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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO ALEXANDRE TORRES VEDANA PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR CURITIBA 2009

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO

ALEXANDRE TORRES VEDANA

PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A

EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR

CURITIBA 2009

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO

ALEXANDRE TORRES VEDANA

PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A

EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR

CURITIBA 2009

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ALEXANDRE TORRES VEDANA

PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A

EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado

em Direito Empresarial e Cidadania do Centro

Universitário Curitiba, como requisito parcial

para a obtenção do Título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor Francisco

Cardozo Oliveira

CURITIBA 2009

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ALEXANDRE TORRES VEDANA

PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E A

EFETIVIDADE DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitib a. Banca Examinadora constituída pelos seguintes profe ssores: Presidente:

_______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA

_______________________________________________ PROFESSOR DOUTOR PAULO ROBERTO RIBEIRO NALIN

(MEMBRO EXTERNO)

________________________________ PROFESSOR DOUTOR CARLYLE POPP

(MEMBRO INTERNO)

Curitiba, 27 de novembro de 2009.

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Aos meus pais Vilson Miguel Vedana

e Neusa Torres Vedana (in memoriam)

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RESUMO

A incorporação imobiliária se caracteriza pela venda de frações ideais de terreno vinculadas à futura construção de imóvel. Em geral, a atividade do incorporador enquadra-se em relação de consumo submetendo-se ao CDC. O construtor do empreendimento, que pode ou não ser o próprio incorporador, também se sujeita às normas do CDC naquilo que é próprio da natureza jurídica da relação que o vincula aos adquirentes das unidades imobiliárias em construção. O proprietário do terreno em que se erige o empreendimento e o agente financeiro que tenha concedido mútuo para financiamento da construção também respondem perante os adquirentes de acordo com a natureza jurídica das relações que os unem à incorporação. Como forma de tentar conferir maior garantia aos adquirentes, o patrimônio de afetação estabelece uma cisão no patrimônio geral do incorporador de modo a que o empreendimento não seja considerado de sua propriedade plena, mas sim uma espécie gravada pela persecução de uma finalidade que é a conclusão do edifício e a entrega do imóvel concluído aos adquirentes consumidores. Também com o escopo de atingimento dessa finalidade, a incorporação imobiliária conta com regras próprias para solução do inadimplemento tanto do incorporador quanto dos adquirentes.

Palavras-chave: Incorporação imobiliária. Patrimônio de afetação. Consumidor

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ABSTRACT

The real estate development is characterized by the sale of fractional ideals of land linked to the future construction of property. In general, the activity of the developer falls in the consumption relation by submitting the CDC. The building constructor, which may or may not be the truly developer, is also subject to the rules of the CDC in what is proper to the nature of the relationship that binds to the buyers of real estate units under construction. The owner of the land on which is the construction and the financial agent who has given assistance to finance the construction also accountable to the purchasers consumers to the legal nature of the relationship they have with the merger. As a way of trying to give greater assurance to the buyers, the patrimony of affectation down a split in the general assets of the developer so that the development is not considered the full ownership, but one species remarkable by the pursuit of an objective which is the conclusion of building and delivery of immovable property to purchasers consumers. Also with the scope of achieving this purpose, the real estate has its own rules for solution of both the developer default on the buyers. Keywords: Real estate. Patrimony of affectation. Consumer.

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LISTA DE ABREVIATURAS

art. – artigo

arts. – artigos

CBIC - Câmara Brasileira da Indústria da Construção

CC/16 – Código Civil do ano de 1916

CC/02 – Código Civil do ano de 2002

CDC – Código de Defesa do Consumidor

Cfr. - Conforme

CF/88 – Constituição Federal do ano de 1988

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

CPC – Código de Processo Civil

IPTU – Imposto Predial Territorial Urbano

INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social

LCI – Lei de Condomínio e Incorporações

LCI – Lei 4.591/1964

RE – Recurso Extraodrinário

REsp – Recurso Especial

RET – Regime Especial de Tributação

sgts. – seguintes

SPE – Sociedade de Propósito Específico

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

TJ-PR – Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

v. g. – verbi gratia, por exemplo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------- 09

I INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA – VISÃO GERAL ------------------------------------- 10

I.1 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E SUA DINÂMICA ------------------------------- 10

I.2 REDE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL NA INCORPORAÇÃO

IMOBILIÁRIA ------------------------------------------------------------------------------------- 19

I.3 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO -------------------------------------------------------------- 25

I.4 REGIMES DE EXECUÇÃO DA OBRA ---------------------------------------------------- 28

I.4.1 Incorporação como Compra e Venda de Coisa Futura por “Preço Global”

ou a “Prazo e Preço Certos”. Preço Fechado ----------------------------------------- 29

I.4.2 Incorporação com Construção sob Regime de Empreitada --------------------- 33

I.4.3 Incorporação com Construção sob Regime de Administração

ou de Preço de Custo ----------------------------------------------------------------------- 39

I.5 COMISSÃO DE REPRESENTANTES ---------------------------------------------------- 42

II A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CÓDIGO DE DEFESA

DO CONSUMIDOR ------------------------------------------------------------------------------ 46

II.1 O MERCADO DE CONSUMO -------------------------------------------------------------- 46

II.2 A RELAÇÃO DE CONSUMO --------------------------------------------------------------- 52

II.2.1 Responsabilidade Objetiva ---------------------------------------------------------------- 57

II.2.2 Solidariedade na Cadeia de Produção e de Prestação de Serviços ----------- 61

II.3 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CDC ------------------------------------------ 63

II.3.1 A Relação de Consumo na Atividade de Incorporação Imobiliária ------------- 63

II.3.1.1 A Responsabilidade do incorporador ------------------------------------------------ 65

II.3.1.2 A responsabilidade do proprietário do terreno ------------------------------------ 68

II.3.1.3 A responsabilidade do construtor ---------------------------------------------------- 73

II.3.1.3.1 Nas incorporações por preço fechado ------------------------------------------- 75

II.3.1.3.2 No regime de empreitada ----------------------------------------------------------- 77

II.3.1.3.3 No regime de administração ------------------------------------------------------- 80

II.3.1.4 A responsabilidade do agente financiador ---------------------------------------- 81

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III PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E INCORPORAÇÃO IMOBILIÁ RIA -------------- 84

III.1 A AUTONOMIA PATRIMONIAL E FUNCIONAL DA

INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ---------------------------------------------------------- 84

III.2 FONTES DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO ------------------------------------------ 93

III.3 NATUREZA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO ---------------------- 106

III.4 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E SEUS CREDORES ------------------------------ 118

III.5 LEGITIMIDADE ATIVA PARA DEFESA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO -- 124

III.6 CRÍTICAS À INTRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO

NA ATIVIDADE DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------------ 126

IV INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA ------------------------- 135

IV.1 INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. DIVERSIDADE

DE CONSEQUÊNCIAS --------------------------------------------------------------------- 135

IV.2 O ART. 53 DO CDC E O INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES

FRENTE AO INCORPORADOR ---------------------------------------------------------- 135

IV.3 INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES E A EXECUÇÃO

EXTRAJUDICIAL (ART. 63 DA LCI). CONSTITUCIONALIDADE --------------- 143

IV.4 FALÊNCIA DO INCORPORADOR, PARALISAÇÃO

OU RETARDAMENTO EXCESSIVO E INJUSTIFICADO DA OBRA ----------- 154

IV.4.1 Na Incorporação Imobiliária sem Afetação Patrimonial -------------------------- 155

IV.4.2 Na Incorporação Imobiliária com Regime de Afetação Patrimonial ----------- 163

CONCLUSÕES -------------------------------------------------------------------------------------- 174

BIBLIOGRAFIA -------------------------------------------------------------------------------------- 177

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INTRODUÇÃO

O propósito maior deste estudo é analisar se a introdução do regime de

afetação patrimonial na atividade de incorporação imobiliária de fato beneficiará os

consumidores adquirentes de imóveis em construção.

Para responder a indagação, inicialmente o estudo abordará a dinâmica

dessa atividade descrevendo suas peculiaridades, seu funcionamento e o papel

desempenhado pelas possíveis partes contratantes, incorporador, construtor,

proprietário de terreno em que se realiza a construção, adquirentes consumidores e

agente financeiro que eventualmente tenha concedido empréstimo para financiar a

incorporação. Na sequência, o tema será situado no âmbito do Código de Defesa do

Consumidor com o propósito de tentar configurar como de consumo as diversas

relações jurídicas possíveis na incorporação, apurando-se daí a responsabilidade

civil própria de cada uma delas.

Já se aproximando do fim, a incorporação imobiliária será analisada segundo

sua autonomia patrimonial e funcional relativamente à pessoa do incorporador e seu

patrimônio. Para tanto, o tema será passado em revista sob o ponto de vista das

incorporações que tenham adotado ou não o regime de afetação patrimonial,

permitindo assim um comparativo entre as duas espécies. Ato contínuo, será

definida a natureza jurídica do patrimônio de afetação seguida de críticas ao instituto

tal qual fora introduzido na Lei 4.591/64, passando em revista suas fontes.

Por fim, na última parte, serão analisadas as consequências advindas do

inadimplemento operado no contexto da incorporação, bem como os procedimentos

próprios e especiais que a lei oferece para sua superação.

Ao final, seguem-se as conclusões mais relevantes colhidas ao longo do

estudo, numeradas em forma sequencial.

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10 I INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA – VISÃO GERAL

I.1 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E SUA DINÂMICA

Do ponto de vista do incorporador, pode se dizer que sua atividade siga um

roteiro. Considerado um terreno com potencial para comportar um edifício

residencial ou comercial composto por unidades imobiliárias representadas por

apartamentos, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área

urbana ou rural ou ainda por um grupo de casas térreas ou assobradas; dada

pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, vislumbra a possibilidade de auferir

lucro mediante alienação dessas unidades. Se o terreno for de sua propriedade,

haverá ainda necessidade de um projeto da futura edificação, elaborado por

engenheiro civil, e autorizações concedidas pelas autoridades públicas competentes

consideradas as peculiaridades do terreno e da respectiva obra. Se a tal pessoa for

um construtor, poderá ela própria realizar a construção. Do contrário, haverá de

contratar alguém que o seja e ainda providenciar para que a contraprestação de

seus serviços seja paga por si própria ou por quem se interessar em adquirir as

aquelas unidades imobiliárias. Mas se o terreno não for de sua propriedade, ainda

assim o vislumbre de lucro poderá ser perseguido: essa pessoa terá então que

obter, junto ao proprietário, uma procuração pública, uma promessa de compra e

venda ou de cessão de direitos ou de permuta que sejam irrevogáveis, irretratáveis,

autorizem imediata imissão na posse do terreno, sua alienação fracionada e a

realização de construção sobre ele.

Frequentemente se encontra doutrina contendo o roteiro que segue

uma incorporação imobiliária. Porque ítil na medida em que fornece uma visão geral

da dinâmica da atividade, J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO1 assim

descrevem esse percurso:

[...]

1 FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984.

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a) com base nos estudos técnicos e nas dimensões e características do terreno, o incorporador registra a incorporação perante o Cartório de Registro de Imóveis (art. 32, § 1.º, da LCI); b) quando há prazo de carência, o registro não é definitivo, podendo o incorporador, na hipótese de fracasso do empreendimento, denunciar a incorporação no prazo de 180 dias (o art. 12, da lei n. 4.864, de 29.11.65, elevou para 180 dias o prazo de validade de registro da incorporação a que se refere o art. 33 da Lei n. 4.591/64), comunicando o fato aos adquirentes que serão reembolsados das quantias pagas, corrigidas monetariamente, com juros de 6% (seis por cento) ao ano sobre o total corrigido (arts. 33, 34 e 36 do LCI); c) lançado o empreendimento ao público, segue-se a publicação de anúncios, com a divulgação do plano de comercialização, recebimento de propostas dos adquirentes ou celebração de ajustes preliminares; assinatura do contrato de incorporação (contrato relativo à fração ideal, de construção e da convenção do condomínio). Para a assinatura do contrato de incorporação, o incorporador dispõe do prazo de 60 dias (art. 13 da Lei n. 4.864/65) contados da extinção do prazo de carência, ou, no caso deste não existir, a contar da data da assinatura de qualquer documento de ajuste (art. 35, caput, e § 1.º da LCI); d) o art. 49 da Lei n. 4.591/64 faculta aos contratantes da construção, para tratar de seus interesses em relação a ela, a eleição, em assembléia geral, antes do início das obras, da Comissão de Representantes dos adquirentes (c/c art. 50); e) dá-se início ou prosseguimento à obra e ao pagamento das parcelas reajustáveis do preço; f) o incorporador informará, por escrito, aos adquirentes, no período mínimo de seis em seis meses, o estágio da construção, quando se tratar de negócio a prazo e preço certos (art. 43 da LCI). Na construção por administração, serão realizadas reuniões semestrais para que ocorra a revisão do custo da obra, ou no prazo que o contrato fixar (art. 60); g) conclusão das obras, com a obtenção do Auto de Conclusão “habite-se” pelo incorporador (art. 44 da LCI), procedendo-se, em seguida, à instituição do condomínio, com o registro das unidades condominiais em nome de seus respectivos titulares, após o integral pagamento do preço pelos adquirentes.

Essa pessoa, que sendo ou não o proprietário do terreno, idealiza a

construção e adota medidas para que o edifício seja construído ainda que pelas

mãos de um terceiro, é o incorporador de imóveis. Mesmo não carecendo de ser

proprietário do terreno ou construtor da obra, o incorporador será sempre a pessoa

que promove a construção e a transmissão da propriedade aos adquirentes das

unidades. Tratando de explicar a distinção entre incorporador e construtor,

ORLANDO GOMES2 alerta que:

2 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, p. 447, itálicos do autor.

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A obrigação de construir o edifício não deve ser tomada ao pé da letra, no sentido de que o incorporador há de ser necessariamente construtor civil, mas sim, no de que lhe incumbe promover a construção, por empreitada ou por administração, se não constrói diretamente o edifício. Quando constrói por intermédio de terceiro, empreiteiro ou administrador da obra, o contrato, de empreitada ou de administração, não é absorvido pelo de incorporação, conservando, pois, sua autonomia. A obrigação que tem é de promover a construção, não de construir, sendo, assim, obrigação de fazer que, descumprida, pode ser executada à custa do incorporador, por decisão judicial.

Mobilizando e organizando fatores de produção com o propósito de auferir

lucro mediante oferta de bem no mercado de consumo, o incorporador caracteriza-

se como fornecedor de produtos3 e, a depender de sua habitualidade e assento no

registro público de empresas, também poderá ser empresário.

Discorrendo sobre a complexidade dessa atividade, CAIO MÁRIO DA SILVA

PEREIRA4, autor do anteprojeto de que resultou a LCI, procura destrinchar a gama

de atividades que se acham sob o manto da incorporação, revelando desde logo a

natureza mista do contrato de incorporação:

O incorporador existiu antes de o direito ter cogitado dele. E viveu a bem dizer na rua ou no alto dos edifícios em construção, antes de sentar-se no gabinete dos juristas ou no salão dos julgadores. Um indivíduo procura o proprietário de um terreno bem situado, e incute-lhe a idéia de realizar a edificação de um prédio coletivo. Mas nenhum dos dois dispõe do numerário e nenhum deles tem possibilidade de levantar por empréstimo o capital, cada vez mais vultoso, necessário a levar a termo o empreendimento. Obtém, então, opção do proprietário, na qual se estipulam as condições em que este aliena o seu imóvel. Feito isso, vai o incorporador ao arquiteto, que lhe dá o projeto. O construtor lhe fornece o orçamento. De posse dos dados que lhe permitem calcular o aspecto econômico do negócio (participação do proprietário, custo da obra, benefício do construtor e lucro), oferece à venda as unidades. Aos candidatos à aquisição não dá um documento seu, definitivo ou provisório, mas deles recebe uma “proposta” de compra, em que vêm especificadas as condições de pagamento e outras minúcias. Somente quando já conta com o número

3 Neste sentido, o CDC qualifica como fornecedor de produto quem desenvolva atividade de produção, construção ou transformação de bem móvel ou imóvel (art. 3º). A qualificação do incorporador como fornecedor resulta clara ante a redação do no art. 53 do CDC, que faz alusão a “contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações”. Ainda, conforme adiante se verá, todos os demais requisitos necessários à existência de uma relação de consumo se fazem presentes. No entanto, o incorporador não é necessariamente um empresário. E para que se forme relação de consumo tendo-o como fornecedor, também não é necessário incorporador que pratique a atividade com habitualidade. Esse tema, todavia, também será abordado novamente quando da análise do CDC. 4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 231-233, negritos do autor.

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de subscritores suficientes para suportar os encargos da obra é que o incorporador a inicia. Se dá sua execução por empreitada, contrata com o empreiteiro; se por administração, ajusta esta com o responsável técnico e contrato o calculista, contrata os operários, contrata o fornecimento de materiais etc. [...] Diante desta variedade polimorfa de atividades, era com efeito impossível definir o incorporador dentro de fórmula tradicional das figuras componentes de qualquer contrato típico. Ele é um corretor , porque efetua a aproximação do dono do terreno com os compradores; mas é mais do que isso. É um mandatário , porque opera em nome do proprietário junto aos compradores. E porque os representa junto ao construtor, aos fornecedores, etc. É um gestor de negócios , porque, em todas as circunstâncias eventuais, defende oficiosamente os interesses de seus clientes, de um e de outro lado. É um industrial de construção civil. E às vezes um banqueiro-financiador . É um comerciante . Um pouco de tudo.

Além de atividade em si, a incorporação imobiliária é forma de constituição de

condomínio por unidades autônomas (condomínio pro diviso), integrada no roteiro de

atos a que o incorporador se compromete a praticar quando lança um

empreendimento. Sobre essa questão, PONTES DE MIRANDA5 observara que os

atos de incorporação seriam negócios jurídicos preparatórios do condomínio cuja

criação se segue à conclusão do empreendimento, inseridos em uma fase que

designa por pré-comunial ou pré-divisional.

Até o advento da LCI, a incorporação imobiliária era regulada de maneira

deficiente pelo Decreto 5.481/1928 com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei

5.234/1943 e pela Lei 285/1948. Não obstante contasse com disposições permitindo

a existência de condomínio horizontal pro diviso apenas de “apartamentos”

componentes de “edifícios de dois ou mais pavimentos” de “pelo menos três peças”6,

aquela legislação nada dispunha sobre o incorporador ou sobre o contrato de

construção, em que pese àquela época a atividade incorporativa, sem nomen iuris

algum, já se fizesse presente nos grandes centros urbanos. O cenário em que a

5 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. T. XII. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, pp. 205-217. 6 Só com a LCI (art. 8º, a) é que se permitiu a constituição de condomínio pro diviso em construções de pavimento único. Sobre a questão, EVERALDO AUGUSTO CAMBLER considera que a LCI não disciplina os chamados “loteamentos fechados, também denominados loteamentos em condomínio”. A regulação da constituição desta espécie de “condomínio” estaria sob a égide da Lei 6.766/79, já que, segundo o autor, nesta figura jurídica, diversamente do que se dá no condomínio pro diviso efetivamente regulado pela LCI, “os lotes são unidades autônomas, as ruas são vias de acesso e as praças de uso comum, sob a manutenção e conservação municipal. O regime condominial, previsto no art. 8º, da Lei 4.591/64, refere-se a casas térreas ou assobradadas e não a lotes de terreno, não podendo substituir o processo normal de loteamento, pelo qual procura-se garantir a realização de todas as benfeitorias e obras de infra-estrutura exigidas do loteador” (CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária : ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 257).

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14 atividade se desenvolvia ante o vazio legislativo era de quase total

irresponsabilidade do incorporador. Este, com frequência, assumia a posição jurídica

de um corretor que, tendo em mãos um projeto de obra, vendia as frações ideais do

terreno com base em procuração outorgada por seu proprietário e ao mesmo tempo

aproximava os adquirentes da pessoa do construtor (que em geral não era o

incorporador) de modo a que acertassem o preço da construção por unidade

(apartamento, salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área

urbana ou rural ou ainda por grupo de casas assobradadas). Conforme recorda

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR7, depois de alienar as frações ideais de terreno e

aproximar um construtor e os adquirentes com o propósito de firmarem um contrato

de construção da obra, embora fosse o idealizador do empreendimento, com

frequência o incorporador “[...] deixava de figurar como parte dos respectivos

contratos. Não se responsabilizava pelo empreendimento e apenas se remunerava

pela aproximação dos interessados finais, agindo mais como uma espécie de

corretor do que como verdadeiro agente da negociação”.

Ante a transformação do perfil da distribuição populacional do país, que

deixava de ser preponderantemente rural para se tornar urbana, fez-se premente um

incremento legislativo que disciplinasse o mercado imobiliário e de crédito imobiliário

bem assim a ocupação ordenada das cidades; o que se constata de fato ter ocorrido

mediante verificação de alguns do diversos diplomas legais surgidos nas décadas de

1960 e 1970 (Decreto-Lei 911/69, Lei 6.766/79, Lei 4.380/64, Lei 4.864/65, Lei

5.741/71 e Lei 6.015/73).

Nesse contexto é que surge a LCI. Além de regular a atividade, essa lei

especial tipificou o contrato de incorporação imobiliária sem, todavia, nominá-lo

expressamente, atribuindo-lhe feições próprias, fundindo em um contrato complexo

negócios que até então se ligavam ao empreendimento sem referência recíproca,

como se cada um fosse independente do outro. Com efeito, do contexto de um

contrato de incorporação sobressai a compra e venda de fração ideal de terreno ou

sua promessa, a promoção da edificação, o contrato de construção e a instituição de

condomínio pro diviso. Em que pese não haja alusão ao nomem iuris, a LCI permite

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.

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15 concluir sim pela existência de um “contrato de incorporação”, conforme

unanimemente reconhece a doutrina8.

A LCI inseriu várias inovações no direito pátrio e continua a fazê-lo até os dias

atuais. Dada sua natureza vanguardista, pôs o país na ponta da produção legislativa

de qualidade sobre o assunto9. Neste sentido, SILVIO RODRIGUES10 se refere a

algumas das inovações trazidas pela LCI citando (i) a possibilidade de condomínio

em construções de um único pavimento, o que até então não era previsto (art. 1º);

(ii) a atribuição de natureza propter rem às obrigações devidas pelos condôminos

em favor do condomínio (art. 4º); (iii) a obrigatoriedade de uma convenção de

condomínio e um regimento interno registrados no cartório de imóveis (art. 9º) de

modo a regular o convívio na edificação; (iv) a eleição de um síndico para

representar o condomínio (art. 22); (v) a natureza real dos direitos dos promissários

compradores mediante registro de seus contratos e o direito à adjudicação

compulsória das unidades adquiridas (art. 35, § 4º); (vi) a responsabilidade civil do

incorporador, inexistente até então (arts. 29, 30 e 31); (vii) a estabilidade contratual

mediante proibição de alterações de suas condições, em especial aquela relativa ao

preço.

A designação legal que a lei dá à atividade – incorporação de imóveis - se

explica pela consequência jurídica que os atos do incorporador acarretam. Se de

início o que se têm é um único imóvel representado por um terreno, com a

conclusão da edificação aquele terreno se divide juridicamente de modo a que sobre

ele se incorporem tantos imóveis quantos forem os apartamentos, salas comerciais,

vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural ou ainda as casas

8 Cfr. HUMBERTO THEODORO JÚNIOR: “A incorporação, tal como conceito o direito positivo (Lei n. 4.591/64), consiste num negócio jurídico complexo, subordinado a um regime especial, que o legislador concebeu justamente para defesa dos interesses dos adquirentes de unidades autônoma de edifícios, ainda em fase de construção. Às vezes, para simplificar o fato jurídico complexo, fala-se em contrato de incorporaão. O que há, porém, é um situação jurídica, que pode engendrar vários negócios ou contratos, entre o construtor, o adquirente e outras pessoas que eventualmente tenham de intervir, como o proprietário do terreno, a empresa de projeto, a administradora das vendas, etc.”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004). 9 Cfr. EVERALDO AUGUSTO CAMBLER (Incorporação imobiliária : ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993) e José de Oliveira Ascensão (Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 319). 10 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito das coisas, V. V, n. 122, p. 199 e SS, 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1978, apud CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária : ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 20.

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16 térreas ou assobradas. Assim, vale dizer que, por meio de sua atividade, o

incorporador produz e reúne vários imóveis sobre um único corpo11.

Os arts. 28 a 31 da LCI caracterizam a atividade de incorporação pela

alienação de unidades imobiliárias autônomas integrantes de edificação ou conjunto

de edificações em construção ou cuja construção ainda não esteja sequer iniciada12,

seguida de uma divisão física e jurídica que se espelham entre si criando novos

imóveis.

Qualquer pessoa, física ou jurídica, empresária ou não, pública ou privada,

pode praticar a atividade de incorporação imobiliária. Basta que realize os atos

previstos nos arts. 28 a 31, com ou sem habitualidade e profissionalismo. Consoante

as precisas observações de ORLANDO GOMES13:

A incorporação de edifício em condomínio não requer, do incorporador, habitualidade nem profissionalidade no exercício desta atividade. Considerada em si é um empreendimento, mas não necessariamente uma empresa; o proprietário de um terreno pode, sem ser empresário de incorporações, incorporar eventualmente um edifício sem que por isso deva ser considerado empresa imobiliária. Claro é que tem essa qualidade a sociedade, ou o indivíduo, que se dedica a essa atividade comercialmente. Ainda, porém, que o incorporador não seja comerciante, e não se equipare à pessoa jurídica por injunção legal, a sua atividade, conquanto civil, pode ser definida como empresarial para efeitos fiscais, assimilado, como está, na lei, a uma empresa individual. Assim não é o incorporador esporádico, dado que toda empresa presume continuidade.

Em que pese o desenvolvimento da atividade sem observância das várias

obrigações que a LCI impõe ao incorporador – v. g. arquivar memorial descritivo da

obra, art. 32, “g” - configurar crime contra a economia popular (arts. 65 e 66 da LCI)

e ainda dar ensejo à responsabilidade civil e à nulidade de eventuais pré-contratos

por ofensa ao princípio da boa-fé e descumprimento de deveres laterais de

informação e proteção; o enquadramento de alguém como incorporador não

depende de sua aceitação ou do cumprimento das obrigações previstas naquela

legislação. A mera realização de negócios típicos de incorporação já basta para que

11 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 19. 12 De ordinário, o mercado designa a aquisição de bem nessas condições pela expressão “compra de imóvel na planta”, querendo significar o imóvel que ainda só existe como projeto de engenharia, na planta do imóvel elaborada pelo engenheiro. 13 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 449-450.

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17 se configure a existência de um incorporador; incorporador irregular é verdade, mas

passível de responsabilização como se incorporador regular fosse14. De todo modo,

a própria lei permite a conclusão de que a falta de registro dos documentos referidos

nos arts. 28 a 32 não impede a responsabilização do incorporador. Neste sentido, o

parágrafo único do art. 29 prevê a presunção de vinculação entre a alienação da

fração ideal de terreno e o negócio de construção mesmo que o projeto de

construção (art. 32, “d”) ainda penda de aprovação pela autoridade administrativa,

“respondendo o alienante como incorporador”. De igual modo o art. 35, ao permitir a

averbação de contratos preliminares mesmo que o incorporador não providencie o

registro da referida documentação prevista em lei.

Não caracteriza condição de incorporador imobiliário, todavia, àquele que

constrói edifício para uso próprio ou que só pretenda vender e de fato só venda as

unidades depois de concluída a obra15. De igual modo, não configura incorporação a

venda da construção inacabada, mesmo que a mais de um comprador, sem

“vincular a operação a unidades autônomas, limitando-se a transferir quotas ideais

do prédio como um todo”16. Em tais situações, torna-se desnecessário observar os

rigores da LCI no tocante, por exemplo, à exigência de se registrar na matrícula do

terreno todos os documentos elencados no art. 32, notadamente o memorial

descritivo com as especificações da obra projetada. Uma vez concluída a obra e

diante da intenção de aliená-la de maneira fracionada por número de apartamentos,

salas comerciais, vagas de garagem, habitações isoladas em área urbana ou rural

ou ainda por casas térreas ou assobradas, o proprietário deverá constituir

condomínio com base no art. 7º da LCI, apresentando requerimento devidamente

instruído para que se inscreva no registro de imóveis a individualização de cada

unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sobre o terreno

e partes comuns atribuídas a cada unidade. Feito isso ter-se-á a abertura de

matrículas imobiliárias individuais de modo a que cada unidade se torne uma

14 Com efeito, não faria sentido algum que alguém pratique atos incorporativos, mas deixe de ser responsabilizado como tal só porque descumpriu requisitos iniciais para o desenvolvimento lícito da incorporação. 15 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária : ensaio de uma teoria geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 116-117. 16 Cfr. THEODORO JÚNIOR, Humberto Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.

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18 propriedade exclusiva com direitos a partes de uso exclusivo e comum no terreno e

no edifício.

Como já referido, não é necessário que o incorporador seja o proprietário do

terreno sobre o qual pretende realizar a construção. Este pode ser um terceiro. O

que se exige do incorporador é que tenha condições de outorgar escritura que

possibilite aos adquirentes das unidades registrar a propriedade sobre elas em seus

nomes. As condições que autorizam o incorporador a construir sobre terreno alheio

e aliená-lo em frações ideais e de maneira vinculada à construção ainda não

concluída, encontram-se previstas nos arts. 31 e 32, “a”, da LCI. Assim, também

pode ser incorporador (art. 31) “o proprietário do terreno, o promitente comprador, o

cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça os requisitos da

alínea a do Artigo 32”, bem como “o construtor [...] ou corretor de imóveis” que

obtenha uma procuração com poderes para alienar o terreno em frações ideais e

sobre ele promover a construção.

