto Empírico diz nas Hipotiposes Pirronianas [HP] que a finalidade de suas investigações ali é a de criticar os dogmáticos {HP II 1). O desafio é lançado ao dogmático, portanto. Mas quem é ele?

Na mesma obra, Sexto procura dizer quem é o dogmático, assim como quem são o cético e o acadêmico. Estas três figuras parecem esgotar as possibilidades de tipos de filósofos, e isto por uma razão muito simples. Diz Sexto que, em toda busca ou investigação, (i) ou o objeto procurado é encontrado, (ii) ou é negada a possibilidade de encontrá-lo, (iii) ou finalmente persiste-se na busca. Com relação aos objetos investigados pela filosofia, alguns acreditam ter descoberto a verdade, outros negam a possibilidade de descobri-la e outros ainda permanecem investigando. Temos aí, respectivamente, o dogmático, o acadêmico e o cético (HP I 1-4).

Algumas considerações preliminares são necessárias aqui. Em pri­ meiro lugar, é preciso notar que o dogmático não é descrito por Sexto como alguém que encontrou a verdade, mas que acredita tê-lo feito (HP I 3). Os exemplos dados são Aristóteles, Epicuro e os estóicos. Certa­ mente, se algum deles tivesse descoberto a verdade e pudesse prová-lo, não haveria mais o que fazer da parte do cético. Restaria apenas es­ tudar e aprender tal filosofia verdadeira. O problema é que todos os dogmáticos acham que encontraram a verdade, embora digam coisas di­ ferentes. Sexto não pode dizer que nenhum deles encontrou a verdade, pois, por acaso, algum deles pode tê-lo feito. Sua argumentação tenta mostrar apenas duas coisas: (a) que eles afirmam teses diferentes (HP I 165)2 e (b) que nenhum deles pode provar o que diz, isto é, nenhum

2 A este respeito, assim como no caso dos discursos, é preciso aceitar que os

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deles fornece um critério de verdade satisfatório pelo qual possa impor suas teses como verdades provadas e que não esteja sujeito a desacordo (HP II 14-79)3. O cético, portanto, não tem argumentos conclusivos contra as filosofias, ele apenas constata o seu desacordo geral. A argu­ mentação por meio da qual se tenta mostrar que não é possível chegar à verdade não é cética, mas acadêmica.

Assim, é preciso notar, em segundo lugar, que o acadêmico não se confunde com o cético pirrônico, mas é antes uma espécie de dogmático às avessas, uma vez que tenta sustentai' algo também dogmaticamente. O ceticismo se distingue desses dois tipos de dogmatismo, o positivo e o negativo. Não diz que é possível ou impossível chegar à verdade. O cético deve admitir a possibilidade de se chegar à verdade. Apenas que, enquanto examina as diversas doutrinas, não é capaz de afirmar ou negar nenhuma delas, de dar seu assentimento a nenhuma delas. Por isso deve permanecer investigando (HP I 3).

O desafio cético é dirigido ao dogmático, mas no que consiste esse desafio? Qual é o problema com a filosofia dogmática? O problema é que os dogmáticos das mais diversas doutrinas a respeito de um as­ sunto qualquer dizem coisas diferentes, sem poder prová-las, todos eles julgando ter encontrado a verdade. Já que os dogmáticos discordam entre si, eles precisariam eleger um critério pelo qual pudessem distin­ guir a doutrina que diz a verdade. Sexto Empírico examina longamente esse problema do critério, nas Hipotiposes e principalmente em Contra os Lógicos [CL]. Contudo, os filósofos discordam não só nas questões em geral, mas também com relação ao critério (HP II 18-21, CL I 27 e 47). Os dogmáticos precisam de um critério para reconhecer a ver­ dade quando estão diante dela porque falam de coisas não-aparentes. Dogmatizar, diz Sexto, é assentir a objetos não-aparentes (HP I 13).

filósofos dizem coisas diferentes se assim eles entendem, se assim parece. Para sustentar que eles dizem o mesmo, embora pensem dizer coisas diferentes, seria preciso recorrer a uma doutrina particular.

3 A este respeito também o cético não sustenta que assim seja, mas apenas que é o que lhe aparece.

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Os objetos aparentes são aqueles dados pelas impressões (não apenas sensíveis), são as aparências (ipo:wóµê11011). O dogmático fala daquilo que está. além das aparências (!i6T}.>.011). O dogmático não pretende apenas descrever o que aparece, ou o que lhe aparece, mas pretende dizer como as coisas são, pretende dizer o que é o caso. As teses dos dogmáticos são, portanto, proposições não-aparentes, se forem conside­ radas como apa.rentes as proposições que descrevem ou relatam aquilo que aparece. Dogmatizar é fazer, assim, um uso tético da linguagem. E este é o problema do dogmático. O dogmático é, portanto, desafiado a provar suas teses.

Enquanto os filósofos falam do que aparece, eles podem pôr-se de acordo. Mas quando pretendem falar do que é, o desacordo é geral. Como se pode, então, fazer filosofia dogmática se o desacordo é geral e parece sem solução? Qualquer filosofia dogmática pode enfrentar esse desafio. Mas o enfrenta dogmaticamente, falando, portanto, para aqueles que compartilham as mesmas idéias, mas incapaz de convencer alguém que está. de fora, alguém que ainda não aceitou suas teses. E desta maneira, a discussão não avança.

