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Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH Tainá Hardy Lima Cruz e Souza O DESAFIO DA REINTEGRAÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS-SOLDADO Um Estudo de Caso sobre Serra Leoa Belo Horizonte Junho de 2010

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Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH

Tainá Hardy Lima Cruz e Souza

O DESAFIO DA REINTEGRAÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS-SOLDADO

Um Estudo de Caso sobre Serra Leoa

Belo Horizonte Junho de 2010

Tainá Hardy Lima Cruz e Souza

O DESAFIO DA REINTEGRAÇÃO SOCIAL DE CRIANÇAS-SOLDADO

Um Estudo de Caso sobre Serra Leoa

Monografia apresentada ao Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais.

Orientador: Professor Leandro Rangel

Belo Horizonte Junho de 2010

Lista de siglas AFRC – Armed Forces Revolutionary Council CDC - Convenção dos Direitos das Crianças CDF - Civil Defence Forces (Forças de Defesa Civil) CRIN – Child Rights Information Network DCOF - Fundo para Crianças e Órfãos Deslocados DDR - Desarmamento, Desmobilização e Reintegração DIP – Direito Internacional Público ECOMOG - Military Observer Group ECOWAS - Economic Community of West African States ICCs – Interim Care Centers (Centros Interinos de Cuidado) LRA - Exército de Resistência do Senhor NCDRR - Corpo nacional responsável pelo programa de Desarmamento, Desmobilização e

Reintegração OIs – Organizações Internacionais ONGs – Organizações Não-Governamentais ONU – Organização das Nações Unidas OUA - Organização da União Africana PPJ - Promoters of Peace and Justice (Promotores da Paz e da Justiça) RUF - Frente Unida Revolucionária TPI - Tribunal Penal Internacional UNAMSIL – United Nations Mission in Sierra Leone UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância UNOMSIL - United Nations Observer Mission in Sierra Leone

Resumo O presente trabalho visa apresentar o fenômeno do recrutamento de crianças-soldado em conflitos travados mais precisamente na África. É feito um panorama geral do problema com dados e números das últimas décadas assim como uma explanação das normas e regras internacionais que compõem o sistema internacional formal de proteção à criança. À luz da teoria de Donald Horowitz são analisados os problemas motivadores dos conflitos tidos como étnicos. Em um terceiro momento é feita uma apresentação dos principais organismos internacionais envolvidos na reintegração social de ex-crianças soldado juntamente com os seus programas implementados. Por fim, o trabalho foca a sua análise em um estudo de caso de Serra Leoa – conflito, uso de crianças-soldado e programas de reintegração – e expõe as principais recomendações para os programas pré e pós-conflito, concluindo que medidas concretas necessitam ser tomadas, tais como planejamentos de médio e longo prazo os quais garantam que os programas de reintegração sejam devidamente financiados para, desta forma, alcançarem a plenitude de seu objetivo. Palavras-chave crianças-soldado, recrutamento, reintegração, conflitos, Serra Leoa, UNICEF, proteção à criança. Abstract The following article aims to present the phenomenon of the recruitment of child-soldiers in conflicts taken place more precisely in Africa. An overview of the problem is given with the presentation of data and figures from the last decades. The rules and norms that are part of the international formal system of child protection are also stated in this article. The problems that motivate conflicts claimed to have an ethnic foundation are studied under the light of Donald Horowitz’s theory. At a latter moment a presentation is made of the main international organizations involved in the social reintegration of former child-soldiers together with their implemented programs. Finally, this article focuses on a case study of Sierra Leone – conflict, use of child-soldiers and reintegration programs – and lays out the main recommendations for the pre and post conflict programs coming to the conclusion that concrete and practical measures need to be taken, in the form of mid and long term planning, which can guarantee that the reintegration programs will receive the appropriate funding so that they can reach the fullness of their objectives. Key words child-soldiers, recruitment, reintegration, conflicts, Sierra Leone, UNICEF, child protection.

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O Desafio da Reintegração Social de Crianças-Soldado: um estudo de caso sobre Serra Leoa

Tainá Souza1 Leandro Rangel2

Introdução: o fenômeno das crianças-soldado

“Crianças não dão início a guerras, contudo, elas são o alvo mais vulnerável aos seus efeitos mortais. Crianças raramente conseguem entender as causas complexas de um conflito armado, todavia, elas são forçadas a abandonar seus lares, testemunhar atrocidades e até mesmo cometer crimes de guerra. Crianças não são responsáveis por guerras; porém, elas as roubam de sua infância.”3

O presente trabalho visa apresentar uma assustadora realidade africana: o

recrutamento de crianças como soldados em conflitos civis e guerras. Segundo dados do

UNICEF4, estima-se que em todo o continente africano existam entre 200 a 300 mil5 crianças

servindo em conflitos atualmente em curso. As mesmas são recrutadas por grupos

revolucionários ou rebeldes, como também pelas próprias forças governamentais, treinadas e

enviadas para o “campo de batalha.” Privadas dos direitos basilares de vida e da infância, elas

se tornam mensageiros do terror e perpetuam conflitos seculares.

A idade média dessas crianças gira em torno dos 13 anos, todavia, milhares de

menores de 10 anos também estão envolvidos nesses conflitos. Os Princípios da Cidade do

Cabo definem crianças-soldado como:

qualquer pessoa menor de 18 anos que, em qualquer função, faça parte de qualquer espécie de força armada ou grupo armado, regular ou irregular, o que inclui, mas não se limita a, cozinheiros, carregadores, mensageiros, e os que acompanham esses grupos em qualquer outra condição que não a de apenas membros de famílias. Isto inclui as meninas recrutadas para fins sexuais e casamentos forçados. Portanto, não se refere apenas a uma criança que esteja portando ou tenha portado armas. (Disponível em: http://www.airpower.maxwell.af.mil/apjinternational/apj-p/2008/3tri08/sullivan.htm)

1 Graduanda em Relações Internacionais no Centro Universitário UniBH 2 Professor Orientador do Curso de Relações Intrnacionais do Centro Universitário UniBH 3 (Disponível em: http://www.unicef.org/publications/files/SOWC_2005_(English).pdf acesso no dia 10 de Agosto de 2009 às 14:15h) 4 Para mais informações sobre as siglas, consultar a lista em anexo neste trabalho. 5 Em um âmbito global, o UNICEF estima que existam atualmente por volta de 250 mil crianças-soldado, número inferior ao divulgado anos atrás (300 mil). Todavia, outros especialistas afirmam que tais dados são impossíveis de serem determinados com exatidão. Disponível em: http://www.alertnet.org/thenews/newsdesk/L31815027.htm (acesso dia 1 de Novembro de 2009 às 14:20h)

2

Países africanos como Angola, Burundi, República Democrática do Congo, Serra

Leoa, Sudão e Uganda têm sido denunciados por organismos internacionais, entre eles o

Observatório dos Direitos Humanos, por sua utilização de crianças-soldado6.

Muitas dessas crianças são seqüestradas de seus lares, vítimas de exploração sexual,

obrigadas a matar deste cedo e sofrem maus tratos físicos. Somente em Uganda, estima-se

que no ano de 2002, cinco mil crianças foram seqüestradas pelo LRA e usadas como soldados

por forças rebeldes. Joseph Kony, líder do LRA, é acusado de forçar seus novos recrutas a

violentar sexualmente suas próprias mães e a matar seus familiares. Alguns antigos membros

do LRA afirmam que os rebeldes por vezes praticam atos de canibalismo com a carne de suas

vítimas7. Desde 1986 o saldo de crianças seqüestradas e envolvidas à força na guerrilha

ultrapassa 25.0008, outras fontes, como a revista Newsweek, apresentam um número igual a

40.000 crianças. É notório que o recrutamento diminuiu significativamente desde o cessar das

hostilidades em 2006, porém ativistas afirmam que aproximadamente 1.500 mulheres e

crianças ainda permanecem sob o domínio de rebeldes9.

Uma razão para tal fato é a proliferação de armas leves. No passado, crianças não

eram eficientes como combatentes de linha de frente já que o armamento letal era pesado

demais para ser manipulado. Atualmente as armas disponíveis são muito fáceis de serem

carregadas e utilizadas. O AK-47, por exemplo, pode ser facilmente disparado por uma

criança de 10 anos. Outro ponto a ser considerado é que essas armas têm se tornado cada vez

mais baratas e disponíveis. Além de serem capazes de manusear armas letais, crianças

possuem outras vantagens como soldados. Elas são mais fáceis de serem intimidadas e

obedecem facilmente. Da mesma maneira, são menos propensas a fugirem, como os adultos o

fazem, e não exigem salários.

Em conflitos prolongados crianças também se tornam um recurso valioso. Muitos

conflitos travados atualmente têm se arrastado há mais de uma geração e estas crianças que

cresceram cercadas por violência, passam a enxergar esta realidade como um estilo

permanente de vida, pois tudo o que conhecem é violência, brutalidade e morte. Sozinhas,

órfãs, aterrorizadas, sem perspectiva de vida e frustradas, muitas vezes elas escolhem lutar.

Uma unidade militar ou um exército pode representar para elas uma forma de refúgio de uma

realidade tão terrível, uma família que nunca tiveram ou que lhes foi tirada.

6 Disponível em: http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=5326 (acesso no dia 4 de Outubro de 2009 às 10:34h) 7 NEWSWEEK, 25 de Maio de 2009 8Disponível em: http://www.alertnet.org/thenews/newsdesk/L31815027.htm http://www.unicef.org/protection/uganda_25704.html (acesso no dia 24 de Outubro de 2009 às 23:33h) 9 http://www.unicef.org/infobycountry/uganda_40339.html (acesso no dia 2 de Novembro de 2009 às 9:12h)

3

Em um nível mais preliminar, integrar-se a um exército pode ser também a única

forma de sobrevivência, como pode se observar no caso de crianças na Libéria e em Serra

Leoa. Desprovidas de alimentos, casas, roupas, estas crianças encontram nos exércitos o

suprimento de suas necessidades fundamentais para a sobrevivência.