Essa dispensa legal à condição de proprietário do terreno, bem assim da não

obrigatoriedade de que a obra seja construída pelo próprio incorporador, são

significativas, em primeiro lugar, de que, na atividade de incorporação imobiliária, o

direito de propriedade sobre o terreno perde, por assim dizer, o caráter de “principal”

para tornar-se um “acessório” da função social da atividade de incorporação. Tanto

assim o é que o direito dos adquirentes de verem concluída a obra e receberem a

propriedade das unidades prevalece sobre o direito de propriedade sobre o terreno,

pertença ele ao incorporador ou a um terceiro17. Em segundo lugar, aquelas

dispensas são significativas de uma realidade do mercado brasileiro de construção e

comercialização de edifícios, qual seja, a de que a grande maioria dos

incorporadores não dispõe do capital necessário para adquirir um terreno e concluir

um edifício de vários pavimentos. Daí porque, além de venderem para depois

construir, os incorporadores também carecem de promover as edificações sobre

terreno alheio, em geral com promessa de pagamento futuro em espécie ou por

meio de dação em pagamento de parte das unidades a serem construídas o que,

aliás, o art. 39 da LCI permite que se faça.

17 Adiante será caracterizada mais detidamente a função social da atividade. Também será tratada a possibilidade de os adquirentes concluírem a construção sem a colaboração do incorporador e do proprietário do terreno.

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19 I.2 REDE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

Observação compartilhada pela doutrina especializada, a incorporação

imobiliária permite enfoque de variadas matizes, política, social, urbanística e

jurídica. Dentre elas, a merecer especial atenção está a captação de recursos junto

à população mediante promessa de entrega de coisa futura, em geral uma unidade

imobiliária para servir de moradia para uma família. Daí o porquê de o art. 65 da LCI

considerar “crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em

proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados,

afirmação falsa sobre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais do

terreno ou sobre a construção de edificações”.

O aspecto social da incorporação imobiliária, aliás, foi o que sensibilizou o

legislador, levando-o a regular a atividade por meio da LCI, inserida em um contexto

ainda maior, tendente à redução do deficit habitacional brasileiro, fazendo coro com

vários outros diplomas voltados direta ou indiretamente para o ramo da construção

civil e para a atividade de crédito imobiliário, nas décadas de 1960 e 197018.

A preocupação do legislador evidencia-se mediante simples leitura da LCI,

que muito antes do festejado CDC, já trazia uma série de providências tendentes a

dar proteger e informar aos adquirentes que, com muita frequência, viam-se às

voltas com incorporadores irresponsáveis ou incipientes ante o considerável vácuo

legislativo então existente e a novidade do tema no início do século passado19.

Realmente, a LCI estabelece uma série de obrigações para o incorporador, voltadas

à proteção e informação dos interesses dos consumidores em um grau de

detalhamento tão elevado que de forma alguma seria alcançado mediante aplicação

do CDC e demais legislação esparsa.

Nesse sentido, os arts. 37 e 38 da LCI exigem que o incorporador comunique

aos adquirentes, antes da contratação, acerca da existência de ônus reais sobre o

terreno em que se vai construir, bem como o fato de eventualmente encontrar-se ele

18 Estudo aprofundado sobre o desenvolvimento e estímulo à edificação de moradia pode ser encontrado em ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro da Habitação: uma análise sócio-jurídica da gênese, desenvolvimento e crise do Sistema. 2ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2002. 19 Cfr. HÉRCULES AGHIARIAN: “Daí, com freqüência, vermos neste diploma excepcional um dos mais precursores do que se poderia chamar, hoje de consumidores, ou simplesmente, aderentes” (AGHIARIAN, Hércules. Curso de direito imobiliário . 4ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p. 261).

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20 ocupado. Igualmente acerca da proibição de o incorporador alienar frações ideais do

empreendimento sem antes registrar o Memorial de Incorporação contendo todas as

características do empreendimento (art. 32); do dever de discriminar as obrigações

relativas aos eventuais proprietários do terreno que o tenham permutado com o

incorporador por unidades a serem construídas no próprio terreno (art. 39); e tantas

outras obrigações e precauções previstas na lei com a finalidade de dar segurança e

ciência aos adquirentes numa época em que os deveres acessórios de proteção,

lealdade e informação ainda engatinhavam em nosso sistema jurídico.

Porque em geral os incorporadores brasileiros necessitam vender para depois

construir, a moral e o profissionalismo se tornam fatores importantes para o alcance

da função social dessa atividade. Nesse sentido, é indispensável a manutenção de

uma equação representada pelos recursos captados e a evolução da obra. Logo, a

aplicação, diretamente na obra, dos recursos decorrentes das vendas antecipadas, é

a justificativa negocial e legal para sua ocorrência. Em sentido contrário, não se

reveste de boa-fé a captação de recursos seguida de “desvio” com propósito de

alavancar outros negócios do incorporador.

A conclusão do empreendimento por meio de incorporação não é um direito

individualizado para cada adquirente. Também não pode ser vista apenas como uma

obrigação do incorporador.

Na realidade, a atividade de incorporação imobiliária tem objetivo comum aos

interesses do incorporador, do conjunto de adquirentes, dos eventuais agentes

bancários financiadores da obra, dos trabalhadores nela empregados, enfim, de toda

uma rede contratual que se forma em torno dessa atividade, conforme já observou

MELHIM NAMEM CHALHUB20 ao se referir à gama de relações contratuais

presentes na edificação de uma obra de incorporação:

No negócio jurídico da incorporação, esses contratos são coligados, reunidos que estão para cumprimento de uma finalidade única que é a articulação de todos os meios necessários para que se promova a construção e se concretize seu resultado no Registro de Imóveis, com a averbação da construção, que resultará na individualização e discriminação das unidades imobiliárias autônomas, integrantes de um conjunto de unidades. A partir da união desses contratos e da implementação de outros atos jurídicos, entre estes, em especial, o registro da incorporação, identifica-se o negócio jurídico da incorporação, “formando o centro nuclear da incorporação imobiliária lato sensu, encontramos um negócio jurídico

20 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 142, itálicos do autor.

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unitário, composto de diversas outras declarações reunidas, complementares uma das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou incorporação imobiliária stricto sensu.

Como em toda atividade econômica, também há função social na

incorporação imobiliária que, no caso, concretiza-se mediante conclusão do edifício,

quer seja essa conclusão levada a cabo por promoção do incorporador como

originalmente contratado com os consumidores, quer seja pelos próprios

consumidores sem a participação do incorporador caso ele se torne inadimplente. O

que há de mais relevante é a conclusão da obra a ser alcançada, posto ser o meio

mais adequado de preservar o maior número de interesses daqueles que, direta ou

indiretamente, ligaram-se à rede contratual.

A atividade de incorporação imobiliária não se mantém por ato isolado do

incorporador. Trata-se de relação jurídica verdadeiramente complexa, envolvendo

diversos contratos com deveres principais e acessórios que se entrelaçam

ultrapassando os limites da polarização credor-devedor para irradiar efeitos

sistêmicos em uma relação contratual de execução continuada marcada pelo dever

de cooperação entre todos os partícipes. Nesse sentido já observou ORLANDO

GOMES21 que a incorporação imobiliária abrange várias espécies de contrato, de

compra e venda ou de mera promessa de coisa comum e de coisa privada, de

construção e instituição de condomínio, todas elas reunidas e fundidas em uma

unidade complexa, um único contrato, que adquire tipicidade conferida pela LCI e

que tem um único objetivo, qual seja, a produção de novos imóveis.

Lançada a incorporação e postas à venda as frações ideais do terreno em

que serão edificadas as unidades autônomas, todos ganham participação na

conclusão do empreendimento, de uma forma ou de outra. Se um adquirente deixa

de pagar as parcelas da aquisição que fez, certamente haverá desencaixe, ainda

que pequeno, nos recursos gerenciados em prol da incorporação que, como se

disse, são captados por antecipação justamente para permitir que progrida.

O legislador regulou a atividade de incorporação imobiliária com exata noção

desse dever de cooperação. Essa colocação é reforçada quando se considera a

possibilidade de derrocada da incorporação por falta de suficiente comercialização

21 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pp. 450-451.

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22 de suas unidades e, consequentemente, de recursos para levar a cabo a

construção. Tal acontecimento não é debitado integralmente à imprevidência do

incorporador na condição de “agente econômico absoluta e exclusivamente

responsável pelos riscos de sua atividade”. Há consciência de que nem todos os

incorporadores dispõem dos recursos necessários à integral conclusão de um

empreendimento. Por isto mesmo é que a LCI prevê, no caput e § 4º do art. 34, que

“o incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência,

dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento” por meio de “denúncia”

escrita apresentada ao registro de imóveis.

À primeira vista a faculdade que tem o incorporador de desistir da

incorporação e livrar-se do dever de entregar as unidades que eventualmente já

tenha alienado sem penalização alguma, pode parecer um direito desproporcional

em detrimento do consumidor se considerados os termos do art. 51, IX e XI, do

CDC. No entanto, o propósito da desistência do incorporador é, pelo contrário, o de

resguardar os interesses dos próprios adquirentes ante a premente possibilidade de

fracasso da incorporação, que pode levar à paralisação da obra por falta de recursos

com prejuízos ainda maiores a todos os contratantes. Percebendo o incorporador

que a incorporação não terá sucesso por insuficiência de vendas, o melhor remédio

para todos, segundo a lei, é autorizar a desistência do negócio.

Aqui o princípio da força obrigatória dos contratos abre espaço para a

“funcionalização da atividade”, autorizando a desistência como forma de melhor

atender aos interesses de todas as partes contratantes22.

Na incorporação imobiliária, mais do que em muitas outras atividades em que

se encadeiam diversas relações contratuais formalmente independentes entre si,

faz-se presente o conceito de rede contratual. Essa rede ganha existência não

apenas pela pluralidade de consumidores, compradores desses imóveis, que juntos

fomentam a atividade do incorporador interessado em apropriar-se do lucro. Não são

necessários muitos esforços para perceber-se que essa rede contratual envolve

muitas outras relações contratuais interligadas direta ou indiretamente, que se 22 Importante observar, entretanto, que a possibilidade de desistir da incorporação de forma lícita, consoante prevê o art. 34, não é irrestrita. Caso contrário, jamais se configuraria inadimplemento do incorporador, que poderia a qualquer momento desistir do negócio. Fiel à intenção de resguardar os interesses dos adquirentes e também ao princípio do dever de informação, o art. 34, §§ 1º e 2º, e o art. 33, da LCI, exigem que o incorporador informe aos adquirentes que naquela incorporação reservou-se ele (o incorporador) o direito de desistir do empreendimento durante determinado prazo, que não poderá jamais exceder a 360 dias contados da data do registro da incorporação no cartório de imóveis competente (art. 33 da LCI e art. 12 da Lei 4.864/65).

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23 influenciam reciprocamente, mas que têm todas elas, como causa sistêmica, de um

lado o consumidor que pretende comprar um imóvel e, de outro, o justo propósito de

lucro por parte de quem desenvolva atividades de maneira vinculada à rede. Nessa

linha segue a opinião de EVERALDO AUGUSTO CAMBLER23 afirmando:

Parece-nos claro que a incorporação imobiliária lato sensu corresponde a uma pluralidade de negócios interligados, com efeitos jurídicos próprios e independentes, mas todos agrupados em torna de uma realidade jurídica única: a atividade incorporativa normatizada pela LCI. Formando o centro nuclear da incorporação imobiliária, lato sensu, encontramos um negócio jurídico unitário, composto de diversas outras declarações reunidas, complementares uma das outras: é o negócio jurídico incorporativo, ou incorporação imobiliária stricto sensu. Essas relações jurídicas típicas reunidas, complementares umas das outras, formando um negócio jurídico unitário, constituem verdadeiro negócio jurídico complexo, resultante da manifestação de vontade do incorporador (quando proprietário ou não do imóvel incorporável), do adquirente da unidade incorporada e, eventualmente, de outros participantes envolvidos. Os negócios jurídicos reunidos objetivam a promoção e realização da construção para posterior alienação das unidades formadoras da edificação, ou conjunto de edificações, produzindo-se o fenômeno do nascimento do direito de propriedade sobre esse bem e a conseqüente eficácia jurídica real.

As relações que se travam nas redes contratuais por vezes guardam entre si

considerável nível de independência em razão da diversidade de contratos e de

partes contratantes, dando a impressão primeira de que a “quebra” de um

determinado contrato não influenciará as relações jurídica e econômica dos demais.

Ocorre, todavia, que a frustração das condições para o cumprimento de uma parcela

das obrigações em rede pode sim afetar as demais parcelas, fazendo-se sentir

perante todos os contratantes.

De uma análise estrutural das redes contratuais observam-se fenômenos que

mantêm seu bom funcionamento e que decorrem, justamente, dos reflexos

decorrentes das relações diretas e indiretas que se estabelecem entre todas as

partes contratantes24. Sobre o assunto é possível fazer uso das manifestações

23 CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária : ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp.180-181. 24 A propósito da interdependência das relações contratuais em rede e da necessidade de manutenção da equação financeira em cada uma de suas fases, especialmente no campo do direito bancário, leia-se, WALD, Arnoldo. O novo direito monetário: os planos econômicos, os contratos, o FGTS e a Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.

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24 catalogados por RICARDO LUIS LORENZETTI25, resguardadas pequenas

alterações: (i) existência de uma causa sistêmica que une todos os contratos na

rede; (ii) existência de coordenação entre os objetos individualizados e relativamente

independentes de cada contrato; (iii) obrigação de colaboração interna entre os

contratantes que diretamente se relacionem; e (iv) obrigação ou desejo geral de que

todos os contratantes se comportem de modo a que se mantenha íntegra a estrutura

da rede, evitando assim que a causa sistêmica e todos os partícipes sejam afetados.

No caso em análise, então, é possível identificar o ato de aquisição de

imóveis em construção como sendo a causa sistêmica em função da qual, direta ou

indiretamente, vários e diversificados contratos se travam e se unem. Evidente que

todos os empresários que se integram à rede têm por escopo a justa obtenção de

lucro, mas a razão que dá a possibilidade de nascença a esse lucro é o consumidor

e seu desejo de adquirir um imóvel.

Em que pese hajam contratos que, integrados a essa cadeia, tenham

finalidade que não propriamente a aquisição de um imóvel, mesmo em tais casos é

possível identificar a existência de coordenação dos objetivos desses contratos com

o objetivo último da cadeia (a causa sistêmica). É o que se dá, por exemplo, com o

financiamento bancário concedido em favor de incorporador de imóveis a fim de que

este construa determinado edifício de apartamentos e depois os revendam para os

consumidores finais (causa sistêmica) obtendo com tal alienação os recursos

necessários para devolver a quantia mutuada pela instituição financeira, acrescida

da remuneração do capital (juros).

Na rede contratual da compra-e-venda de imóveis têm-se também, como em

toda relação contratual, a obrigação de cumprir a obrigação principal constante do

pacto firmado com a contraparte. Mas para além desta óbvia obrigação, há também

o dever de comportar-se de modo a não ferir a estrutura que mantém o bom

funcionamento da rede.

Na atividade de incorporação imobiliária deve-se, acima de tudo, um

comportamento que contribua para que o empreendimento seja concluído.

Compartilhando dessa observação acerca da função social da incorporação

imobiliária como sendo a conclusão da obra, LEANDRO LEAL GHEZZI26 escreve:

25 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 192-219.

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[...] as incorporações imobiliárias sempre tiveram não apenas a função imediata de satisfazer os interesses dos incorporadores e dos adquirentes das unidades e, por conseguinte, de propiciar a circulação econômica, mas também, e principalmente, a função social mediata de assegurar que a satisfação desses interesses e que esta circulação econômica ocorreriam de forma segura para todos os envolvidos e, em última análise, para toda a sociedade.

Assim, identifica-se a função social da atividade de incorporação imobiliária

na implementação do objetivo comum das partes contratantes integradas à rede

contratual que se forma em seu redor, qual seja, a conclusão do empreendimento,

do edifício, da obra. Essa é a causa sistêmica. É o resultado da soma dos interesses

do incorporador (lucro), do proprietário do terreno (em geral permuta por área

construída), do construtor (prestação de serviços), dos interesses de quem compra

imóvel “na planta” (ter o imóvel concluído) e dos interesses da sociedade como um

todo (circulação de riqueza, geração de emprego e recolhimento de tributos)27. Daí

porque a interpretação da LCI deve levar em consideração a contribuição para o

alcance da função social, vale dizer, até que ponto determinada atitude frente à

incorporação contribuirá para que o empreendimento seja concluído.

I.3 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO

Mais adiante o tema afetação patrimonial será abordado de forma mais

pormenorizada. Por ora, todavia, com o propósito de conferir uma visão geral sobre

a incorporação, algumas considerações introdutórias devem ser apresentadas.

26 GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007, p. 54. 27 No mesmo sentido MELHIM NAMEM CHALHUB: “Com efeito, o regime jurídico das incorporações encerra controle da atividade empresarial do incorporador e determina o conteúdo do contrato (seja de compra e venda, de promessa, de empreitada, de alienação fiduciária etc), fixando diretrizes materiais e normas de conduta específicas, de acordo com os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio das relações contratuais. Visa a lei assegurar a consecução da função social do contrato, mediante realização de sua finalidade econômica, o que se alcança mediante completa construção da edificação e entrega das unidades imobiliárias aos adquirentes, nas condições pactuada.”(CHALHUB, Melhim NameM. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003, p. 279).

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Nas décadas de 1980 e 1990, vários incorporadores foram à falência e outros

tantos, sem falir, deixaram vários empreendimentos inacabados por falta de

condições econômicas de concluir a promoção de sua construção. Como

consequência, consumidores, adquirentes, viram-se obrigados a concluir eles

próprios os empreendimentos, sem ajuda do incorporador. Para tanto, em

numerosos casos, os consumidores se depararam com empecilhos jurídicos que os

impediam de retomar o andamento dessas obras, considerando que a incorporação,

como patrimônio do incorporador, sofria ataque de seus credores, interessados em

arrecadá-la para a massa falida ou penhorá-la com o propósito de vendê-la

judicialmente e quitar ações de execução singular contra devedor solvente.

Considerado o propósito de aumentar a oferta de moradia no país, como

forma de incrementar proteção aos consumidores adquirentes de imóvel “na planta”

e também à atividade de crédito voltado ao financiamento bancário para a

construção civil, a LCI foi alterada de modo a que as incorporações imobiliárias

pudessem se constituir sob a forma de “patrimônio de afetação”.

A alteração foi inicialmente introduzida pela Medida Provisória 2.221, de

04.09.2001, que inseriu os arts. 30-A a 30-G na LCI. Em seguida, sobreveio a Lei

10.931/2004, que revogou a Medida Provisória, aperfeiçoou o instituto da afetação

patrimonial e consolidou-o mediante inserção definitiva dos arts. 31-A a 31-F. Além

de alterar a LCI, a Lei 10.931/2004 inovou diversas outras questões relativas ao

crédito imobiliário e criou também um “Regime Especial de Tributação (RET)”

aplicável às incorporações que se desenvolvam sob forma afetação patrimonial,

permitindo assim que as receitas do empreendimento afetado sejam tributadas de

forma separada do incorporador, como se representassem receitas de uma nova

pessoa28.

28 O RET foi regulamentado sucessivamente pelas Instruções Normativas da Receita Federal do Brasil n. 474/2004, 689/2006 e 934/2009. Segundo o disposto no art. 1º da Lei 10.931/2004, a adoção do RET é opcional, vale dizer, o incorporador pode optar pela adoção do regime de afetação na incorporação mas não submetê-la ao RET. Adotado o RET, todavia, o incorporador ficará sujeito (art. 4º da Lei 10.931/2004) ao pagamento equivalente a 6% (seis por cento) da receita mensal do empreendimento, alíquota essa que corresponde ao pagamento mensal unificado do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS. Se a incorporação versar sobre imóveis residenciais de interesse social de valor máximo correspondente a R$ 60 mil reais no âmbito do “Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)”, o percentual de recolhimento é reduzido a 1% da receita mensal (§§ 6º e 7º do art. 4º). A facultatividade de adoção do RET, no entanto, não se mostra coerente com a lógica da afetação patrimonial porque, se não for adotado, os tributos gerados no âmbito da incorporação (à exceção do IPTU e contribuição social sobre a construção, devida ao INSS) não farão parte das obrigações do patrimônio afetado. Assim, o que de fato vincularia esses tributos ao empreendimento não é submissão da

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27

A adoção do regime de afetação patrimonial não é obrigatória. O incorporador

pode decidir se o empreendimento segue a forma tradicional da LCI ou se o

submete à afetação mediante registro na matrícula imobiliária do terreno.

Sob uma visão panorâmica, pelo regime da afetação o terreno e as acessões

objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela

vinculados, mantêm-se apartados do patrimônio do incorporador e constituem um

“patrimônio separado”, destinado à consecução da incorporação correspondente,

quitação de seu passivo e entrega das unidades imobiliárias aos respectivos

adquirentes. O patrimônio de afetação, assim, não se comunica com os demais

bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros

patrimônios de afetação que ele eventualmente tenha constituído. Disso decorre que

os recursos financeiros integrantes do patrimônio de afetação só podem ser

utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à própria

incorporação.

Por operar um rearranjo no direito de propriedade sobre o terreno, acessões,

direitos e obrigações relacionados com a incorporação afetada, as dificuldades

financeiras por que passe o incorporador, aí incluídas sua falência, sua insolvência,

a paralisação ou o atraso no andamento das obras, não atingem o patrimônio de

afetação constituído, que neste caso não integrará a massa concursal nem poderá

sofrer qualquer outra espécie de constrição judicial decorrente de dívidas do

incorporador que não estejam de alguma forma ligadas à existência do

empreendimento.

Se acaso o incorporador falir, tornar-se insolvente ou, de forma injustificada,

paralisar a obra por mais de 30 dias ou atrasar excessivamente seu andamento, os

adquirentes, por deliberação de assembleia, podem afastá-lo da função de promotor

incorporação ao regime de afetação patrimonial levada a registro na matrícula imobiliária, mas sim a opção pelo RET, exercida na forma da Lei 10.931/2004 e da IN 934/2004 da Receita Federal. Entendido o RET como opcional, o incorporador deverá avaliar se ele lhe será favorável, ou seja, se diminuirá ou não a carga tributária, uma vez que o benefício que desta opção advir será por ele apropriado. Com efeito, deixando de lançar o recolhimento devido na forma do RET como passivo do patrimônio afetado para fazê-lo no regime tributário geral da empresa, a economia gerada no âmbito da afetação patrimonial poderá ser apropriado pelo incorporador depois de quitadas as demais obrigações da incorporação. A propósito do assunto, estudo de DANIEL VIEGAS RIBAS Filho apontou que a adoção do RET só é vantajosa para o incorporador quando comparado com Regime de Tributação por Lucro Real que seja superior a 12,206%. Em comparação com o Regime de Lucro Presumido, segundo o estudo, o RET seria sempre mais desvantajoso (RIBAS FILHO, Daniel Viegas. Patrimônio de afetação na atividade imobiliária: um estudo com construtoras e incorporadoras da grande São Paulo. 2006. 127f. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis) - Centro Universitário Álvares Penteado – UniFecap, São Paulo, 2006).

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28 do empreendimento destituindo-o da condição de incorporador (art. 37-F, §§ 1º e 2º,

e art. 43, VII). Feito isso, os adquirentes deverão optar por concluir a obra sem sua

participação ou então liquidar o patrimônio de afetação. Em ambas as hipóteses, por

força de lei, transferem-se aos adquirentes, representados por uma “comissão de

representantes”, os poderes necessários para assinar quaisquer contratos

relacionados ao empreendimento para os quais até então seria imprescindível a

participação pessoal do incorporador.

Se decidem concluir a obra, os adquirentes hão de ratear entre si as dívidas

do patrimônio afetado e os custos necessários para o término da construção. Se

decidem liquidá-lo, quiçá porque essas dívidas e custos são insuportáveis, deverão

vender o terreno e acessões para, em seguida, igualmente, pagar as dívidas

vinculadas à incorporação.

A afetação patrimonial pode ser do tipo perfeita ou imperfeita. Na primeira

espécie, todos os créditos e débitos se encontram e se extinguem pelas forças (ou

por sua insuficiência) do patrimônio afetado, enquanto que na imperfeita as partes

podem procurar a satisfação de seus direitos em bens alheios à afetação29. Como

espécie de afetação imperfeita que é, além de representar uma “proteção

patrimonial” para os credores vinculados à incorporação, a atual redação da LCI não

afasta a responsabilidade civil do incorporador, que continua a responder por perdas

e danos com seu patrimônio geral, vale dizer, os credores vinculados à incorporação

têm seus direitos “garantidos” tanto pelos bens afetados quanto pelos bens não

afetados presentes e futuros do incorporador.

I.4 REGIMES DE EXECUÇÃO DA OBRA

O incorporador, recorde-se, é pessoa que, mesmo sem exercer domínio sobre

o terreno, engendra diversas relações jurídicas com o propósito de promover a

29 Conforme CHRISTOPH FABIAN, “Há de se distinguir entre duas formas de patrimônio separado: na primeira forma, os credores privilegiados pela afetação podem recorrer apenas ao patrimônio separado. Na segunda forma, eles também podem recorrer ao patrimônio geral do devedor. O primeiro caso é denominado de separação patrimonial perfeita, enquanto o segundo caso, de separação patrimonial unilateral”. (FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, pp. 60-61).

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29 incorporação, podendo, para tanto, obter uma procuração ou uma promessa de

venda de seu proprietário de modo a que possa oferecê-lo à venda em frações

ideais vinculadas a uma futura construção.

Também como já referido, incorporador e construtor não se confundem.

Enquanto a atividade de incorporação exige apenas a prática dos atos previstos nos

arts. 28 a 31 da LCI, a de construção demanda conhecimento técnico afeto à área

de engenharia civil regulada pela Lei 5.194/66. De todo modo, o próprio incorporador

pode atuar como construtor da obra. Mas quando não o faça, um terceiro há que

participar da incorporação na condição de prestador de serviços contratado pelo

incorporador ou pelos próprios adquirentes, conforme adiante será demonstrado.

Como promotor, o incorporador, então, põe em sinergia o direito de

propriedade que um terceiro ou que ele mesmo tem sobre o terreno, com o serviço

de construção que pode ser dele próprio, com os recursos dos adquirentes e,

eventualmente, com os recursos do agente financeiro que tenha concedido

empréstimo para o incorporador empregar na promoção do empreendimento.

Considerada a diversidade entre os negócios de incorporação e de

construção, a LCI regula em número de três as formas pelas quais o contrato de

incorporação se conjuga com a construção e com as vendas das unidades aos

adquirentes, a saber: (i) incorporação como negócio de compra e venda de coisa

futura, que pode ser por “preço global” e a “prazo e preço certos”; (ii) incorporação

com construção sob o “regime de empreitada”, que pode ser por “preço fixo” e “por

preço reajustável”; e (iii) incorporação com construção sob “regime de

administração”. Considerados os reflexos da distinção, importa analisar cada uma

dessas forma de contratação.

I.4.1 Incorporação como Compra e Venda de Coisa Futura por “Preço Global” e a

“Prazo e Preço Certos”. Preço Fechado

Com correspondência no imaginário popular, a incorporação como negócio de

compra e venda de coisa futura é aquela em que o consumidor contrata o

pagamento de um preço e o incorporador se compromete a lhe entregar uma

unidade imobiliária construída. Também conhecida como incorporação “a preço

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30 fechado”, é a forma mais comum e aceita no mercado de consumo, considerada a

previsibilidade acerca do valor que o consumidor pagará e também a atribuição dos

riscos da atividade exclusivamente ao incorporador; daí porque dela se dizer que

corra “integralmente por conta e risco do incorporador”.

Previstas nos arts. 41, 42 e 43 da LCI, a incorporação por preço global e a

incorporação a prazo e preço certos se distinguem entre si pela indicação, no

instrumento contratual relativo à primeira, do preço que consumidor pagará

separadamente pela fração ideal de terreno e pela construção. Na incorporação a

prazo e preço certo essas indicações não existem porque o preço é uno envolvendo

a fração e a construção. Ainda, no preço global, o instrumento contratual pode

indicar valores e prazos de pagamento diferentes para a fração de terreno e para a

construção, bem como a possibilidade (contratualmente incomum) de que o

inadimplemento do preço da fração não implique em rescisão da parte do contrato

relativa à construção, e vice-versa.

Nestas espécies de incorporação, o incorporador promete a venda de coisa

futura (art. 483 do CC/02), porém certa, composta pela fração ideal de terreno e pela

acessão representada na construção que ele assume concluir e averbar no registro

de imóveis (art. 44). Rigorosamente, neste regime, do ponto de vista do adquirente o

contrato funciona como um “compromisso preliminar de aquisição futura e, para o

incorporador, como promessa de construção e de venda”30.

A adoção do regime deve constar do memorial de incorporação registrado no

cartório de imóveis (art. 32, “h” e “j”), vinculando a que as unidades comercializadas

pelo incorporador atentem às regras próprias da espécie.