O cético, por sua vez, não pretende - e nem pode - provar que o desacordo entre as filosofias é um problema insolúvel. Diz Sexto Empírico que o cético apenas relata a experiência que tem desse de­ sacordo e que não encontra meios de solucioná-lo (HP I 26). O cético deve permanecer investigando, pois não sabe se uma nova doutrina que vier a aparecer também fracassará em produzir o acordo. E essa in­ vestigação cética tem um padrão determinado. Trata-se de produzir a equipolência (fc,outJivêio:), isto é: a toda proposição deve-se opor uma outra, com ela incompatível e tão possível de ser verdadeira quanto a primeira (HP I 10-12). Ora, uma vez que as proposições filosóficas não são tautologias, mas têm um caráter contingente, parece sempre possível p1 oduzir tal equipolência. E isso parece condenar toda nova tentativa dogmática. Cada nova doutrina passará a ser uma voz mais no coro diafônico das filosofias.

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É desta forma que o ceticismo parece mostrar que a filosofia dogmática é um empreendimento insensato, já que aparece como não tendo meios de atingir a certeza. Pode haver entre as doutrinas uma que seja verdadeira, mas não há como reconhecê-la. Não há como transformar essas opiniões (éõeo) em conhecimento (i1r,t1r,jµTJ), no sentido platônico desses termos. Mas isto é um problema não só para o dogmático, mas também para o cético. Já que a equipolência aparece como sempre possível com relação a toda proposição dogmática, qual é o sentido da investigação cética?

O cético não pode dizer nada a respeito do futuro. Ele apenas suspeita que todas as doutrinas serão derrotadas, assim como o foram as que ele já examinou. Embora a experiência passada lhe faça aparecerem certas coisas, ele deve sempre admitir o contrário, para não cair no dogmatismo. Por isso, o cético está coudenado a investigar. Se há um desafio cético dirigido ao dogmático, há. também uma condenação do próprio cético a investigar sempre.

O cético não investiga porque quer, mas para manter a quietude, o estado de não-perturbação (&ropo{ío). As contradições das doutrinas geram inquietação e a verdade parece ser a forma de afastar essa per­ turbação. Mas, antes de encontrar a verdade, suspendendo o juízo, o cético encontra a quietude (HP I 25-30)4•

Contudo, toda nova doutrina que surge, querendo responder a al­ guma questão, ameaça essa quietude, pois é uma nova promessa de verdade. Como todas as outras, ela gerará conflito e perturbação. É preciso, portanto, examiná-la, para produzir a equipolência, visando mais uma. vez a suspensão do juízo e o restabelecimento da. quietude. Assim, é preciso enfrentar toda doutrina que aparecer. É preciso inves­ tigar contra cada uma delas.

O ceticismo ou pirronismo, como é apresentado por Sexto Empírico, parece sugerir uma estranha condição da humanidade com respeito ao

4Os termos "quietude", "não-perturbação" e "tranqüilidade" serão utilizados no mesmo sentido, significando !itT0tp0tetot.

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conhecimento. Desejamos a verdade sobre alguma questão, pois nos parece que isso é que satisfará nosso entendimento. Mas, antes de en­ contrá-la, diante do desacordo das opiniões, suspendemos o juízo. Aí encontramos a tranqüilidade. Mas surgem outras questões que tra­ zem novas tentativas de resposta, ou então aparecem novas respos­ tas para antigas questões. E devemos mais uma vez investigar, não mais com a esperança da verdade, mas com a esperança de preservar a tranqüilidade que se segue à suspensão do juízo. A investigação parece ser uma necessidade. O cético não pode suspender o juízo de uma vez por todas, mas deve fazê-lo ao final de cada investigação, ou melhor, no momento em que lhe aparece que a investigação foi suficiente, pois nenhuma de suas investigações é conclusiva. E esta parece ser a única maneira do homem se comportar sensatamente com relação ao conhe­ cimento, isto é, com relação a opiniões sobre coisas não-aparentes.

2. DOGMATISMO, CETICISMO E RACIONALIDADE Não parece haver defesa para o dogmatismo diante da argumentação

cética. Ainda que os argumentos céticos não sejam conclusivos, eles sugerem que não há por que preferir uma doutrina determinada se não se encontram meios de decidir o desacordo entre as doutrinas. A única coisa sensata a fazer parece ser, sem dúvida, suspender o juízo e investigar apenas na medida em que isso se torna necessário para restabelecer a quietude. Ou seja: o melhor comportamento com relação ao conhecimento parece ser o de não assumir filosofia alguma, isto é, de não fazer filosofia dogmática.

O dogmático é apresentado por Sexto Empírico como alguém que dá seu assentimento a proposições não-aparentes, proposições acerca de coisas não-aparentes. O dogmático crê na verdade dessas proposições. O cético se propõe como alguém que não tem tais crenças. Uma forma comum de se argumentar contra o ceticismo é perguntar se se pode deixar de ter crenças. Burnyeat, seguindo Hume e os críticos antigos do ceticismo, sustenta que o cético não pode viver seu ceticismo. Segundo

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ele, o cético tem de acreditar pelo menos que argumentos contrários têm igual força (Burnyeat 1983, p. 140). Seria preciso acreditar nisso para que a equipolência fosse suficiente para suspender o juízo. Ora, Burnyeat parece pensar que a investigação cética deve ser conclusiva, ou não poderá levar à tranqüilidade desejada. E parece também supor que a tranqüilidade é um estado definitivo.