Não se pode negar que muitas crianças possuem razões ativas para querer lutar. Elas

também em muitos casos lutam por justiça social, movidas e motivadas por um desejo de

vingança – pela destruição de sua aldeia ou vilarejo e morte de sua família – e por suas

crenças religiosas e identidade cultural. Dessa forma, o que se constata é que o recrutamento

em muitos casos é “voluntário10” enquanto em outros ele é forçado, quando crianças são

seqüestradas de seus lares e obrigadas a juntarem-se a um exército revolucionário.

Uma vez recrutadas, essas crianças passam por vários estágios de doutrinação, o que

inclui treinamento para o combate. Elas são “socializadas” pela violência, por abusos físicos

e, em muitos casos, drogadas. Em Serra Leoa a RUF foi responsável pela captura e seqüestro

de milhares de crianças e por obrigá-las a testemunhar e participar da tortura e execução dos

seus próprios familiares. Após serem treinadas, essas crianças são usadas como soldados para

atacar outros vilarejos. Além de soldados armados, os pequenos guerreiros também atuam

como mensageiros e espiões. Suas funções dentro do exército variam desde carregar água e

cozinhar até matar e torturar.

É notório o envolvimento de agências especializadas da ONU como o UNICEF e de

outros organismos internacionais como a Cruz Vermelha e o Observatório dos Direitos

Humanos em projetos que visam resgatar essas crianças das mãos de forças armadas e

reintegrá-las aos seus lares. O UNICEF tem argumentado que investimentos em educação são

fundamentais para evitar a adesão de muitas crianças a tais grupos como também auxiliar em

sua readaptação à sociedade. Contudo, todos os esforços tomados até o presente momento têm

se apresentado insuficientes diante da magnitude do problema.

Desta forma, o presente trabalho pretende discutir o que tem sido feito pela sociedade

internacional11 para colocar fim a este ciclo de violência e morte. Quais têm sido os

10 O termo “voluntário” não é usado aqui com a conotação de um ato de livre e espontânea vontade de uma pessoa. Estas crianças podem escolher se juntar a grupos armados por não possuírem oportunidades ou perspectivas melhores, pela conjuntura de extrema pobreza e violência. Desta forma, fatores externos à sua vontade as conduzem a esta decisão. 11 Hedley Bull transpõe a idéia de ordem social para o âmbito internacional e afirma que no mundo contemporâneo é visível a existência de uma sociedade internacional. Embora a sociedade internacional contemporânea não se baseie em uma cultura ou civilização comum, assim como o era nos séculos XVI e XVII (sociedade cristã) e nos séculos XVIII e XIX (sociedade européia), elementos comuns são partilhados. No entanto, é possível afirmar que a sociedade internacional contemporânea possui uma base cultural, a cultura da “modernidade.” (BULL, 2002)

4

programas de reintegração social de crianças-soldado, mais notoriamente no caso de Serra

Leoa? Estes programas têm obtido sucesso? E se não? Por que razão?

O sistema internacional formal de proteção à criança

“(...) a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento (...)”12

O uso de crianças em conflitos é uma violação do próprio direito internacional o qual

impõe às partes conflituosas a obrigação de impedir que crianças menores de 15 anos se

envolvam em hostilidades. Pelas lentes do Direito Internacional as partes estão obrigadas a

não recrutarem crianças. O Tratado de Roma, para o Tribunal Penal Internacional, de 1988,

estabelece como crime de guerra o recrutamento e uso de crianças como soldados em

conflitos armados. Em 2000 foi aprovado pela Assembléia Geral da ONU o “Protocolo

Opcional à Convenção dos Direitos da Criança” o qual elevou para 18 anos a idade mínima

para a participação legal em uma guerra. Claramente, todos estes tratados e normas

internacionais têm sido violados pelos países africanos supracitados.

Dados levantados pela ONU acerca do uso de crianças-soldados em países africanos

são alarmantes. Um relatório da Assembléia Geral, realizado em conjunto com o Conselho de

Segurança do dia 9 de Fevereiro de 2005,13 apresenta um quadro de contínua violência e

descumprimento dos direitos das crianças nesses países. A despeito do fato de muitos avanços

terem sido feitos em prol do resgate de crianças e da sua reintegração à sociedade, milhares

ainda continuam sob o domínio de grupos guerrilheiros e exércitos separatistas. O relatório

apresenta dados de países como Burundi, Costa do Marfim, República Democrática do

Congo, Libéria, Sudão, Serra Leoa, Somália, dentre outros. Casos de abuso sexual, maus-

tratos, crianças forçadas a pegar em armas e separadas de suas famílias, escolas saqueadas e

morte, revelam a fragilidade destes Estados que não conseguem garantir o respeito aos

direitos básicos da sua população.

Em seu artigo,“UNICEF’s Agenda for Peace and Security for Children,” Jennifer Klot

(2009) apresenta informações de dados levantados pelo UNICEF. Para a autora, uma das

características peculiares de conflitos armados contemporâneos é que nestes conflitos as

12 Declaração dos Direitos da Criança, 1959. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dc-declaracao-dc.html (acesso no dia 15 de junho de 2010 às 15:00h) 13 Disponível em: http://www.unicef.org/emerg/files/SG_report_cac.pdf (acesso no dia 1 de Novembro de 2009 às 13:54h). Dados que remetem aos anos de 2003-2005.

5

crianças são aquelas que mais sofrem. Somente na última década estima-se que 2 milhões de

crianças tenham sido mortas e feridas como resultado direto de conflitos armados. Conforme

dados do UNICEF, entre 1995 e 1997 mais de 300 mil crianças abaixo de 18 anos foram

exploradas e utilizadas como soldados em 26 conflitos ao redor do mundo. O artigo é uma

demonstração da preocupação de muitos entes da comunidade internacional, como a ONU, a

respeito deste problema. O argumento é que medidas de desarmamento precisam ser tomadas,

assim como a reintegração dessas crianças à sociedade e uma completa assistência física,

emocional, psicológica e educacional, precisa ser dada a tais crianças tão marcadas por atos

grotescos de violência.

Conforme apresenta Ilene Cohn (2009), embora grandes esforços tenham sido feitos

pela comunidade internacional para proteger o direito das crianças em tempos de guerra,

ainda ocorre um hiato entre a proteção destas e a provisão dos serviços e assistência. O

mesmo ocorre sobretudo em decorrência de falhas de planejamento e recursos financeiros

limitados. A autora argumenta que atores internacionais, não só Estados, mas também OIs,

ONGs e outros, precisam realizar planejamentos de longo prazo e preparar orçamentos

condizentes à gravidade e necessidade da questão em pauta. A desmobilização e o

desarmamento devem ser seguidos pela reintegração à sociedade, um processo de longo prazo

que abrange o nível econômico, social e político.

Autores como Jenny Kuper (2009) levantam a discussão a respeito da utilidade do

direito internacional no que tange o uso de crianças em conflitos armados. Os

questionamentos da autora focam em qual seria então o seu papel, e em quais seriam as

principais regras do direito internacional relacionadas à tal prática e como estas podem ser

implementadas. A discussão encontra peso e importância em função da tendência global ao

fortalecimento de instituições internacionais e do respeito ao direito internacional. Embora os

mecanismos de coerção e sanção internacionais ainda esbarrem na soberania estatal, há uma

crescente tendência a uma busca do respeito e aceitação de normas e regras internacionais

mesmo que por “questões de valor moral”.

Estados que caminham na contra-mão desta tendência muitas vezes são chamados de

revisionistas ou de perturbadores da ordem internacional vigente. Mas o que dizer de Estados

cuja própria noção de soberania interna encontra-se fragmentada? Estados onde o governo

central é questionado e este “não detém o monopólio legítimo do uso da força”.

Em um primeiro momento é importante compreender a complexidade do Direito

Humanitário Internacional e entender que diferentes regras se aplicam dependendo da

nomenclatura que se dá ao conflito, ou seja, se ele é denominado como internacional, não-

6

internacional ou como uma perturbação civil. Nenhum ente internacional, nem mesmo a

ONU, está autorizado a fazer uma classificação da categoria na qual o conflito se encaixa,

pois este direito pertence às partes do conflito. Desta forma, é de grande interesse estatal

declarar que o conflito em seu território não passa de uma perturbação civil, para que assim

fiquem livres da obrigação de adequação a padrões internacionais. (KUPER, 2009)

Da mesma maneira, é necessário apresentar a definição que o direito internacional dá

ao termo “criança.” Para o DIP crianças são aqueles abaixo de 18 anos de idade, conforme o

artigo 1° da Convenção dos Direitos da Criança. Normas internacionais são enfáticas ao

afirmarem que crianças abaixo de 15 anos jamais devem ser usadas como combatentes

(Artigo 77 (2) Protocolo I de Genebra 1977, Art. 4 (3) Protocolo II de Genebra 1977, e Art.

38 (2) Convenção dos Direitos da Criança, 1989). Conforme as mesmas convenções

internacionais, crianças não podem ser recrutadas – voluntariamente ou forçadamente – como

soldados. Há uma grande discussão acerca da idade mínima para o recrutamento de soldados.

Desde 1994 esforços têm sido realizados dentro da ONU para acrescentar um protocolo

opcional à Convenção dos Direitos da Criança elevando a idade mínima de 15 para 18 anos.

De qualquer forma, o Estatuto do TPI claramente estabelece como crime de Guerra o

alistamento e recrutamento às forças armadas de crianças abaixo de 15 anos, assim como a

sua participação ativa em hostilidades. Esta proibição se aplica tanto a conflitos internacionais

como aos não-internacionais. Há também um conjunto de normas encontradas na Convenção

de Genebra de 1949, assim como no Protocolo I da Convenção de Genebra de 1977, que

abrangem a questão da responsabilidade. Estas deixam claro que líderes governamentais,

assim como soldados e seus comandantes, podem ser pessoalmente responsabilizados pelas

violações de leis que tangem conflitos armados.