Nesta modalidade de incorporação, se não for proprietário do terreno, o

incorporador deverá ele figurar como procurador do real proprietário, seu promitente

vendedor ou promitente cessionário (arts. 31 e 32, “a”) da fração ideal de terreno e

da construção que àquela se vinculará.

É do incorporador a obrigação de vender, construir e entregar a obra no prazo

e na forma contratada e previamente visualizável por meio do memorial de

incorporação. Uma vez lançada a incorporação e ultrapassado o prazo de 360 dias

(art. 33 da LCI e art. 12 da Lei 4.864/65) contado da data do registro da incorporação

30 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 87.

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31 no cartório de imóvel dentro do qual o incorporador pode desistir da incorporação e,

de consequência dos contratos que tenha firmado para venda das unidades,

responderá civilmente caso não conclua a obra ou o faça para além do prazo

contratualmente previsto (art. 43, II). Para tais efeitos, diferentemente do que se dá

no regime de construção a preço de custo (adiante tratado), o incorporador é

responsável pelos recursos necessários à conclusão da obra de modo que, ainda

que não tenha obtido êxito na comercialização de unidades em número suficiente

para suportar a totalidade de seu custo no tempo pactuado com os consumidores,

haverá ele de encontrar meios para obter os recursos faltantes conforme obriga o

art. 35, § 6º.

Visando a manutenção do poder aquisitivo da moeda, os pagamentos

assumidos pelos adquirentes podem ser corrigidos monetariamente. No entanto, a

eles é indiferente se o custo total do empreendimento for maior ou menor do que a

projeção inicial do incorporador. Os riscos, como dito, são exclusivos do

incorporador.

O contrato firmado entre o incorporador e o consumidor segue os requisitos

gerais da Lei de Registros Públicos. Em caso de inadimplemento do consumidor

aplica-se o Decreto-Lei 745/69, devendo o incorporador notificar o adquirente para

que purgue sua mora no prazo de 15 dias sob pena de rescisão do contrato31. Ainda,

em que pese ser pouco usual, ao invés de rescindir o contrato o incorporador pode

preferir cobrar seu crédito de maneira judicial ou até mesmo extrajudicialmente pelo

rito previsto no art. 63 da LCI, levando à leilão os direitos do adquirente

inadimplente32. Para que o procedimento possa ser adotado pelo incorporador, basta

que o contrato firmado com o adquirente o preveja. Sobre esta questão

FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT33 já observara:

Quanto às sanções pelo inadimplemento contratual do comprador por falta de pagamento das parcelas do preço, só por exceção e mediante expressa

31 Com o advento do CDC, notadamente a previsão contida em seu artigo 53 dispondo a nulidade das cláusulas que impliquem em perda total dos valores pagos pelo promitente comprador sem estabelecer o limite dessa “perda”, a necessidade de acesso à via judicial torna-se imperiosa para compor o valor da devolução a que o consumidor terá direito salvo, é claro, se as partes chegarem a um acordo. 32 Adiante o tema será novamente abordado, especialmente no que toca aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, e devido processo legal. 33 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp. 101-104, negrito do autor.

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32

previsão contratual, se aplicarão as regras do art. 63, isto é, aquelas que estabelecem o leilão da unidade do inadimplente, após previa notificação. Na construção por conta e risco do incorporador, via de regra a inadimplência recebe o tratamento comum aos contratos de promessa de compra e venda dos demais imóveis, iniciando pela constituição do comprador faltoso em mora mediante notificação com prazo de 15 dias para o pagamento, nos termos do dec.-lei 745/69. Não pago o débito no prazo da notificação, está autorizada a rescisão do contrato relativamente à fração ideal do terreno e à construção, esta no estágio em que se encontrar. [...] Pode causar estranheza a referência acima feita, à possibilidade de rescisão do contrato e exclusão do adquirente faltoso pelo rito previsto no art. 63 da lei 4.591, quando a incorporação é pelo regime de prazo e preço certos, já que o aludido art. 63 incumbe à Comissão de Representantes a tarefa de levar a leilão a unidade do inadimplente. Tal solução, em princípio não usual nesse regime, tem, todavia, previsão legal, podendo ser levada a efeito mesmo por uma Comissão de Representantes, cuja existência está prevista no art. 50 para representar os contratantes junto ao incorporador no caso do art. 43 ; ou ser executada pelo próprio incorporador, para tanto equiparado à Comissão de Representantes pelo art. 1°, VII da lei 4.864/65, após o atraso de, no mínimo, três meses do vencimento de qualquer obrigação contrat7al ou de três prestações mensais, assegurado ao devedor o direito de saldar o débito dentro do prazo de noventa dias, a contar do vencimento da obrigação não cumprida ou da primeira prestação não paga (art. 1°, VI).

Enquanto a rescisão da promessa ou cessão obriga o incorporador a restituir

parte dos valores pagos pelo consumidor (art. 53 do CDC), pelo rito da execução

extrajudicial isto nem sempre se dará e quando se der a devolução será fruto, na

verdade, de eventual lance que o arrematante dê em quantia superior à necessária

para quitar as obrigações do adquirente inadimplente, tal qual se passa nas

execuções por quantia certa contra devedor solvente previstas no CPC. Pelo

contrário, se o lance a tanto for insuficiente, o adquirente nada receberá. Assim, em

caso de adoção do procedimento previsto no art. 63, fica prejudicada a aplicação do

art. 53 do CDC, na medida em que a preferência pela execução do crédito à

rescisão do contrato implica diferentes efeitos para o consumidor.

Percebe-se, então, a significativa diferença, não só de instrumentos

disponíveis para tratar o inadimplemento do adquirente, mas também em termos de

celeridade e direitos reminescentes que ecoam da rescisão.

Ainda, nesta forma de incorporação, o incorporador é obrigado a fixar prazo

determinado para o cumprimento de sua obrigação (entrega da unidade imobiliária)

ou, quando pouco, vinculá-la a um evento determinável, claramente informado ao

consumidor, que não incida em abuso contratual que coloque o consumidor em

condição de desvantagem exagerada.

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33

Cumprindo o princípio do dever de informação, todavia sem correspondência

na realidade, o inciso I do art. 43 exige que o incorporador, mesmo quando esteja

vendendo sob o regime de preço fechado, informe aos adquirentes, semestralmente,

acerca do estado da obra, mencionando, dentre outros, seu percentual de evolução,

perspectiva de data para conclusão ou qualquer outro acontecimento de interesse

dos adquirentes.

Apesar de ser extremamente incomum que ocorra nas incorporações por

preço fechado, os adquirentes podem se reunir para deliberar sobre assunto de

interesse coletivo, conforme preveem os arts. 43 e 49, manifestando suas decisões

por meio de um órgão de representatividade denominado “Comissão de

Representantes”, composto por pessoas eleitas dentre os adquirentes. No mesmo

sentido os incisos III, VI e VII do art. 43, prevendo decisões assembleares dos

adquirentes com o propósito de deliberar sobre a destituição do incorporador,

alteração do memorial descritivo do empreendimento, continuidade das obras ante a

paralisação ou retardamento injustificado da construção e extinção do patrimônio de

afetação.

I.4.2 Incorporação com Construção sob Regime de Empreitada

Enquanto no regime de preço fechado o incorporador vende a fração ideal e

ao mesmo tempo se compromete a concluir a obra por si ou por terceiro, no regime

de empreitada (arts. 55 a 57) os adquirentes firmam dois contratos: um para

aquisição da fração ideal de terreno junto ao incorporador e outro para execução da

obra, que pode ser firmado com um construtor ou com o próprio incorporador

quando este também fizer o papel de construtor (art. 48). Daí porque o art. 56 exigir

que toda publicidade destinada a promover a venda de incorporação com

construção pelo regime de empreitada indique separadamente o valor da fração de

terreno e o preço da construção: são contratos distintos. Os consumidores assumem

duas posições contratuais, como compradores da fração de terreno e como

tomadores de serviço de construção.

No ato de registro do memorial da incorporação, o incorporador deverá

anexar (art. 32, “i” e “j”) avaliação do custo total da incorporação e discriminação do

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34 custo da construção de maneira individualizada para cada unidade, bem como a

minuta do contrato de construção, considerando que, como visto, no regime de

empreitada, construção e fração ideal de terreno são objeto de negócios distintos.

O contrato de construção poderá ter o próprio incorporador como construtor

ou um terceiro, sendo permitido que sua execução só se inicie 45 (quarenta e cinco)

dias depois de escoado o prazo dentro do qual é permitido que o incorporador

desista incorporação desde que tenha ele se reservado essa possibilidade (art. 35).

Apesar de os adquirentes serem tomadores de serviço, quem deve providenciar a

assinatura do contrato de construção é incorporador. Ou ele mesmo realiza a

construção ou então ele contrata em nome próprio um construtor para, no decorrer

da incorporação, transferir seu custo aos adquirentes de maneira vinculada às

frações de terreno que adquiriem. Deixando de providenciar o contrato de

construção, o incorporador responde por perdas e danos (art. 35).

Do contrato de construção deverá constar indicação do prazo de conclusão

da obra e condições para sua eventual prorrogação (art. 48, § 1º), a indicação dos

integrantes da “comissão de representantes” (art. 50, §§ 3º e 4º do art. 55 e art. 57)

eleitos dentre os adquirentes com o propósito de acompanhar a evolução do

empreendimento. Também deverá constar a quem caberá o pagamento dos custos

de ligação de serviço público devidos ao Estado ou a suas concessionárias, bem

como quaisquer outras despesas indispensáveis ao funcionamento do futuro

condomínio (art. 51).

Iniciado de fato a construção, os adquirentes das frações ideais passam então

a pagar ao construtor o preço da construção relativa à sua unidade, segundo o valor

indicado no memorial de incorporação e no próprio contrato firmado com o

incorporador. O custo da construção relativa às frações ideais que o incorporador

não vender deve ser pago por ele próprio (art. 35, § 6º). Só depois de estarem

vendidas é que a responsabilidade por seu custo passa ao respectivo adquirente.

Assim, quando o incorporador vende uma fração ideal antes de iniciar a obra, o

adquirente pagará o preço da construção integralmente ao construtor, à conta do

contato de construção. Pelo contrário, vendida a fração de terreno já próximo do

término da obra ou mesmo depois que ela esteja concluída, o incorporador venderá

a fração de terreno e cobrará um preço pela construção que por ela já pagou,

podendo, neste caso, as partes acertarem o valor livremente.

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35

Ainda, oferecendo à venda as frações ideais de terreno para quem se

interesse em adquiri-las e necessariamente participar da contratação da construção,

o incorporador fica como responsável pela outorga da escritura relativa à venda das

frações de terreno. Ao incorporador também cabe o registro do memorial de

incorporação (art. 32) antes do início da obra e a averbação da construção da

edificação para efeito de individualização das unidades junto ao registro de imóveis

(art. 44).

O art. 610 do CC/02 prevê duas espécies de contrato de empreitada, de labor

e de labor e materiais, esta última também conhecida como “empreitada global”.

Pela primeira o contratante da obra fornece os materiais e o empreiteiro apenas

executa o serviço, enquanto que pela segunda o empreiteiro além de prestar o

serviço também se encarrega de fornecer os materiais. No entanto, o contrato de

empreitada nas incorporações imobiliárias é sempre do tipo global, vale dizer, o

preço contratado envolve tanto o serviço quanto o fornecimento dos materiais.

Na realidade, o regime de empreitada é mais vocacionado para atender obras

de pequeno vulto, com poucas unidades, em que parte dos adquirentes já se

conhecem e unem esforços de maneira prévia ao início da incorporação, decidindo

concluir edifício em conjunto mediante contratação de um empreiteiro e alienação de

umas poucas unidades remanescentes. Não é adequado para o incorporador

profissional que promova empreendimentos compostos de dezenas de unidades

oferecidas no mercado de consumo. Se essa forma de incorporação era comum em

meados do século passado, se ela se presta para fomentar a atividade de

incorporação, menos certo não é, todavia, que nos dias de hoje ela encontra rejeição

do mercado e se presta como nascedouro de frustração para os consumidores.

As incorporações com construção sob regime de empreitada não são muito

conhecidas e são pouco aceitas no mercado em razão de expor os consumidores a

maiores riscos e deles exigir participação ativa no dia a dia da construção na

condição de contratantes de sua execução. Com efeito, uma vez alienada a fração

de terreno, em princípio o inadimplemento de um adquirente torna-se problema

também para os demais adquirentes, na medida em que o incorporador pode, em

princípio, deixar de se responsabilizar pela construção relativa à fração alienada. O

inadimplemento do adquirente então terá que ser solucionado nos termos do

contrato de construção, abrindo-se aí um leque de opções, podendo exemplificar-se:

(i) o construtor continua construindo no mesmo ritmo e se encarrega de cobrar o

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36 adquirente inadimplente; (ii) a construção é paralisada ou prorrogada; e (iii)

eventualmente tal inadimplemento é suprido pelo incorporador que chama para si o

direito de cobrar o inadimplente.

No regime de empreitada é comum que se fira o princípio da informação e

proteção dos adquirentes, revelando sua hipossuficiência técnica, na medida em

que, além da questão relativa ao inadimplente, deles se exige ativa fiscalização do

andamento da obra por meio da Comissão de Representantes.

O regime de empreitada amaina as responsabilidades do incorporador, em

especial quando este não figurar como construtor, já que ele transfere aos

adquirentes a responsabilidade de dirigir a construção e travar relação com o

empreiteiro34.

A decisão sobre qual regime de construção se adotará é do incorporador, que

para tanto deve manifestá-la no ato de registro do memorial (art. 32, “e”, “h”). Neste

ato é que constará a função que ele pretende se atribuir, se de incorporador puro ou

também de construtor. Do ponto de vista dos adquirentes, entretanto, o interesse

real, a causa do negócio, será sempre a aquisição de coisa certa e futura. Se isto se

dará mediante formalização de um contrato de compra e venda de fração de terreno

seguido de um contrato de prestação de serviços de empreitada, para o consumidor

trata-se de mera questão de forma. Neste sentido já observaram J. NASCIMENTO

FRANCO e NIESKE GONDO35 que:

Na verdade, é o incorporador quem escolhe o terreno, procura o construtor, minuta o contrato e estabelece os preços e as condições, sobrando aos condôminos apenas a posição de meros aderentes à incorporação. Assim, embora a construção se de faça sob o regime de empreitada ou de administração e não obstante se comprometam a adquirir a fração ideal do terreno do próprio incorporador [...] os interessados têm, na realidade, é a intenção de adquirir um apartamento.

A empreitada para execução da obra pode ser contratado a preço fixo ou a

preço reajustável por índices monetários previstos no instrumento do negócio. A

34 Essas dificuldades impedem que as incorporações com construção sob regime de empreitada e especialmente aquelas por preço de custo, adiante referidas, surjam de maneira natural do mercado sendo, isto sim, fruto de manobra de incorporadores que colhem pessoas desavisadas como bem relata HÉRCULES AGHIARIAN. (AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de afetação. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009). 35 FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 133, itálicos dos autores.

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37 variabilidade dos custos reais do empreiteiro não entra em cogitação, ou seja, ainda

que haja elevação, esta não se refletirá nos valores contratados com os adquirentes,

que só sofrem a correção pelo índice monetário. Por outro lado, quando pactuado

preço fixo, nem a correção monetária do contrato de empreitada será permitida36.

Comentando o § 1º do art. 55, na parte em que alude à impossibilidade de

reajustamento do valor da empreita “independentemente das variações que sofrer o

custo efetivo das obras e qualquer que sejam suas causas”, FRANCISCO

ARNALDO SCHMIDT37 com razão observa serem “infrutíferas as alegações

baseadas na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva para reajustar o

preço contratado fixo, mesmo em economias que padecem de inflação crônica, ou

até exatamente por isso, eis que aumentos aí são previsíveis”.

Inaplicável também a previsão de alteração no preço da empreitada global

quando houver variação de um décimo no custo da mão-de-obra ou dos insumos,

contida no art. 620 do CC38, considerada a natureza de lei especial de que se

reveste o regime de empreitada atinente à atividade de incorporação imobiliária.

Com efeito, o contrato de empreitada pode ou não ser pactuado no bojo de uma

incorporação mas quando for o caso, a única forma de reajuste cabível é o

monetário porque previsto na LCI. Para a possibilidade de variação do custo dos

insumos a LCI reservou outra espécie de incorporação, qual seja, a que se

desenvolve sob regime de administração.

Igualmente sem aplicação nas incorporações é o art. 623 do CC39. Referindo-

se à interrupção do contrato de empreitada, o dispositivo autoriza que o dono da

36 A previsão para que os contratos de empreitada sejam por preço fixo ou preço reajustável não diz respeito à variação do custo, mas sim à correção monetária do preço da empreitada previsto no contrato. Conforme anota Humberto Theodoro Júnior, “a variação se houver não será de composição do custo, mas de correção, segundo índices contratualmente previstos” (THEODORO JÚNIOR. Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004). Na realidade, apenas se fala em reajuste do preço devido pelos adquirentes em função de alteração do custo real das obras quando adotado o regime de construção “por administração ou preço de custo”, adiante referido. 37 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p. 105. 38 “Art. 620. Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada”. 39 “Art. 623. Mesmo após iniciada a construção, pode o dono da obra suspendê-la, desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra”.

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38 obra, que no caso das incorporações sob regime de empreitada é o adquirente,

“suspenda-a” mediante pagamento da indenização devida. Ocorre, todavia, que na

incorporação com construção sob o regime de empreitada, em que cada adquirente

paga o valor da construção separadamente, na proporção que a cada um cabe

segundo o contrato que firmaram, é absolutamente inviável, porque incindível, a

paralisação dos serviços correspondentes a uma ou outra unidade, na medida em

que a obra envolve partes comuns e partes exclusivas inseparáveis.

Ao empreiteiro inadimplente, dispõe o art. 67 da LCI, aplicam-se os incisos II,

III, IV e VI do art. 43, no que couber. Vale dizer, por óbvio, que o empreiteiro deve

indenizar os adquirentes em caso de atraso ou paralisação injustificado da

construção (inciso II); que ele não pode alterar o projeto da construção sem

autorização unânime dos adquirentes ou de autorização legal específica (inciso IV).

Para além destas óbvias hipóteses, que com outras palavras já se encontram

previstas no art. 55, maior dúvida se têm quanto à forma de se aplicar os incisos III e

VI do art. 43 ao construtor que, falindo, atrasando ou paralisando a obra, não seja ao

mesmo tempo o incorporador do empreendimento40, vale dizer, o meio de que os

adquirentes podem se falar para rescindir o contrato de construção com ele firmado.

A interpretação correta está na atribuição de faculdade permitindo que os

adquirentes, por decisão de assembleia seguida de notificação, substituam o

construtor em caso de sua falência ou insolvência, paralisação por mais de 30 ou

retardamento excessivo e injustificado da obra, da mesma forma que podem

proceder diante do incorporador inadimplente.

Não se cogita, para que tal decisão seja tomada, se os adquirentes também

devam decidir se continuam ou não a conclusão da obra como haveria se exigir em

uma incorporação a preço fechado, já que, no regime de empreitada, as frações

ideais não pertencem ao construtor, mas sim aos adquirentes, de modo que

impossível será sua arrecadação para a massa falida. Assim, caso não decidam

concluir a obra com um novo construtor, restará aos adquirentes liquidar a

40 Sobre a possibilidade de rescindir o contrato de empreitada mantendo-se, todavia, o mesmo incorporador, já observou MELHIM NAMEM CHALHUB: “A contratação da construção está, obviamente, vinculada à contratação da aquisição da fração ideal do terreno, mas é possível a resolução do contrato de construção, destacadamente, nas hipóteses previstas em lei, mantendo-se o contrato de compra e venda ou de promessa de compra e venda da fração ideal do terreno, possibilitando aos adquirentes prosseguirem a realização da obra”. (CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 191).

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39 incorporação mediante extinção do condomínio existente sobre o terreno e

acessões.

Por outro lado, em sendo o empreiteiro o próprio incorporador, os adquirentes

poderão, por um ato só, afastá-lo da condição de construtor e incorporador, caso em

que haverão de notificá-lo pela forma prevista no inciso VI do art. 43.

I.4.3 Incorporação com Construção sob Regime de Administração ou de Preço de

Custo

Sobre o regime de administração (arts. 58 a 62), também conhecido por

“regime de preço de custo”, pode-se dizer ser o mais complexo e que menos

inversão de capital traz para o construtor e para o incorporador, além de desonerá-

los dos riscos próprios dos regimes de preço fechado e de empreitada.

Análise da função que o incorporador assume nos regimes de preço fechado,

empreitada e preço de custo indicam, nesta ordem, a diminuição de suas

responsabilidades mediante correspectiva transferência aos adquirentes, deixando à

mostra sua natureza de prospector de negócios e aglutinador de interesses,

traduzidas nas observações de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA41 para quem o

incorporador pode fazer as vezes de um construtor, um corretor, um mandatário, um

financiador, um gestor de negócios, “um pouco de tudo”.

O regime de administração, assim chamado em razão de os adquirentes

administrarem eles próprios a obra, é tão pouco usual quanto o regime de

empreitada porque inadequado para o mercado de consumo em razão da incerteza

quanto aos valores com que se comprometem os adquirentes, acentuado risco e

elevado grau de participação que assumem na condução da obra, aspectos estes

estranhos aos propósitos de quem deseja simplesmente pagar por um imóvel e

recebê-lo pronto e acabado. Sua aplicabilidade, e com mais razão que o regime de

empreitada, adapta-se melhor a obras de pequeno vulto, com poucas unidades, em

41 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 231-233.

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40 que parte dos adquirentes já se conhecem e unem esforços de maneira prévia

decidindo concluir um edifício em conjunto mediante contratação de um construtor.

Descreve CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA42 que nesse regime o

incorporador “oferece a unidade e a estimativa de seu custo, o qual variará na

medida das oscilações do mercado, obrigando-se o adquirente a cobrir os gastos na

medida em que se fizerem, mediante a atualização periódica das prestações”.

NÉLSON LUIZ GUEDES FERREITA PINTO43 observa que

a vantagem desse regime reside na exata correspondência entre o preço pago e o custo real de construção e a desvantagem consiste na exposição dos adquirentes às elevações de preços de mão-de-obra materiais que, às vezes, ocorrem bruscamente. Vantagens e desvantagens são, como se vê, inversamente proporcionais nos regimes de “preço fechado” e preço de custo.

Assim como no regime de empreitada, o incorporador pode ser o próprio

construtor, caso em que a prestação de serviços será firmada entre ele e o

adquirente. Do contrário, o contrato de construção deve ser firmado entre o

construtor e o incorporador no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias contados do

término do prazo dentro do qual o incorporador pode desistir da incorporação caso

tenha ele se reservado esse direito. Assinado o contrato de construção, o

incorporador segue pagando as obrigações mensais das frações ideais ainda não

comercializadas conforme exige o § 6º do art. 35, transferindo aos adquirentes os

direitos e obrigações atinentes a cada uma delas na medida em que as vai

vendendo (§ 3º do art. 59), ou seja, quando o adquirente compra a fração de terreno,

paga ao incorporador um determinado valor pelo qual se sub-roga nos direitos e

deveres do contrato de construção na medida da fração ideal adquirida e do saldo

devedor que ela tem frente ao contrato de construção.

O incorporador, quando também não seja ele próprio o construtor, continua a

ter participação ativa na condição de alienante das frações ideais ainda não

comercializadas, de modo a trazer para a construção mais adquirentes que, uma vez

aderindo, hão de contribuir para com os custos da obra diminuindo assim o limite

42 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 306. 43 PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (Org.). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 299.

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41 das obrigações dos adquirentes que já estiverem participando. Além disso, enquanto

não comercializa todas as frações, deverá continuar a honrar os valores de

construção a elas atinente.

As vendas e anúncios realizados pelo incorporador devem discriminar (art.

62) o regime de construção adotado (por administração), o valor da fração ideal de

terreno e o valor estimado do custo da construção atualizado com indicação do mês

a que se refere dita atualização.

O custo da obra, diferentemente da empreitada, não é estabelecido,

recebendo apenas uma estimativa (art. 59, §§ 1º a 3º; art. 54, § 3º) por cuja

inexatidão os adquirentes respondem, salvo se decorrer de má-fé do incorporador

ou do construtor. Esta estimativa é revista semestralmente (art. 59) de comum

acordo entre a Comissão de Representantes e o construtor (daí a importância da

Comissão), podendo implicar maior ou menor custo da obra dependendo do tempo

de execução que demandar, da remuneração do construtor e da variação do custo

dos materiais. A cada nova alteração do custo alteram-se os valores que cada

adquirente deve pagar de modo a que a obra seja concluída no tempo esperado (art.

60).

No regime de administração, de forma indispensável, os adquirentes devem

formar a Comissão de Representantes composta por no mínimo três eleitos dentre

os compradores, antes de iniciar a obra (art. 59), de modo a que acompanhem o

evoluir da incorporação (arts. 50, 60, 61 e 63) exercendo os atos de fiscalização

previstos no art. 61 e, o mais importante, a alteração dos valores que os adquirentes

deverão pagar; tendo em especial consideração que neste regime construtivo o

custo da obra é meramente estimado e sua variação é tributada à conta integral dos

adquirentes44.

44 FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT assim expõe a dinâmica da metamorfose por que passa a incorporação em regime de preço de custo desde seu lançamento até o momento em que se encontram alienadas todas as frações ideais de terreno: “Levando em consideração a gama de poderes e atribuições que a lei confere à Assembléia Geral e à Comissão de Representantes, distinguimos nitidamente, mas incorporações em que a construção se desenvolve pelo regime de administração, duas fases: na primeira, enquanto ainda não reunido o grupo de condôminos custeadores das unidades, o incorporador é o centro de onde emanam as decisões e as providências. Ele é o dono do terreno ou se liga ao dono mediante um compromisso; escolhe o arquiteto, aprova o projeto, manda elaborar o memorial descritivo e o orçamento, registra a incorporação, escolhe corretores, promove a publicidade, efetua as vendas. Exitoso o empreendimento pela reunião de interessados nas unidades futuras, porém, começa a segunda fase, caracterizada por uma transferência do poder decisório sobre as questões que envolvem a construção, à comunidade dos condôminos, que as deliberam em Assembléia e as executam através de sua Comissão de Representantes, passando o incorporador e o construtor a uma posição quase de mandatários dos contratantes, pois sua atuação passa a depender das decisões destes em questões cruciais como aprovação de orçamentos e cronogramas físico-financeiros, fixação de valores de custeio e de

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42

A obra é dos adquirentes, que para todos os efeitos constituem um

“condomínio construtivo” em cujo pólo contrário se encontra o construtor, devendo

todas as faturas, duplicatas, recibos, contas-correntes bancárias, depósitos, etc.,

serem emitidos e efetuados em seu nome (art. 58).

Se o adquirente se torna inadimplente, além de a posse de sua unidade ficar

retida com o condomínio construtivo (art. 52), contra ele pode ser adotado o rito de

execução extrajudicial previsto no art. 63 ou outra medida de natureza judicial com o

propósito de compeli-lo a pagar o valor devido.

Uma vez firmado o contrato, diferentemente do que se dá no regime de preço

fechado, o adquirente não pode mais desistir do negócio e receber devolução do

que pagou pela fração ideal de terreno pela construção na forma preconizada pelo

art. 53 do CDC. Isto se dá porque a obra é do adquirente, não do incorporador e

nem do construtor. Este é mero prestador de serviços e aquele apenas vendedor da

fração de terreno. O contrato de construção pelo regime de administração não

envolve fornecimento de materiais. O construtor tem sua obrigação adstrita ao

fornecimento de mão-de-obra e direção técnica da construção.

I.5 COMISSÃO DE REPRESENTANTES

A demonstrar que o contrato de incorporação imobiliária envolve múltiplos

objetivos e que, do ponto de vista dos consumidores, congrega-os em torno de

interesses coletivos da espécie individuais homogêneos decorrentes de origem

comum, qual seja, a relação que para com o empreendimento, a LCI adiantou-se ao

estágio atual em que se encontra o direito pátrio prevendo, ainda na década de

1960, a possibilidade de os consumidores se fazerem representar frente a seu

fornecedor, incorporador ou construtor, por meio de um órgão de representatividade

coletiva denominado “Comissão de Representantes”, composto por membros

escolhidos dentre os próprios consumidores. prazos de conclusão. Lembre-se, em abono da tese, que na construção a preço de custo, a vantagem pecuniária do incorporador e do construtor é representada por honorários, ou taxas de administração e construção que recebem em pagamento da organização, administração e responsabilidade técnica da obra, ausente a idéia de lucro”. (SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp. 114-115).

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43

Neste sentido, o art. 50 da LCI prevê a possibilidade de se criar a Comissão

por meio de eleição em assembleia geral dos adquirentes ou por designação de

seus membros no contrato de construção (estes existentes apenas nos regimes de

empreitada e de administração). Sua função, segundo o mesmo dispositivo, é

representar os adquirentes em qualquer regime de incorporação (prazo e preço

certos, por administração ou empreitada) “em tudo o que interessar ao bom

andamento da incorporação”.

A Comissão se constitui formalmente levando-se a ata da assembleia ou o

contrato de construção a registro em “cartório de títulos e documentos”, caso em que

fica investida dos “poderes necessários para exercer todas as atribuições e praticar

todos os atos que esta Lei [LCI] e o contrato de construção lhe deferirem, sem

necessidade de instrumento especial outorgado pelos contratantes”45.