Mas um ceticismo coerente não pode esperar investigações conclu­ sivas, sob pena de recair no dogmatismo. As investigações do cético são todas inconclusivas. Ele se detém no ponto onde lhe aparece a equipolência. Não cabe perguntar se ela existe de fato, pois esta seria uma questão sobre a qual também haveria desacordo. O cético apenas relata que, ao aparecer-lhe a equipolência, ele suspende o juízo e expe­ rimenta a quietude. Mas este não poderia ser um estado permanente, conseguido por meio de uma crença na verdade de alguma proposição. Como é um estado atingido sem crenças dogmáticas, ele está sujeito a alterações. A aiarazia não é um estado permanente, mas flutuante, que precisa ser resgatado por novas investigações.

Assim, parece possível viver sem crenças dogmáticas, parece possível ao cético viver seu ceticismo. Só o que se poderia dizer é que o ceti­ cismo é um modo descomprometido de viver. "Descomprometido" tem aqui o sentido de que o cético se guia apenas por suas impressões. O que parece é que o ceticismo sugeriria que o único modo de se viver em paz é descompromissadamente, isto é, deixando-se levar pelas im­ pressões, sem dar assentimento voluntário a nenhuma proposição tética, sem dizer o que é o caso.

Isso é o que parece. Agora, se se pode de fato viver descomprometi­ damente, ou sem crenças dogmáticas, ou, como diz Burnyeat, se o cético pode viver seu ceticismo, esta é uma questão que recebe diversas res­ postas. Há desacordo a seu respeito. Sem dogmatizar, a única forma de responder a isso é dizer que viver o ceticismo aparece como possível, já que os céticos dizem fazê-lo. Portanto, parece que é possível passar sem

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crenças em proposições a respeito de coisas não-aparentes. Neste sen­ tido, pode-se dizer que o cético vive sem crenças.

Contudo, às vezes, fala-se também de crença como assentimento involuntário a certas impressões. Neste sentido, diz Sexto Empírico, o cético tem crenças, como todos os homens (BP I 229.:230). Mas não é isso que está em questão e sim o assentimento voluntário do dogmático a proposições não-evidentes5•

Mas, se parece que se pode passar sem crenças dogmáticas, porque tê-las? O dogmatismo parece, assim, não só insensato, como também desnecessário. Mais ainda, o dogmatismo (no sentido de crença em uma certa doutrina particular que não se pode provar e da defesa de tal doutrina a todo custo) parece irracional. Por mais convicção pessoal que um dogmático tenha de sua doutrina, se ele não pode prová-la e se os outros têm convicções a respeito de doutrinas diferentes que também não podem provar, é irracional que qualquer um deles permaneça em sua doutrina. O que é racional, neste caso, parece ser suspender o juízo, como faz o cético. Portanto, se acreditar na verdade de uma certa doutrina que não se pode provar é desnecessário para a vida, insensato e irracional, parece que o dogmatismo não pode ter lugar na filosofia.

Isto soa como um encerramento do assunto a respeito da filosofia, isto é, parece mostrar que o ceticismo é a única forma possível e sensata de filosofia. Os argumentos céticos parecem imbatíveis e o dogmático parece não ter saída; ele deve reconhecer a derrota. Mas note-se bem que o derrotado aqui é aquele filósofo que encara sua doutrina como expressão definitiva da verdade. Este, de fato, parece não ter chance. E o cético só faz o favor de mostrar isso. Contudo isso não encerra o assunto da filosofia, pois parece também haver uma forma de filosofia que não é irracional ( dogmática) e que também não é cética.

5 Aqui alguém poderia objetar se de fato o assentimento do dogmático é vo­ luntário. Ora, ele aparece como voluntário e não cabe ir além disso, para não envolver nenlrurna doutrina.

Ma:,uucrito, Campinas, XVI(l ):37-62, abril 1993.

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O dogmatismo aparece como irracional. Ao contrário, o ceticismo aparece como perfeitamente racional. Resta mostrar que é possível uma filosofia que também é racional, sem ser cética, nem dogmática. Mas antes é preciso mostrar no que ela consistiria6•

3. UMA FILOSOFIA CONSTRUTIVA NÃO-DOGMÁTICA O uso tético da linguagem é uma forma de dar explicações ou de

fornecer os fundamentos para elas. O discurso tético, tal qual é en­ contrado nas filosofias, é uma tentativa de explicar aquilo que aparece recorrendo ao que não aparece. Se digo: "Vejo diante de mim uma. mesa", esta. frase permanece apenas no nível das aparências. Faço com ela a.penas um relatório de minha. experiência, daquilo que me aparece. Contudo posso perguntar se a mesa. que vejo é algo de real, ou ainda por que a observo, etc. É certo que não é preciso fazer tais perguntas e tentar respondê-las. Mas é possível fazê-las. As respostas a tais pergun­ tas só podem ser dadas por um discurso tético. Contudo, as respostas são várias e não sabemos qual é a verdadeira. É apenas a verdade que nos interessa. Quem quer uma explicação quer uma explicação correta, dada por uma proposição verdadeira. As filosofias se propõem como respostas para toda sorte de questões que possamos ter. E só nos in­ teressa. a filosofia verdadeira. Não bastaria dizer que para. aceitar uma filosofia ela deve apenas dar respostas satisfatórias, pois todas as filo­ sofias dão respostas satisfatórias para as questões que se propõem. E a falta de critério para identificar a. filosofia. verdadeira parece inviabilizar todo projeto dogmático. Mas não todo projeto filosófico construtivo, não os projetos de uma filosofia de investigação permanente não-cética.