Organismos internacionais como o UNICEF têm se esforçado em garantir os direitos

elementares das crianças ao redor do mundo. É necessário compreender que infância envolve

muito mais do que o momento entre o nascimento de uma pessoa e a sua fase adulta, na

verdade refere-se ao estado e à condição de vida de uma criança. Infância está ligada à

qualidade de vida dos anos de uma criança. A Convenção dos Direitos da Criança, adotada

pela Assembléia Geral da ONU em 1989 representa um consenso dos países signatários no

que tange aos termos referentes à infância. Embora não haja unanimidade de interpretação em

todos os pontos apresentados, há um consenso dos padrões de como a infância deva ser

vivida. Desde que a Convenção foi adotada, muitos avanços concernentes aos direitos das

crianças podem ser celebrados. Progressos no direito à vida, saúde e educação por meio de

7

bens e serviços fundamentais. Contudo, muitos destes se encontram ameaçados em países

devastados por pobreza, conflitos armados e pelo vírus da AIDS.

Mais de um bilhão de crianças, segundo dados do UNICEF14, têm seus direitos

basilares violados. A estas são negados pelo menos um dos bens e serviços necessários à

sobrevivência e ao desenvolvimento. É justamente nesta condição que se encontram os país

africanos anteriormente citados.

A Convenção dos Direitos da Criança apresenta uma nova definição de infância. A

Convenção é o primeiro Tratado de Direitos Humanos a estabelecer, em um único

documento, um conjunto de padrões concernentes aos direitos da criança e o primeiro a

compreender os direitos da criança como uma questão de jus cogens15. A infância, desta

forma, é definida como uma fase diferente da fase adulta, sendo que aquilo que por ventura

possa ser considerado apropriado para um adulto pode não condizer com as necessidades de

uma criança. Crianças exigem um cuidado especial e assistência e, é por esta razão, que a

Convenção estabelece uma idade mínima para o recrutamento em forças armadas e para a

participação em conflitos armados. Mesmo diante de situações semelhantes àquelas

enfrentadas por adultos, crianças exigem soluções distintas. O que se defende é a necessidade

dos governos de se comprometerem e de prover fundos financeiros para a proteção das

crianças, a adoção de políticas de bem-estar social que protejam os seus direitos e a assinatura

sem reservas de tratados e convenções que defendem os direitos da criança e uma real

vinculação a estes.

Mesmo diante da ratificação quase universal16 da Convenção dos Direitos da Criança,

e de seus dois Protocolos Adicionais, a realidade prova que a proteção de crianças ainda é

muito frágil em grande parte do mundo. O que se presencia é uma falta e clareza por parte de

governos no que tange ao seu comprometimento em criar e sustentar um ambiente seguro

para crianças, longe de abusos de toda sorte, exploração, trabalho forçado e tráfico infantil.

Quais seriam então os principais mecanismos de implementação de normas e leis

internacionais acerca do uso de crianças em conflitos armados? Após a adoção da Convenção

14 http://www.unicef.org/publications/files/SOWC_2005_(English).pdf (acesso no dia 3 de Setembro de 2009 às 15:34h) 15 CVDT (1969) - "Artigo 53 - Tratado em conflito com uma norma imperativa de Direito Internacional geral (jus cogens). É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza." 16 A Convenção foi ratificada por 192 países. Até o presente momento somente dois países ainda não a ratificaram: Estados Unidos e Somália. Informações vide: http://www.unicef.pt/artigo.php?mid=18101111&m=2

8

dos Direitos das Crianças (CDC), foi estabelecida no dia 27 de Fevereiro de 1991 a Comissão

dos Direitos da Criança. Uma das funções deste órgão ligado ao sistema ONU é regularmente

receber relatórios de países signatários do CDC examinando aqueles que abordam o

envolvimento de crianças em conflitos armados. A Comissão pode divulgar estas informações

e fazer recomendações acerca do tratamento de crianças expostas a estas situações de

violência. Os principais órgãos da ONU como também aqueles que compõem o sistema ONU

– destacando a Comissão dos Direitos Humanos, o UNICEF e o Comitê dos Direitos

Humanos – também têm exercido um papel importante na discussão e tentativa de proteção

dos direitos de crianças. Outro mecanismo para encorajar à adequação às normas

internacionais é a punição daqueles que cometem violações aos direitos de crianças. Este

instrumento pode e tem sido utilizado por organismos regionais da Europa, Américas e África

assim como pelo estabelecimento de tribunais de exceção para julgar casos específicos de

descumprimento de direitos humanos e humanitários.

O Direito Internacional, embora essencial, possui mecanismos de ação e punição

limitados pela soberania e vontade estatal. A solução de questões como o uso de crianças-

soldado depende não só da ação de organismos internacionais, mas da disponibilidade do

Estado de se adequar às normas jurídicas internacionais. O ponto fundamental a ser

considerado é que embora o Estado se veja obrigado a cumprir a norma, sendo necessário

para isto uma adequação interna, ele muitas vezes não o faz, por debilidades econômicas e

materiais que o impossibilitam de cumprir a norma em sua totalidade. Assim as normas de

direito das crianças são efetivas, porém falham por não serem eficazes, fato este que resulta

do contexto no qual as normas e as instituições estão inseridas, o qual dificulta a própria

aplicação da norma.

Os problemas motivadores dos conflitos

Uma análise mais precisa do sistema internacional nos leva a concluir que poucos

Estados são homogêneos e muitos são profundamente divididos. (HOROWITZ, 2000)

Conflitos étnicos são um fenômeno mundial recorrente ditado em grande parte pelas

mudanças no cenário internacional. Estes conflitos são frequentemente encobertos nos

momentos de guerras de âmbito internacional e mascarados por alianças feitas nos momentos

destas, contudo as alianças étnicas são reavivadas pela experiência das guerras e emergem

novamente ao seu fim. A base ideológica para este “reavivamento” do sentimento étnico é a

doutrina da auto-determinação dos povos, desta forma, “o controle do Estado, o controle de

9

um Estado, e a isenção do controle por outros grupos estão entre os principais objetivos de

conflitos étnicos.” (HOROWITZ, 2000, pg. 5)

A susceptibilidade de alguns Estados a conflitos étnicos está diretamente ligada à

importância que grupos étnicos em seu interior dão à sua raiz e identidade étnica. Quanto

mais um Estado e sua sociedade são divididos etnicamente e estes grupos étnicos possuem

fortes laços de afiliação, todo e qualquer tema pode se tornar uma questão étnica, seja este

político, econômico, social, educacional e demais. Nestas sociedades onde as diferenças

étnicas cobrem as organizações políticas, econômicas e sociais, quase todos os

acontecimentos políticos possuem conseqüências étnicas. Desta maneira, onde não há coesão

social, conflitos étnicos se encontram no centro da política, causando tensão sobre os laços

que sustentam o sentido de civilidade e servindo de base e raiz para explosões de violência

que resultam em saques de bens, mortes e fluxos de refugiados.

No que tange a relação entre etnia17 e classes sociais, é necessário compreender a

distinção clara entre grupos étnicos hierárquicos e não-hierárquicos. Quando há uma

coincidência entre os dois é possível se falar em grupos étnicos hierárquicos; quando os

grupos são situados inter-classes, pode-se falar em grupos étnicos não-hierárquicos. A direção

que o conflito étnico pode assumir está diretamente relacionada à subordinação ou não de um

grupo hierarquicamente superior a este. Em sistemas não-hierárquicos, grupos étnicos

paralelamente estabelecidos coexistem e, diferentemente de sistemas hierárquicos onde os

grupos são definidos como componentes de uma única sociedade, estes grupos paralelos são

eles mesmos sociedades autônomas, mesmo que dentro de um todo maior. Esta diferença foi

classificada por Max Weber o qual classificou os grupos hierarquicamente ordenados como

“estrutura de casta” e os grupos paralelos como “coexistência étnica.” Desta forma:

(..) coexistência étnica condiciona uma repulsa mútua e um desprezo, mas permite que cada comunidade étnica considere a sua própria honra como a mais alta; a estrutura de casta revela uma subordinação social e um reconhecimento de uma “honra maior” em favor da casta privilegiada. (GERTH, MILLS apud HOROWITZ, 2000)

17 O termo “etnia” está ligado ao nascimento e ao sangue. A identidade étnica é estabelecida no momento do nascimento para a maior parte dos membros do grupo, é baseada em um mito de uma ancestralidade coletiva o qual normalmente carrega consigo traços os quais o grupo acreditam ser inatos. Não se pode deixar de lado a noção de pertencimento e afinidade ao grupo (HOROWITZ, 2000, pg. 52) Pode-se também apresentar o conceito de Max Weber: “uma crença subjetiva em uma descendência comum, havendo ou não um relacionamento sanguíneo objetivo.” (WEBER apud HOROWITZ, 2000, pg. 53) Sendo assim, etnia engloba grupos diferenciados por cor, língua e religião; cobre tribos, raças, nacionalidades e castas (HOROWITZ, 2000, pg. 53)

10

Ao levar estas questões em consideração, é possível apontar que conflitos em sistemas

hierárquicos possuem uma “coloração” de classe, sendo assim, uma guerra toma a forma de

uma revolução social. Em contrapartida, já nos sistemas não-hierárquicos, o que se observa

são objetivos distintos. Os diferentes grupos étnicos agem como Estados em um ambiente

internacional, seus líderes políticos fazem uso da diplomacia e formam alianças e tratados. A

política que os rege é a de inclusão e exclusão e o que visam não é uma transformação social,

porém algo que se assemelhe ou se aproxime a uma autonomia soberana. O foco está em

excluir o outro grupo étnico paralelo do poder, quer seja expulsando-o ou exterminando-o, e,

desta forma, estabelecer um “status quo ante etnicamente homogêneo.” (HOROWITZ, 2000,

pg. 31)

Para uma análise mais apurada de uma Teoria de Conflitos e as Motivações para o

Conflito, é necessário primeiramente conceituar a palavra conflito dentro deste prisma. Lewis

Coser (apud HOROWITZ, 2000, pg. 32) apresenta a seguinte definição: “Conflito é uma luta

na qual o objetivo é alcançar as metas estabelecidas e simultaneamente neutralizar, prejudicar

ou eliminar os rivais.” Os estudos de etnias e de conflitos étnicos têm sido feitos, em sua

grande maioria, dentro de um contexto de modernização. Primeiramente pode-se fazer uma

relação entre Etnia e Tradição e chegar-se à conclusão que conflito étnico é o resultado de

uma forte persistência de antipatias tradicionais as quais possuem o poder de sobreviver à

modernização. Assim, é possível estabelecer um corolário de que a força do conflito étnico é

proporcional à profundidade de suas origens tradicionais. (HOROWITZ, 2000) Embora este

fato possa ser eventualmente comprovado na prática, conflitos étnicos não se restringem

apenas à persistência ou ao recrudescimento de antagonismos antigos, pois com o passar do

tempo novos grupos étnicos são formados. Desta maneira, enquanto alguns antagonismos

tradicionais sobrevivem à evolução do tempo e à modernização, outros perdem sua

importância e razão de ser.