A Comissão recebe poder de representação diretamente da lei, sem

necessidade de manifestação de vontade individualizada e sem instrumento de

mandato, inclusive no que tange à legitimidade processual (§ 5º do art. 63). Trata-se

de universalidade de direito que, na condição de representante, vincula os demais

adquirentes pelos atos que praticar nos limites da lei46.

De forma um pouco mais específica, a LCI prevê caber à Comissão, nas

incorporações com regime de construção por empreitada, a tarefa de fiscalizar o

andamento da obra, a obediência a seu projeto e o reajuste monetário quando

previsto (art. 55). Assim, no regime de empreitada, considerada a possibilidade de

variação do preço ser una para todos os adquirentes nos contratos com correção,

aliada aos pagamentos vinculados à evolução da obra, torna-se indispensável a

constituição da Comissão de Representantes.

45 Em um acórdão do STJ, talvez o único que tenha tratado da natureza jurídica da Comissão de Representantes, relatado pelo Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, REsp 255.593-SP, afirmou-se: “Ressalta a circunstância anotada no r. acórdão dos embargos declaratórios, de lavra do Des. Rodrigues de Carvalho: a comissão atua ex lege, daí a impropriedade da referência ao art. 18 do C Civil, pois é desnecessária a criação de pessoa jurídica e a sua formalização por atos cartorários. Trata-se de situação especial decorrente, de um lado, da frustração do plano da incorporadora e, de outro, da exigência de prosseguir-se na obra para a defesa do interesse dos condôminos, para a qual a lei muito acertadamente – traça normas específicas e trata de dispensar formalidades e burocracias. Disse bem a r. Sentença da Dra Berenice Cesar: “a comissão de condôminos é uma realidade jurídica que tem fundamento na ‘teoria da realidade’ , segundo esta é ‘um agrupamento de pessoas físicas para alcançar um fim excedente da esfera dos interesses individuais torna-se um organismo social dotado, como o homem, de um poder próprio para agir e, por isso, se categoriza como sujeito de direitos”. 46 Cfr. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 313.

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44

No regime de administração então a importância da Comissão é absoluta

porque o construtor nada mais é senão puro prestador de serviços, que não fica

encarregado sequer de fornecer os insumos para a construção. Todos os materiais

são adquiridos pela Comissão que por isto mesmo se têm dito, com ressalvas para

especificidade do caso concreto, ser responsável por sua qualidade frente ao

incorporador e ao construtor. Ainda, os adquirentes é quem suporta toda e qualquer

variação de custo. Porque não convém transcrever, remete-se aos arts. 58 e 61 da

LCI, que discriminam os poderes da Comissão no regime de administração.

Em que pese possa se constituir a qualquer momento e em qualquer espécie

de incorporação, é fato que, nas incorporações com regime de “prazo e preço

certos”, em que incorporador promete a venda de coisa futura representada pela

fração ideal de terreno e acessões assumindo construir a obra e entregá-la em data

certa por preço previamente contratado, não se veem a constituição de Comissões

de Representantes durante o curso da obra. Isto se dá justamente porque, no

regime de “prazo e preço certo”, os adquirentes contratam individualmente com um

incorporador que assume integralmente os riscos do empreendimento, arcando com

variações de preço de insumos, comercialização insuficiente das unidades e

inadimplemento dos compradores. Nesse regime, então, em princípio aos

consumidores é irrelevante o inadimplemento de um ou outro adquirente. Creem que

o incorporador cumpra o contrato, vale dizer, construa e lhes entregue as unidades

individualizadas no registro de imóveis com a qualidade prometida.

Por outro lado, é fato que, caso o incorporador venha a falir, cair em

insolvência, paralisar ou retardar a obra, os adquirentes terão que formar a

Comissão de Representantes para tentar concluir o empreendimento sem a

participação do incorporador, conforme faculta o art. 43, III e VI, da LCI.

Se adotada a afetação patrimonial os poderes da Comissão de

Representantes são ampliados para que também possa fiscalizar a contabilidade de

da obra (art. 31-C, 31-D, IV e V), em qualquer regime de incorporação (o que no

sistema original da LCI só era permitido no regime de administração – art. 61 e art.

65, § 1º, II, da LCI). Ainda, a Comissão, em caso de falência ou destituição do

incorporador, também ganha poderes legais para outorgar a propriedade das

frações aos adquirentes e também, com o propósito de concluírem o término da obra

(art. 31-F, §§ 1º, 3º, 4º, 5º), alienar as unidades que o incorporador não tenha

comercializado. Ainda, em caso de os adquirentes decidirem pela liquidação do

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45 patrimônio de afetação ao invés da conclusão, a Comissão poderá alienar (art. 31-F,

§§ 7º, 8º, 9º, 14º) o terreno e suas acessões como um todo para, em seguida, quitar

os credores do patrimônio afetado (art. 31-F, § 18).

Por fim, dispõe o art. 63 da LCI que a Comissão de Representantes pode

cobrar os adquirentes inadimplentes e até mesmo levar a leilão público suas

respectivas frações ideais de terreno e acessões. Assim, verificado que um

determinado contratante de unidade não está pagando, de modo a evitar que os

demais sejam onerados com sua inadimplência, a LCI permite que Comissão faça a

cobrança e, se for o caso, realize leilão extrajudicial da fração e acessões. A

prerrogativa, no entanto, não pode ser exercida pela Comissão nas incorporações

por prazo e preço certos porque neste regime a responsabilidade pela construção é

do incorporador, sendo indiferente aos adquirentes que um ou outro dentre eles se

torne inadimplente na relação com o incorporador já que neste regime ele assume

todos os riscos.

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46 II A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CÓDIGO DE DEFESA DO

CONSUMIDOR

II.1 O MERCADO DE CONSUMO

A noção de cidadania como hoje é concebida tem sua origem na Revolução

Inglesa do século XVII e nas Revoluções Francesa e Americana do século XVIII47.

Sinteticamente traduzida pelas expressões “direito a ter direitos” e “direito ao

exercício efetivo dos direitos”, a cidadania evolui desde então, ampliando a gama de

direitos postos à disposição do cidadão. Neste sentido têm-se classificado suas

conquistas em direitos de 1ª geração, como sendo aqueles alcançados nos séculos

XVIII e XIX, relacionados à obtenção de direitos individuas e políticos; direitos de 2ª

geração, estes no século XX, também conhecidos como direitos sociais; e, por fim,

os direitos de 3ª geração, que se inicia no século XX e segue em desenvolvimento

nos dias atuais, concernentes notadamente ao reconhecimento de direitos

exercitáveis de maneira coletiva.

A par desse crescente de direitos e seus correspectivos deveres que de

tempos em tempos são agregados ao cidadão, o Estado se modifica, assumindo

novas funções de modo a se adaptar à dinâmica da sociedade48. É perceptível o

surgimento do Estado Liberal como forma de fortalecimento da liberdade individual e

47 É comum falar em cidadão romano ou greco agregando-se um certo conceito de cidadania. Ocorre, todavia, que a cidadania como ora é tratada não se identifica com a da antiguidade clássica, em que pese a co-existência de alguns conceitos como, por exemplo, o de democracia. Sobre essa observação, NORBERTO LUIZ GUARINELLO escreve: “A cidadania nos Estados-nacionais contemporâneos é um fenômeno único na História. Não podemos falar de continuidade do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. São mundos diferentes, com sociedades diferentes, nas quais pertencimento, participação e direito têm sentidos diversos”. (GUARINELLO, Luiz Norberto. Cidades-estados na antiguidade clássica. In PINSKY, Jaime et PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005, p. 29). 48 Em descrição dessa evolução MARCO MONDAINE põe em sucessão “Em primeiro lugar, o Estado liberal, aquele mal necessário que deve garantir a liberdade civil dos indivíduos, sua cidadania passiva, não interferindo na sua vida privada. Em segundo lugar, o Estado democrático, aquele instrumento realizador da igualdade política entre os indivíduos, sua cidadania ativa, incentivando a participação de todos no jogo político. Em terceiro lugar, o Estado de bem-estar social, aquele responsável pela efetivação da igualdade, social entre os indivíduos, sua jus-cidadania, administrando e distribuindo os recursos materiais de maneira a abreviar as distâncias econômicas entre os mesmos". (MONDAIME, Marco. O respeito aos direitos individuais. In PINSKY, Jaime et PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). 3ª ed. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005, p. 132).

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47 da participação política do cidadão frente ao Estado até então autoritário (1ª

geração), seguido do Estado Democrático de Direito e do Estado de Bem-Estar

Social (2ª e 3ª gerações), estes como instrumento de implementação da igualdade

material, distribuição de justiça social e efetiva e coletivização dos direitos.

Em meio a essa crescente modificação dos direitos individuais e criação de

novos direitos coletivos e sociais, é que se desenvolve a sociedade de consumo,

estimulando o surgimento dessa modificação, mas, ao mesmo tempo, sofrendo seus

efeitos em uma luta incessante entre criador e criatura pela busca de um equilíbrio.

Consolidada no século XX, a sociedade de consumo caracteriza-se por uma

crescente oferta de produtos e serviços, feita de maneira massificada, por meio do

marketing associado à oferta de crédito para aquisição de bens em escala industrial.

Um dos principais motores do consumo é a informação produzida por meio de

“marketing científico”49. Dentre os argumentos de que ele se utiliza está a ideia de

que a aquisição de produtos e serviços é sinônimo de felicidade e que pode ser

alcançada por todo habitante do globo terrestre. Daí porque parte da informação que

hoje corre o planeta já não é aquela produzida localmente, de uma comunidade para

a outra, mas sim aquela produzida de forma massificada com o propósito de

transmitir uma dada mensagem que interesse a quem domina a técnica de informar

globalmente e pode, por esse meio, criar um padrão de consumidor global para seus

produtos e serviços. Em meio à promessa de realização pessoal, o consumo

49 Para realizar sua tarefa, o marketing se vale das ciências como, por exemplo, a análise físico-química do cérebro, pesquisas quantitativas e qualitativas, estudos comportamentais, psicologia, antropologia e uma série de recursos postos a serviço do mercado pela ciência, sua fiel coadjuvante desde o nascimento de liberalismo.

De posse de informações acerca do público e do produto a ser vendido, a teoria da comunicação entra em campo. Dentre os processos de comunicação, o chamado “modelo positivo”, embasado no sistema de comunicação telefônica, é dentre todos o mais utilizado. Compõe-se ele dos seguintes elementos: a fonte da mensagem, o codificador, a mensagem, o canal, o decodificador e o receptor (Cfr. ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p.p. 49-51). Assim, o vendedor (a fonte) anuncia seu produto e as qualidades e benefícios que ele traz (a mensagem) por meio de um determinado meio de comunicação (canal) que mais facilmente chegue ao público alvo (o receptor), dotando essa mensagem de um estímulo (código) que será lido e aceito (decodificado) pelos receptores. Tão mais exitoso será o processo comunicativo quanto maior for a quantidade de estímulo respondido (consumo praticado). Por isso a importância de bem selecionar o receptor, escolher um canal que faça a mensagem chegar até ele e ainda criar um código que possa ser traduzido e assimilado pelo destinatário.

Assim se dá, com vênia para a simplicidade do exemplo, no marketing para venda de artigos esportivos. Seleciona-se o público receptor como sendo os praticantes de atividades físicas, agregando ao produto a ideia de que sua utilização possibilita que se “vá mais longe”, transmitindo assim a ideia de vigor físico agregado ao produto a possibilitar que o receptor, praticante de atividade física, imagine-se rompendo limites físicos. É seu “eu” refletido no objeto de consumo.

É comum verificar a propaganda comercial dando conta de que o consumo de determinado produto trará status social, garantia de felicidade, sucesso pessoal e profissional, realização sexual ou signo de cultura e inteligência para quem o consome. Tratam-se todos esses exemplos de códigos dirigidos a um público específico que os aceita e responde consumindo.

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48 também ganha status de indício de desenvolvimento social, cultural e científico das

nações. Mais até que indício, é correto dizer que o consumo passou à condição de

índice mensurável por critérios científicos da ciência tradicional. Quanto maior o

consumo, mais desenvolvida é a nação e maior o nível de cidadania efetiva.

Constata-se que a massificação da cultura ocidental vem se prestando à

maximização do mercado, fazendo da cultura não só um produto, mas também um

modo de ceifar a capacidade de crítica, alienando jovens para completa entrega às

“necessidades” que o mercado oferece às massas consumidoras. Com isso, o

desejo pelo consumo não brota de maneira espontânea ou como fruto de

necessidade vivencial: ele é criado e estimulado com ajuda da ciência. Conforme

também já afirmou JAMES MARINS50 o “[...] fator de demanda, quando não gerado

espontaneamente, pode ser fruto da publicidade destinada a criar desejos artificiais,

levando o consumidor a render-se a apelos que o encaminham a arcar com um

consumo desnecessário, isto é, com patológica inversão de prioridades [...]”. De fácil

percepção os apelos sensoriais do marketing, que germina o desejo de consumo

com promessas de êxito profissional, satisfação sexual, felicidade, sublimação

existencial, etc. Com esse intuito a medicina, por exemplo, tem sido utilizada de

maneira antiética, considerados os estudos sobre o comportamento do cérebro

humano quando submetido à propaganda comercial como meio de estimular o

consumo (marketing científico). Sobre o assunto, relata MARIE BÉNILDE51 a

constatação de que a região do cérebro denominado “córtex pré-frontal médio”,

reage de maneira mais significativa quando exposta a produtos e propagandas com

nos quais o consumidor tenderia a identificar algum ponto de reflexo de sua própria

personalidade, possibilitando assim a utilização do marketing cientificamente mais

adequado para colher o público-alvo.

O estímulo ao consumo acompanha o cidadão desde quando ele nasce. O

bombardeio de mensagens subliminares, promessas de satisfação e tudo quanto

mais se possam fazer crer advir positivamente do ato de consumir, são um fato já

integrado na vida do cidadão, um elemento natural do meio social de cujos efeitos

50 MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 23. 51 BÉNILDE, Marie. Neurociências à serviço do mercado. In Le monde diplomatique Brasil. São Paulo: Instituto Polis, Ano 1, número 4, novembro de 2007.

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49 dificilmente se escapa. Trata-se, como bem menciona ZYGMUNT BAUMAN52, de

uma espécie eficaz de “educação continuada”:

A educação de um consumidor não é uma ação solitária ou uma realização definitiva. Começa cedo, mas dura o resto da vida. O desenvolvimento das habilidades de consumidor talvez seja o único exemplo bem-sucedido da tal “educação continuada” que teóricos da educação e aqueles que a utilizam na prática defendem atualmente. As instituições responsáveis pela “educação vitalícia do consumidor” são incontáveis e ubíquas – a começar pelo fluxo diário de comerciais na TV, nos jornais, cartazes e outdoors, passando pelas pilhas de lustrosas revistas “temáticas” que competem para divulgar os estilos de vida das celebridades que lançam tendências, os grandes mestres das artes consumistas, até chegar aos vociferantes especialistas/conselheiros que oferecem as mais modernas receitas, respaldadas por meticulosas pesquisas e testadas em laboratório, com o propósito de identificar e resolver os “problemas da vida”.

Nos dias de hoje, ser cidadão é ser consumidor. Indagações indiretas sobre o

tema obtêm respostas que em maior ou menor grau apontam para certa dose de

consumo como condição para o exercício efetivo de cidadania. Além das

necessidades básicas para uma vida digna, diz-se que o homem é cidadão quando

se encontra inserido no modelo de consumo via “inclusão social”. Incluir-se

socialmente é, também, poder consumir em igualdade com os demais cidadãos.

Em que pese haja clara atuação no âmbito do mercado de consumo, o papel

do Estado e também da sociedade civil, com raras exceções, tem se pautado em

reivindicações qualitativas e quantitativas atinentes aos produtos e serviços

consumidos, perseguindo a atribuição de ganhos contratuais, econômicos, aos

consumidores ou cidadãos contratantes, como que uma engrenagem natural do

capitalismo com o distingue de “reivindicação (contratual) da coletividade”53. Assim,

no estágio atual de desenvolvimento de nossa sociedade, não se vê luta contra o

52 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 73. 53 Neste sentido, examinando as forças de que resultou a edição CDC, afirma RONALDO PORTO MACEDO JR.: “Os movimentos em defesa do consumidor, ou consumerismo latu sensu, representaram uma forma de contrabalançar o poder entre produtores e consumidores. O advento e generalização do uso dos contratos padrão implicou no aumento da vulnerabilidade do consumidor nas relações contratuais de consumo. O crescimento do consumerismo e dos grupos de defesa do consumidor configurou-se inicialmente como uma forma de restabelecer o equilíbrio entre fornecedor e consumidor. Num primeiro momento, o movimento consumerista foi identificado como exemplo de grupo de interesses organizado em defesa de interesses eminentemente privados, ainda que organizados coletivamente. [...] Mesmo que o movimento do consumidor não tenha tido grande importância para formulação da legislação de proteção do consumidor, é certo que ele foi em grande medida uma resposta às demandas da classe média em relação a certas práticas contratuais de consumo. O caso brasileiro não parece contrariar essa afirmação. (MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, pp. 272 e 276-277).

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50 consumismo desenfreado e inútil, mas sim uma busca por mais e mais consumo,

consumo com melhor qualidade e preço intrínsecos aos produtos e serviços

acessíveis a um número maior de cidadãos, como meio imaginado de inclusão

social.

Não obstante essas colocações, não é errado associar consumo à cidadania.

Isto porque é pelo consumo que o cidadão se sente (e de fato é) incluído

socialmente, fortalecendo o elo social e suprindo algumas necessidades básicas que

o Estado não consegue satisfazer. Mas é fato que a sociedade de consumo, sem

que lhe seja dada atenção necessária, desenvolve-se de maneira desequilibrada

considerada a desigualdade entre partes contratantes, o poder econômico, técnico e

científico e a informação assimétrica à disposição do fornecedor e do consumidor.

O poder dos agentes econômicos aliado ao marketing e ao mercado de

massas, distanciou as partes contratantes de modo a tornar a relação entre elas fria

e impessoal, criando um vazio na relação que contribuiu para formação da

vulnerabilidade do consumidor, sempre submetido às práticas comerciais e à

aquisição de produtos e serviços de escala industrial de cuja criação e

funcionamento sabe muito pouco. De modo a equilibrar essa relação, considerada a

incapacidade e a tendência do mercado em aumentar as discrepâncias, fez-se

necessária uma modificação nas relações contratuais de consumo que,

particularmente no Brasil, deu-se inicialmente por via da intervenção estatal, com a

edição do CDC previsto na CF/88 (art. 5º, XXXII), inspirada em princípios atinentes

aos “direitos e garantias individuais” e à “ordem econômica”.

A questão do consumo foi elevada à condição de tema constitucional

considerada a realidade moderna que imbrica dignidade humana, consumo,

cidadania, melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento, a exigir atuação estatal

no sentido de promover equilíbrio jurídico e econômico nas relações como forma de

alcançar os objetivos da república (art. 3º da CF/88), de construir uma sociedade

livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a

marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de

todos sem preconceitos e discriminação. Daí porque se possa afirmar que a defesa

do consumidor, assumida no plano constitucional, traduz-se, no dizer de EROS

ROBERTO GRAU54, num

54 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 252.

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51

princípio constitucional impositivo (CANOTILHO), a cumprir sua função, como instrumento para realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetivo particular a ser alcançado. No último sentido, assume a função de diretriz (DWORKIN) – norma-objetivo – dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de política pública.

Por compromisso constitucional, para além de consolidar regras jurídicas, o

CDC fixa diretrizes gerais de uma “política nacional de relações de consumo” (art. 4º

do CDC) voltada ao respeito das necessidades dos consumidores, sua dignidade,

saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos, melhoria de sua

qualidade de vida, bem como práticas de boa-fé e efetiva transparência nas relações

de consumo. Para tanto, partindo da presunção absoluta de vulnerabilidade do

consumidor (art. 4º, I), o CDC estabelece uma série de princípios atinentes à

complexidade intra-obrigacional da relação jurídica, compostas por deveres

principais e acessórios.

O primeiro deles, um dever de proteção estatal plasmado no CDC pelo

“princípio da ação governamental” (art. 4º, II, IV, V, VI, VII; e art. 5º), a considerar a

defesa do consumidor como direito e garantia individual exercitável contra o

fornecedor e também contra o próprio Estado, implicando para este último duas

ordens de comportamento: a primeira delas, como agente regulador da atividade

econômica, a exigir do Estado atuação repressiva por meio exercício do poder de

polícia estatal sobre os fornecedores e também uma atuação preventiva, educando

e informando consumidores e fornecedores acerca de seus direitos e obrigações; a

segunda, dizendo respeito ao próprio comportamento do Estado como parte

fornecedora nas relações de consumo, quando dele se exige uma atuação no

sentido de promover a “racionalização e melhoria dos serviços públicos” tal qual

prevê o art. 4º, VIII, do CDC em complemento ao parágrafo único do art. 175 da

CF/88.

Segue o CDC estabelecendo o “princípio da garantia de adequação” dos

produtos e serviços (art. 4º, II, “d”) de modo a que atendam a padrões mínimos de

qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, daí se desdobrando o “princípio

da proteção” a garantir a integridade dos bens e da pessoa do consumidor e

também de terceiros estranhos à relação básica de consumo.

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Do mesmo modo e imbricados entre si, os “princípios da boa-fé” e “da

informação” (art. 4º, III, IV e VI), a exigir das partes lealdade e transparência nas

tratativas, na execução e mesmo depois de encerrado o contrato, franqueando

mutuamente o conhecimento pleno das condições do negócio, do produto e do

serviço adquirido; princípios esses que atualmente também se encontram

consagrados em todas as demais relações contratuais por força do art. 422 do

CC/2002 e dos ventos do “direito contratual pós-moderno”.

E por fim, o “princípio do acesso à justiça” que, apesar de não estar previsto

expressamente no CDC, brota como ressonância de vários dispositivos dispersos

tendentes a conferir efetividade aos direitos dos consumidores quando carecerem de

socorrer-se do judiciário para vê-los cumpridos. São exemplos desse princípio: a

possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, VII e VIII); a assistência jurídica

integral e gratuita ao consumidor carente (art. 5º,I); a extensão da proteção do

habeas data acerca de informações sobre a pessoa do consumidor (art. 43, § 4º); a

aplicação das normas processuais do Título III à tutela de outros direitos e

interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 117); e a ampliação do

campo de atuação da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) por meio de aplicação do

CDC (arts. 109 a 117).

Nesse ambiente de proteção à parte contratual vulnerável constitucionalmente

inspirado para a realização dos objetivos da república é que a incorporação

imobiliária deve ser vista respeitando, todavia, aquilo que nela há de particular e

necessário para a preservação da atividade, da função social, dos interesses do

incorporador e, em última análise, do próprio consumidor.

II.2 A RELAÇÃO DE CONSUMO

A aplicabilidade do CDC carece da presença de uma “relação jurídica de

consumo” cuja existência é verificada pelo preenchimento de requisitos legalmente

previstos55. Descrevendo o juízo de subsunção do fato à hipótese de incidência,

55 BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 63.

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53 CLAUDIO BONATTO e PAULO VALÉRIO DAL PAI MORAES assim se referem à

caracterização da relação de consumo:

Sintetizando estes ensinamentos, o suporte fático consumerista constitui-se de relação do mundo fático, na qual, de um lado está a figura do consumidor – destinatário final – e de outro um fornecedor de produto ou serviço, os quais, diante da existência de contrato de compra e venda, de prestação de serviço ou, simplesmente, diante da ocorrência de algum dano psíquico ou físico causado pelo bem-de-vida (lato sensu), geram a imediata incidência da norma protetiva, completando-se, assim, o processo de jurisdicização daquele suporte fático.

Dentre as espécies de relação de consumo existentes, a chamada “relação

básica de consumo” é apurada segundo a presença dos requisitos previstos no

caput do art. 2º e no caput e §§ do art. 3º do CDC56, notadamente pela participação

direta de um consumidor destinatário final do produto ou do serviço. Além desta, o

CDC também prevê outras três espécies de relação de consumo, menos frequentes,

às quais se pode referir como sendo “relações extensivas” ou “por equiparação”. A

segunda delas, prevista no parágrafo único do art. 2º, equipara à posição de

consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja

intervindo nas relações de consumo”. Nesta espécie de relação, o consumidor é

encarado segundo a presença de interesses ou direitos difusos, tutelados

coletivamente na forma do art. 81, II, do CDC, assim entendidos os interesses ou

direitos “transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria

ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação

jurídica base”. Assim, consideram-se protegidos pelo CDC na forma de conjunto,

grupo, classe ou categoria, os consumidores que sofram os efeitos do fato ou vício

do bem consumido, estando a merecer defesa coletiva ao invés de individualizada

para cada componente do grupo, classe ou categoria.

56 “Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. [...]. Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1º. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

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54

A terceira espécie de relação de consumo vem prevista no art. 17 do CDC,

que estende o conceito de consumidor a “todas as vítimas do evento”. No caso, a

relação de consumo se constitui em decorrência de um acidente de consumo

legalmente designado pelo Código como “fato do produto e do serviço” (Seção II do

Capítulo IV do CDC). Os danos causados por produto ou serviço postos no mercado

de consumo com frequência atingem terceiros, designados na doutrina americana,

fonte inspiradora do CDC neste ponto, como bystanders, vale dizer, pessoas que

não fizeram parte da relação básica de consumo prevista nos arts. 2º e 3º, mas

ainda assim sofreram os efeitos do acidente de consumo.

A quarta e última espécie de relação se forma segundo prevê o art. 29, com

viés repressivo, em decorrência de mera “exposição às práticas” comerciais ilegais

assim previstas nos “Capítulo V e VI” do CDC. Por essa fórmula, as práticas

comerciais tendentes à formação e execução de relações básicas de consumo

(oferta, apresentação, publicidade e cobrança de dívida), sofrem a incidência do

CDC e podem ser coibidas em favor de potenciais consumidores, como forma de

prevenção voltada à formação de relações de consumo que atentem para os

princípios do Código, ou seja, é “indiferente estejam essas pessoas identificadas

individualmente ou, ao revés, façam parte de uma coletividade indeterminada

composta só de pessoas físicas ou só de pessoas jurídicas, ou, até, de pessoas

jurídicas e de pessoas físicas [...]”57 .

Ainda, para que se cogite de aplicar o CDC à determinada relação, segundo o

disposto nos art. 2º e 3º (relação de consumo básica), deve-se indagar também

acerca de aquisição de um produto ou de um serviço por alguém que dele pretenda

fazer uso como destinatário final da cadeia de produção ou de prestação de serviço

em que ele (o produto ou serviço) esteja inserido. Ato contínuo, indaga-se da

presença de um fornecedor que desenvolva atividade econômica de venda do

produto ou de prestação dos serviços adquiridos.

Em torno do conceito de “consumidor padrão ou consumidor destinatário final”

(relação de consumo básica) gira grande controvérsia, consistente em fixar o

conteúdo da expressão contida no art. 2º, segundo a qual se considera consumidor

57 BENJAMIN, Antônio Hermann de Vasconcellos e. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 211.

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55 quem adquire produto ou serviço na condição de “destinatário final”58. Sobre a

questão a doutrina se divide em duas tendências: a dos “finalistas” e a dos

“maximalistas”. Adepto da teoria finalista, atualmente majoritária e em consonância

com o caráter de lei especial que deve ser atribuído ao CDC, JOSÉ GERALDO

BRITO FILOMENO59 afirma que o conceito de consumidor previsto no Código é

exclusivamente de caráter econômico, ou seja, leva-se em consideração tão-

somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então

contrata a prestação de serviços como destinatário final, pressupondo-se que assim

age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o

desenvolvimento de uma outra atividade.

Assim, para os finalistas, reveste-se da qualidade de consumidor apenas

quem adquire o bem ou serviço com o propósito de utilizá-lo em proveito próprio,

retirando-o do mercado de consumo para satisfação de uma necessidade pessoal,

sem propósito de revenda ou inclusão em nova cadeia de consumo. Já para os

adeptos da corrente maximalista, segundo explica JAMES MARINS60, não se pode

equiparar “uso final com uso privado, pois que tal equiparação não está autorizada

na lei e não cabe ao intérprete restringir aonde a norma não o faz, e, ademais, é

inegável que nem todo uso final é privado e que freqüentemente faz-se uso final não

privado de determinado bem ou serviço”. Também explicando o ponto de vista da

corrente maximalista, CLÁUDIA LIMA MARQUES61 escreve que:

O CDC seria um Código geral sobre o consumo, um Código para a sociedade de consumo, o qual institui normas e princípios para todos os agentes do mercado, os quais podem assumir os papéis ora de

58 Identificando os pólos das quatro espécies de relação de consumo acima referida, ANTÔNIO CARLOS EFING classifica as possíveis espécies de “consumidor” previstas no CDC em consumidor destinatário final, consumidor intermediário exposto às práticas abusivas, consumidor que não seja destinatário final, consumidor pessoa física, consumidor pessoa jurídica, consumidor padrão, coletividade consumidora, consumidor ente despersonalizado, consumidor vítima de acidente de consumo e consumidor exposto às práticas comerciais. (EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004, pp. 48-66). 59 FILOMENO, José Geraldo Brito. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 25, itálicos do autor. 60 MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 66. 61 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 304-305.