Esta última forma de filosofia também toma a sério o discurso fi­ losófico. Só lhe interessa a verdade. Isto a leva a dar explicações e a produzir discursos que podem ser verdadeiros. Mas, ao contrário da filosofia dogmática, é a primeira. a. querer desfazer-se de sua. doutrina se

6Uso o termo "racional" aqui apenas para indicar aquilo que é razoável, ou sensato, ou de bom senso, sem envolver nenhuma doutrina acerca da racionalidade.

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ela não for a expressão da verdade. Ela não enuncia, pois, teses ( como faz a filosofia dogmática), mas apenas hipóteses. E investiga contra suas hipóteses, do mesmo modo como faz a filosofia cética.

Ocorre, contudo, que essa investigação nunca é conclusiva. Exata­ mente por isso o cético suspende o juízo. A suspensãÓ do juízo se dá quando se chega a uma equipolência. Mas o filósofo de atitude constru­ tiva procurará desequilibrar essa equipolência, reformulando sua dou­ trina e submetendo-a a novo exame.

O cético denuncia a precipitação do dogmático que escolhe uma doutrina (HP I 20, III 280). Escolher uma doutrina é irracional, uma vez que a investigação não é conclusiva. Mas o filósofo construtivo não­ dogmático não pode adotar uma doutrina a não ser provisoriamente. Se julga que uma certa doutrina pode estar dizendo a verdade, ele deve continuar investigando. Sua atitude não é irracional porque a doutrina em questão não foi nem provada, nem refutada.

O cético, que produziu a equipolência e suspendeu o juízo, sabe bem que a investigação não é conclusiva. Ela não é nem uma prova, nem uma refutação. Exatamente por isso ele suspende o juízo. Mas, se a investigação não é conclusiva, ela é levada até onde se pode em um certo momento. O filósofo construtivo não-dogmático, assim como o cético, suspende o juízo, por achar que já investigou até onde podia.

O filósofo de investigação permanente, que adotou uma doutrina e contra ela investigou, pode reformulá-la ou aperfeiçoá-la. Como o cético não pode deixar de investigar nenhuma doutrina, ele deverá exa­ minar também a nova versão. Ele deverá tentar novamente produzir a equipolência. Aí poderá de novo suspender o juízo. Em defesa do cético podemos dizer que essa suspensão do juízo é a única coisa sen­ sata a fazer diante da equipolência. Contudo, novas doutrinas sempre aparecem e o cético deve investigá-las.

Poder-se-ia, então, perguntar se, dado isto, a quietude não é um estado do qual o cético é constantemente desalojado e que, portanto, é insensato desejá-la. Em defesa do cético pode-se dizer que a quietude

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se dá em virtude do simples fato de não dogmatizar, isto é, de não dar assentimento a nenhuma doutrina. Não caberia envolver uma noção temporal, com momentos de quietude e momentos de investigação al­ ternados.

Sem envolver qualquer noção temporal, pode-se dizer apenas que, antes de investigar, antes de encontrar a equipolência, o cético não tem meios de suspender o juízo com relação a uma doutrina. Se a doutrina se apresenta como verdadeira, a única maneira de não aceitá-la, de não dogmatizar, é produzindo a equipolência, o que exige investigação.

De qualquer forma, o cético aparece como aquele que suspende o juízo diante da equipolência que se estabelece entre as doutrinas. O filósofo construtivo de investigação permanente deve tentar reformular a doutrina que assumiu provisoriamente. Fá-lo-á para produzir uma nova versão que desequilibre a equipolência. A diferença entre ele e o cético é que o primeiro produz sempre novas versões, enquanto o segundo apenas as examina. Mas ambos fazem a filosofia como investigação ( ( '7TTJO" t~").

Esta filosofia não-cética de investigação permanente é racional por­ que não apresenta doutrinas a não ser provisoriamente. Mas, uma vez que o filósofo de investigação permanente, assim como o cético, suspeita que sua nova tentativa também fracassará, por que continuar tentando? Não seria irracional fazê-lo? Não! Em primeiro lugar, exatamente por­ que da experiência passada, de que todas as tentativas dogmáticas fra­ cassaram, não se pode concluir que todas fracassarão. Uma inferência desse tipo seria indutiva e, portanto, irracional". Nem o cético, nem o filósofo construtivo de investigação permanente recorrem a ela. Não se pode raciocinar sobre a experiência passada de ter conseguido produzir a equipolência com todas as versões que se apresentaram e concluir que

7 Aqui o uso do termo "irracional" exige uma explicação. Diz-se que a indução é irracional por não proporcionar conclusões seguras, embora a inferência indutiva seja de hom aenao. Mas sabendo que as conclusões que tiramos da. experiência. passa.da. podem ser falsas, não é de 6om aenao (racional, portanto) confiar cegamente na. experiência passada..

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isso sempre ocorrerá. E por isso, o filósofo de investigação permanente pode prosseguir em suas tentativas de reelaborar doutrinas e investigar contra elas sem ser acusado de proceder irracionalmente. Fica sempre aberta a possibilidade de reelaborar a doutrina e submetê-la de novo à investigação.