Uma segunda visão dentro da relação entre conflitos étnicos e modernização

fundamenta-se no argumento de que a modernização alimenta estes conflitos e que estes são

produtos derivados do próprio processo de modernização. Em linhas gerais, as teorias que

seguem esta visão apresentam como causa da relação a convergência de aspirações ou

expectativas. Estas aspirações são fruto de uma mobilização social, do contato de grupos com

a economia e política moderna, levando os indivíduos que possuem a mesma natureza, a

desejarem as mesmas coisas. “Ao tornar os homens iguais, no sentido de possuir os mesmos

desejos, é que a modernização tende a promover o conflito.” (MELSON e WOLPE apud

HOROWITZ, 2000, pg. 100) Um outro ponto levantado por essas teorias é que os benefícios

11

da modernidade – oportunidades econômicas e de educação - não são distribuídos de forma

igualitária, gerando desta forma, uma tensão entre os grupos sociais. Uma das causas para a

relação entre esta disparidade e as tensões entre grupos encontra-se no ponto de partida do

processo de competição.

A realidade é que uns começam à frente dos outros e, portanto, estão em vantagem. A

outra resposta está embasada no ressentimento gerado pela diferença entre classes, “grupos

étnicos que são mais ricos, melhor instruídos, e mais urbanizados tendem a ser invejados,

ressentidos, e às vezes temidos pelos outros; estes sentimentos têm como base o

reconhecimento de sua posição superior no sistema de estratificação social.“ (BATES apud

HOROWITZ, 2000, pg. 100) Embora as diferenças entre grupos étnicos geradas pela

modernização seja um ponto de partida relevante para se analisar a psicologia por detrás de

conflitos étnicos, a importância desses conflitos não consegue ser medida em termos de

classes sociais. Isto se deve ao fato da modernização não ser o único elemento que determina

a estratificação social. Portanto, a base do sentimento de inveja, ressentimento e medo não se

encontra apenas na distribuição étnica de oportunidades, mas no que isto indica a respeito das

capacidades relativas de um grupo e de suas relações inter-sociais. (HOROWITZ, 2000)

Se estas teorias colocam sua ênfase em elites modernas e em sistemas de estratificação

diretamente afetados pela modernização, o que se pode dizer a respeito de países

extremamente atrasados, países estes que são palco de conflitos étnicos, dos quais muitos

culminaram em guerras civis? As teorias que relacionam conflitos étnicos à modernização

falham por não darem conta do estrato não-modernizado e assim negligenciam a

heterogeneidade dos motivos para o conflito.

No que se refere ao estudo de conflitos sociais, é possível identificar uma visão

tradicional que se restringe à análise do conflito étnico dentro da dicotomia “eu” x “outro”. O

conflito étnico assume a forma ou tem como base o conflito racial e seu estudo pode ser

interpretado como uma mescla entre antropologia e teorias de conflitos clássicas. Para

Horowitz, os conflitos chamados de étnicos não são necessariamente entre duas ou mais

etnias, e não podem ser enxergados pela perspectiva clássica. Sua visão da raiz dos conflitos

abarca questões econômicas, políticas e sociais.

Existem na realidade muitas forças que inibem os relacionamentos competitivos e

desta maneira, enfraquecem o impacto de conflitos de base econômica. A primeira destas

forças é a divisão étnica do trabalho, ou como se pode dizer, a especialização de uma

profissão. Esta força refere-se à concentração de grupos étnicos em um determinado setor da

economia e em determinadas profissões, fato que tem seu apogeu em ex-colônias. Para

12

justificar tal divisão, recorre-se a uma denominada “qualificação especial de um grupo para

uma função específica,” “habilidade,” e “aptidão étnica” para tal ocupação. O resultado se

configura em uma homogeneidade étnica em profissões e ocupações. (HOROWITZ, 2000)

A base para a continuidade da divisão étnica do trabalho é formada, desta maneira, por

uma política, tanto colonial quanto contemporânea; por um estereótipo e em muitos casos um

estigma da qualificação de um grupo específico para uma função, por fatores intrínsecos às

relações econômicas como também por aspirações étnicas – a preferência de um grupo por

uma ou outra atividade econômica. Portanto, o resultado bruto da divisão étnica do trabalho é

reduzir as chances e o espaço para a competição econômica e assim canalizar a competição

entre ramos do comércio e profissões dentro de uma mesma etnia. (HOROWITZ, 2000)

É inevitável que em decorrência deste monopólio gerado pela divisão étnica do

trabalho, nasça um ressentimento entre grupos. A diferença de oportunidades pode ser uma

fonte de atrito, enquanto ao mesmo tempo, a divisão do trabalho limita – ao menos por

definição – a competição de membros de diferentes grupos étnicos que exercem a mesma

profissão ou ocupam o mesmo setor da economia.

Ao mesmo tempo é possível aferir que grupos étnicos não hierarquizados sacrificam

interesses econômicos em prol de outros tipos de ganhos, assim como se pode observar nos

sacrifícios econômicos feitos por grupos separatistas em favor de seus objetivos. A questão

levantada não é que as considerações econômicas têm a capacidade de frear o progresso do

separatismo étnico, mas sim que muitos grupos étnicos espalhados por todo o mundo

desenvolvido têm dado continuidade à sua luta a despeito do custo envolvido. (HOROWITZ,

2000)

Embora o fator econômico seja apresentado neste trabalho como a base de qualquer

conflito denominado como étnico ou não, de maneira nenhuma pode-se omitir o fator

psicológico da análise. A fonte de conflitos étnicos não se encontra apenas na psicologia da

justaposição de grupos, contudo, é impossível que estes conflitos sejam compreendidos em

sua plenitude sem o fator emocional, os traços e interações entre grupos. (HOROWITZ, 2000)

O fator emocional ou psicológico abarca o impacto da qualidade do contato entre grupos,

como também envolve os sentimentos de antipatia, sem os quais não pode haver conflito.

Esta questão é de extrema relevância quando se analisa a participação de crianças-

soldado em conflitos que possuem uma base material. Fundamentado nesta observação, o

analista não consegue fugir da seguinte indagação: Por que crianças, que não têm participação

ativa na divisão internacional do trabalho, na economia de um país e nem em sua política,

acabam sendo cooptadas e envolvidas em conflitos apresentados como étnicos? Dando

13

seqüência a este raciocínio, por que em alguns casos, elas decidem se juntar a grupos armados

que usam de um discurso de ódio racial, mas que fundamentam a sua luta em uma competição

por recursos? Obviamente não existe uma resposta simples para uma questão tão complexa.

Todavia, pode-se argumentar que estas classes adultas dominantes, as quais entram na

ilegalidade quando envolvem crianças em conflitos armados, incutem na mente destas todo o

ideal da diferença e antagonismo eu x outro, doutrinando seu exército mirim para viver em

um ambiente de conflito civil e ódio racial.

O efeito psicológico se torna, neste sentido, a base de sustentação para a permanência

de crianças em um conflito que vai além do fator emocional, mas que para estas crianças é a

expressão da dicotomia entre amigo x inimigo, da polarização entre dois grupos quaisquer

que se comparam e encontram diferenças entre si, por menores que estas sejam. A

identificação de um amigo ou inimigo, como também a base social da confiança, é um

julgamento feito calcado em anos de experiências e contatos que moldam a definição cultural

de uma ameaça18. A despeito do fato de existirem muitas definições distintas de identidade, a

maioria destas parte de uma compreensão do “eu” frente ao “outro.” Desta forma, identidades

não se resumem apenas a uma questão pessoal ou psicológica, mas sim a uma questão social,

questão esta definida pelas interações dos atores. Portanto, todas as identidades políticas são

contingentes e dependentes da interação de um ator com os demais e encaixadas em um

contexto institucional. (ADLER; BARNETT, 1998)

O ser humano carrega consigo a necessidade de sentir-se digno, dotado de valor. Esta

necessidade é satisfeita, em uma medida considerável, pelo pertencimento a um grupo o qual

também é reconhecido como digno de valor. O sentimento presente pode ser classificado

como auto-estima coletiva, alcançado via reconhecimento social o qual é conferido por meio

da afirmação política. Afirmação política garante aos grupos étnicos uma identidade étnica

com a organização política, mais notoriamente o Estado. Desta maneira, a identificação pode

ser compreendida em termos de inclusão e exclusão de grupos étnicos os quais se pautam

nesta lógica para dar voz ao desejo de sentirem-se em harmonia com o ambiente no qual

vivem e para pertencer a um território. (HOROWITZ, 2000) Quando se observam

comparações hostis e uma disputa pela valorização de um grupo frente aos demais, o clamor

18 Alguns padrões culturais exercem um peso especial sobre a relação entre etnias. Teóricos como Volkan sugerem que a infância vivida em um contexto de família estendida, ou ampliada, pode conduzir ao desenvolvimento de sentimentos de ansiedade e ao uso de “estranhos étnicos” como alvo para a externalização. A família ampliada é, sem sombra de dúvida, uma instituição comum na maioria das sociedades extremamente divididas. O ponto fundamental a ser considerado é que etnia é diretamente ligada à família, e conflitos étnicos carregam em si a rivalidade entre “irmãos.”

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por inclusão ou exclusão ganha força política. A saída encontrada para colocar fim a tal

comparação é uma “homogeneidade” étnica alcançada pela exclusão do “outro.”