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fornecedores, ora de consumidores. A definição do art. 2º deve ser interpretada o mais extensivamente possível, segundo esta corrente, para que as normas do CDC possam ser aplicadas a um número cada vez maior de relações de mercado. Consideram que a definição do art. 2º é puramente objetiva, não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço. Destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza, o consome; por exemplo, a fábrica de celulose que compra carros para o transporte dos visitantes, o advogado que compra uma máquina de escrever para o seu escritório, ou mesmo o Estado quando adquire canetas para uso nas repartições e, é claro, dona-de-casa que adquire produtos alimentícios para a família.

Além do consumidor num pólo da relação, n’outro será necessária a presença

de um fornecedor, assim considerado quem pratique atividade econômica com

profissionalismo e habitualidade62 tendentes a oferecer, no mercado de consumo,

produto, serviço ou ambos de modo conjugado. Profissionalismo e habitualidade, no

entanto, são as duas faces da mesma moeda, já que não se concebe alguém que

seja “profissional” sem exercer sua atividade de forma “habitual”.

Em geral a doutrina classifica63 os fornecedores de produtos em (arts. 12 e 13

do CDC): (a) fornecedor real - aquele que fabrica, produz ou constrói; (b) fornecedor

aparente64 - aquele que tem direito de nome, marca ou signo aposto no produto; (c)

fornecedor presumido - aquele que importa produto ou comercializa produto sem

designação do fornecedor real. Particularmente ANTÔNIO CARLOS EFING65 agrega

uma quarta espécie, os “fornecedores entes despersonalizados”, os quais diferem

“das outras formas de grupos organizados com objetivo comum fundamentalmente

em virtude da ausência formal de elemento essencial que se possa considerar

pessoa jurídica: a affectio societatis, ou seja, a intenção expressa de manter vínculo

associativo”.

Segundo dispõe o § 1º do art. 3º do CDC, entende-se por produto qualquer

bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Indo além, entende-se por produto, nas 62 Logo, não se revestiria da condição de fornecedor quem venda produto ou preste serviço de maneira esporádica, sem fazer disso sua profissão, seu sustento, ainda que se trate de uma sociedade empresária. 63 Neste sentido, DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 145; e MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 98. 64 JAMES MARTINS justifica a responsabilidade do fornecedor aparente por substituição ao fornecedor real segundo a “teoria da aparência”. (MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 100-101). 65 EFING, Antônio Carlos. Fundamentos do direito das relações de consumo. 2ª Ed.. Curitiba: Juruá, 2004, pp. 73-76.

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57 relações de consumo, aquele bem de vida fruto de intervenção humana praticada

com intuito mercantil, quer seja seu resultado fisicamente perceptível, meramente

abstrato (v. g., a criação de um software), ou de mera apresentação (v. g., produtos

naturais colhidos e vendidos in natura sem modificação de substância). Produto,

então, nas relações de consumo, é um bem que se qualifica pela presença de um

fornecedor. O conceito de produto é mais restrito que o conceito de bem de forma a

se adequar ao objeto das relações de consumo, haja vista que nem todo bem pode

ser objeto de apropriação econômica.

Já o conceito legal de serviços alude a “qualquer atividade fornecida no

mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária,

financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter

trabalhista” e, em certos casos, até mesmo as atividades prestadas verdadeiramente

de forma gratuita (§ 2º do art. 3º e parágrafo único do art. 39)66.

A remuneração paga pelos serviços deve ser entendida não apenas como o

pagamento realizado diretamente pelo serviço prestado, mas também os serviços

ofertados “gratuitamente” em conjunto com outros serviços ou produtos adquiridos

(v. g., aquisição de um jogo de pneus com instalação gratuita) já que, nestes casos o

que de fato há é uma remuneração indireta disfarçada no produto ou serviço que foi

“remunerado”. Logo, serviços de voluntariado não implicam incidência do Código, já

que não se trata de oferta posta à disposição no mercado de consumo pela qual não

seja devida remuneração.

II.2.1 Responsabilidade objetiva

O fornecimento de produtos e serviços pode gerar responsabilidade civil em

razão de descumprimento de obrigações de natureza contratual (responsabilidade

civil contratual) ou de violação de direitos previstos em lei (responsabilidade civil

extracontratual ou aquiliana).

66 Por previsão expressa e também porque se trata de uma lei geral em relação a CLT, o CDC não se aplica às relações de trabalho. Ainda, por extrapolar o propósito do presente texto, não serão abordados os serviços securitários, de natureza bancária financeira ou de crédito.

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O CDC divide a responsabilidade dos fornecedores em “responsabilidade pelo

fato do produto e do serviço” (Seção II do Capítulo IV), também referida pela

doutrina como “acidente de consumo”; e “responsabilidade por vício do produto e do

serviço” (Seção III do Capítulo IV). No entanto, conforme anotam ZELMO DENARI e

JAMES MARINS67, quando comparados entre si, sem consideração aos reflexos de

ordem material que causam, vício e defeito se equivalem. A distinção entre um e

outro surge, na realidade, quando se indaga acerca da espécie de prejuízo causado

ao consumidor ou a terceiros estranhos à relação básica de consumo (“vítimas do

evento” – art. 17 do CDC).

Enquanto o “vício” previsto no CDC é aquele que torna o produto ou serviço

contratado impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou diminuam

seu valor, o acidente de consumo prescinde de uma relação contratual prévia -

embora em geral ocorra no curso dela - e extrapola os limites econômicos do

produto ou serviço causando um prejuízo que afeta tanto o produto ou serviço em si,

como também outros bens integrantes do patrimônio do consumidor ou das vitimas

do evento68. Esta diferença é assim explicada por ZELMO DENARI69:

[...] não se pode deixar de considerar que os vícios de adequação, previstos nos arts. 18 e segs. do Código de Defesa do Consumidor, suscitam uma desvantagem econômica para o consumidor, mas a perda patrimonial não ultrapassa os limites valorativos do produto ou serviço defeituoso, na exata medida de sua inservibilidade ou imprestabilidade. Costuma-se dizer que, nesta hipótese, a responsabilidade está in re ipsa. De outra parte, os defeitos de insegurança, previstos nos arts. 12 e sgts. do Código de Defesa do Consumidor, suscitam responsabilidade de muito maior muito, pois nos acidentes de consumo os danos materiais ultrapassam, em muito, os limites valorativos do produto ou serviço.

O acidente de consumo pode derivar de defeitos propriamente ditos, fruto de

ato comissivo do fornecedor, ou de informações insuficientes ou inadequadas acerca

da utilização e dos riscos inerentes ao produto ou serviço.

67 DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, pp. 139/141. MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 141. 68 Cfr. BONATTO, Cláudio et MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p 114. 69 DENARI, Zelmo. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, pp. 140-141.

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59

No art. 12 do CDC, encontra-se a disciplina da responsabilidade civil por

acidentes de consumo oriundos de defeitos de projeto, fabricação, construção,

montagem, fórmulas, manipulação, apresentação, informação ou seu

acondicionamento. Já no art. 14, o CDC trata dos acidentes quando decorrentes de

defeitos relativos a serviços, informações insuficientes ou inadequadas sobre sua

fruição e risco.

O CDC adota a responsabilidade civil objetiva em detrimento da teoria da

culpa subjetiva70. Para tanto, o Código não partiu de uma única teoria dentre as

várias já formuladas como, por exemplo, “a teoria do risco da atividade” a incidir

sobre o fabricante que coloca no mercado um produto defeituoso, ou as “teorias da

culpa anônima” e “do risco integral”. Isto porque, em primeiro lugar, considerada a

diversidade de fornecedores que podem ser responsabilizados solidariamente, não

haveria uma única teoria que abarcasse ao mesmo tempo a posição jurídica do

fabricante, do produto, do construtor, do importador, do comerciante, enfim;

mormente se considerado que, no sistema do CDC, a culpa é considera em grande

parte como resultado de um dever lateral e de garantia sobre a coisa, uma culpa que

não se basta em um ato culposo subjetivo ou objeto personificado na pessoa de um

único fornecedor, mas segue o produto ou serviço agregando-se a ele e se

desvinculando de seu agente causador direto.

A responsabilidade objetiva do CDC é espécie que veio ao direito pátrio como

novidade, fruto da combinação de mais de uma teoria, como a do risco da atividade

e a da culpa anônima, combinadas com a responsabilidade post pactum finitum71

70 JAMES MARINS assim justifica a adoção da responsabilidade objetiva na sociedade de consumo, demonstrando a adequação da culpa subjetiva a situações das quais se possa dizer de aplicabilidade típica do direito civil com exclusão da relação de consumo:“Com inúmeras dificuldades inerentes ao sistema de responsabilidade civil baseado na culpa, freqüentemente encontravam-se situações carecedoras de tutela jurídica que não logravam ultrapassar as barreiras do sistema, a exigir grande esforço probatório por parte do lesado, ou ainda situações comuns aonde o tênue laço de culpabilidade jamais poderia ser captado em condições normais. Em verdade, o sistema de responsabilidade extracontratual com base na culpa, não encontraria problemas para funcionar em uma sociedade fundada em atividades agrícolas e no comércio de menor complexidade, ao passo que nosso tempo se caracteriza pelo florescimento de atividades coletivas, em que muitas vezes não resulta possível individualizar o autor do dano; pelo permanente emprego de coisas que geram riscos, pela realização de atividades que guardam em si mesmas uma sensível potencialidade danosa para terceiros”.(MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 91). 71 Assim, a tradição do produto ou a prestação do serviço não bastaria para que as obrigações das partes se considerassem como cumpridas. Efeitos contratuais persistiriam mesmo depois, vinculando e obrigando as partes em razão da boa-fé contratual. Sobre a responsabilidade post pactum finitum como manifestação de deveres acessórios de lealdade, informação e proteção, vide CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Estudos de Direito Civil. Vol. 1. Coimbra: Almedina, 1991, pp. 143-197.

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60 criando uma nova espécie. Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES72, a boa-fé inerente

à obrigação de garantir a qualidade do que se vende aliada ao domínio da técnica

por parte do consumidor e a correspectiva vulnerabilidade do consumidor, levaram à

teoria adotada no CDC, que ela designa de “teoria da qualidade”:

Da aceitação de uma teoria da qualidade nasceria, no sistema do CDC, um dever anexo para o fornecedor (uma verdadeira garantia implícita de segurança razoável, como no sistema anterior norte-americano). Este dever seria “anexo” ao produto, isto é, concentrado no bem e não só “anexo” ao contrato. Por conseguinte, seria um dever legal de todos os fornecedores que ajudam a introduzir (atividade de risco) o produto no mercado.

Daí porque o CDC considera objetiva a responsabilidade (arts. 12 e 14) pela

reparação dos prejuízos sofridos pelo consumidor e por terceiros, “vítimas do

evento” (consumidores por extensão – art. 17) nas relações de consumo. Assim,

salvo quando o fornecedor de serviços for profissional liberal (art. 14), a investigação

acerca da culpa subjetiva torna-se desnecessária. O dever de indenizar surgirá pela

constatação de que (i) houve um defeito; (ii) um dano; e (iii) um nexo de causa e

efeito que indique uma relação entre o dano e o defeito73. Nos §§ dos arts. 12 e 14

encontram-se enumeradas algumas causas de exclusão de responsabilidade, bem

como referência sobre a qualificação do que não se possa considerar defeito do

produto ou serviço. Em que pese não esteja previsto no CDC, o caso fortuito ou de

força maior eximem a responsabilidade objetiva do fornecedor, salvo quando

ocorram em momento anterior à colação do produto ou serviço no mercado de

consumo. Com efeito, enquanto o produto ou serviço não está posto no mercado de

consumo o fornecedor responde por sua guarda e corre os riscos do caso fortuito e

de força maior. Logo, é irrelevante que, antes desse momento, o produto ou serviço

tenha sofrido alguma alteração porque até então não há nem que se falar em

relação jurídica de consumo. Por outro lado, se o caso fortuito e de força maior não

fossem admitidos como excludente quando o produto ou serviço já se encontram

inserido no mercado de consumo, a teoria da responsabilidade objetiva adotada pelo 72 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 259, itálicos da autora. 73 Deve-se atentar para o fato de que a responsabilidade objetiva não transfere toda espécie de ônus probatório ao agente causador, no caso o fornecedor. Enquanto a este caberá a demonstrar a ocorrência de uma das excludentes de responsabilidade previstas no CDC e tantas outras que queira invocar em abono de sua defesa, ao consumidor ainda caberá a demonstração de ocorrência do dano, do defeito ou vício e do nexo de causalidade.

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61 CDC seria a “do risco integral” 74, o que parece não ser o caso já que o próprio

Código prevê algumas causas excludentes75. Demais disso, o caso fortuito e de

força maior quando presentes, na realidade, quebram a relação de causa e efeito

necessária à configuração da responsabilidade objetiva de modo, a não ser que por

ela o fornecedor tenha se responsabilizado expressamente, sua força liberatória

encontra receptividade no CDC.

Os vícios do produto ou serviço, por sua vez, são tratados pelo CDC nos arts.

18 e 20, aludindo àqueles relativos à qualidade ou quantidade que diminuam o uso a

que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como vícios que decorram de

disparidade entre o bem de consumo adquirido e as qualidades e conteúdos

anunciados. Nos §§ dos arts. 18, 19 e 20 e no caput dos arts. 21, 22, 23 e 24,

encontram-se os direitos que o consumidor pode exercer quando constatado o vício,

uma qualificação exemplificativa do que sejam produtos impróprios, qualidades

mínimas dos serviços públicos e uma garantia legal de qualidade implícita.

II.2.2 Solidariedade na Cadeia de Produção e de Prestação de Serviços

De modo a afastar alegação infindável de culpa de terceiro na cadeia de

produção do bem ou serviço (acionado, o fabricante alegaria culpa do montador,

este do fornecedor da peça e assim sucessivamente), o CDC prevê a

responsabilidade solidária de todos os fornecedores direitos e indiretos76 integrantes

da cadeia de produção e de prestação de serviço, de modo a que o consumidor

possa acionar um, alguns ou todos aqueles que dela tenham participado.

Abrem-se, exceções, todavia, ao acidente de consumo que envolva o

profissional liberal prestador de serviços ou o comerciante. No caso do profissional

liberal, a responsabilidade é apurada de maneira subjetiva (art. 14, § 4º) e por isto

74 Cfr. VEDANA, Alexandre Torres. In EFING, Antônio Carlos (Coord.). Direito do consumo. V. 1, Curitiba: Juruá Editora, 2001, p. 147. 75 Cfr. ALMEIDA, João Batista. A proteção jurídica do consumidor. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 88-89. 76 Fornecedor indireto é aquele que participa de alguma forma da criação do produto, mas não faz sua venda final ao consumidor, transferindo essa função a um comerciante que então será o fornecedor direto.

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62 mesmo afasta a solidariedade. A responsabilidade do comerciante, por sua vez, é do

tipo subsidiária segundo as condições estabelecidas no art. 13 do CDC, vale dizer,

apenas nas hipóteses ali previstas o comerciante pode ser responsabilizado.

Segundo CLÁUDIA LIMA MARQUES77 “a técnica de imputação de deveres

aos fornecedores no CDC” é realizada levando em consideração a referência que o

Código faça à “fornecedor” como gênero ou a determinadas espécies de

fornecedores:

- quando utiliza a expressão “fornecedor”, é para a imputação de deveres solidariamente, ex vi art. 7º, parágrafo único, para toda a cadeia de fornecedores – ex.: arts. 8º, 10, 14, 18, 19, 20, 25, § 1º, 34, 35, 36, parágrafo único, 39, 40, 101; - quando utiliza outras expressões (como fabricante, produtor, construtor, importador, comerciante, representante autônomo, prepostos, órgãos públicos, concessionários e permissionários de serviços públicos, patrocinador da publicidade, profissionais liberais), trata-se de imputação de deveres especiais a estes fornecedores de serviços e produtos ou para imputação de solidariedade só entre fornecedores nominados – v. art. 8º, parágrafo único, 12, 13, 22, 25, § 2º, 32, 33, 34.

Destarte, atentando-se para essa “técnica de imputação”, quando o CDC se

refere a fornecedores de produtos, a solidariedade se faz presente em toda a cadeia

de produção. Pelo contrário, quando, por exemplo, qualifica um fornecedor em razão

de sua atividade (v. g., construtor ou fabricante), tal qual ocorre no art. 12, a

solidariedade se restringe aos fornecedores que o dispositivo nominar.

Assim, conclui-se que a discriminação dos fornecedores referidos no art. 12 é

taxativa, indicando as espécies de fornecedores que respondem objetiva e

solidariamente pelo acidente de consumo: (1) fornecedor real (aquele que fabrica,

produz ou constrói); (2) fornecedor aparente (aquele que apenas apõe nome ou

marca no produto); (3) fornecedor presumido (aquele que importa o produto).

Em se tratando de vício de produto ou serviço a responsabilidade dos

fornecedores é igualmente apurada de forma solidária e objetiva (arts. 7º, parágrafo

único, 18, 20 e 25, § 2º) abrangendo até mesmo o profissional liberal. Não obstante,

em se tratando de vícios verifica-se certa fraqueza nos elos que unem a cadeia por

se tratar de “uma solidariedade imperfeita, porque tem como fundamento a atividade

de produção típica de cada um deles. É como se a cada um deles a lei impusesse 77 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 275.

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63 um dever específico [...] pois todos são responsáveis [...] ao ajudar na introdução do

bem viciado no mercado”78.

A solidariedade também pode ser decorrente de previsão em outros atos

legislativos, que neste caso não têm sua aplicabilidade preterida em razão de norma

menos benéfica prevista no CDC (art. 7º, caput).

Ainda sobre a cadeia de solidariedade, têm-se o parágrafo único do art. 7º do

CDC dispondo que, em havendo ofensa aos direitos previstos no Código, todos os

ofensores “respondem solidariamente pela reparação dos danos previstos nas

normas de consumo”.

II.3 A INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA E O CDC

II.3.1 A Relação de Consumo na Atividade de Incorporação Imobiliária

Não há dúvidas de que o CDC se aplique à atividade de incorporação

imobiliária. Com efeito, além da presença dos requisitos previstos nos arts. 2º e 3º, a

referência contida79 no art. 53 do Código torna insustentável tese contrária.

Com efeito, no contexto de uma incorporação pode haver a compra e venda

de um imóvel (produto) como coisa futura, objeto da contratação de incorporação

por preço fechado, representada pela soma da fração ideal de terreno e a

construção a cargo do incorporador. Também pode haver uma conjugação de

compra e venda de fração de ideal de terreno com concomitante contratação de uma

78 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V; et MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 338. 79 “Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado. § 1º. (Vetado). § 2º. Nos contratos do sistema de consórcio de produtos duráveis, a compensação ou a restituição das parcelas quitadas, na forma deste artigo, terá descontada, além da vantagem econômica auferida com a fruição, os prejuízos que o desistente ou inadimplente causar ao grupo. § 3º. Os contratos de que trata o caput deste artigo serão expressos em moeda corrente nacional”.

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64 prestação de serviços de construção, o que se dá nas incorporações com

construção por empreitada e por administração.

Conforme referido no capítulo anterior, é possível que o incorporador seja o

próprio construtor da obra. Neste caso, responderá perante os adquirentes na

condição de incorporador e construtor, abarcando assim qualquer fato ou vício do

produto ou do serviço relacionados com a condição de incorporador (irregularidades

documentais, v. g.) ou com a condição de construtor (má qualidade da fiação

elétrica, v. g.).

Todavia, conforme também referido no capítulo anterior, pode ocorrer que a

construção não seja realizada pelo incorporador, mas sim por um construtor. Mesmo

nas incorporações com construção por preço fechado (arts. 41 e 43 da LCI) o

incorporador pode contratar um construtor para realizar a obra, com a nota de que

os adquirentes, neste caso, não firmam contrato diretamente com o tal construtor,

pelo qual o incorporador responde em nome próprio perante os adquirentes.

Ainda, pode ocorrer de a construção ser contratada entre os adquirentes e um

construtor diverso da pessoa do incorporador, como prestador de serviços, hipótese

em que os adquirentes pagam o custo da construção diretamente ao construtor

contratado. Tal fato se dá nas incorporações com construção sob regime de

empreitada (arts. 55 a 57 da LCI) e nas incorporações com construção sob regime

de administração ou preço de custo (arts. 58 a 62).

Este tema, todavia, será abordado separadamente com consideração para

cada uma das três espécies de incorporação (preço fechado, empreitada e preço de

custo), quando então as responsabilidades do incorporador e do construtor serão

delimitadas.

O incorporador se configura como fornecedor em razão de organizar fatores

de produção (terreno, construção, corretagem, anúncios, etc) de maneira

profissional com propósito de pôr produto à venda no mercado de consumo. Seja um

ou mais as incorporações lançadas, é fato que cada qual é composta por mais de

uma unidade de modo a configurar habitualidade praticada por vendas sucessivas,

ainda que em um mesmo empreendimento. O intento de lucro é evidente. Em que

pese o incorporador não careça de ser um empresário, podendo sê-lo até mesmo

uma pessoa física, tal fato não permite concluir que ele não seja um fornecedor. Isto

porque fornecedor e empresário são conceitos que não se implicam reciprocamente,

em que pese a proximidade entre ambos, ainda mais porque à condição de

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65 empresário se impõe inscrição no registro de comércio. A propósito, quando ainda

vigente o Código Comercial de 1850, para se caracterizar como incorporador era

dispensável a condição de comerciante. Dificuldades haviam até mesmo para

enquadrar os atos do incorporador como “atos de comércio” segundo o antigo

Regulamento 737/1850.

Sobre as condições pessoais do consumidor, a relação de consumo se

estabelece mesmo que o imóvel seja adquirido por um empresário, pessoa física ou

jurídica para utilizá-lo, por exemplo, como sede de empresa. Neste caso, o produto

ou serviço, é de fato retirado do mercado de consumo por consumidor final, um

destinatário fático e econômico do bem de vida. Como qualquer consumidor, o

empresário está protegido contra sua “vulnerabilidade”, que é imanente ao conceito

de consumidor80 e surge da mera presença de uma relação de consumo. Esse

consumidor, empresário, poderá ou não ser um hipossuficiente para os fins do inciso

VIII do art. 6º, mas para tanto há que se analisar sua condição técnica, jurídica,

cultural e econômica, análise esta dispensável no que concerne à vulnerabilidade.

Pelo contrário, não haverá que se falar em relação de consumo se a unidade

for adquirida com fim de revenda ou locação porque, neste caso, o adquirente não

será destinatário final do produto81, salvo exceções bem especiais, como o caso

daquele que reside em imóvel locado e compra imóvel de maior valor agregado com

o propósito de locá-lo e assim auferir alguma renda que lhe permita sobreviver.

II.3.1.1 A responsabilidade do incorporador

Como já enunciado, com o incorporador a relação de consumo sempre se

estabelece. O fito de lucro na promoção da incorporação (art. 28, parágrafo único,

da LCI), se traduz em desenvolvimento de atividade econômica em caráter

profissional organizada para a produção de bens (imóveis) e prestação de serviços

80 Cfr. MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 38 e 66. 81 De igual opinião, LEANDRO LEAL GHEZZI (GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 139) e MELHIM NAMEM CHALHUB (CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 120).

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66 (de construção). Assim, o incorporador sempre responde solidariamente pelo fato

do produto ou do serviço, bem assim por qualquer vício de qualidade ou quantidade

das unidades comercializadas que as tornem impróprias ou inadequadas ao uso a

que se destinam ou que diminuam seu valor (arts. 12, 18 e 25 do CDC), porque

dirigindo a incorporação o incorporador promove-a como um todo, atraindo público

consumidor imbuído de confiança. O incorporador tem dever de proteção para com

os adquirentes, do qual não se desvencilha se caso a construção for executada por

um terceiro, seja qual for o regime de incorporação (preço fechado, empreitada ou

administração).

Considerada a realidade do mercado imobiliário nacional, em que os

incorporadores em geral carecem de realizar vendas antecipadas das unidades

antes que elas estejam concluídas, de modo a captar os recursos necessários para

promover a incorporação e por vezes até mesmo pagar pelo terreno; a LCI ao

incorporador que desista de concluir o empreendimento e, de consequência, desista

também dos contratos de compra e venda de unidades que eventualmente tenha

firmado com os consumidores. Não obstante o incorporador assuma riscos inerentes

à sua atividade, a permissão é salutar e vai de encontro à função social da atividade

na medida em que proporciona que a incorporação seja abortada caso o

incorporador presuma que as vendas não serão suficientes para que fluam recursos

em volume e frequência exigidos para o êxito do cronograma das obras. Não

interessa aos consumidores firmar contrato sem o mínimo de segurança de que o

incorporador terá os recursos necessários para concluir o empreendimento. Se o

incorporador vem a saber que as vendas não são suficientes e que ele não dispõe

de todos os recursos, parece insistência desproporcional exigir-lhe que tente concluir

o empreendimento. Nesse ponto, a chegada do CDC pouco alterou considerado o

caráter especial da LCI e a adequação que a desistência representa para a

salvaguarda dos interesses dos consumidores e, de um modo geral, para todos que

tenham direitos e obrigações vinculadas ao desenvolvimento da obra. Demais disso,

está na gênese da LCI o reconhecimento de que o incorporador necessita vender

para depois construir. Com efeito, a aplicação do CDC deve respeitar a lógica

econômica do contrato de incorporação, sua função social e seu caráter coletivo,

sob pena de causar a disfunção do contrato. No mesmo sentido vem a permissão

legal para que o incorporador construa sobre terreno alheio com base apenas em

uma procuração, por exemplo. Assim, se as vendas não ocorrem, é

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67 sistematicamente coerente que o incorporador possa desistir do empreendimento.

Sobre essa questão, EVERALDO AUGUSTO CAMBLER82, opina:

Não nos parece que os incisos IX e XI, do art. 51, do CPCon tenham revogado o art. 34 da LCI. De acordo com o Código do Consumidor, são nulas as cláusulas contratuais que deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor, bem como autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor. Somos da opinião que os dispositivos do Código restringiram o alcance da norma contido no art. 34, que faculta o incorporador a possibilidade de fixar prazo de carência dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento. Agora, somente na hipótese de ver frustrado o negócio, poderá o incorporador denunciar a incorporação [...]. Portanto, o art. 34 da LCI existe em benefício do consumidor, vinculando o incorporador ao negócio e obrigando-o a promovê-lo no prazo de 180 dias, prorrogável por igual período, mediante revalidação da certidão do registro. Neste prazo, o incorporador tem perfeitas condições de avaliar a reação do mercado e verificar se é viável ou não o negócio.

Todavia, para que o direito do incorporador não passe à condição de

potestatividade desproporcionada que sujeite o consumidor à desistência irrestrita, a

LCI impõe limites que atendem os princípios da informação e da segurança jurídica.

Nesse sentido, para que possa desistir, o incorporador deve levar a registro no

cartório competente, antes de iniciar as vendas, declaração fixando as condições

que ele se reserva para o exercício daquele direito. Seria o caso, por exemplo, de se

fixar o direito de desistência caso as vendas não ultrapassem 15% do total das

unidades do empreendimento. Igualmente atendendo o dever de informação, em

tendo se reservado direito de desistência, o incorporador fica obrigado a informá-lo

em todos os documentos e contratos de venda das unidades (art. 34, § 3º),

permitindo assim que os consumidores tenham acesso a todas as condições da

incorporação. Tomadas essas providências, os interesses do consumidor estarão

preservados dentro da lógica da incorporação imobiliária.

A desistência só será valida se denunciada ao registro de imóveis no prazo de

180 (cento e oitenta) dias contados da data de apresentação dos documentos

referidos no art. 32, renováveis por mais 180 (cento e oitenta) dias se acaso ainda

estiver concluído seu registro (arts. 33, § 2º do art. 34 da LCI; e art. 12 da Lei

82 CAMBLER, Everaldo Augusto. Incorporação imobiliária: ensaio de uma teoria geral. Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 29

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68 4.864/65). Uma vez operada a desistência, o incorporador deve restituir a todos os

adquirentes, no prazo de 30 (trinta) dias, com correção monetária, as importância

que tenham pago. Não há responsabilidade civil para o incorporador ante a

inexistência de ilícito, o que já não acontece se o incorporador não informar o

consumidor acerca da possibilidade de desistência. Ultrapassados os 30 (trinta)

dias, o incorporador incide em ilícito e, além de devolver os valores devidos com

juros 6% ao ano, poderá responder civilmente se comprovado prejuízo ao

consumidor83.

II.3.1.2 A responsabilidade do proprietário do terreno

Não há relação de consumo entre os adquirentes e o proprietário do terreno

que tenha outorgado procuração ao incorporador autorizando-o a aliená-lo em

frações ideais (art. 31, § 1º) ou aquele que tenha firmado promessa de compra e

venda (art. 31, “a”) com base na qual o incorporador aliena ditas frações. Com efeito,

o proprietário do terreno não pratica atos incorporativos, não oferece bem algum no

mercado de consumo nem presta qualquer serviço aos adquirentes. Faltam-lhe a

habitualidade e o profissionalismo de que tratam os arts. 2º e 3º do CDC.