Mas se não é racional, ou razoável, ou ainda de bom senso, confiar inteiramente na experiência passada; por outro lado, também não é de bom senso desacreditar completamente dela. Isto é: seria razoável esperar que falhe no futuro uma regularidade que nunca falhou no pas­ sado? O filósofo construtivo de investigação permanente, neste caso, não poderia ser acusado de procurar obstinadamente a doutrina ver­ dadeira apesar de toda a experiência passada lhe sugerir que ela não será alcançada? Sem dúvida, sim. A busca obstinada de algo que a experiência sugere ser inatingível não é algo que se possa encarar como razoável. A filosofia de investigação permanente tem contra si a ex­ periência passada, a mesma que está a favor do ceticismo.

Mas, em contrapartida, ela também conta com algo a seu favor. O que se designa pelo termo "doutrina", uma filosofia, uma teoria, nunca é um mero conjunto de proposições isoladas. Há um ordenamento in­ terno, uma organicidade, que permite desenvolver e aperfeiçoar as teo­ rias ou doutrinas. Assim, a investigação de uma doutrina, mesmo sendo feita contra ela, deve ser cuidadosa e considerar suas possibilidades de defesa. Produzir a equipolência não é uma operação instantânea que consista em opor proposições contraditórias, uma tão possível quanto a outra. As investigações minuciosas que o próprio Sexto Empírico fez de muitas questões e doutrinas em suas obras mostram que não se trata disso, que isso é uma simplificação.

De fato, a investigação é um processo, é uma espécie de programa a ser desenvolvido. Para o cético, tal programa deve terminar na equi­ polência c na suspensão do juízo. O filósofo construtivo de investigação permanente, contudo, empenha-se em ver se, de fato, não há algum aspecto da doutrina que, uma vez explicitado, vá desequilibrar a equi-

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polência. Assim, as novas doutrinas propostas para o exame cético podem ser novas e reiteradas tentativas da mesma doutrina, visando desequilibrar a equipolência. Mas essas reformulações são o trabalho de quem se engajou em um projeto. O filósofo de investigação per­ manente tem, pois, um projeto, ele mesmo reformulável, e não uma filosofia pronta.

O que, então, estaria a favor de tal projeto filosófico construtivo de investigação permanente? A idéia de um programa de pesquisa8 in­ troduz nesta discussão a noção de crescimento do conhecimento. Mas parece estranho falar de crescimento de um conhecimento que é ape­ nas hipotético. Seria razoável levar adiante um programa filosófico, aperfeiçoando uma doutrina, desenvolvendo-a em um sistema cogni­ tivo, se se trata apenas de uma entre tantas outras possibilidades, uma voz a mais no coro diafônico das doutrinas? Não é exatamente esta insensatez aquela que o cético procurou denunciar no procedimento dos dogmáticos? Sim, mas um aspecto da questão parece ter ficado esquecido até aqui: o valor heurístico das hipóteses para se obter co­ nhecimento técnico. É isto que está a favor da filosofia não-cética de investigação permanente.

Aqui exatamente intervém a noção de crescimento do conheci­ mento. Seja o conhecimento técnico aquele conhecimento que, fun­ damentado em teorias (científicas) empiricamente adequadas, permite a interferência bem sucedida no mundo. Constroem-se, por exemplo, aviões com base em um certo conhecimento fundamentado em deter­ minadas leis da física, e estes aviões voam.

Ocorre, como é sabido - e como mostra a história da ciência e da tecnologia - que o conhecimento técnico, estando fundado em deter­ minadas teorias9, atesta o valor heurístico das doutrinas (ou teorias).

80 uso da expressão devida a Imre Lakatos não nos compromete, obviamente, com sua filosofia.

9Não•é preciso fazer aqui nenhuma distinção entre teorias filosóficas e teor.ias científicas. O termo "teoria", com o sentido de proposição não-aparente ou conjunto de proposições não-aparentes, é o único necessário.

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É verdade, por outro lado, que o conhecimento técnico pode ser ob­ tido sem o recurso a teorias. Mas as teorias possuem grande valor heurístico, o que é um fato inquestionável na história da ciência e da técnica. A obtenção de conhecimento técnico é facilitada e acelerada por hipóteses. Deve-se, ao mesmo tempo, constatar que, certamente, a tecnologia atual não estaria no estado avançado em que se encontra se não recorresse a teorias. Eis um forte argumento a favor da utilidade dos programas de pesquisa e do conseqüente crescimento do conheci­ mento que eles produzem.

Isto não significa tomar uma posição realista, contra uma inter­ pretação instrumentalista do conhecimento científico. O sucesso da técnica se deve ao fato de serem empiricamente adequadas as teorias nas quais ela se apóia. A adequação empírica e a confiabilidade ins­ trumental das teorias tem sido, contudo, lembradas por alguns realis­ tas científicos como razões para defender uma interpretação realista da ciência, contra o instrumentalismo. Os realistas alegam que apenas o realismo permite não ver o sucesso da ciência como um milagre'P. Mas, de sua parte, dizem os instrumentalistas que há diversas teo­ rias empiricamente adequadas, sem que se possa distinguir entre elas a verdadeira. Os instrumentalistas, contudo, precisam sustentar a tese de que existe uma nítida distinção entre observável e inobservável (van Fraassen 1980). Por isso, o instrumentalismo não é menos problemático que o realismo.

Sem comprometer-me nem com o realismo, nem com o instrumenta­ lismo, uma interpretação não-dogmática ( cética) da ciência e da técnica é possível, sem comprometimento com tais doutrinas, como mostra Porchat (1991, §13). Mas há um fato que tanto o realista quanto o instrumentalista aceitam: o valor heurístico das hipóteses para se oh-

10 A este respeito é interessante ver, por exemplo, o artigo de Richard Boyd (1984), assim como de diversos outros realistas. O debate entre realismo e instrumentalismo tomou grande vulto ultimamente. Para uma das críticas à posição realista de Boyd, pode-se ver van Fraassen (1980) que, a este respeito, defende uma posição próxima do instrumentalismo.