Para se compreender conflito étnico é necessário inverter o pensamento clássico de

que o poder é um meio utilizado para se alcançar os bens e os fins desejados, e sim enxergá-lo

não apenas como um meio, mas também como o próprio benefício. O poder é o fim, o

objetivo em ambos os extremos de um espectro. Nesses termos, o desejo pelo poder não se

limita aquilo que, por menor que seja, ele pode conquistar, mas às grandes coisas que ele

reflete e previne. O poder confirma um status reivindicado como também previne e impede

uma ameaça, expressando-se por meio de um esforço de dominar o ambiente, suprimir as

diferenças, impedir a dominação de um grupo por outro qualquer. (HOROWITZ, 2000) Com

isto em mente, é possível aferir que o medo da dominação étnica e a supressão de um grupo

por outro é uma mola propulsora para a obtenção do poder como um fim e para a confirmação

de um status étnico, levando à subordinação de conflitos ou disputas por necessidades e

interesses aos conflitos acerca do status de grupos.

Grupos étnicos lutam por preeminência, fato expresso no objetivo central por controle

estatal de um conflito étnico. Não estar no poder não se resume a estar fora do poder, mas

significa ser dominado por outro grupo o qual está no poder, significa ser politicamente

subjugado. O sentimento que fundamenta este esforço por preeminência é o medo de que o

poder político nas mãos de um grupo será usado para o seu benefício exclusivo em detrimento

dos demais. O controle político configura-se, desta maneira, em termos de dominação e a

ocorrência de violência étnica reflete a força motivadora do medo da dominação.

(HOROWITZ, 2000)

As tentativas de solução do problema: a questão da reintegração social

O processo de reintegração social de uma criança-soldado envolve a desmobilização

de todas aquelas com idade inferior a 18 anos, sua reintegração familiar à sua comunidade e a

assistência em sua transição à vida civil. Os programas de desmobilização oferecem o

suprimento das necessidades básicas da criança como alimentação, moradia, vestuário, como

também educação fundamental e profissionalizante. Uma atenção especial é dada ao aspecto

psicológico para assistir a criança a lidar com seus traumas de experiências passadas, daquilo

que presenciaram e cometeram, e a se ajustar emocionalmente a uma nova realidade. Um dos

objetivos destes programas é restabelecer uma rotina diária para os ex-combatentes, provendo

15

a eles um sentido de normalidade e ensinando-os a resolver seus problemas e conflitos de

maneira não violenta.

O UNICEF tem sido um ator fundamental na criação e desenvolvimento de projetos

de reintegração social de crianças-soldado não apenas na África, como também em outras

regiões do mundo. Em levantamentos recentes, a instituição internacional estimou que em

Serra Leoa mais de 375 mil crianças em idade escolar, em sua maioria meninas, vivem em

comunidades remotas e, portanto, não possuem acesso à escola19. A guerra civil que assolou o

país durante 10 anos destruiu grande parte da infra-estrutura escolar vigente e com o fim da

guerra, milhares de crianças mais velhas têm ocupado o espaço disponível impossibilitando

que crianças mais novas tenham acesso à escolaridade. A instituição, desta forma, tem

desenvolvido uma estratégia para levar educação a estas crianças que não têm condições de

percorrer grandes distâncias. O projeto, uma parceria entre o UNICEF, o Ministério da

Educação de Serra Leoa e o Movimento Global para Crianças (Serra Leoa), consiste em levar

o ensino fundamental a estas comunidades durante um período de quatro anos20. A iniciativa

tem provado a eficácia de parcerias até mesmo em comunidades pobres.

Desde 2003 tem-se observado a atuação efetiva de “Comissão da Verdade e

Reconciliação” em situações de pós-guerra e conflito. Estas comissões capacitam as crianças

a testificar, dar testemunho de suas experiências e participar de processos de cura nacional.

Através deste programa, apoio psicológico é oferecido a ex-combatentes marcados por

tamanhas atrocidades. O caso da atuação desta Comissão em Serra Leoa é peculiar e merece

atenção. O desafio da Comissão tem sido desenvolver procedimentos próprios para crianças

que garantam a sua proteção e as auxilie, em um ambiente de segurança e confiança, a

recontar suas experiências de guerra. Em Junho de 2001 o UNICEF, juntamente com o Fórum

Nacional dos Direitos Humanos e o braço dos direitos humanos da missão da ONU em Serra

Leoa, organizou uma reunião entre especialistas de direitos de crianças e de proteção de

crianças e um grupo de crianças, o que incluía ex-combatentes. Assistentes sociais

acompanham as crianças e as auxiliam neste momento, mostrando para elas que contar a sua

história faz parte do processo de cura.

A despeito de grandes avanços na desmobilização e reintegração de crianças-soldado

em Serra Leoa, o UNICEF tem alertado que este processo demorado e custoso está ameaçado

pela interrupção do apoio dos doadores internacionais. Em matéria21 divulgada no dia 22 de

20 http://www.unicef.org/evaluation/files/sierra_leone.doc (acesso no dia 2 de Outubro de 2009 às 10:32h) 21 Press Release http://www.unicef.pt/docs/pdf_arquivo/2003/03-07- 22_criancas_soldado_serra_leoa.pdf

16

Julho de 2003 e publicada no website da organização, a diretora executiva do UNICEF, Carol

Bellamy diz que a falta de financiamento está colocando em risco o futuro de mais 7.000 ex-

combatentes e que a “ruptura do programa de reintegração é a quebra da promessa de paz

para estas crianças e um fator de perigo para a paz na África Ocidental no seu todo.” A

educação é o meio mais eficaz para a reintegração destas crianças à sociedade civil e para

impedir que estas sejam novamente usadas em futuros conflitos. Quando o acordo de paz foi

alcançado em 2000, iniciou-se um processo de desmobilização das crianças que combateram

em Serra Leoa. Juntamente com a desmobilização, foram feitas promessas de educação

fundamental e cursos de formação profissional a estas crianças.

Contudo, em 2003 foi anunciado o encerramento dos programas de reeducação e

reintegração, fato que se apresenta como uma quebra do compromisso e promessa feitos a

milhares de crianças que depositaram sua confiança na organização e em seus projetos.

Conforme Aboubacry Tall, representante do UNICEF em Serra Leoa, os resultados dos

programas se destacam: 98% de crianças ex-soldados regressaram às suas comunidades e

muitas reencontraram suas famílias, aldeias receberam ajuda e recursos para receber estes ex-

combatentes, e milhares de jovens marcados pelos anos de luta conseguiram encontrar uma

esperança e chance de futuro. A questão é que ainda há muito a ser feito e a falta de

financiamento levará ao encerramento de programas que ainda não alcançaram a plenitude do

seu propósito. Milhões de dólares são necessários para dar andamento aos programas e

prevenir que milhares de crianças que possuem experiência com armas voltem às ruas e sejam

envolvidas e recrutadas - por falta de alternativas econômicas, sociais e expectativa de futuro

- a combater em conflitos nos países vizinhos, como no caso, a Libéria.

O Acordo de Paz Lomé22 estabeleceu de forma explícita que as necessidades das

crianças-soldado envolvidas nos 10 anos de guerra civil em Serra Leoa deveriam ser

abordadas em um processo de Desarmamento23, Desmobilização24 e Reintegração25. Embora

(acesso no dia 4 de Novembro de 2009 às 11:04h) 22 Acordo de paz assinado no dia 7 de Julho de 1999 entre o governo da República de Serra Leoa e a RUF/SL) Para mais informações vide: http://www.sierra-leone.org/lomeaccord.html 23 O desarmamento é a primeira fase do DDR e precede as fases de desmobilização e reintegração. É normalmente um processo de longo-prazo. O Desarmamento envolve a coleta e recolhimento feita por missões de paz, forças militares regulares e pela polícia local de armas leves e pequenas, que são mais fáceis de serem escondidas, assim como as de grande porte. Para mais informações vide: http://www.beyondintractability.org/essay/demobilization/. 24 A desmobilização inclui o desmantelamento das unidades militares e a transição dos ex-combatentes da vida militar para a vida civil. Esta fase também inclui o agrupamento dos ex-combatentes, programas de orientação e o deslocamento destes às comunidades de destino. Para mais informações vide: http://www.beyondintractability.org/essay/demobilization/.

17

não haja um consenso quanto ao número exato de crianças envolvidas nos anos de conflito, o

corpo nacional responsável pelo programa, o NCDRR, confirma que 6.774 crianças

integraram o mesmo. A estimativa era que 30% das crianças-soldado envolvidas nos conflitos

eram meninas, contudo, somente 8% do número total de ex-combatentes que integraram o

DDR era formado por este gênero26. A falha em endereçar as necessidades de meninas-

soldado é identificada como a lacuna mais evidente do DDR, já que no planejamento do

programa, a diferença de gênero e suas particularidades, os diferentes papéis desempenhados

por meninas e meninos e a complexidade de cada situação, foram elementos que não

receberam a devida atenção. Muitas meninas deixaram de participar do programa por, em

primeiro lugar, não serem consideradas combatentes e sim “seguidoras” dos grupos, em

segundo lugar, porque aqueles que as tomaram como “esposa” não o permitiram e, em

terceiro lugar, por medo de serem estigmatizadas.

Por esta razão, o UNICEF com a ajuda operacional de ONGs, e com o intuito de

prover assistência a tais meninas, decide estabelecer o projeto “Meninas Deixadas Para

Trás27.” Em Fevereiro de 2005, quando o projeto foi encerrado, ele já tinha identificado mil

meninas que não tinham passado pelo DDR. Outras ONGs locais deram continuidade ao

trabalho voltado à meninas, focando naquelas que se envolveram diretamente no combate

como também naquelas que foram usadas como escravas sexuais.

As crianças desmobilizadas com menos de 15 anos foram enviadas para os ICCs sob

os cuidados do UNICEF e de outras agências de proteção infantil, quando posteriormente

foram reintegradas às suas famílias ou enviadas à outras famílias para adoção, da mesma

forma, muitas integraram projetos de educação. Aquelas com idade entre 15-17 poderiam

passar por um treinamento de nove meses provido pelo NCDRR e por programas voltados

para a profissionalização. Todavia, em muitos casos, os ex-combatentes não eram capazes de

fazer um uso efetivo de seu treinamento em decorrência da fraqueza da economia, sendo que

também o kit para iniciantes que recebiam no final do treinamento não era suficiente para dar

início a um negócio sustentável. A crítica passível de ser feita ao programa é que o mesmo

não levou em consideração as realidades econômicas e nem a questão da sustentabilidade,

fatores importantes quando se observa que a privação econômica dos ex-combatentes mirins

de Serra Leoa os impulsiona a cruzar a fronteira e combater na Libéria e na Costa do Marfim.