Em que pese de certa forma esteja envolvido na complexidade do contrato de

incorporação, sua atuação é secundária e sem participação no lucro decorrente da

atividade incorporativa ou de construção. Demais disso, a LCI, lex specialis em

relação ao CDC84, ao regular a responsabilidade civil na incorporação imobiliária,

enumera as hipóteses que podem ser exigidas do proprietário do terreno como

sendo: (i) a devolução das quantias pagas em caso de denúncia da incorporação por

ele praticada; (ii) o direito à adjudicação compulsória; (iii) e a devolução dos valores

83 Encontra-se superada a previsão de que os adquirentes poderiam cobrar tais valores “por via executiva” (art. 36), haja vista que tal previsão não satisfaz os requisitos legais de um título executivo, notadamente o prévio reconhecimento do dever de pagamento de quantia líquida e certa. Igualmente superada está a previsão contida no § 5º do art. 35, qual seja, a devolução em caso de resolução motivada do contrato preliminar de compra e venda por descumprimento de obrigações do incorporador previstas no art. 35. Se acaso o incorporador não cumprir o prazo, a via executiva não estará à disposição dos adquirentes. 84 Neste sentido o STJ quando do julgamento do REsp 80036/SP (Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 12/02/1996, DJ 25/03/1996 p. 8586).

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69 representativos das acessões acrescidas ao terreno em caso de rescisão do

contrato por meio do qual se permitiu que o incorporador lançasse a incorporação

(art. 35, §§ 3º e 4º; e art. 40 da LCI).

Ainda sobre a possibilidade de desistência do empreendimento, quando a

promoção da incorporação estiver se desenvolvendo com base em procuração

outorgada ao incorporador pelo proprietário do terreno, por seu promitente

comprador, cessionário deste ou por promitente cessionário (art. 31, § 1º), o

respectivo outorgante (dentre eles o proprietário do terreno) também poderá

denunciar a incorporação se acaso o incorporador, tendo se reservado direito de

desistência, não exercê-la no prazo legal quando presentes as condições a tanto

fixadas no ato de registro de que trata o art. 32. Assim, exercendo a denúncia da

incorporação, o outorgante da procuração ficará responsável solidariamente com o

incorporador pela restituição dos valores pagos pelos adquirentes. Não se trata,

todavia, de conferir-lhe responsabilidades por outros atos tipicamente incorporativos.

O outorgante não passa à condição de incorporador e por isto não se lhe aplica a

solidariedade “entre incorporadores”, prevista no § 3º do art. 31. Com efeito, a

solidariedade decorrente da denúncia da incorporação é limitada à devolução dos

valores pagos pelos adquirentes. A justificativa para abrir exceção em favor da

responsabilidade solidária do outorgante da procuração (proprietário do terreno),

decorre de um poder de ingerência em ato tipicamente incorporativo que a lei lhe

faculta exercer e que, uma vez exercido, traz consigo as mesmas consequências a

que ficaria sujeito o incorporador caso denunciasse a incorporação. No ponto a lei

andou bem. Reconhecendo haver interesse do proprietário do terreno no tocante ao

êxito da incorporação que ele autorizou que se levasse a cabo sobre seu terreno, a

lei reservou-lhe a faculdade de denunciar a incorporação mesmo que contrariamente

à vontade do incorporador desde que, fazendo-lhe as vezes, responda perante os

adquirentes pela devolução dos valores que já tenham pago. Assim prevendo, a lei

nada mais prescreveu do que obrigar o proprietário do terreno a indenizar os

adquirentes pelas acessões acrescidas sobre seu terreno na linha do que já dispõe

o art. 40 da LCI.

Outra falsa impressão acerca das responsabilidades do proprietário do

terreno para com a incorporação decorre de má interpretação do art. 30 da LCI.

Prevê este dispositivo a solidariedade e a extensão da condição de incorporador aos

proprietários e titulares de direitos aquisitivos sobre o terreno que contratem a

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70 construção sempre que as alienações das unidades se iniciarem antes da conclusão

das obras. No entanto, este dispositivo refere-se, na realidade, aqueles que, mesmo

sem o propósito consciente de realizar uma incorporação, acabam por praticar atos

tipicamente incorporativos previstos nos arts. 28 e 29 da LCI. Ou seja, esse

dispositivo não torna os proprietários do terreno solidários com o incorporador pelo

simples fatos de as vendas se iniciarem antes da conclusão da construção, inclusive

porque é da natureza e do conceito de incorporador que as vendas ocorram antes

do término da obra; do contrário não se cogita sequer da existência de incorporação

imobiliária conforme referido no capítulo anterior. O art. 30, aliás, é de todo

desnecessário na medida em que, se os proprietários e titulares de direitos

aquisitivos sobre o terreno contratarem a construção e iniciarem suas vendas antes

do término da obra, sua condição de incorporador será mera decorrência dos art. 29

da LCI. Não careceria de um novo dispositivo para tratar do assunto.

O proprietário do terreno, quando ele não seja o próprio incorporador, também

tem responsabilidades para com a incorporação pela transferência formal da

propriedade criada pelas frações ideais de terreno. Mas a relação que há é de direito

civil. A promoção da incorporação entendida como prática de atos tendentes a

negociar as frações ideais para venda e contratar a construção, não desobriga o

proprietário do terreno perante os consumidores, adquirentes, no tocante ao direito

de outorga da propriedade, de modo que, neste caso, o proprietário do terreno

responde solidariamente com o incorporador. Nesse sentido, o parágrafo único do

art. 39 exige que todos os adquirentes sejam informados se o alienante do terreno

ficou ou não sujeito a qualquer “prestação” ou “encargo”, vale dizer, se ele ainda tem

alguma responsabilidade contratual no sentido de garantir a efetiva transferência da

propriedade. “Prestação” ou “encargo”, aqui, têm conotação mais ampla do que o

termo técnico que representam (arts. 121 1 137 do CC/02), querendo se referir a

garantias de transmissão hígida da propriedade das frações ideais.

Aquele que outorga procuração autorizando a realização de incorporação

sobre terreno seu, não pode se retratar nem revogar os poderes para tais fins

concedidos como, aliás, prevê a LCI, nem manter comportamento que possa

prejudicar o desenvolvimento da incorporação, frustrando vendas, afastando

pretendentes, trazendo insegurança ao cumprimento da função social da atividade.

Trata-se de comportamento que se exige em cumprimento de dever acessório de

proteção à relação jurídica para cuja criação o proprietário contribuiu

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71 conscientemente outorgando poderes que de antemão sabia ou deveria saber serem

suficientes à criação de direitos reais ou com eficácia real em favor de terceiros.

Em redação um tanto confusa, o art. 40 dispõe uma última responsabilidade

para o proprietário do terreno, em caso de rescisão do contrato firmado para venda

do terreno, contrato esse com base no qual o incorporador lançou a incorporação. A

hipótese tratada só pode dizer respeito às incorporações cujas frações ideais

estejam sendo negociadas pelo incorporador com base na alínea “a” do art. 31, ou

seja, que a disponibilidade sobre elas tenha chegado ao incorporador por via de uma

promessa ou cessão de compra e venda. Não se aplica, portanto, às incorporações

em que o incorporador esteja atuando com base em uma procuração outorgada pelo

proprietário do terreno (art. 31, § 1º, da LCI), já que, neste caso, pelo compromisso

de outorgar a propriedade sobre as frações ideais de terreno o incorporador que se

compromete em nome próprio ao outorgar poderes por via de procuração pública

irrevogável e irretratável.

Pelo disposto no art. 40, uma vez rescindido o contrato, o terreno retorna ao

domínio pleno do proprietário anterior, restando rescindidas, ope legis, as cessões

ou promessas de cessão de direitos correspondentes às frações ideais de terreno

que tenham sido comercializadas pelo incorporador. Vale dizer, se o contrato com o

proprietário do terreno não for cumprido, sua rescisão extingue a incorporação em

prejuízos dos adquirentes. A estes restará o direito de serem indenizados por perdas

e danos pelo incorporador e também o direito à devolução dos valores

representativos das acessões que sobre o terreno tenham sido acrescidas pelos

atos de promoção da incorporação praticados pelo incorporador.

Por essa devolução, fica obrigado o proprietário do terreno, que é a pessoa

em favor de quem se opera a rescisão (art. 40, §§ 1º, 2º e 3º), e solidariamente com

ele o incorporador. Enquanto os adquirentes não forma ressarcidos pelas acessões

de fato acrescidas ao terreno, o proprietário do terreno não poderá negociá-lo sob

pena de nulidade. No entanto, se a rescisão, de forma incomum, for decorrência de

culpa dos adquirentes, o proprietário do terreno fica desobrigado de indenizá-los

pelas referidas acessões, cabendo o exercício do direito apenas contra o

incorporador.

Tirante essas hipóteses, o dono do terreno não responde civilmente pela

promoção da incorporação, ou seja, não responde por vícios de construção, atraso

na conclusão das obras, autorizações e alvarás concedidos ou que devessem ser

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72 obtidos junto às autoridades administrativas. Possibilitada a transferência da fração

ideal de terreno, qualquer divergência que haja em razão da construção ou de

irregularidade formal na documentação do empreendimento, deve ser questionada

junto ao incorporador e, conforme o caso, junto também ao construtor.

Não se deve estender responsabilidade ao proprietário do terreno fora das

hipóteses expressamente previstas, seja aquele que o tenha alienado diretamente

ao incorporador, seja aquele lhe tenha outorgado procuração para vendê-lo em

frações ideais. Ele não está integrado na cadeia de produção do empreendimento e

nem presta contribuição para a prática de ilícitos pelo incorporador ou pelo

construtor. A promoção da incorporação é feita pelo incorporador em nome próprio,

no exercício de uma atividade lucrativa e empresarial. O proprietário do terreno não

participa dessa atividade, não a exerce profissionalmente, nem lucra com ela. Lucra,

aí sim, com a alienação de sua propriedade, mas isto por si só não permite concluir

que tenha responsabilidades pelos atos do incorporador porque a venda de uma

propriedade que é sua é ato sujeito às regras gerais de direito civil. Assim, por

exemplo, se o terreno não comporta a construção na totalidade de sua área em

razão da existência de uma nascente de água, mas ainda assim o incorporador

infringe a norma ambiental, a responsabilidade é dele, como promotor da

incorporação, não do proprietário do terreno.

É da sistemática da LCI a possibilidade de incorporação com base em

procuração outorgada sobre terreno, criada para incentivar o desenvolvimento da

atividade de modo a que não se careça de mobilizar tantos recursos financeiros

ainda no início do empreendimento. Não se deve compreender o que é um estímulo

à atividade, como argumento para imputar ao proprietário do terreno

responsabilidade por atos inerentes a uma atividade econômica de cuja cadeia

produtiva ele não participa sob pena de se desconsiderar a lógica econômica e

jurídica da incorporação. Relativamente ao CDC a LCI deve ser entendida como lex

specialis conforme opinião de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR85:

A esse negócio jurídico, portanto, sobre bens futuros, é de aplicar-se, em primeiro lugar, a Lei n. 4.591/64 e, complementarmente, as regras gerais do direito das obrigações pelo Código civil, assim como o Código de Defesa Consumidor. Tudo, porém, em caráter subsidiário, visto que se trata de

85 THEODORO JÚNIOR, Humberto Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, v. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.

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negócio jurídico sujeito a regime legal específico que não, em essência, alterado pelas normas gerais do Código Civil e do CDC. [...] Sem dúvida, o contrato de incorporação é um contrato de consumo, dentro da perspectiva traçada pelo Código de Defesa do Consumidor, e segundo os conceitos de fornecedor e consumidor, assim como de produto, elaborados pelo art. 3º, §§ 1º e 2º, da Lei 8.078, de 1990. O CDC, todavia, não conceitua, nem disciplina os elementos e a estrutura jurídica dos diversos contratos empregados para realizar as operações do mercado de consumo. Cada contrato, é óbvio, tem, histórica e culturalmente, o regime específico de cada contrato típico é que revelam o papel (ou função) atribuída a cada um dos negócios jurídicos nominados ou típicos. [...] A aplicação da lei consumerista sem outro propósito que não seja o de proteger o consumidor, a qualquer custo, além de descumprir os próprios fundamentos e objetivos do CDC, pode, ao desprezar a estrutura econômica do negócio, provocar a disfunção do contrato, e não é esse o desiderato perseguido pela Lei n. 8.078. As crises e violações ao contrato de incorporação estão expressa e exaustivamente previstas e disciplinadas pela Lei n. 4.591. A inovação do CDC, portanto, somente é de admitir-se para complementar a técnica específica de disciplina de formação e execução do contrato incorporativo. Nunca para revogar ou impedir sua atuação. Só se pode pensar em aprimorar a tutela específica com o reforço de medidas e procedimentos inspirados no CDC. Este, como é óbvio, não revogou as normas especiais disciplinadoras dos contratos e se destinou apenas a enriquecê-las, quando necessário, com medidas repressivas à má-fé e ao desequilíbrio, intencional ou não, na comutatividade das prestações e obrigações.

Daí porque, na medida em que a LCI limita as responsabilidades do

proprietário do terreno, resta afastada sua responsabilização fora destas hipóteses

que ela prevê, limitação essa que, a rigor, nem mesmo o CDC permite que seja

ultrapassada. Com efeito, o proprietário do terreno não fabrica, nem produz,

constrói, importa ou comercializa produto (arts. 12, 13, 18 e 19 do CDC). Também

não presta serviço aos adquirentes (art. 14 e 20 do CDC), a exemplo do construtor.

II.3.1.3 A responsabilidade do construtor

Questão interessante se coloca nas situações em que o construtor não é o

próprio incorporador. O art. 29 da LCI indica restrição à responsabilidade do

incorporador “conforme o caso” pela entrega das obras concluídas.

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Os contratos que se firmam, no contexto da atividade de incorporação

imobiliária, para aquisição de uma unidade, podem envolver: (i) aquisição de um

produto futuro assim considerado a fração ideal de terreno em conjunto com a

construção a ser realizada, que se opera por via das incorporações sob regime de

preço fechado; ou (ii) a aquisição de um produto considerada a fração ideal de

terreno agregada à concomitante contratação de uma prestação de serviço de

construção, que se operam por via das incorporações com construção sob regime

de empreitada e de administração.

Consoante referido no capítulo anterior, três são os regimes de incorporação

(de preço fechado, de empreitada ou de administração) que podem levar à produção

de uma unidade imobiliária por meio da incorporação, resultados da conjugação: (i)

do contrato de compra e venda de fração ideal de terreno; (ii) do contrato de

prestação de serviços de construção; e (iii) do contrato firmado com o incorporador.

Considerada essa diversidade contratual, a aplicação do CDC não pode se

dar por aplicação imediatista do art. 12 (“... o fabricante, o produtor, o construtor [..].

respondem [...] por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,

montagem [...]”), sob pena de confundir as posições jurídicas do construtor, do

incorporador e do proprietário do terreno, posições essas previstas em lei especial

(LCI) que a elas reserva tratamento diferenciado.

É fato, aliás, que a doutrina, em especial quando se debruça sobre o CDC

encarando-o como lei genérica, muito raramente aborda a incorporação imobiliária

com consideração das diferentes posições jurídicas que nela há, incidindo por isto

em equívoco que imiscui direitos e obrigações decorrentes de relações contratuais

que em certos aspectos devem permanecer separadas. O CDC só encontra análise

mais adequada ao contexto da incorporação imobiliária quando a abordagem parte

da especialidade da LCI para chegar à generalidade do CDC, conforme demonstram

algumas das mais recentes obras sobre o assunto86.

86 São caso, por exemplo, das obras de MELHIM NAMEM CHALHUB (Da incorporação...), HUMBERTO THEODORO JÚNIOR como coordenador (O contrato imobiliária e a legislação tutelar do consumo...), EVERALDO AUGUSTO CAMBLER (A responsabilidade civil na incorporação imobiliária...), LEANDRO LEAL GHEZZI (A incorporação imobiliária ...), FRANCISCO ARNALDO SCHIMDT (Incorporação imobiliária ...) e JÉVERSON LUÍS BOTTEGA (Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador ...).

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75 II.3.1.3.1 Nas incorporações por preço fechado

Nas incorporações por preço fechado (arts. 41 e 43 da LCI), a atividade de

incorporação envolve a venda de coisa futura representada por fração ideal de

terreno acrescida de construção, ambas a cargo do incorporador com quem os

consumidores contratam diretamente. Neste regime, o incorporador é fornecedor

imediato de produto porque se compromete em nome próprio a produzir coisa futura

representada pela soma de uma fração ideal com uma construção. O verbo produzir,

contido no art. 12 do CDC, deve ser lido como o ato de promoção da incorporação

(art. 28, parágrafo único da LCI). Enquadrar o incorporador no art. 12 do CDC pela

realização de produção é mais adequado porque a atividade de incorporação

envolve algo mais do que a mera construção, mormente se considerada a

possibilidade de o incorporador sequer atuar como construtor da obra, mas ainda

assim por ela ser responsável (art. 28, parágrafo único, e art. 31 da LCI). Daí então

porque se possa afirmar que o incorporador, promovendo (LCI), acaba por produzir

(CDC) as unidades imobiliárias.

Ainda sobre o regime de preço fechado, o responsável primeiro frente aos

consumidores adquirentes, pela construção a ser realizada, na condição de

promotor-produtor da incorporação, é o próprio incorporador.

O incorporador pode ele próprio construir a obra ou então contratar um

terceiro (um construtor) para que o faça em seu nome, sem que os adquirentes

firmem contrato com este construtor.

Quando o próprio incorporador constrói a obra, em que pese sua condição de

promotor-produtor da incorporação já absorver a responsabilidade que sobressai

pela construção em si, ele obviamente também será responsável na condição de

construtor, conforme refere o art. 12 do CDC, podendo então cogitar-se, no caso, de

um incorporador promotor-produtor-construtor porque produz o empreendimento

promove-o e construindo-o pessoalmente. Quando assim esteja atuando, o

incorporador será fornecedor imediato e real da unidade (produto).

Por outro lado, contratando um empreiteiro para concluir a obra para si, obra

essa que ele incorporador havia se comprometido frente aos consumidores a

entregar concluída, o incorporador, agora apenas como promotor-produtor, será

responsável frente aos adquirentes na condição de fornecedor imediato (porque

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76 contrata a promoção da incorporação diretamente com os adquirentes) e aparente

(porque a construção é realizada por um terceiro, um empreiteiro, por ele

contratado).

No tocante ao construtor contratado pelo incorporador no regime de preço

fechado, deve-se considerar a natureza jurídica do contrato que o liga ao produto

que é promovido e produzido pelo incorporador. Juridicamente sua participação se

dá na condição de fornecedor de serviços frente ao incorporador. Não obstante,

considerada a solidariedade e a responsabilidade objetiva da cadeia de produção,

mesmo sem ter relação jurídica imediata com os adquirentes, o construtor também

responde perante eles como fornecedor mediato e real. Assim, construtor e

incorporador são solidária e objetivamente responsáveis pela construção no regime

de preço fechado. Conforme EVERALDO AUGUSTO CAMBLER87, “ao celebrar o

contrato de construção, o incorporador estende a obrigação assumida junto aos

adquirentes ao construtor, fazendo-se substituir por este, passando ambos a

responder pela obrigação de resultando perante o contratante”.

Contudo, deve-se observar que a responsabilidade solidária e objetiva do

construtor para com o incorporador se adstringe aos limites de sua participação no

empreendimento. Por isto a LCI prevê responsabilidades para o construtor. Dentre

elas está o dever de recolhimento da contribuição social devida ao Instituto Nacional

de Seguridade Social-INSS incidente na execução de obra civil. A LCI também

responsabiliza o construtor pela averbação da conclusão da construção na matrícula

do terreno. Com efeito, em consideração de que a construção, quando concluída,

para ser averbada depende de atos inerentes ao contrato de construção (recolher a

contribuição, por exemplo), ambas as obrigações se justificam contra o construtor.

Ainda, o construtor não poderá ser responsabilizado, por exemplo, por falhas

no projeto do empreendimento (que é de responsabilidade do incorporador), por

irregularidade na concessão de alvarás pela autoridade pública autorizando a

incorporação ou por irregularidade na propriedade do terreno que impeça a

transferência definitiva de propriedade aos consumidores. O construtor é prestador

de serviços. Esta conclusão ressoa do próprio CDC, notadamente de seu art. 14,

que, ao ter disposto que o fornecedor de serviços responde, independentemente da

existência de culpa, pela reparação dos danos causados por defeitos relativas “à

87 CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 220, itálico do autor.

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77 prestação dos serviços”. Assim, como o construtor, no regime de preço fechado, não

é fornecedor de produto, mas sim de serviços, sua responsabilidade fica circundada

aos limites do contrato de empreitada. Tanto assim o é que o art. 25, § 1º, fala em

solidariedade do fornecedor quando houver “mais de um responsável pela causação

do dano”. Esta conclusão se mostra coerente com o CC/2002, que só cogita de

solidariedade na responsabilidade por ato ilícito se a ofensa contar com mais de um

autor (arts. 927 e 942).

Demais disso, os arts. 28, parágrafo único, e 31, § 3º, da LCI, que é lei

especial, prevê que a responsabilidade pela incorporação como um todo, vale dizer,

por qualquer aspecto nela envolvido, é do incorporador de modo que, neste

particular o CDC sequer poderia estabelecer solidariedade em tema que a LCI limita.

Evidentemente que se o caso concreto indicar que o construtor teve

participação no empreendimento maior do que a mera prestação de serviço de

construção, sua responsabilidade poderá ser alargada. Isto, todavia, deve ser

analisado caso a caso.

II.3.1.3.2 No regime de empreitada

No regime de empreitada (arts. 55 a 57 da LCI) os consumidores firmam dois

contratos distintos: um para aquisição da fração ideal de terreno junto ao

incorporador e outro para execução da obra, que pode ser firmado com um

construtor ou com o próprio incorporador quando este também fizer o papel de

construtor (art. 48 da LCI).

Ao contrário do que se dá no regime de preço fechado, os consumidores

firmam contrato com o construtor pagando diretamente a ele o custo da construção.

O incorporador, assim, não recebe os valores pagos pela construção, que

pertencem ao construtor em decorrência de relação contratual com os

consumidores. Assim, neste regime o construtor é fornecedor direto e real dos

serviços.

Aqui, assim como em todos os regimes, o incorporador é promotor-produtor

do empreendimento (art. 12 do CDC), respondendo solidária e objetivamente pelos

acidentes de consumo e vícios do produto ou serviços prestados na construção do

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78 empreendimento, tal qual se dá no regime de preço fechado. Para fins de

responsabilização do incorporador, tanto em relação aos atos tipicamente

incorporativos quanto à execução da obra, é irrelevante a distinção entre o contrato

de venda de fração ideal de terreno e o contrato de construção88.

Parcela da doutrina equivocadamente entende a empreitada global (mão de

obra e materiais, como é o caso da empreitada prevista na LCI) como contrato de

compra e venda de coisa certa e futura. Tal entendimento poderia levar a que o

construtor, no regime de empreitada, fosse responsável por atos tipicamente

incorporativos praticados pelo incorporador.

No entanto, o construtor, no regime de empreitada, é mero prestador de

serviços. A alusão ao “construtor”, contida no art. 12 do CDC, não faz do

empreiteiro, contratado pelos consumidores, um fornecedor de produto89. Só pode

ser considerado construtor para fins do art. 12 o incorporador que realize ele próprio

a construção ou que assuma a obrigação de fazê-lo junto aos adquirentes mas

depois se faça substituir nessa tarefa. Compartilhando dessa distinção e também de

seus efeitos, segundo as normas do CDC, LEANDRO LEAL GHEZZI90 conclui:

Feitas estas observações, deve ser ainda diferenciado o caso em que o incorporador é também o construtor, do caso em que os adquirentes contratam a construção diretamente com outra empresa. Isto porque, nesta segunda hipótese, entendemos que o incorporador é diretamente responsável pelo produto e o construtor diretamente responsável pelo serviço. No caso em que os adquirentes contratam a realização da obra diretamente com um construtor, entendemos que o incorporador se enquadraria no conceito de comerciante, estabelecido no art. 13, I, do CDC. Assim, de acordo com este dispositivo, o incorporador seria solidariamente

88 Cfr. CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 260-261. 89 Em geral, a doutrina conceitua o construtor do ponto de vista de suas realizações materiais, como alguém que faz algo novo surgir. É o que faz, v. g., ZELMO DENARI: “O construtor é aquele que introduz produtos imobiliários no mercado de consumo, através do fornecimento de bens ou serviços. Sua responsabilidade por danos causados ao consumidor pode decorrer dos serviços técnicos de construção, bem como dos defeitos relativos ao material empregado na obra. Nesta última hipótese, responde solidariamente com o fabricante do produto defeituoso, nos termos do § 1º do art. 25 do CDC” (ZELMO DENARI. In GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.). Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 145). No entanto, para fins do art. 12 esse conceito deve ser encarado do ponto de vista jurídico, sob pena de confundir construtor com montador, com fabricante ou com produtor. Com efeito, do ponto vista fático, um construtor de obra não deixa de ser um montador na medida em que, empregando sua mão-de-obra e sua técnica, une materiais (tijolos, ferro, vidro, etc) para produzir algo novo. Juridicamente, no entanto, trata-se de um fornecedor de serviços sujeito ao art. 14 do CDC mas não ao art. 12. 90 GHEZZI, Leandro Leal. A incorporação imobiliária . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 193.

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responsabilizado pelo defeito do produto apenas quando não pudesse ser identificado o seu fabricante, o construtor, produtor ou importador.

Discussão semelhante já se travou no âmbito do Direito Tributário, indagando-

se se o contrato de construção estaria sujeito ao Imposto sobre Prestação de

Serviços de Qualquer Natureza-ISSQN ou se ao Imposto sobre Circulação de

Mercadorias-ICMS. Ocorre, todavia, que o “fazer” (a construção) prepondera sobre o

“dar” (o insumo). Na incorporação sob regime de empreitada (assim como no regime

de preço de custo referido no capítulo seguinte), a aquisição de coisa certa que de

fato há, diz respeito apenas à fração ideal de terreno, à qual se soma um segundo

contrato para que um construtor erija sobre ela uma construção. FRANCISCO

ARNALDO SCHMIDT91 segue esta linha ao observar:

Há quem veja na empreitada global, compreendendo mão-de-obra e materiais, simples promessa de venda, equiparando a empreitada à venda de coisa futura a prazo e preço certos, com construção por conta e risco do incorporador. Essa distinção é particularmente importante para o memorial da incorporação, quando o incorporado deve informar a natureza jurídica da construção que está lançando. As duas modalidades, entretanto, além de não se confundirem, receberam tratamento doutrinário e legal bem diferenciados. Além da clássica distinção de Clóvis Beviláquia, segundo a qual na empreitada de material o objeto é a criação de uma coisa pelo trabalho do próprio empreiteiro, ou de seus operários, enquanto que na alienação o objeto é a venda de uma coisa existente ou a ser produzida (Código Civil, 7ª ed., vol. IV, p. 424). J. Nascimento Franco e Nisske Gondo trazem o magistério de Alfredo de Almeida Paiva (Aspectos do Contrato de Empreitada, Forense, 1.955, p.28), para quem na compra e venda de coisa futura aliena-se coisa “que venha a existir de futuro mas que seja de propriedade do vendedor”, enquanto que o objeto da empreitada é “a execução de uma obra determinada para cuja confecção os materiais fornecidos não concorram com o espírito de venda, mas apenas contribuem na mesma importância e com idêntica finalidade da mão-de-obra empregada para levá-la a bom termo.

O construtor, portanto, porque contratado diretamente pelos adquirentes, só

responde por acidentes de consumo e vícios que digam respeito ao contrato de

prestação de serviços de construção, salvo se demonstrada sua participação direta

em atos típicos do incorporador.

91 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p.106.

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80 II.3.1.3.3 No regime de administração

Por último têm-se o regime de administração (arts. 58 a 62), também

designado pela LCI como “preço de custo”, em que o incorporador oferta a unidade

e estima o custo de sua construção, que pode variar segundo oscilações do

mercado, obrigando-se os adquirentes a cobrir a variação do preço dos insumos.

Assim como no regime de empreitada, os consumidores adquirem a fração ideal de

terreno junto ao incorporador e contratam a construção da obra em separado. Ao

contrário da empreitada, o custo da obra não é estabelecido, recebendo apenas uma

estimativa (art. 59, §§ 1º a 3º; art. 54, § 3º) que deve ser revista semestralmente (art.

59) de comum acordo entre a Comissão de Representantes e o construtor, podendo

implicar maior ou menor custo da obra a depender do efetivo custo dos materiais. A

cada nova alteração do custo alteram-se e os valores que cada adquirente deve

pagar de modo a que a obra seja concluída no tempo esperado (art. 60) por decisão

entre a Comissão e o construtor.

Neste regime, assim como em todos os regimes, o incorporador é promotor-

produtor do empreendimento (art. 12 do CDC), respondendo solidária e

objetivamente pelos acidentes de consumo e vícios do produto ou serviços

prestados na construção do empreendimento.

Já o construtor, quando não seja ele o próprio incorporador, só responderá

pelo fato e pelo vício do serviço de construção.

Conforme EVERALDO AUGUSTO CAMBLER92, no regime de administração

os adquirentes assumem a administração da incorporação de modo a que a

responsabilidade do construtor e do incorporador podem resultar mitigadas em

pontos que, se no regime de empreitada, sua responsabilidade seria inquestionável.

A questão, todavia, só se consegue resolver diante de análise do caso concreto93.