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ter conhecimento técnico. Isto torna razoável desenvolver programas de pesquisa, produzir o crescimento do conhecimento; em última instância: fazer filosofia construtiva.

Este é um forte argumento a favor de uma filosofia construtiva de in­ vestigação permanente, algo que a torna um empreendimento razoável. Mais uma vez, se o cético tem a seu favor a experiência passada da equi­ polência, o que torna razoável investigar para a suspensão do juízo e a tranqüilidade; equivalentemente, o filósofo construtivo tem a seu favor

. o valor heurístico dos programas de pesquisa empreendidos por ele. O conforto em decorrência do domínio da natureza, conseguido mediante o conhecimento técnico, é tão desejável quanto a tranqüilidade, e torna a filosofia construtiva de investigação permanente tão razoável quanto o ceticismo, do qual ela não se distingue enquanto investigação contra.

4. A FILOSOFIA ZETÉTICA Essas considerações a respeito de uma filosofia construtiva de inves­

tigação permanente se inspiram em grande parte nas idéias de Popper, sem restringirem-se a elas, o que não caberia, já que se trata de uma proposta de tratar o problema do desafio cético sem recorrer a uma filosofia particular. Contudo, Popper forneceu elementos interessantes para se pensar o desafio cético, embora ele muito pouco tenha dito a respeito desse assunto; suas investigações, como é bem conhecido, tinham, em geral, como objeto principal o conhecimento científico.

A filosofia construtiva de investigação permanente não é uma forma do discurso tético, mas hipotético e, portanto, não-tético. Fazendo filo­ sofia de maneira construtiva, também propõe teorias, e não apenas in­ vestiga contra elas, como se faz no ceticismo. Mas um ponto ela tem em comum com este último: a investigação permanente. O filósofo cons­ trutivo de investigação permanente investiga contra sua doutrina do mesmo modo que o cético. Durante as etapas de investigação, em que se

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tenta testar o poder explicativo de uma doutrina e sua pleusibilidade-ê , não há como distinguir o filósofo construtivo do cético. Em uma passa­ gem de seu Conhecimento Objetivo,· Popper se refere a algo semelhante a isto, utilizando a expressão "ceticismo dinâmico" (1972, p.99). Nesta passagem, ele cita explicitamente Sexto Empírico, para deixar claro a que tipo de ceticismo se refere. Popper quer propor uma investigação critica, segundo ele, o sentido apropriado do termo grego "uK.{1ru1,ç".

Enquanto isto diz respeito à forma pela qual a investigação é levada, de fato, como insiste Popper, o que ele propõe se confunde com o ce­ ticismo. Contudo o cético não elabora teorias, apenas investiga contra elas. Por isso, é mais apropriado mencionar aquilo a que Popper se refere usando a expressão "filosofia construtiva de investigação perma­ nente". Esta não se identifica com o ceticismo. Apenas assemelha-se ao ceticismo em um aspecto, o da investigação. Mas há uma diferença básica de atitude com relação a esta investigação que se faz da mesma forma.

Tal diferença consiste no seguinte: o cético investiga visando a sus­ pensão do juízo ( e sua conseqüência, a quietude) e o filósofo construtivo visa a reformulação da doutrina. O cético tem, pois, como meta a qui­ etude; o outro mantém ainda como meta a verdade. O que o filósofo construtivo quer é resolver um problema teórico, quer dar uma ex­ plicação. O cético, ao contrário, quer resolver uma problema prático, quer atingir a tranqüilidade. São atitudes diferentes com relação à investigação, em função de objetivos diferentes.

Aqui duas objeções podem aparecer, uma contra o cético e outra contra o filósofo crítico. Alguém poderia dizer que aquilo que o cético faz, já que ele não quer dar explicações, não é filosofia. De outro lado, também o filósofo construtivo de investigação permanente poderia ser acusado de não fazer filosofia, se se concebe como próprio da filosofia não a taréa de dar explicações, mas apenas a investigação que pretende

11 Não se trata apenas de teste empírico, mas de todas as formas pollSÍvei1 de se agir criticamente em relação a uma doutrina.

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somente sugerir que nenhuma explicação satisfatória das aparências pode ser dada. Mais uma vez é preciso salientar que estas seriam críticas que já supõem certas filosofias particulares e que se o que se quer· é manter-se no nível do aparecer das coisas, unicamente onde parece que a discussão do desafio cético pode avançar, não cabe fazer tais críticas. Não se pode dizer que ou o cético ou o filósofo zetético construtivo não fazem filosofia por serem suas expectativas diferentes com relação ao filosofar. O cético não pode, obviamente, dizer o que é filosofar. E nem o filósofo construtivo pode fazê-lo (a não ser tentativamente). Eles apenas fazem a filosofia da forma que lhes aparece como sendo conveniente. E deve-se aceitar os dois como filósofos, embora também pareça que seus objetivos ao investigar são diferentes. Deve-se admitir como uma aparência que a filosofia zetética tem essas duas variantes.