25 Após a desmobilização entra em vigor a fase da reintegração, a qual se refere a uma reintegração eficaz e sustentável à vida civil para impedir um novo estourar do conflito. Para mais informações vide: http://www.beyondintractability.org/essay/demobilization/. 26 http://www.childsoldiersglobalreport.org/content/sierra-leone (acesso no dia 14 de Novembro de 2009 às 12:39h) 27 No original em inglês: “Girls Left Behind Project”

18

Milhares de jovens combatentes, muitos que combateram como crianças-soldado em

Serra Leoa, como também novas crianças-soldado cruzaram as fronteiras entre estes países

enxergando nos novos conflitos uma oportunidade econômica, como argumenta um estudo

realizado em 2005 pelo Observatório dos Direitos Humanos28. Trata-se de jovens que outrora

foram recrutados à força, mas que no presente se apresentam voluntariamente para pegar em

armas e combater ao lado de um novo grupo armado, embora sejam incapazes de articular o

objetivo político deste novo grupo.

O risco do novo recrutamento se torna evidente e ganha força devido ao alto nível de

desemprego observado entre jovens africanos, como também pelas próprias falhas e

deficiências intrínsecas aos projetos de reintegração social, sendo desta forma, um elemento

de risco à estabilidade da África Ocidental29.

Em termos de Lei Internacional, pode-se observar um avanço importante que se

expressa na figura do Tribunal Especial de Serra Leoa, a primeira corte do mundo - formada

por membros locais e estrangeiros - voltada ao julgamento de casos de recrutamento de

crianças-soldado30. Um nome que se destaca é o da advogada Clare da Silva, especialista em

Lei Internacional e responsável pela organização Promotores da Paz e da Justiça (PPJ). A

organização tem como função e missão auxiliar ex-combatentes a regressar aos seus lares.

Um de seus instrumentos é a realização de oficinas de trabalho voltadas para a instrução e

auxílio destes ex-soldados, ajudando-os a reconstruir suas vidas sem recorrer à violência. Para

muitos observadores da comunidade internacional, a Corte de Serra Leoa foi capaz de criar

um modelo de sucesso no que tange suas inovações de jurisprudência. O primeiro ponto de

destaque é a questão do recrutamento. Para o Tribunal, esta é uma ofensa passível de

processo, com base no Artigo 4 do Estatuto. Desta forma, ele tem poder para processar

indivíduos acusados de recrutar ou alistar em grupos armados crianças menores de 15 anos.

Um avanço tremendo, já que esta é a primeira vez que um Tribunal Criminal Internacional

consegue processar indivíduos acusados de recrutar crianças-soldados31. O Tribunal por não

ter jurisdição sobre qualquer pessoa a qual na época do crime tivesse menos de 15 anos de

idade, não julga ex-combatentes mirins, mas sim aqueles responsáveis por seu recrutamento.

Para a advogada, os conflitos em Serra Leoa possuem em sua base um grande número

de jovens desempregados que encontram no conflito e na violência uma forma de compensar

28 http://www.childsoldiersglobalreport.org/content/sierra-leone (acesso no dia 14 de Novembro de 2009 às 12:15h) 29 Conforme o levantamento feito em Agosto de 2006 pela UNOWA (disponível em: http://www.childsoldiersglobalreport.org/content/sierra-leone acesso no dia 14 de Novembro de 2009 às 13:58h) 30 http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/32693 (acesso no dia 14 de Novembro de 2009 às 11:44h) 31 http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/32693 (acesso no dia 14 de Novembro de 2009 às 11:45h)

19

e externalizar suas frustrações. Já no que se refere ao envolvimento de crianças-soldados

nestes conflitos, é necessário acrescentar o elemento da força, crianças que faziam parte de

suas comunidades e que foram obrigadas a se proteger dos ataques dos rebeldes, e assim

muitas destas acabaram tornando-se combatentes. O grande desafio apresentado por Da Silva

quando se discute a questão da desmobilização e reintegração destes ex-combatentes, é que

frequentemente esta criança retorna à uma sociedade que economicamente e socialmente

continua a mesma, com grandes chances de enfrentar novas fases e ondas de violência. Se

esta criança não tiver a oportunidade de acesso à educação e emprego, a probabilidade de

envolvimento em futuros conflitos armados aumenta de sobremaneira.

Estudo de Caso: Serra Leoa

“Esta guerra havia chegado a um ponto onde a questão era matar ou ser morto32”,

Ishmael Beah

Entre o início de 1991 e Janeiro de 2002, Serra Leoa foi palco de um conflito interno

cujo fim oficial foi marcado pelo total desarmamento e desmobilização dos grupos armados.

Em Março de 1991 combatentes do grupo revolucionário RUF33 deram início a uma guerra no

leste do país com o objetivo de derrubar o governo nacional. O exército do país, contando

com o apoio do ECOMOG e do ECOWAS, em um primeiro momento adotou a postura de

defesa do governo, mas no ano seguinte o mesmo se mobilizou e conseguiu derrubá-lo34.

As Nações Unidas, no papel de enviados especiais, buscaram trabalhar em

colaboração com a OUA e o ECOWAS em prol da negociação da resolução do conflito e da

restauração da ordem e governo civil do país35.

Eleições presidenciais e parlamentares foram convocadas e o exército passou o poder

para as mãos do vencedor, Alhaji Dr. Ahmed Tejan Kabbah. Contudo, o resultado das urnas

não foi reconhecido pela RUF e o conflito armado prosseguiu. No final de 1996 um acordo de

32 http://www.pbs.org - Entrevista com Ishmael Beah (acesso dia 16 de Março de 2010 às 9:30h) 33 Para mais informações sobre as siglas, consultar a lista em anexo neste trabalho. 34 Em decorrência da limitação de espaço do presente trabalho, alguns pontos não foram abordados. Todavia, o leitor interessado em uma explanação mais detalhada acerca do conflito em Serra Leoa pode encontrar mais informações a respeito do país e do conflito de 1991/2002 nos seguintes endereços eletrônicos: http://www.childsoldiersglobalreport.org e http://www.un.org. População estimada do país: 5,5 milhões. (acesso no dia 16 de Março de 2010 às 9:45h) 35 Para maiores informações a respeito do papel das Nações Unidas no conflito em Serra Leoa, consultar: http://www.un.org

20

paz foi assinado entre o novo governo e a RUF36. No ano seguinte o mesmo foi desfeito por

outro golpe militar perpetuado por uma junta armada formada pelo exército e a RUF, levando

Kabbah e seus oficiais governamentais a buscarem exílio na vizinha Guiné.

No dia 23 de Outubro do mesmo ano um novo acordo de paz foi assinado37. Kabbah

anunciou a sua aceitação do acordo e a junta se comprometeu publicamente à sua

implementação, porém posteriormente começou a criticar alguns pontos-chaves e levantou

um grande número de questões, tornando o acordo inválido38. Nos meses seguintes presenciou-se o estabelecimento da UNOMSIL39 para um

período inicial de seis meses. Equipes da UNOMSIL relataram e documentaram atrocidades

contínuas e desrespeito dos direitos humanos cometidos contra civis40. Embora a RUF

acusasse os diferentes governos centrais de corrupção e de má-administração das fontes de

diamante e outros minerais, seus integrantes também foram autores de atrocidades e abusos

contra a população civil41.

A despeito de todos os esforços e do engajamento da comunidade internacional para

se alcançar o fim do conflito, as hostilidades continuaram. A aliança rebelde ganhava cada

vez mais força e passou a controlar mais da metade do país42.

Negociações entre o governo central e as forças rebeldes tiveram início em Maio de

1999 resultando em um acordo de paz assinado entre as partes em Lome no dia 7 de Julho do

mesmo ano43. No dia 20 de Agosto o Conselho de Segurança autorizou um aumento do

número de observadores militares para 21044.

O acordo ganhou certa notoriedade e atenção da mídia, contudo, o mesmo também foi

alvo de muitas críticas45. O Observatório dos Direitos Humanos continuou a apontar que

36 Acordo Abidjan. http://www.un.org (acesso no dia 16 de Março de 2010 às 10:00h) 37 Dentre outros pontos, o acordo chamava por um cessar-fogo o qual seria monitorado pelo ECOMOG e, se aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU, assistido por observadores militares das Nações Unidas. 38 O desenrolar do conflito foi marcado por vários momentos como a resposta do ECOMOG a um ataque realizado pela junta armada em Fevereiro de 1998. Esta resposta resultou no colapso da junta e sua expulsão de Freetown. No dia 10 de Março o presidente Kabbah foi restituído ao seu cargo e o Conselho de Segurança declarou o fim do embargo de petróleo e armas. 39 A função da missão era monitorar e administrar os esforços para desarmar os combatentes e reestruturar as forças de segurança da nação. A missão era formada por equipes desarmadas e agia sob a tutela e proteção do ECOMOG. 40 De acordo com o Observatório dos Direitos Humanos, mais de 50,000 pessoas foram mortas entre 1991-2001 e mais de um milhão deslocadas. http://www.globalissues.org (acesso no dia 17 de Março de 2010 às 20:00h) 41 Casos de estupro, amputação de membros, mortes, e claro, recrutamento de crianças que se juntaram a estas forças para lutar contra o governo nacional, foram realizados pelas mãos das forças rebeldes. 42 Para mais informações consultar: http://www.un.org. 43 O acordo determinava o fim das hostilidades e a formação de um governo de unidade nacional. As partes do conflito também exigiam um papel e participação mais amplo do UNOMSIL. 44 http://www.un.org (acesso no dia 16 de Março de 2010 às 10:02h) 45 As críticas feitas pelo Observatório dos Direitos Humanos recaem sobre o fato do mesmo garantir anistia aos rebeldes a despeito dos abusos cometidos contra os direitos humanos. Kofi Annan tentou esclarecer e

21

casos de desrespeito aos Direitos Humanos prosseguiam em detrimento do acordo de paz.

Alguns rebeldes anunciaram que rejeitariam as ações das forças de paz da ONU se estas

fossem autorizadas a fazer uso da força no processo de desarmamento das facções rebeldes.