92 CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pp. 263-265. 93 Sobre esta questão têm-se a seguinte decisão: “INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. CONSTRUÇÃO SOB O REGIME DE ADMINISTRAÇÃO (PREÇO DE CUSTO). DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS POR ADQUIRENTE INADIMPLENTE. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA INCORPORADORA. INCIDÊNCIA DO ART. 58 DA LEI Nº 4.591/64. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. MULTA CARÁTER PROTELATÓRIO NÃO CARACTERIZADO. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 98/STJ.

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II.3.1.4 A responsabilidade do agente financiador

É comum a participação de instituição financeira na rede contratual da

incorporação imobiliária, concedendo crédito para financiamento da construção,

comum em casos em que o incorporador por esta via obtém os recursos necessários

para concluir o empreendimento.

Também a instituição financeira não responde por atos inerentes à atividade

do incorporador e, de igual modo, não responde pela obrigação de outorga da

propriedade sobre as frações ideais do terreno e nem por vícios ou acidentes de

consumo resultantes da construção propriamente dita94.

Sobre o assunto, aliás, “revogando” considerável jurisprudência que vinha se

formando em sentido contrário95, o § 1º do art. 31-C, introduzido pela Lei

10.931/2004, dispõe expressamente em relação às incorporações sob regime de

afetação patrimonial, o que também se deve aplicar àquelas não afetadas, que a

fiscalização da obra e do andamento da incorporação pelo agente financeiro ou

pelos adquirentes, não lhes transfere “qualquer responsabilidade pela qualidade da

- No regime de construção por administração, a responsabilidade pelo andamento, recebimento das prestações e administração da obra é dos adquirentes, condôminos, por intermédio da comissão de representantes, e não da incorporadora, parte ilegítima para figurar no pólo passivo de ação que visa à devolução de valores pagos por adquirente inadimplente. - O manejo de embargos de declaração com fim de prequestionamento não tem caráter protelatório. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. (REsp 679.627/ES, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/10/2006, DJ 20/11/2006 p. 301)”. 94 A propósito, vejam-se as indagações feitas por EVERALDO AUGUSTO CAMBLER em palestra proferida em seminário realizado em 2003, organizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e pela Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário do Brasil. (CAMBLER, Everaldo Augusto. Et alli. Responsabilidade civil do incorporador. ln: SEMINÁRIO O CREDITO IMOBILIÁRIO EM FACE DO NOVO CÓDIGIO CIVIL, 2003, São Paulo, debates do seminário. São Paulo: IRIB;ABECIP, 2005, pp. 127-156). 95 A título de exemplo, cita-se: “SFH. AQUISIÇÃO DE UNIDADE HABITACIONAL. VÍCIOS DA CONSTRUÇÃO. LEGITIMIDADE DO AGENTE FINANCEIRO. A Caixa Econômica Federal detém legitimidade para responder por ação de indenização em virtude de vícios constatados em imóveis financiados pela empresa pública, dada a inequívoca interdependência entre os contratos de construção e de financiamento. A obra efetuado com recursos do Sistema Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança. Precedentes. (TRF4, AC 2002.70.07.000027-9, Quarta Turma, Relator Sérgio Renato Tejada Garcia, D.E. 31/08/2009)”.

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82 obra, pelo prazo de entrega do imóvel ou por qualquer outra obrigação decorrente

da responsabilidade do incorporador ou do construtor”.

O § 12 do art. 31-A também cuida de afastar a responsabilidade do agente

financeiro por atos inerentes à atividade de incorporação e construção, seja sua

participação decorrente de contratação de mútuo para construção ou de garantias

recebidas em razão de quaisquer mútuos concedidos ao incorporador ou aos

adquirentes finais consumidores. Em que pese tratar-se de mera garantia creditícia,

quiçá por “excesso de clareza” o § 12 cuidou de destacar que a responsabilidade do

agente financeira também fica afastada em razão de constituição de propriedade

fiduciária sobre as unidades imobiliárias ou cessão de direitos creditórios sobre elas

constituídos.

Diferentemente se dá com a responsabilidade da instituição financeira em

torno da validade ou não da constituição, eficácia e execução de garantia hipotecária

constituída sobre o empreendimento. Antes das alterações introduzidas pela Lei

10.931/2004, consolidou-se entendimento jurisprudencial96, até surpreendente para

parcela da comunidade jurídica, no sentido de que tais hipotecas não têm eficácia

perante os adquirentes, já que é de conhecimento prévio da instituição financeira

que sobre o terreno se levanta uma construção sob a forma de incorporação em que

todas suas unidades estão destinadas ao mercado de consumo, não sendo lícito

que o direito de hipoteca do agente financeiro possa prevalecer sobre o direito

pessoal com efeitos reais nascido para os adquirentes quando da entrega de

recursos ao incorporador em pagamento de coisa futura a ser erguida justamente

com a entrega destes recursos.

Atualmente, por força daquelas alterações, a LCI conta com previsão de

validade dessas hipotecas quando constituídas em incorporações sob regime de

afetação. Isto, todavia, não pode ser entendido como se a Súmula 308 estivesse

superada. A alteração legal veio, na verdade, a corroborar a orientação

jurisprudencial porque a hipoteca permanece hígida se inserida no bojo de

incorporação com regime de afetação em decorrência de um rearranjo de direitos

reais e obrigacionais vinculados à incorporação, na medida em que o crédito

concedido, segundo a lógica da afetação, pertence aos próprios adquirentes por via

96 Trata-se da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

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83 de sua integração à patrimônio da incorporação afetada, conforme adiante ainda

será tratado.

De todo modo, mesmo nas incorporações sob regime de afetação patrimonial,

para a higidez da garantia hipotecária é imprescindível que os recursos mutuados

pelo agente financeiro sejam de direito e de fato direcionados à aplicação na

construção, vale dizer, não basta alegar ou fazer previsão contratual no sentido de

que o empréstimo tenha sido aplicado na conclusão da incorporação. O agente

financeiro deve fiscalizar a evolução da obra de modo a garantir a aplicação dos

recursos que justificam a hipoteca. O art. 31-C prevê que a instituição financeira

poderá nomear alguém para fiscalizar e acompanhar a evolução do patrimônio de

afetação. A permissão para fiscalizar e acompanhar, no entanto, não é suficiente

para que a hipoteca seja eficaz em caso de os recursos mutuados não serem

aplicados na incorporação. Trata-se, isto sim, de um meio concedido ao agente

financeiro para preservar sua garantia, sob pena de se desnaturar o sistema da

afetação patrimonial e retornar-se sistema tradicional de incorporação não afetada.

Com efeito, se os recursos mutuados não forem direcionados à capitalização do

patrimônio afetado, não se justifica que o pagamento do agente financeiro se faça

com suas forças: desvirtuada a entrada de recursos no patrimônio afetado, o

pagamento por via do patrimônio de afetação fica prejudicado.

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84 III PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E INCORPORAÇÃO IMOBILIÁ RIA

III.1 A AUTONOMIA PATRIMONIAL E FUNCIONAL DA INCORPORAÇÃO

IMOBILIÁRIA

Antes mesmo que a Lei 10.931/2004 alterasse a LCI mediante inclusão do

patrimônio de afetação, esta já contava, desde sua edição, com medidas capazes de

resguardar os interesses dos adquirentes de unidades imobiliárias em construção

em caso de falência ou insolvência do incorporador, paralisação ou retardamento

excessivo e injustificado da obra; situações estas em que a propriedade do terreno,

das acessões e os recebíveis decorrentes da comercialização das unidades eram

destacados da titularidade material do incorporador com correspectiva transferência

aos adquirentes. Subjacente e como fonte de inspiração dessa alteração da

titularidade material, têm-se a função social da atividade, ou seja, a conclusão do

edifício, como direito dos adquirentes ainda que sem a colaboração do incorporador.

Sensível à percepção de que o empreendimento que se constrói é fruto dos

recursos entregues ao incorporador pelos adquirentes já que em geral os

incorporadores vendem para depois construir, buscou a LCI, porém de forma tímida,

apartar do patrimônio geral do incorporador, o acervo representado pelos direitos e

obrigações oriundos de determinando empreendimento em construção. Tal

separação, além de dar garantia aos adquirentes, teve como objetivo evitar que

credores do incorporador, estranhos a uma determinada obra, fossem beneficiados

em relação aos adquirentes, mediante realização de seu crédito com uma

construção e com um terreno que, em parte considerável, às vezes até

integralmente, são mera representação dos valores entregues pelos adquirentes ao

incorporador.

Nesse sentido, prevê o inciso III do art. 43 da LCI, desde sua edição, que

mesmo em caso de falência do incorporador, a maioria dos adquirentes pode se

reunir em assembleia e deliberar pela continuidade das obras sem a participação do

incorporador97. Do contrário, ou seja, caso tal deliberação seja aprovada, dispõe o

97 Fazendo referência ao inciso III do art. 43 da LCI, observa HAMILTON QUIRINO CÂMARA que “Afinal de contas, na dicção do texto legal, se os compradores retomam as obras ficam fora da falência”. (CÂMARA,

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85 mesmo inciso que aos adquirentes resta a opção de se habilitarem na falência como

credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador98.

Além de cogitar da hipótese de falência do incorporador como condição para

que os adquirentes assumam o término da obra, o inciso VI do art. 43 da LCI prevê

outras duas, quais sejam, a paralisação da obra ou seu retardamento excessivo e

injustificado. Logo, não é necessária a ocorrência de falência para que os

adquirentes decidam eles próprios concluí-la. Do contrário, poderia ocorrer de o

incorporador paralisar as obras sem perspectiva alguma de retomá-las, não vindo,

todavia, jamais a falir, mesmo que se encontrasse em estado de insolvência. Em

uma situação dessas de nada adiantaria aos adquirentes acionar o incorporador

pedindo reparação por perdas e danos ou a execução específica de obrigação de

fazer (concluir a obra) se ele se encontrar impossibilitado de cumprir as decisões

judiciais.

Como se vê, então, pelo sistema original da LCI, falindo o incorporador, a

edificação em curso não integra necessariamente a massa falida a fim de que seja

utilizada para pagamento dos credores habilitados segundo a ordem preferência de

seus créditos. Do mesmo modo, em caso de paralisação ou atraso excessivo e

injustificado do andamento das obras, o empreendimento pode igualmente ser

destacado do patrimônio e da gerência do incorporador, passando às mãos dos

adquirentes a fim de que estes possam concluí-la. Para que tal ocorra, o inciso VI do

art. 43 exige que os adquirentes se reúnam em assembleia e deliberem acerca da

“destituição do incorporador”, afastando-o assim desta função. Uma vez destituído, o

incorporador não poderá mais alienar, na condição de incorporador, unidades

Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 3). 98 Dentre aquelas duas opções (arrecadação pela massa versus conclusão da obra pelos adquirentes), percebe-se que a lei reservou aos adquirentes, opções com diferentes possibilidades de êxito. Com efeito, a decisão pela conclusão da obra, a depender das circunstâncias concretas, poder afastar parcial ou integralmente o prejuízo material dos adquirentes, acontecimento este que dificilmente se verifica caso optem por se habilitarem na massa permitindo assim que o empreendimento seja arrecadado. Exercendo esta última opção talvez nunca recebam seus direitos ou recebam tão tardiamente considerando o tempo nada razoável de um processo de falência, que o prejuízo acumulado pelo decurso do tempo torna essa orientação menos atraente que a retomada da construção. Estranha-se, todavia, a razão legal dessas duas opções serem tão díspares entre si no que toca à proteção patrimonial dos adquirentes. Com efeito, de um lado se optam por a obra, o terreno e as acessões são destacadas da titularidade formal do incorporador; de outro, se não decidem concluí-la perdem tudo o que pagaram ao incorporador na medida em que a arrecadação pela massa leva a que os adquirentes se habilitem como credores preferenciais.

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86 integrantes do empreendimento em construção99 sob pena de restar incurso no tipo

penal dos arts. 65 e 66 da LCI; também não participará da gestão necessária ao

término da construção, nem poderá cobrar o preço dos contratos de venda que

firmou, não só porque inadimplente mas também em razão de se encontrar afastado

da função de promotor da incorporação100. Perde assim os poderes inerentes à

condição de incorporador, previstos em resumo nos arts. 29 e 30. Retirando o

incorporador do centro de decisão dos interesses da incorporação, os adquirentes

ocupam seu lugar e, por meio da Comissão de Representantes (art. 50), recebem da

lei, dentre outros, os poderes necessários para concluir a obra, outorgar as

escrituras definitivas relativas às frações ideais de terreno prometidas em venda pelo

incorporador e também cobrar dos adquirentes os valores necessários para que a

obra seja concluída (arts. 49, 50, 52 e 63).

Percebe-se então que a LCI já trazia a ideia de que a incorporação, aí

incluído o eventual direito real de propriedade sobre o terreno, não é um patrimônio

absoluto do incorporador, nem do proprietário do terreno que eventualmente lhe

tenha outorgado poderes necessários à promoção da incorporação (arts. 30, 31 e

32, ‘m´); mas sim uma relação jurídica complexa101 em que se entrelaçam

obrigações, deveres e ônus, direitos reais e direitos pessoais obrigacionais,

sobrepondo-se uns aos outros de maneira a conformar propriedade à sua específica

função social, conferindo autonomia funcional ao empreendimento em construção

para que alcance o objetivo de vê-lo concluído, ainda que de maneira mais custosa

para os adquirentes do que aquela inicialmente contratada com o incorporador.

Como já observou NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO102 acerca da LCI em

99 Em que pese na prática consiga realizar ditas alienações enquanto o terreno ou frações dele continuarem registrados em seu nome, bem assim na hipótese em que o incorporador não seja seu proprietário mas conte com poderes para aliená-lo na forma dos arts. 30, 31 e 32, ‘m’, da LCI. 100 Referem estas negativas à sua participação continuada na condição de incorporador e também na condição de construtor. Mas ainda figurando o ex-incorporador como proprietário de alguma fração ideal que tenha comercializado, terá ele direitos e deveres em caso de retomada das obras deliberada pelos adquirentes, agora na condição de mero adquirente/proprietário, podendo inclusive votar nas assembleias como um adquirente comum. 101 Tratando do direito de propriedade como relação jurídica complexa a envolver direitos reais e pessoais bem assim as imbricações e alterações recíprocas que um caso ao outro em prol do cumprimento de determinada função social, confira-se FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO (LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 102 PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 318-320.

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87 sua versão original, destituído da função de incorporador, os direitos e obrigações,

mas nem todos (é verdade), eram de fato e de direito destacados do patrimônio do

incorporador e mantidos vinculados à finalidade de conclusão da obra:

A lei 4.591/64 sempre previu a proteção coletiva dos adquirentes no caso de fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras ou falência. Esse direito materializa-se, através de decisão assemblear, vinculativa para a maioria, de destituir o incorporador e prosseguir nas obras, com ou sem um novo incorporador, o que se faz sem prejuízo do direito de pleitear perdas e danos do incorporador destituído (artigos 34, III e VI e 49, da lei 4.591/64 e artigo 43, da lei 7.661/45). Na hipótese destituição, o patrimônio era na prática destacado, e os adquirentes somente respondiam pelos débitos previdenciários, necessários à obtenção de certidão negativa de débito a ser averbada com a baixa da construção, além do IPTU não pago. As próprias hipotecas em favor de bancos vinham sendo questionadas, ultimamente, quanto à sua oponibilidade aos compradores.

Tendo em vista que toda incorporação nada mais é do que a soma dos

interesses dos adquirentes que nela aplicam recursos na medida em que a

construção evolui, aliado à marcante função social dessa atividade, teve o legislador

o cuidado de possibilitar a separação da incorporação, com os direitos pessoais e

reais a ela inerentes, do patrimônio geral do incorporador. De igual maneira também

já observou FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT103, para quem a LCI já contava com

“manifestações embrionárias” da autonomia patrimonial e funcional da incorporação

imobiliária:

A Lei 10.931, de 02 de agosto de 2.004, entre outras disposições, acrescentou ao arsenal jurídico pertinente às incorporações imobiliária, a figura do “patrimônio de afetação (...). Entretanto, já na Lei 4591/64, existem dispositivos que podem ser considerados manifestações embrionárias do instituto. Assim, por exemplo, o art. 40, segundo o qual, ocorrendo a rescisão do contrato de alienação do terreno de seu proprietário para o incorporador, resolvem-se também os contratos de venda das frações ideais do terreno firmados por este, o que gera ao adquirente das unidades futuras que não deu margem à rescisão, o direito a ser indenizado, e, se o incorporador não o fizer, a obrigação passa ao alienante do terreno, em favor de quem consolida-se a propriedade do terreno e das acessões, mas a responsabilidade patrimonial deste é limitada ao próprio terreno do empreendimento e às obras acrescidas, não contaminando o restante do seu patrimônio. Também o art. 58, inc. I e II da Lei 4591/64, quando, no regime construtivo de administração, ou “a preço de custo”, determina que todas as notas e faturas de pagamento de gastos da construção sejam emitidos para aquele

103 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação imobiliária. 2ª Ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, pp.88-89.

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condomínio de obra, em nome de quem também deverá ser aberta conta corrente bancária específica para girar toda movimentação financeira pertinente, sem misturá-la com outras contas bancárias do incorporador e de outras obras suas. A Medida Provisória n° 2.221/01, porém, foi o prime iro provimento legal baixado com o propósito declarado de instituir e regular o instituto do patrimônio de afetação.

Outro exemplo de atribuição de autonomia funcional às incorporações

imobiliárias, encontra-se no art. 65, § 1º, II, por meio do qual se tentou obrigar a que

os recursos, quando gerados nas incorporações com construção sob regime de

administração, fossem utilizados exclusivamente na obra sob pena configurar prática

criminosa104.

Também resultado do encontro entre direitos e reais e obrigacionais na

incorporação, o art. 40 da LCI reconhece a construção como propriedade dos

adquirentes na proporção individualizada dos pagamentos por eles realizados. Prevê

o dispositivo que, rescindido o contrato de compra e venda do terreno em que o

incorporador promove a incorporação e retornando seu domínio ao alienante

original, este haverá de pagar aos adquirentes pela construção sobre ele existente,

ao invés de fazê-lo ao incorporador como forma de indenização por acessão ou

benfeitorias como haveria de se supor tivesse sido realizada por ele na condição de

promotor da incorporação. Até que esse pagamento não ocorra, o proprietário do

terreno não poderá negociá-lo sob pena de nulidade absoluta. Percebe-se aqui,

novamente, que o incorporador não é proprietário das acessões, mas sim o

coordenador de um negócio, o negócio de incorporação, por meio do qual se

angariam recursos junto aos consumidores com o propósito de prestar-lhes um

serviço. Os proprietários das acessões são os adquirentes. 104 “Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sôbre a construção do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sôbre a construção das edificações. PENA - reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal vigente no País. § 1º lncorrem na mesma pena: I - o incorporador, o corretor e o construtor, individuais bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva incorporadora, corretora ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condôminos, candidatos ou subscritores de unidades, fizerem afirmação falsa sôbre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais ou sôbre a construção das edificações; II - o incorporador, o corretor e o construtor individuais, bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que usar, ainda que a título de empréstimo, em proveito próprio ou de terceiros, bens ou haveres destinados a incorporação contratada por administração, sem prévia autorização dos interessados”. (grifamos)

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A autonomia patrimonial da incorporação é uma imposição que brota

naturalmente da própria maneira de ser desta atividade. Dizendo como dito que o

incorporador vende para depois construir, certo é que promove a edificação com

recursos alheios, entregues em razão da confiança depositada em sua pessoa.

Neste sentido MELHIM NAMEN CHALHUB105 observa que

A atividade da incorporação imobiliária é naturalmente vocacionada para a afetação patrimonial, seja em razão da relativa autonomia de cada empreendimento, considerado de per si, seja por força da antecipação parcial de pagamento por parte dos adquirentes. A incorporação, assim, tem estrutura econômico-financeira capaz de propiciar a realização do negócio com suas próprias forças, ou seja, com recursos financeiros gerados por si mesma, independente de outras fontes de receita.

E de fato, se analisado o papel preponderante do incorporador imobiliário,

bem assim o papel que ele exercia antes da tipificação do contrato incorporativo e

ainda exerce, ver-se-á que a propriedade não é a “pedra de toque” de sua atividade.

Pode-se dizer até que o direito real de propriedade sobre o terreno, exercitável pelo

incorporador ou por quem lhe haja outorgado poderes para que sobre ele se

promovesse a incorporação, configura a atribuição de uma posição jurídica com

prerrogativas maiores do que as necessárias para a realização do contrato de

incorporação; uma desproporção entre o fim (promoção da construção) e os direitos

conferidos pelo meio (a propriedade)106. Ao direito de propriedade do incorporador

sobrepõe-se a função social107 que a incorporação busca realizar, uma vez que os

105CHALHUB, Melhim Namen. Proteção patrimonial dos adquirentes nas incorporações imobiliárias. Disponível em <http://www.melhimchalhub.com/files/docs/PROTECAO_PATRIMONIAL_DOS_ADQUIRENTES.pdf>. Acessado em 17.07.2009. 106 Essa mesma observação a doutrina tem feito em relação à propriedade fiduciária em garantia, conforme MARIA JOÃO ROMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS: “Diz-se que se atribui ao fiduciário uma posição jurídica mais forte do que aquela exigida pelo objectivo econômico que serve. Refere-se, a este propósito, uma grande desproporção entre os meios e o fim que o negócio visa atingir – utilização de um negócio mais forte para atingir um escopo econômico mais fraco. Transmite-se o direito de propriedade em ordem a obter um resultado que, do ponto de vista jurídico, não exige esta transferência. Em sentido contrário, pode lembrar-se a dificuldade de sustentar que o meio técnico adoptado é mais amplo do que o intuito econômico prosseguido pelas partes quando seja claro que os efeitos reais do negócio, seriamente queridos pelas partes, correspondem plenamente à pretensão econômica das mesmas que, de outro modo, na ausência deste particular mecanismo, não poderiam em geral, atingir o resultado visado”. (TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 200). 107 Consoante observa FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA, a função social da propriedade não coincide necessariamente com sua função econômica, tendendo a ser mais ampla que ela. (OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 243-244).

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90 direitos reais decorrentes de sua condição de proprietário não devem ser garantidos

em prejuízo de direitos de natureza pessoal ou de natureza pessoal com efeitos

reais que se estabelecem em favor dos adquirentes, mormente porque o sucesso da

atividade do incorporador não se traduz por acúmulo de direito de propriedade em

seu favor, mas sim pela promoção de atos que garantem o surgimento de novos

direitos de propriedade em favor dos adquirentes consumidores. O próprio conceito

de incorporador108 dá conta de que ele é a pessoa que “promove” a construção,

podendo ser ou não o construtor, podendo ter ou não a propriedade do terreno. O

incorporador, na realidade, se põe como alguém dotado de conhecimento técnico e

negocial para levantar uma edificação com recursos e forças de terceiros. Antes de

mais nada, o incorporador é um “administrador de interesses”: dos interesses do

proprietário do terreno e do construtor (quando não sejam o próprio incorporador),

dos interesses dos compradores e eventualmente dos interesses do agente

financeiro que tenha concedido crédito para promover a incorporação. Pondo em

prática seu projeto, o incorporador gere a sinergia de recursos e forças que se

voltam para alcançar objetivo coletivo de concluir a obra. O incorporador é ao

mesmo tempo, como já observou CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA109, um corretor

porque aproxima o dono do terreno e os compradores quando não seja ele mesmo o

seu proprietário; um mandatário porque pode vender a fração ideal de terreno em

nome e com procuração do dono do terreno; um gestor de negócios porque gere

interesses de terceiros voltados à conclusão da obra; um industrial da construção

civil; um empresário ou comerciante; um “banqueiro-financiador” porque é normal

que venda a prazo.

Para o bom desenvolvimento da atividade de incorporação imobiliária

prescinde-se de um direito real de propriedade com todas as prerrogativas que ele

tradicionalmente confere, contrapondo o incorporador proprietário e os adquirentes

por via da sujeição passiva universal. Em favor da sociedade e dos próprios e

verdadeiros interesses do incorporador é que os direitos e obrigações vinculados à

incorporação merecem ser destacados de seu patrimônio geral, recebendo assim

108 Vejam-se, a propósito, os arts. 28, 29, 30, 31, 32, ‘a’ e ‘m’; dando conta de que o incorporador pode promover a construção em terreno alheio mediante contratação de um construtor, reservando-se a si apenas atividade de idealizar a obra, contratar a forma de alienação das frações ideais de terreno e também a construção, que pode ser realizada por ele ou por um terceiro. 109 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 231-233.

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91 uma função social inerente aos direitos que nascem com registro (art. 32), na

matrícula do terreno, da obra que se vai construir110. Consoante referido por

FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA111, a função social integra a estrutura do direito

de propriedade de modo a subordiná-la a “uma orientação finalística que considera o

uso da coisa e a relação social e historicamente situada entre proprietários e não

proprietários”.

O conceito de propriedade e direito real segundo o Código Napoleônico não

atende de maneira satisfatória a multiplicidade de interesses presentes na

incorporação imobiliária nem colabora para com a função social que, no caso, não é

exatamente uma função da propriedade, mas sim da atividade de incorporação

imobiliária; função essa que se cumpre mediante a conclusão da edificação e o

pagamento de todas as obrigações que, pelo desenvolvimento da atividade do

incorporador, comunicam-se entrando em um estado de sinergia sustentado por

interesses individuais homogêneos representados pelo desejo de ver a obra

concluída. Aqui a outrora “sacralização” do direito real de propriedade perde

importância e, sob influência dos direitos pessoais obrigacionais112, modifica-se e

com eles se funde de modo a criar um todo, em parte direito real e em parte pessoal,

sem que haja prevalência de um sobre o outro como resultado de funcionalização da

propriedade inserida no mercado de consumo113. A propriedade existe, continua a

existir, mas como uma nova espécie de propriedade sobre a qual se pode referir

como sendo a propriedade incorporativa, representativa de um direito “quase-real” e

110 Sobre a natureza de direito real que surge com o registro da incorporação na matrícula do terreno, veja-se PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 288-291. 111 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da posse e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 241-242. 112 Como superação da dicotomia entre direitos reais e direitos pessoas obrigacionais, PIETRO PERLINGIERI propõe um abordagem da situação jurídica de modo a que dela sobressaia a função sobre a estrutura, perdendo o direito real seu caráter de prevalência sobre os direitos pessoais de modo a que se destaque deste confronto a “função” sobre a “estrutura” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 202-203 e 210). 113 Sobre o assunto ROBERTA MAURO E SILVA escreve que “[...] o novo direito dos contratos deve inspirar-se na funcionalização do mercado em prol da pessoa, transformando sua disciplina quando a contratação envolve, v. g., a aquisição de bens essenciais à manutenção da vida digna, bem como a sua disponibilidade no mercado.”.(SILVA, Roberta Mauro e. Relações reais e relações obrigacionais: proposta para uma nova delimitação de suas fronteiras. In TEPEDIDO, Gustavo (coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 87).

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92 “quase-pessoal”. Essa nova forma de propriedade é fruto da modernidade, que

suplanta e continua a suplantar esquemas amplos e rígidos de sistematização e

classificação das relações jurídicas (direito real versus pessoal, força inter parts

versus erga omnes, etc) típicos de positivismo jurídico114, em prol de microssistemas

especializados que, ao menos na atividade de incorporação, têm como objetivo

realizar uma segregação de riscos por meio de delimitação de uma rede contratual.

Não há que se falar, portanto, em direito real do incorporador ou do

proprietário do terreno segundo a teoria clássica. Como já observara EDUARDO

TAKEMI KATAOKA115:

Hoje não há apenas uma, mas várias propriedades muito diversas entre si. Por exemplo, a propriedade fundiária urbana e rural, a propriedade acionária, a propriedade intelectual, a propriedade de bens de consumo etc. Cada uma destas propriedades têm uma disciplina jurídica própria, sendo unificadas pela sua função comum. [...] não é necessário prosseguir para mostrar que a propriedade efetivamente mudou, e não pouco. De uma propriedade unitária, concebida como propriedade da terra, com a sua disciplina inteiramente centrada no código civil de cada país, passa-se à era das propriedades, muito diversas entre si e ainda regulamentadas por diplomas extravagantes e diversos códigos. Está-se diante de uma nova propriedade, fragmentada e inserida em um sistema em que ela perde a sua centralidade de direito por excelência para tornar-se um instrumento de realização de interesses não proprietários. Isto porque a tônica passa a ser a sua função social, garantia da realização do grande princípio da dignidade da pessoa humana, agora central. Se antes imperavam a igualdade de disciplina e a liberdade para negociar, hoje impera o ser humano em sua totalidade, devendo todos os elementos sistêmicos, em face deste vetor, contribuir para sua concretização.

Essas características da incorporação a seguem desde a origem e foram,

ainda que de forma velada, reconhecidas pela LCI. O patrimônio de afetação, então,

veio para deixar à mostra a autonomia funcional da incorporação, bem assim, mitigar

de forma expressa o direito de propriedade do incorporador.

114 Sobre a regularidade e sistematização, escrevera BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: “A ordem positiva tem, portanto, as duas faces de Janus: é simultaneamente, uma regularidade observada e uma forma regularizada de produzir regularidade, o que explica que exista na natureza e na sociedade. Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas também a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimento-regulação”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Volume I. 5ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2005, p. 141). 115 KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do individualismo e propriedade. In TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 462.