Essas duas variantes se distinguem, pois, apenas no nível dos ob­ jetivos ou das atitudes com respeito à investigação e não na própria investigação. De seu lado, o ceticismo é certamente defensável em ter­ mos não-doutrinários. Ele consiste em investigar e suspender o juízo onde aparece uma equipolência. E suspende-se o juízo para atingir a ataraxia. Isto deixa todas as investigações céticas inconcluídas, sendo o ceticismo, portanto, de fato, uma renúncia à verdade. Trata-se de uma renúncia não-doutrinária, isto é, sem razões tiradas de uma certa doutrina que justificaria tal renúncia. Mas pode-se admitir que o cético tenha o direito de não querer dar explicações e de desejar apenas a qui­ etude, embora para quem deseja explicar e deseja a verdade isso não pareça a melhor atitude. Se o cético coloca como meio para atingir o que quer algo que .é com isto compatível, ele está justificado. Isto é, o ceticismo tem, portanto, sua justificação não-dogmática.

Mas também a filosofia zetética não-cética deve receber uma jus­ tificação não-dogmática, uma justificação que não recorra a filosofia positiva alguma, mas que seja aceitável sendo formulada apenas em um discurso não-tético, assim como ocorre com o ceticismo.

Uma justificativa não-dogmática da filosofia construtiva de inves-

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tigação permanente deverá também ser aceita pelo cético; estando, portanto, imune às objeções céticas. A acusação principal do cético ao dogmático é de precipitação. O dogmático se precipita em assumir uma doutrina como verdadeira quando há desacordo, sendo ela uma entre outras possíveis, sem que nenhuma delas seja demonstrável com respeito à sua verdade. Mas o filósofo construtivo de investigação per­ manente não pode ser acusado de precipitação. Pois ele adota uma doutrina tentativamente, para testá-la, estando disposto a deixá-la ou a reformulá-la e torná-la melhor. Ele a assume apenas, portanto, como hipótese. Se o cético precisa passar pelo exame das doutrinas para atin­ gir a quietude, o filósofo construtivo precisa passar por isso do mesmo modo, para atingir doutrinas melhores, mais resistentes à crítica, com a esperança de chegar à doutrina verdadeira.

O filósofo zetético construtivo é (como o dogmático) alguém que de­ seja dar explicações, que deseja explicar aquilo que aparece por meio de teorias verdadeiras. Por mais que esse desejo possa parecer irrealizável, o cético não pode reprová-lo. Pois o filósofo construtivo, buscando a verdade, colabora com o crescimento do conhecimento, com a obtenção de conhecimento técnico e com o domínio da natureza. Se o cético pudesse reprová-lo por isso, o filósofo construtivo também poderia re­ provar o cético por seu desejo de atingir a tranqüilidade. São desejos diferentes, objetivos diferentes ao investigar que distinguem o cético e o filósofo zetético construtivo. O cético continua investigando para sus­ pender o juízo, visando a tranqüilidade; o outro continua investigando para reformular sua doutrina ( quando constata uma equipolência), vi­ sando chegar mais perto da verdade.

A objeção que pode ser aqui levantada é que o crescimento do co­ nhecimento visado pelo filósofo zetético construtivo e sua contribuição heurística ao conhecimento técnico pode ser interpretado em termos pu­ ramente pragmáticos, abrindo mão da idéia de verdade. E, neste caso, esta defesa da filosofia zetética construtiva poderia ser acusada de ser uma forma de pragmatismo, não sendo, portanto, não-dogmática. Mas,

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não podendo fazer uma defesa doutrinária de uma noção de verdade ou de sua necessidade na investigação crítica, o que o filósofo zetético construtivo pode é lembrar o valor heurístico que esta própria idéia de verdade tem para a investigação. Portanto, o filósofo construtivo de in­ vestigação permanente não sustentará (dogmaticamente) que a noção de verdade é imprescindível em qualquer programa de pesquisa, mas apenas lembrará seu valor heurístico em tantos sistemas filosóficos, o que é um fato atestado pela história da filosofia, uma aparência, por­ tanto.

Não se trata, pois, de uma forma disfarçada de pragmatismo, uma vez que não é o valor heurístico das teorias que justifica sua formulação e o desenvolvimento de programas de pesquisa. O filósofo zetético cons­ trutivo busca a verdade e não simplesmente contribuir para a obtenção de conhecimento técnico. Mas, ao buscar a verdade, ele contribui para se obter conhecimento técnico e para o domínio da natureza. Apenas sua contribuição para isso-· o que não é seu objetivo - torna, em termos práticos, razoável sua atitude de buscar a verdade, assim como a ex­ periência passada da equipolência torna razoável - também em termos práticos - a expectativa l'lo cético de que toda nova doutrina examinada será submetida à equipolência.

O cético e o filósofo zetético construtivo têm desejos diferentes. Ne­ nhum dos dois pode criticar o outro pelo desejo que o outro tem. E está nisso a única diferença entre um e outro. Eles desejam coisas diferentes e se propõem objetivos diferentes, que por acaso lhes parecem atingíveis pelo mesmo caminho, a investigação. Mas o desejo do filósofo constru­ tivo de dar explicações não pode ser reprovado, do mesmo modo que não pode ser reprovado o desejo do cético de ter tranqüilidade. Neste aspecto estabelece-se uma equipolência (metaforicamente falando, não de opinião, mas de fato) entre o ceticismo e a filosofia zetética cons­ trutiva. Só que não se pode suspender o juízo a este respeito. Pois a respeito de desejos, cada um tem o seu, e não deve julgá-lo, deve procurar realizá-lo (ou não).