Enquanto as forças da ONU tentavam desarmar os rebeldes nas regiões ricas em diamantes, as

forças rebeldes passaram a atacar novamente levando à necessidade de envio de novas tropas

de manutenção da paz. Aproximadamente 500 soldados da organização foram mantidos

reféns pelas mãos dos rebeldes e posteriormente libertos. Ao mesmo tempo, o governo central

também foi alvo de críticas e acusações de causar mortes de civis ao bombardear

acampamentos de rebeldes46.

Dando seqüência ao processo de implementação do acordo de paz, o Conselho de

Segurança autorizou no dia 22 de Outubro de 1999 o estabelecimento da UNAMSIL47 que

veio para substituir a UNOMSIL.

Dados da ONU apresentam que até o início de 2002 a UNAMSIL havia desarmado e

desmobilizado mais de 75 mil ex-combatentes, incluindo crianças-soldados48. O fim da guerra

foi declarado e com a situação política novamente estável, a missão ajudou a organizar as

primeiras eleições presidenciais e parlamentares livres e justas. Da mesma forma, a missão

assistiu no regresso voluntário de mais de meio milhão de refugiados e pessoas que estavam

internamente deslocadas. A UNAMSIL ajudou o governo a restaurar sua autoridade e

serviços sociais em áreas anteriormente controladas por rebeldes49.

A despeito de todos estes pontos positivos e relatos de histórias de sucesso, muito

ainda precisava ser feito. A paz no período pós-acordo continuava frágil – e ainda o é – e o

argumentar que embora um acordo de paz tivesse sido acordado, isto não concede anistia a ninguém por abusos de direitos humanos. Contudo, ele argumentou, o governo de Serra Leoa tem o “direito soberano” para agir desta forma, deixando a ONU em uma situação onde ela precisa reconhecer que esta não é uma situação perfeita, porém é tudo o que pode ser feito para impedir que o conflito se perpetue. Para mais informações consultar: http://www.globalissues.org. 46 Para mais informações consultar os seguintes endereços eletrônicos: http://www.globalissues.org e http://www.globalpolicy.org. 47 Missão maior que sua antecessora, com um contingente de 6.000 o que incluía 260 observadores militares que tinham a função de auxiliar o governo e demais partidos na implementação do Acordo de Paz Lome. Posteriormente o contingente foi ampliado para 11.100 assim como as funções da missão que passou a se encarregar de uma maior gama de assuntos civis. Em Março de 2001 a missão passou a contar com um contingente de 17.500 soldados e funcionários. Dentre suas funções, a missão foi responsável pelo desarmamento de dezenas de milhares de ex-combatentes, foi peça-chave na realização de eleições nacionais, ajudou a reconstruir a força policial do país, contribuiu para a reconstrução da sua infra-estrutura e foi o canal que possibilitou que serviços governamentais fossem levados às comunidades locais. A ONU também auxiliou o governo a colocar fim ao tráfico ilegal de diamantes e a regular a sua indústria. 48 http://www.un.org (acesso no dia 17 de Março de 2010 às 18:10h) 49Um dos grandes feitos da missão foi auxiliar na implementação da Corte Especial para Serra Leoa. A Comissão da Verdade e Reconciliação também foi uma obra da UNAMSIL. Uma atenção especial foi dada à criação de empregos e oportunidades de trabalho via projetos conjuntos entre a UNAMSIL e outras agências da ONU. Tropas da missão trabalharam na reconstrução de escolas e clínicas, deram início a projetos de agricultura e patrocinaram assistência médica gratuita nas regiões devastadas pela guerra. Para mais informações vide:

22

país continuava enfrentando muitos desafios que colocavam em risco a implementação e a

sobrevida do acordo. As causas do conflito precisavam ser tratadas e não bastavam medidas

paleativas que só garantiriam uma paz momentânea. Uma cultura de respeito aos direitos

humanos necessitava ser desenvolvida a ponto de se tornar arraigada na sociedade. Da mesma

forma, a economia do país precisava se desenvolver e se tornar independente de doações e

ajuda internacional. As causas materiais do conflito precisavam ser tratadas como a enorme

disparidade de renda e miséria que abarca grande parte da população do país. Em outras

palavras, a paz assinada tinha que sair do papel e proporcionar àqueles que dela dependiam

muito mais do que a ausência de combate, mas oportunidades econômicas tangíveis e

benefícios sociais a todas as camadas da sociedade.

Em Maio de 2007 o Secretário-Geral das Nações Unidas declarou que a situação em

Serra Leoa era estável porém frágil. A fragilidade decorria principalmente do alto índice de

desemprego entre os jovens, da ineficiência e falhas do sistema judiciário e da falta de

melhorias nos padrões de vida gerais. Segundo um relatório da ONU emitido em Junho de

2007, a estabilidade do país também era ameaçada pela falha em proteger os direitos dos

prisioneiros50.

Reintegração em Serra Leoa

Entre os anos de 1999 e 2004 o DCOF destinou mais de U$6,7 milhões para projetos

voltados à assistência de crianças afetadas pela guerra em Serra Leoa. O país é um dos mais

pobres do mundo51 e tem experimentado anos de conflito armado, durante os quais milhares

de crianças foram deslocadas, mortas, abduzidas e forçadas a integrar grupos combatentes. A

despeito dos recursos naturais significativos, mais notoriamente diamantes, e de seu potencial

para o desenvolvimento agrícola, o progresso do país em direção à paz e segurança

permanece precário e frágil.

Dados do Comitê Nacional DDR apontam que no período de desarmamento e

desmobilização entre 2001 e 2002, o número de meninos abaixo de 18 anos desmobilizados

ficou em torno de 4.269 enquanto de meninas o número se restringiu a 274. Durante o período

http://www.un.org (acesso no dia 03 de Abril de 2010 às 12:45h). 50 http://www.childsoldiersglobalreport.org (acesso no dia 03 de Abril de 2010 às 10:34h) 51 No ranking de IDH Serra Leoa ocupa a 180° posição. Para mais informações sobre o índice IDH dos países acesse o site: http://noticias.uol.com.br/ultnot/internacional/2009/10/05/ult1859u1609.jhtm.

23

mais recente de desarmamento mais de 48.000 crianças foram desmobilizadas das quais 98%

foram reintegradas às suas famílias, embora outras tenham migrado para outras áreas52.

A estabilidade futura do país depende primordialmente do acesso de ex-crianças

soldados à educação, treinamento técnico e oportunidades de emprego, e acima de tudo, à

uma reintegração ao âmbito social, econômico e político. Alguns pontos foram levantados

como elementos essenciais a uma reintegração bem-sucedida destas ex-crianças soldados em

Serra Leoa: 1) em primeiro lugar, é necessário que haja uma sensibilização e conscientização

da sociedade para que esta possa aceitar e receber de braços abertos ex-combatentes tão

marcados por anos de conflitos, 2) é necessário também uma desmobilização e um

desarmamento formais, 3) um período de transição em centros separados para meninos e

meninas, 4) rastreamento das famílias e mediação entre estas e as crianças, 5) um

acompanhamento após a reintegração à família/comunidade assim como um monitoramente

daquelas crianças que não foram reintegradas às suas famílias, 6) apoio religioso, 7)

reintegração ao ambiente escolar e treinamento técnico de qualidade e duração, 8) acesso à

saúde, 9) apoio, aconselhamento e encorajamento individuais na forma de assistência

psicológica.

Entre Dezembro de 2002 e Agosto de 2003 a Comissão da Verdade e Reconciliação

ouviu cerca de 8.000 declarações de vítimas e perpetuadores de abusos de direitos humanos,

incluindo crianças-soldado. Todavia, alguns ex-combatentes, com medo de retaliação, de

exclusão de suas comunidades ou de serem indiciados pela Corte Especial para Serra Leoa, se

negaram a testificar. A estimativa da UNAMSIL era que a maioria das ex-crianças soldado,

incluindo 520 meninas, as quais haviam sido desmobilizadas até 2002 tinham sido

reintegradas às suas famílias, e aproximadamente três mil haviam sido integradas a um

programa de educação comunitária realizado pelo UNICEF53.

O programa da DDR foi alvo de críticas por falhar em endereçar as necessidades de

milhares de mulheres e meninas abduzidas e seus filhos. Devido à falta de uma política clara e

de diretrizes objetivas, a responsabilidade acabou caindo entre as instituições governamentais

e as agências de implementação. Outro ponto fraco foi a escassez de recursos destinados à

proteção dessas mulheres e embora a maior parte tenha sido vítima de abuso sexual, somente

alguns programas ofereciam aconselhamento, educação ou treinamento. Acredita-se que por

volta de mil mulheres e meninas que não foram incluídas no programa de DDR continuam

52 http://pdf.usaid.gov/pdf_docs/PDACH599.pdf (acesso no dia 03 de Abril de 2010 às 12:10h) 53 www.child-soldiers.org/document/get?id=795 (acesso no dia 03 de Abril de 2010 às 14:04h)

24

vivendo com os rebeldes. Como já citado anteriormente, somente 8% das meninas associadas

às forças rebeldes foram incluídas nos programas de reintegração.

Desta forma, em Maio de 2003 o UNICEF deu início a um novo programa que visava

prover assistência a essas mulheres e meninas. Os Comitês para o Bem-Estar da Criança

foram treinados para prover apoio a estas meninas e a crianças que trabalham em minas de

diamantes, mas assim como outros programas, sua continuidade foi comprometida pela

escassez e limitação de fundos. Outra falha dos programas de desmobilização é que os

mesmos não incluíram ex-combatentes os quais, embora tenham sido recrutados ou abduzidos

quando crianças, após 10 anos de guerra foram desmobilizados como adultos, em detrimento

de suas necessidades peculiares e seu trauma inquestionável como ex-criança soldado.

Outro problema visível em Serra Leoa é o uso de ex-crianças soldado em minas de

extração de diamantes. Em Maio de 2003 foi apontado que entre 2.000 e 3.000 ex-crianças

soldado, algumas na faixa de 10 anos de idade, trabalhavam de forma ilegal nessas minas,

todas em terríveis condições de vida e segurança54. O uso de trabalho infantil em minas de

diamantes despertou a preocupação do Secretário-geral da ONU em Março de 2004 e um

número de organizações e agências passou a ter como objetivo colocar fim a este abuso dos

direitos da criança. Essa mobilização resultou na remoção de 218 crianças destas minas até

Março de 2004 o que incluía 78 ex-crianças soldado, como também na integração de 160

crianças que trabalhavam nas minas, incluindo 64 ex-crianças soldado em programas de

educação ou treinamento vocacional.