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Certamente nao é necessário dar explicações, isto é, o ceticismo aparece como uma possibilidade. Mas parece também que se alguém quiser dar explicações, pode tentar,· pode procurar realizar seu desejo ou sua vontade12• Neste sentido, a filosofia zetética construtiva também surge como uma possibilidade. O que não quer dizer que se afirme ser possível chegar à verdade. Apenas parece possível tentar. E já que não se mostrou>- como pretendiam os acadêmicos - que não é possível chegar à verdade, não se pode dizer que a atitude do filósofo zetético construtivo seja irracional. Ela também não deixa de ser razoável, pois a seu favor está o valor heurístico das doutrinas na obtenção de conhecimento técnico. O cético não diz nem que é possível, nem que é impossível chegar à verdade, sobre isso ele suspende o juízo. E por isso não pode reprovar o filósofo construtivo, que continua tentando, nem pode dizer que isso é insensato, dado o valor prático que apresenta. E o filósofo zetético construtivo não recorre a nenhuma doutrina para. justificar sua busca, ele apenas busca, procurando realizar ~eu desejo.

O ceticismo é uma atitude justificável porque visa a ataraxia e a suspensão do juízo pode levar a isso. Não estamos obrigados a dar ex­ plicações, a usar a linguagem teticamente. É o que aparece. E o cético é alguém que abre mão das explicações. Ele só investiga e submete as doutrinas à crítica para restabelecer seu estado de não-perturbação.

A filosofia construtiva de investigação permanente também é uma atitude justificável porque ao tentar dar explicações, desenvolvendo um programa crítico de pesquisa, contribui para conseguir conhecimento técnico. Embora pareça que não estamos obrigados a dar explicações, nem desenvolver programas de pesquisa, nem que eles sejam necessários para o conhecimento técnico, podemos fazer isso se quisermos. E isto justifica a tentativa de buscar a verdade. E aquele que assim se po­ siciona, o filósofo zetético construtivo, apenas deverá ser cuidadoso e

12 A palavr a "desejo" não tem aqui o sentido forte de uma tendência irreprimível, mas apenas o sentido fraco de algo que alguém quer. Neste sentido, desejo e vontade não parecem distinguir-se. Pode-se dizer, assim, que alguém deseja ( ou quer) alguma coisa.

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não cair no dogmatismo. Por isso ele também deve investigar sempre, assim como o cético.

Na investigação, o filósofo cético e o filósofo zetético construtivo se confundem. Eles de fato se distinguem apenas em seus objetivos, em suas intenções, na finalidade que colocam para a investigação. O filósofo construtivo e o cético podem ser comparados com duas pessoas, uma que quer voar e outra que não quer. Certamente, é possível passar a vida toda sem voar, mas se se quer voar, é preciso recorrer a algum aparelho de vôo, porque os homens não nascem com asas. Assim, se o filósofo construtivo quer dar explicações, deve desenvolver programas de pesquisa, testar hipóteses. Assim como o vôo, dar explicações é uma atividade arriscada, que exige muitas precauções. E o filósofo zetético sabe disso13•

5. CONCLUSÃO Sexto Empírico diz que o ceticismo é uma habilidade ou uma ca­

pacidade (HP I 8). O cético é, pois, alguém que tem a capacidade de atingir a ataraxia por meio da suspensão do juízo. O cético deve pro­ duzir a equipolência e suspender o juízo. Por isso precisa investigar. Em suma, o ceticismo é a capacidade de evitar o discurso tético, de evitar a perturbação do conflito das opiniões, um conflito que aparece ao cético como indecidível. O cético não sabe se de fato o conflito é indecidível. Mas, como o que ele quer é a quietude, à qual a posse da verdade deveria conduzi-lo, diante do conflito das doutrinas, ele sus­ pende o juízo e sai dele, obtendo a quietude. Bastam-lhe portanto suas impressões. Assim, o ceticismo é a capacidade de guiar-se por impressões e de abster-se de explicar o mundo.

Pode-se entender a filosofia zetética construtiva também como uma habilidade, capacidade ou atitude de buscar explicações e interessar-se

13Uma objeção a isto seria: o homem só se empenhou em voar quando percebeu que havia condições para isso. Mas pode ser o contrário, isto é, que em seu desejo de voar, o homem tenha tentado muitas vezes, mesmo quando não havia condições para tanto, embora só tenha conseguido quando tais condições surgiram.

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pela verdade. Isso exige a elaboração de programas críticos de pes­ quisa. Assim, a filosofia construtiva de investigação permanente é a habilidade de lidar com hipóteses e-produzir o crescimento do conheci­ mento, sem cair no dogmatismo. A filosofia zetética construtiva pode ser vista como uma atitude ou habilidade, assim como o ceticismo. Ela também parece ter uma defesa não-dogmática. Não é preciso recorrer a nenhuma filosofia positiva para ver assim as coisas. E que restrições podem ser feitas à filosofia zetética construtiva? Vista assim, apenas as mesmas restrições que o ceticismo recebe. Uns condenarão o ceticismo por abrir mão das explicações, outros condenarão a filosofia construtiva por buscá-las.

Esta é a única forma de enfrentar o desafio cético aceitando a dis­ cussão no nível em que o cético deseja levá-la, sem refugiar-se em uma filosofia particular. O filósofo zetético construtivo adota doutrinas, ten­ tativamente, e poderia recorrer a elas para enfrentar o desafio cético, o que mais uma vez seria um fracasso. Mas não precisa, pode defender sua atitude de uma forma não-dogmática.

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