Corte Especial para Serra Leoa

A Corte Especial para Serra Leoa foi fundada em conjunto pelo governo de Serra

Leoa e as Nações Unidas55. Ela possui o mandato de julgar aqueles que carregam a maior

responsabilidade pelas sérias violações das leis humanitárias internacionais e das leis do

Estado de Serra Leoa cometidas no país a partir de 30 de Novembro de 1996. Em 2003 treze

pessoas foram indiciadas pela Corte, dois desses indiciamentos foram anulados em Dezembro

de 2003 em decorrência da morte dos acusados.

Em Novembro de 2002 o Promotor da Corte declarou que crianças não seriam

indiciadas pela Corte Especial. O Estatuto da Corte Especial inclui como séria violação da lei

humanitária internacional o recrutamento e alistamento de crianças abaixo de 15 anos de

54 www.child-soldiers.org/document/get?id=795 (acesso no dia 03 de Abril de 2010 às 14:06h) 55 http://www.sc-sl.org (acesso no dia 03 de Abril às 15:54h)

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idade56. A Corte também decidiu em Março de 2004 que a anistia geral dada sob o acordo de

paz Lomé de 1999 não impedia as cortes internacionais, o que inclui a Corte Especial, de

julgar e condenar crimes de guerra e contra a humanidade.

No final de Março de 2004, onze pessoas ligadas à RUF, AFRC ou CDF haviam sido

indiciadas por assassinato, estupro, trabalho escravo, escravidão sexual, e outros abusos

contra os direitos humanos e humanitários. Todas estas pessoas foram acusadas de recrutar

crianças com menos de 15 anos a grupos armados.

Um dos indiciados foi Charles Taylor, ex-presidente da Libéria, o qual foi acusado de

ser o maior responsável por crimes de guerra e por apoiar a RUF com o intuito de

desestabilizar o Estado de Serra Leoa. Outros nomes indiciados são: o ex-líder da RUF,

Foday Sankoh, que morreu de causas naturais em Julho de 2003 quando estava sob custódia, e

também Sam Bockarie, ex-comandante da RUF, o qual foi assassinado na Libéria em Maio de

2003.

Recomendações para os Programas pré e pós-conflito

Estudos feitos e apresentados pela CRIN apresentam recomendações para a

Comunidade Internacional e para o governo de Serra Leoa57. Uma das primeiras funções e

responsabilidades do governo seria criar e padronizar políticas preventivas e ações para

proteger crianças durante situações de conflito armado. Desta forma, é de inteira

responsabilidade do governo prover as necessidades fundamentais das crianças tais como:

alimentação, moradia, segurança, educação, recreação, evitar a separação destas de suas

famílias e, para as mais velhas, oferecer opotunidades de emprego. Estas práticas têm o poder

de reduzir a probabilidade de crianças se apresentarem como voluntárias a grupos armados ou

de serem recrutadas à força pelos mesmos.

Outro ponto apresentado pela pesquisa levanta que é função do governo federal

assistir no desenvolvimento e na implementação de programas psico-sociais os quais serão

um fórum para ex-crianças soldado e outras crianças afetadas pela guerra para, com

segurança, apresentar suas experiências e realidades. Estes programas devem dar uma atenção

especial às diferenças de gênero e devem permitir que as crianças tenham um papel no

processo de tomada de decisão de tais programas.

56 www.child-soldiers.org/document/get?id=795 (acesso no dia 03 de Abril de 2010 às 14:30h) 57 www.crin.org/resources/publications/SierraLeone_CIDA.doc (acesso dia 3 de Abril de 2010 às 14:30h)

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É necessário também que o governo esteja ciente da complexidade do papel de

crianças em um conflito, sendo meninos ou meninas. Os programas criados têm que levar em

consideração estas particularidades e criar políticas e planos de ação que englobem a

complexidade da vitimização, experiências, traumas e necessidades dessas cirianças.

Ex-crianças soldado e outras crianças afetadas pela guerra precisam ser engajadas,

envolvidas e ouvidas no que tange ao desenvolvimento de políticas pós-conflito e programas

de reintegração. Estas necessitam de um aconselhamento e acompanhamento extensivo para

tratar de traumas tais como abusos físicos e sexuais. O acompanhamento precisa estar

disponível em todas as comunidades e vilarejos.

É função do governo também priorizar e abrir centros ao redor da nação que possam

prover cuidado e assistência a meninas grávidas e jovens mães, assim como prover assistência

médica.

No que se refere aos programas pós-conflito, a pesquisa apresenta as seguintes

recomendações: desenvolver programas nas áreas de educação e treinamento técnico. À luz

do que Horowitz apresenta em seu estudo sobre conflitos, como étnicos, é necessário manter

em mente que os benefícios da modernidade – oportunidades econômicas e de educação - não

são distribuídos de forma igualitária, gerando desta forma, uma tensão entre os grupos sociais.

(HOROWITZ, 2000) Desta forma, os programas pós-conflito não podem falhar no elemento

educação o qual é o fundamento para se garantir o acesso a melhores oportunidades de

emprego e amenizar as desigualdades sociais e econômicas entre os integrantes de uma

mesma sociedade.

Ao se fazer esta co-relação entre as recomendações apresentadas e os pontos

levantados pelo autor, mais uma vez deve-se abordar a sua afirmativa de que os mesmos

possuem uma raiz a qual abarca questões econômicas, políticas e sociais. (HOROWITZ,

2000) Essas questões têm a capacidade de coletivizar e separar grupos quaisquer, podem ser a

base para o antagonismo entre grupos levando a um conflito o qual tradicionalmente é

classificado como étnico, quando na verdade estes conflitos partem de um fundamento

econômico e político e acabam por adquirir um debate e uma roupagem religiosa e étnica. A

etnia, desta forma, se apresenta não como um desvio artificial de interesses econômicos, mas

como um reflexo fiel dos mesmos e os conflitos étnicos repousam sobre uma real competição

econômica. (HOROWITZ, 2000)

Ademais, assim como Horowitz apresenta, a despeito da predominância do fator

econômico que neste trabalho é apresentado como o fundamento de conflitos chamados de

étnicos ou não, o elemento psicológico não pode ser desconsiderado da análise e nem

27

negligenciado por programas que visem a reintegração plena de crianças que foram marcadas

por traumas tão grandes como os presenciados em Serra Leoa. Nenhum conflito pode ser

compreendido em sua totalidade sem a consideração do fator emocional ou psicológico. É por

esta razão que estes programas precisam oferecer assistência e tratar de questões de violência

sexual, oferecer aconselhamento e assistência psicológica, tratamentos à dependência de

drogas, promover a reunificação familiar e oferecer às crianças atividades de lazer e

recreação.

Redes de apoio às vítimas devem ser criadas para que tanto meninos como meninas

possam assistir e dialogar com outras crianças e compartilhar suas experiências. As

necessidades materiais e financeiras destes ex-combatentes não podem ser colocadas de lado.

É necessário que haja programas educacionais e investimentos significativos que promovam o

crescimento econômico e a inclusão destes ex-combatentes no mercado de trabalho e na

economia nacional. A criação de empregos e oportunidades de trabalho é uma arma eficaz na

prevenção da participação destes ex-combatentes em futuros conflitos. Os programas de DDR

precisam ser desenvolvidos e fortalecidos, o que significa maior apoio financeiro e mais

fundos destinados à perpetuação e ampliação destes. Também precisam incluir aqueles

outrora marginalizados, tais quais meninas e mulheres, e focar na reintegração destas ex-

crianças soldado à suas comunidades e famílias.

Recordando as palavras de Aboubacry Tall58 (2003), representante do UNICEF em

Serra Leoa, muito ainda precisa ser feito. Desta forma, a escassez de financiamento na forma

de milhões de dólares resultará em uma morte prematura de programas que ainda não

atingiram a plenitude do seu objetivo e propósito para o qual foram criados. A triste

consequência será a perpetuação de desigualdades sociais, educacionais, materiais e

econômicas que têm o poder de agir como combustível para incitar e alimentar futuros

conflitos.

Conclusão

A dificuldade do alcance de resultados por parte do Direito Internacional e do Sistema

Internacional fica evidente quando se considera o elemento material responsável por detrás do

mesmo. Para que este elemento receba a devida atenção é necessário que as normas

58 http://www.unicef.org (acesso no dia 14 de Maio de 2010 às 14:35h)

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internacionais compartilhadas sejam incorporadas pelo ordenamento interno dos Estados e

estes possam zelar pela sua aplicação e cumprimento dentro de seus territórios.

Os Estados, e demais atores como Organizações Internacionais, falham ao não

desenvolverem políticas públicas que exigem uma aplicação mais ativa e palpável, que visem

tratar do problema em sua raiz, e não apresentar uma solução paleativa. É necessário um

planejamento eficaz de longo prazo, devidamente financiado, o qual leve em consideração

fatores econômicos, políticos, psicológicos e culturais.

A questão econômica e material precisa receber a devida atenção, traduzida em

recursos financeiros destinados à criação de empregos e melhoria da infra-estrutura de países

devastados por conflitos armados, para que assim a norma, a qual é efetiva, seja eficaz e possa

proteger crianças de novamente pegar em armas e assim, colocar fim a um ciclo vicioso de

violência e morte o qual mancha a história de tantas sociedades. Não basta tão somente

trabalhar com políticas públicas internacionais com base normativa, pois regras de conduta

internacional não são suficientes, quer seja pela incapacidade de “enforcement” das normas,

quer seja pela complexidade do problema.

Memórias traumáticas muitas vezes não podem ser apagadas, porém elas nos revelam

que algo terrível aconteceu e nos ensinam que medidas concretas precisam ser tomadas,

fazendo com que ações que vão além de um discurso ou de uma ajuda financeira limitada,

possam garantir a estas crianças um futuro distante do passado marcado por atrocidades que

ferem os seus direitos como seres humanos.

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