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93 III.2 FONTES DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO

Dizem sobre o patrimônio de afetação tratar-se ele de instituto jurídico em

função do qual determinados bens são apartados do patrimônio geral de um

determinado sujeito de direito de modo a que atendam e contribuam para que

finalidades específicas sejam alcançadas, proporcionando, ainda, a segregação de

risco a que se sujeitariam esses bens se permanecessem integrados no patrimônio

geral do sujeito, caso este em que sofreriam os efeitos decorrentes, por exemplo, de

uma falência, insolvência ou de uma constrição judicial qualquer. Sobre o assunto,

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA116 se refere dando notícia de

Os escritores modernos imaginaram a construção de uma teoria chamada afetação , através da qual se concebe uma espécie de separação ou divisão do patrimônio pelo encargo na disposição do bem, e, portanto, na sua saída do patrimônio do sujeito, mas na sua imobilização em função de uma finalidade. Tendo sua fonte essencial na lei, pois não é ela possível senão quando imposta ou autorizada pelo direito positivo, aparece toda vez que certa massa de bens é sujeita a uma restrição em benefício de um fim específico.

No campo da atividade de incorporação de imóveis, a afetação patrimonial,

com as alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, opera um arranjo no direito de

propriedade exercido pelo incorporador sobre os direitos oriundos da edificação,

adequando-os à persecução do término da obra como forma de proteção do

interesse da comunidade de adquirentes relacionada àquela construção em

específico e proteção também dos demais credores cujos créditos estejam ligados à

existência do empreendimento. O acervo patrimonial que compõe cada incorporação

imobiliária – o terreno, as acessões, as receitas provenientes das vendas, as

obrigações vinculadas ao negócio – realizada a segregação patrimonial, passa a

submeter-se à exclusiva finalidade de concluir a obra. No dizer de MELHIM NAMEM

CHALHUB117:

116 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed., 2005, p. 398, negritos nossos. 117 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar Ltda., 2003, pp. 68-69.

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Pela afetação constitui-se um patrimônio especial que, embora integrante do patrimônio geral da empresa incorporadora, permanece incomunicável até que se conclua a incorporação, não se comunicando nem com o patrimônio geral do incorporador nem com outros patrimônios de afetação que a empresa tenha constituído, razão pela qual não sofre os efeitos de eventuais desequilíbrios da empresa incorporadora. Por efeito da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações vinculadas à incorporação respectiva, vedado o desvio de recursos de um empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador. O volume de recursos afetados, entretanto, limite-se ao quantum necessário à execução da incorporação, estando excluídas da afetação, obviamente, as quantias que excederem desse limite, podendo o incorporador delas se apropriar sem restrição alguma. [...] A afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, entre eles os adquirentes das unidades imobiliárias, os trabalhadores da obra, o fisco, a previdência, a entidade financiadora, os fornecedores, etc. Visa esse regime assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos adquirentes e, para esse fim, estes podem assumir a administração da incorporação em caso de atraso injustificado da obra ou em caso de falência; considerando a incomunicabilidade do patrimônio de afetação, os adquirentes, ao assumir a administração, estão obrigados a destinar as receitas da incorporação exclusivamente ao pagamento dos seus próprios débitos, vedada sua utilização para pagamento de débitos não vinculados à incorporação, entre eles, os decorrentes das atividades gerais da empresa incorporadora. Em caso de falência da empresa incorporadora, os créditos vinculados a uma incorporação sob afetação não precisarão ser habilitados no Juízo da falência, pois, estando vinculados àquela específica incoporação-patrimônio-de-afetação, esses créditos serão satisfeitos com os recursos desse patrimônio.

A inspiração do patrimônio de afetação, no caso das incorporações reguladas

pela lei brasileira, pode ser encontrada em vários institutos jurídicos já conhecidos

tanto no Brasil quanto no exterior.

Como já referido, a redação original da LCI apenas antevia a teoria da

afetação na atividade de incorporação imobiliária, possibilitando que os adquirentes

destituíssem o incorporador e assumissem o término da construção, chamando para

si, de forma imperfeita e insuficientemente regulada, o acervo patrimonial

representado pelos direitos e obrigações relacionados à determinada incorporação.

Não obstante, a garantia dos adquirentes, pelo sistema original da LCI, somente se

realiza caso estes decidissem concluir a obra. Do contrário, ocorre a arrecadação do

empreendimento pela massa falida restando aos adquirentes se habilitarem como

credores preferenciais. Não obstante, a opção dos adquirentes pela retomada da

obra, nesse sistema original da LCI, faz-se sempre cheia de incertezas ante a

deficiência da LCI e o ataque dos credores do incorporador, que sempre veem na

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95 construção paralisada - propriedade titulada em nome do incorporador e atestada

pelo registro imobiliário - uma garantia para realização de seus créditos. A questão

realmente chamou atenção quando, entre as décadas de 1980 e 1990, despontou a

insolvência de numerosos incorporadores pelo país, tendo como clientes

(adquirentes) milhares de famílias. Naquele momento o Judiciário foi chamado para

decidir diversos conflitos envolvendo a possibilidade de retomada das obras e as

hipotecas constituídas pelos incorporadores em favor de instituições financeiras

como garantia de mútuos concedidos tanto para a própria construção do

empreendimento como para finalidades outras.

De uma dessas questões resultou a edição da Súmula 308 pelo Superior

Tribunal de Justiça, consolidando o entendimento segundo o qual “A hipoteca

firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração

da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do

imóvel”. Com o fim prático, declarado pelo Judiciário, da garantia hipotecária que

tradicionalmente era ofertada aos agentes financeiros como forma de garantia real

para os financiamentos concedidos a incorporadores; o mercado de crédito

imobiliário, ainda que de maneira tímida, passou a exigir estruturas negociais

capazes de apartar do patrimônio geral do incorporador, o empreendimento em

função do qual a instituição financeira houvesse concedido financiamento, bem

assim os direitos e obrigações a ele vinculados. Inexistente, à época, lei regulando

o instituto do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias, a “engenharia

jurídica” se resumiu em condicionar a concessão de financiamentos à criação de

Sociedades de Propósito Específico (SPE’s) para cada construção que contasse

com financiamento bancário. A intenção era criar uma pessoa jurídica cuja finalidade

social, prevista em seus estatutos, restringisse-se à construção de determinada

edificação (aquela para qual se concedia o financiamento). Concluída a obra e

havendo devolução do mútuo concedido pela instituição financeira, operava-se a

extinção da SPE.

Essa solução jurídica (SPE’s) traz implícita a intenção de adotar-se a afetação

patrimonial nas incorporações imobiliárias como forma de segregar o risco da

atividade geral do incorporador, na medida em que a criação de uma pessoa jurídica

que tivesse como objeto apenas a conclusão do edifício diminuiria riscos advindos

de outros negócios jurídicos de que tivesse participado o incorporador; risco esse

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96 que, como se sabe, foi amargamente suportado pelos agentes financeiros118 que

viram suas hipotecas sendo declaradas ineficazes pelo Judiciário.

Ao lado dessa inspiração de ordem prática derivada da Súmula 308 do STJ, o

patrimônio de afetação conta com fontes de importância maior. Uma delas, quiçá a

mais relevante, seja o trust, instituto largamente utilizado em países do common law,

em especial Inglaterra e Estados Unidos da América. Sobre sua adoção como fonte,

MELHIM NAMEM CHALHUB, autor do texto que deu origem, com modificações, ao

projeto remetido ao Congresso Nacional de que resultou a Lei 10.931/2004, traçou

as linhas gerais que adequariam o trust às incorporações imobiliárias no Brasil119.

Daí então convém aqui descrever o trust também em linhas gerais, inclusive porque

muitas das soluções que para ele se adotam podem ajudar a responder dúvidas que

surgirão da aplicação do patrimônio de afetação às incorporações.

Trata-se o trust de uma espécie de negócio fiduciário em sentido amplo

porque se baseia na confiança que uma parte deposita na outra relativamente à

atribuição de uma titularidade patrimonial. Surgido na Inglaterra durante a Idade

Média, no contexto do feudalismo, quando então foi inicialmente designado de use,

o trust tinha por função permitir que os vassalos contornassem as prerrogativas que

o suserano tinha sobre sua propriedade imobiliária. Com o tempo e por obra de

eclesiásticos ocupantes do cargo de “chancellor” - um tipo de conselheiro real para

questões de natureza moral120 - o use passou a ser designado por trust. Sobre as

118 Notadamente com a célebre falência da incorporadora ENCOL. 119 CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001. 120 Sobre o papel desenvolvido pelo “chanceler” durante a consolidação do use em trust, Eduardo Salomão Filho descreve:

“A justiça medieval inglesa era, contudo, impotente para levar em consideração os direitos de beneficiários de “uses”, pois assentava-se basicamente nos tribunais encarregados da aplicação da “common law”, formais e legalista. Ao lado dos tribunais existia, entretanto, um importante funcionário público, o “Chancellor”, cuja inteferência passou a ser fundamental para eficácia jurídica dos “uses”.

O “Chancellor” era inicialmente um eclesiástico a quem se atribuía a função de conselheiro do rei, dada sua capacidade de lidar com questões de consciência, bem como a função de guarda do selo real. O rei sempre teve poder jurisdicional a par dos tribunais por ele constituídos, o que representava o reflexo de sua situação de preponderância, podendo os súditos, em qualquer caso, recorrer diretamente a ele em situações jurídicas habituais. Ao fazerem isso, as petições, baseadas primordialmente em questões de justiça natural, insuscetíveis de acolhimento pela “cammon law”, tendiam a ser passadas à análise do “Chancellor” devido a sua formação eclesiástica e seu papel de diretor da consciência do rei”. (SALOMÃO NETO, Eduardo. O trust e o direito brasileiro. São Paulo: Editora LTr, 1996, p. 14).

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97 origens do instituto dão notícia MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e

DIOGO LEITE DE CAMPOS121:

O use foi introduzido na Inglaterra após a conquista normanda (1066). [...] Visava fundamentalmente facilitar a transmissão da propriedade fundiária no seio da família. Por exemplo, quando um vassalo falecia, o seu suserano tinha o direito de ter a terra na sua posse e de administrar por sua conta até que o herdeiro do vassalo atingisse a maioridade. O instituto do use permitiu evitar este resultado, porquanto o vassalo transferia o seu patrimônio a amigos em trust, que se vinculavam a tê-lo em use para o disponente, durante a sua vida e, após a sua morte, para o seu filho mais velho quando atingisse a maioridade. Deste modo, a propriedade fundiária passava para a esfera do herdeiro mediante a prática de um acto jurídico inter vivos e não por via sucessória, nunca chegando assim a nascer os direitos do suserano feudal. [...] O trust encontra pois a sua origem na Idade Média, na prática do ius of lands. Verificava-se a necessidade premente de ultrapassar os limites jurídicos impostos à propriedade fundiária. O sistema feudal impunha ao vassalo (tenant) um conjunto de obrigações perante o seu suserano (lord), que variava em conformidade com o tipo de relação estabelecida entre eles aquando da concessão da terra (tenure). Entre os deveres do tenant (incidents of tenure), alguns comuns a diversos tipos de tenure, encontravam-se o escheat (o regresso da terra à esfera do lord no caso de o tenant sucumbir sem herdeiros ou de ser condenado por delitos de particular gravidade), a homage (o reconhecimento da supremacia do lord acompanhado de juramento de fidelidade e de assistência económica em dadas circunstâncias), a wardship (a aquisição, por parte do lord, do poder de tutela sobre os herdeiros menores do tenant, com consequência do poder de gozar a terra sem a obrigação de prestação de contas até a maioridade do pupilo) e o marriage (a atribuição ao lord do direito de, à morte do tenant, escolher um cônjuge para o herdeiro solteiro, ou de obter um montante pecuniário a título de indenização no caso de ausência do casamento). O proprietário fundiário não podia dispor por via testamentária da sua terra e o seu herdeiro legítimo era sempre e em qualquer caso obrigado a pagar ao lord a renda de um ano pelo privilégio da sucessão. [...] Com o decurso do tempo, o chanceler estabeleceu o respeito dos direitos do beneficiário (cestui que use) não apenas pelo trustee, mas também pelos seus herdeiros e, assim, por qualquer terceiro adquirente a título gratuito dos bens constituídos em use. Consagrou, por último, a oponibilidade do direito do cestui que use a terceiros adquirentes a título oneroso que conhecessem, ou fosse para si cognoscível, que a transmissão dos bens ou direitos violava o trust. Os direitos do cestui que use in equity eram, deste modo, exercidos contra terceiros em certas e determinadas circunstâncias. A partir do momento em que o tribunal da equidade, de acordo com a máxima “equity follows the law”, tornou os direitos do beneficiário semelhantes àqueles reconhecidos at law, surgiu uma nova terminologia: os direitos do trustee at law foram designados como legal ownership e os do cestui que use sobre os bens constituídos em trust como equitable ownership. Em virtude de também serem considerados titulares de direitos sobre os bens, os beneficiários podiam opor os seus direitos a um leque alargado de pessoas e exigir a adopção dos remédios adequados.

121 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 21-24.

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Por outro lado, como a função do trustee consistia em administrar os bens fiduciados, a existência do trust não obstava à sua alienação.

No caso, trust significa confiança. E era com esta conotação que os negócios

se operavam na idade média entre os vassalos, quando um deles em confiança (in

trust) passava a propriedade de seus bens ao outro, acreditando que este último,

mesmo sem haver obrigação que à época fosse de natureza legal, deles faria uso ou

os transferiria em benefício de um terceiro seguindo as instruções recebidas do

vassalo fiduciante122. Com reconhecimento do chanceller, a transferência in trust

entre os vassalos implicou a modificação do direito de propriedade daquela época,

permitindo que ela passasse a ser analisada do ponto de vista de sua titularidade

formal, de sua administração e de seu benefício econômico de forma correlacionada

com diversos sujeitos de direito ao invés de sê-lo em consideração apenas de uma e

única pessoa com direito de propriedade. Assim, não obstante o trustee tivesse a

propriedade formal, seu beneficiário econômico era um terceiro, o cestui que trust,

de modo a restar ao trustee apenas um dever de administração do bem. Assim,

apesar de contar com todas as prerrogativas legais que o titulo de proprietário à

época atribuía e não obstante a constituição dessa propriedade ter se dado apenas

para contornar os direitos legais do suserano, a regra moral, confirmada por

conselhos e decisões do “chancellor”, obrigava o vassalo a cumprir as instruções

passadas com o bem, tendo-o e usando-o em sintonia com a vontade do proprietário

anterior. Daí porque se dizer até os dias de hoje que o trust centra-se “na concepção

pela qual uma pessoa pode ser investida de direito de propriedade sobre

122 MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ e DIOGO LEITE DE CAMPOS descrevem o trust como sendo “[...]aquelas situações em que um sujeito transfere a titularidade de uma parte do seu patrimônio a terceiro, estipulando a sua administração em benefício de outrem. Em virtude da separação entre a titularidade, a administração e o benefício econômico, a administração dos bens ou direitos é exercida em benefício de outrem em conformidade com o objectivo estabelecido no acto constitutivo do trust. Contudo, a separação operada entre o gozo e a administração não se traduz na característica fundamental deste instituto, pois que a mesma pode resultar da adopção de outros mecanismos jurídicos. Na verdade, o traço distintivo do trust consiste em tanto o trustee como o beneficiário serem titulares de direitos reais sobre os bens constituídos em trust. De um lado, o trustee, enquanto titular dos bens ou direitos tem o poder de celebrar negócios jurídicos, em seu nome, respeitantes aos bens ou direitos trust, mesmo que em infraccção ao acto constitutivo do trust. De outro lado, em virtude de os seus direitos não revestirem natureza meramente obrigacional, o beneficiário tem o poder de seqüela sobre os bens em trust e não é afectado pela insolvência ou falência do trustee. Afirma-se assim que o trust cria uma nova estrutura no direito de propriedade”. (TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 32).

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99 determinado bem ou direito, mas para realização de objetivo especial, exercendo

essa propriedade em confiança, em benefício de outra pessoa”123.

Como relação jurídica, a existência de um trust se verifica pela presença de

seus elementos constitutivos básicos: vontade, objeto e partes. A vontade se têm

pela manifestação de uma pessoa, designado na relação como instituidor do trust (o

settlor), expressando desejo de transferir algum bem (res, corpus ou subject matter)

a um terceiro (o trustee ou trustor) que, aceitando-o, será seu proprietário sob a

condição de administrá-lo em favor de um beneficiário (o cestui que trust, aquele que

confia) ou ainda a ele transferir o bem no futuro.

Em geral os trusts têm objetivo de atender os interesses de beneficiários

específicos determinados ou determináveis, havendo, todavia, trusts com fim de

realização de objetivos outros, relativos a interesses coletivos difusos124, de natureza

pública ou caritativa.

O instituidor do trust pode designar a si mesmo como trustee e atribuir-se o

dever de administrar bem que já é seu em favor de um beneficiário, bem assim

comprometer-se a realizar sua transferência ao beneficiário indicado. Também pode

designar um terceiro como trustee e a si mesmo como beneficiário. Não pode,

todavia, designar a si mesmo como beneficiário de todos os seus bens pura e

simplesmente, o que possibilitaria que fraudasse seus credores na medida em que

estes ficariam impossibilitados de satisfazer seus créditos com base no patrimônio

do devedor.

Os trusts comportam duas grandes classificações: charitable ou public trusts e

private trusts; aquela voltada ao interesse público em geral, atendendo interesses

coletivos, sem beneficiário específico, com frequência concernente à realização de

objetivos caritativos; e este vocacionado ao atendimento de interesses privados de

natureza econômica com beneficiários determinados ou determináveis. Os private

trusts, por sua vez, podem ser classificados em express trusts e constructive trust

conforme seja ou não exigível a existência de uma declaração de vontade para

constituir-se o trust.

123 CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001, p. 25. 124 São os chamados public trust ou charitable trust.

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Os express trusts seguem a mais fiel origem do trust medieval. Dizendo

respeito a interesses patrimoniais disponíveis, dependem de manifestação de

vontade do settlor e aceitação do trustee. Já a declaração de vontade e a aceitação

da condição de trustee podem ser dispensadas nos constructive trusts, quando

então decorrem de previsão de lei125, ou seja, constatado um fato previsto em lei, à

pessoa indicada atribuiu-se, ope legis, a condição de trustee com todas as

obrigações inerentes à função, dentre elas a de admirar os bens confiados.

Nos dias de hoje, desaparecido o receio de que os bens sejam apropriados

pelo suserano, a causa do trust alterou-se, permanecendo, entretanto, a vontade de

uma pessoa (settlor) satisfazer interesses de alguém indicado como beneficiário

(cestui que trust) com manutenção da administração e da propriedade sob as mãos

de terceiros (trustee) ou do próprio settlor, tornando-a intocável para credores tanto

do settlor, quanto do beneficiário e do trustee. Um desses motivos é a vontade de ter

um profissional que administre os bens e aceite todas as responsabilidades que tem

um trustee, notadamente a de bem administrar e responder por perdas e danos em

decorrência de má gestão, sendo por tal tarefa remunerado como um trustee

profissional: um negócio que no Brasil seria claramente enquadrável como serviço

posto à disposição no mercado consumidor.

A aplicação do trust como objeto de prestação de serviço profissional de

gestão patrimonial revela um desapego ao direito de propriedade como

personificação do subjetivismo, atribuindo-lhe maior mobilidade enquanto circulação

de riqueza, mediante acentuada cisão dos direitos de disposição, uso, gozo e

fruição. A essa nova e já contumaz utilização do trust atribui-se a designação de

management trust126:

[...] o management trust traduz a resposta ao afastamento da propriedade imobiliária de matriz familiar enquanto forma predominante da riqueza. O trust moderno respeita a portfolios de complexos conjuntos de bens de natureza financeira que, na esmagadora maioria dos casos, se traduzem, em último recurso, em direitos obrigacionais perante os respectivos emitentes.

125 Enquanto os express trusts resultam da vontade manifestada pelo settlor, os constructive trusts decorrem diretamente de previsão legal, em situações em que, consideradas as circunstâncias fáticas, o titular da propriedade tenha os bens em trust apenas para o benefício de terceiros. 126 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 26-27.

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Por outro lado, e ainda como conseqüência das alterações sofridas quer pela própria natureza dos bens constituídos em trust, quer pela natureza da função do trustee, assistiu-se a uma modificação da identidade do trustee. Afirma-se que a feição com que a evolução mais recente dotou o direito dos trusts se traduz na corporate trusteeship. Não obstante existirem ainda muitos trustees individuais, o paradigma do trustee actual é aquele do profissional remunerado, cuja actividade consiste em constituir e cumprir trusts. O fiduciário societário oferece perícia e garantias. De acordo com o regime da responsabilidade estabelecido no direito dos trusts, o trustee arrisca ilimitadamente o seu patrimônio pessoal no caso de não cumprir as suas obrigações. Impõe-se, nesta matéria, a regra que estabelece o critério de deligência do profissional razoável. Este risco assumido pelo trustee informa o trust moderno, garantindo, efectivamente, o beneficiário contra uma multiplicidade de violações. Acresce que, este risco de responsabilidade gera um incentivo adicional para o trustee cumprir, de boa fé, o trust. Uma outra vantagem oferecida pelo fiduciário de natureza societária traduz-se na sua longevidade.

Feitas essas considerações sobre o trust, é possível um paralelo com o

patrimônio de afetação na incorporação imobiliária, que o enquadre como um

express trust - porque decorre de manifestação de vontade - em que o settlor se

declara o trustee (art. 31-A, caput e § 10º, e art. 31-B) do patrimônio representativo

dos direitos e obrigações vinculados à incorporação, assumindo a obrigação de um

management trust de bem administrá-la em favor dos adquirentes ou beneficiários

(cestui que trust), o que se faz mediante cumprimento da obrigação inerente à

atividade de incorporação, qual seja, a conclusão da obra.

Não há, no civil law, todavia, instituto jurídico que faça as vezes do trust.

Dotado de aplicabilidade a qualquer relação jurídica salvo previsão legal em sentido

contrário, as finalidades do trust e a natureza jurídica da relação que se forma entre

o trustee, o beneficiário e o bem confiado, dadas as prerrogativas que a cada um se

atribuiu, só têm sido alcançadas no civil law, e com ressalvas, em decorrência de

intervenções cirúrgicas do legislador mediante autorização para contratação de

novas espécies de negócio fiduciário, ora configurando forma de garantia, ora meio

de investimento ou de administração. Com efeito,

As relações fiduciárias análogos àquelas decorrentes do trust nos países da common law são, na civil law, reguladas de diferentes maneiras. Têm uma estrutura diferente e os direitos conferidos às partes envolvidas são de natureza diversa. As técnicas fiduciárias, tal como são aplicadas nos ordenamentos da civil law, apresentam um carácter menos genérico do que o trust anglo-americano. No direito anglo-saxónico, recorre-se ao mesmo trust para todas as espécies de propósitos fiduciários e em todas as ocasiões. Na civil law não existe uma técnica fiduciária genérica, mas antes

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um número de específicas instituições fiduciárias que variam de acordo com a partes envolvidas ou o propósito visado127.

Autor do anteprojeto de que resultou a Lei 10.931/2004, MELHIM NAMEM

CHALHUB em mais de uma oportunidade já se referiu ao trust como fonte do

patrimônio de afetação, cogitando de sua relativa equiparação com a propriedade

fiduciária128, verbis:

Dada a característica fundamental do trust, de criação de patrimônio separado visando a realização de fins determinados, não raras vezes se questiona se tais escopos poderiam, nos sistemas da civil law, ser alcançados por meio de criação de nova pessoa jurídica ou de mandato, entre outros instrumentos. Essas figuras, entretanto, não são plenamente equivalentes. [...] À procura dessa assimilação, sempre se volta a atenção o negócio fiduciário, que se caracteriza pela atribuição de titularidade pela, em nome próprio, mas no interesse, ou também no interesse, do transmitente ou de um terceiro. Seria uma concepção moderna da fidúcia, já entronizada no direito positivo de vários países da América Latina, na figura do fideicomisso, pelo qual os bens fideicomitidos são transmitidos ao fiduciário sob forma de propriedade fiduciária e não integram o patrimônio desse último, formando-se com esses bens um patrimônio de afetação. [...] De fato, considerando-se que o trust tem como elementos essenciais um patrimônio determinado e uma afetação, é efetivamente, mediante a determinação de um patrimônio e sua afetação que se poderia obter a realização dos efeitos econômicos e jurídicos do trust, isto é, mediante a atribuição de um direito patrimonial – propriedade fiduciária – a alguém, para que o administre no interesse de outrem, mantendo-se a propriedade fiduciária em patrimônio separado. [...] A figura que mais se aproxima da estrutura do trust, sem agredir o sistema romanístico, é a propriedade fiduciária que, no direito positivo brasileiro, é adotada para fins de administração dos bens imóveis integrantes de carteiras de fundos de investimento imobiliário, na qual a construção legislativa se ajusta à estrutura do trust sem deixar de atender o conceito unitário de propriedade. Trata-se da Lei n° 8.668, de 1993, que, para fins de organização de fundos de investimento imobiliário, estabelece que (a) os bens que constituirão a carteira do fundo serão adquiridos pela sociedade administradora em seu próprio nome, mas em caráter fiduciário, (b) esses bens terão autonomia em relação aos bens do patrimônio geral da sociedade administrador, isto é, constituirão um patrimônio de afetação destinado aos subscritores das quotas do fundo, e (c) a sociedade administradora é investida do poder-dever de administrar essa carteira, incluindo o poder de disposição sobre os bens que a compõem, desde que para atender as finalidades do fundo.

127 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 199. 128 CHALHUB, Melhim Namem. Trust: Perspectivas do direito contemporâneo na transmissão da propriedade para administração de investimentos e garantia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2001, pp. 91, 93, 95-96 e 99-100.

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103

O negócio fiduciário em sentido strictu iniciou sua jornada no direito pátrio

com propósito de constituição de garantia, previsto no art. 66 da Lei 4.728/65 (Lei de

Mercado de Capitais)129 e, em seguida, no Decreto-Lei 911/64. Outros institutos,

entretanto, conhecidos há bom tempo em nosso sistema, têm-se prestado ao

atingimento de finalidades semelhantes às do trust. É o caso do fideicomisso,

previsto no art. 1.733 do CC/16130 e no art. 1.951 do CC/02131. O fideicomisso,

igualmente fonte de inspiração para o patrimônio de afetação, guarda no Brasil, nos

dias de hoje, a aplicação inicial que fez surgir o trust, relacionada com a

administração de heranças e criação de propriedade resolutiva em favor de terceiros

indicados pelo testador.

Ainda, antes mesmo de sua introdução pela via da incorporação imobiliária,

em que pese a menor aproximação, o patrimônio de afetação já encontrava similar

no direito brasileiro em outros institutos tradicionais como, por exemplo, o encargo a

que ficam sujeitos os bens representados pela massa falida, os bens da pessoa

ausente e do tutelado, os bens das fundações, a herança quanto às dívidas do

falecido e às despesas do inventário, os bens gravados com cláusula de usufruto,

inalienabilidade ou indisponibilidade e o próprio bem de família.

Em todos esses exemplos há uma massa patrimonial que, em maior ou

menor grau, é tida e administrada com objetivos específicos, permanecendo

inatacável por credores outros que não tenham seu crédito originado de relação

jurídica que se relacione à existência, formação e manutenção desse “patrimônio

afetado”.

Em recentes diplomas legais brasileiros, o negócio fiduciário foi previsto com

escopo de investimento por meio de criação de patrimônios de afetação atinentes ao 129 Consoante dá notícia CHRISTOPH FABIAN, em que pese sua inserção no sistema de direito positivo da civil law ser recente, “na perspectiva histórica, o negócio fiduciário aparece como um instituto que existiu já no direito romano de forma elaborada e aplicada em várias situações, mas que caiu em esquecimento, simplesmente desapareceu, e começou a voltar, desde o séc. XIX com estrutura nova e, desde então, alargou o seu campo de aplicação até hoje”. (FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2007, p. 19). 130 “Art. 1.733. Pode também o testador instituir herdeiros ou legatários por meio de fideicomisso, impondo a um deles, o gravado ou fiduciário, a obrigação de, por sua morte, a certo tempo, ou sob certa condição, transmitir ao outro, que se qualifica de fideicomissário, a herança, ou legado”. 131 “Art. 1.951. Pode o testador instituir herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, em favor de outrem, que se qualifica de fideicomissário”.

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104 mercado financeiro. É o caso da propriedade fiduciária dos fundos de investimento

imobiliário132 (Lei 8.668/93) e os direitos creditórios decorrentes da securitização de

recebíveis imobiliários133 (Lei 9.514/97). Essas leis se referem ao patrimônio do

Fundo de Investimento e ao patrimônio que lastreia os Certificados de Recebíveis

Imobiliários como sendo de natureza fiduciária. E nestes dois exemplos, há uma

pessoa (fiduciário) gerindo determinado patrimônio em benefício de outrem

(fiduciante). Não obstante o patrimônio pertencer ao fiduciário, sua administração se

dá no interesse do fiduciante, para atingir objetivos determinados, que no caso são

de investimento.

Acentuando o interesse prático do instituto, por obra do atual Código Civil o

negócio fiduciário fora consagrado com certo grau de generalidade mas com espoco

exclusivo de garantia (art. 1.361 e sgts), relacionado a bens móveis.

132 “Art. 1º Ficam instituídos Fundos de Investimento Imobiliário, sem personalidade jurídica, caracterizados pela comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, na forma da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, destinados a aplicação em empreendimentos imobiliários”. “Art. 6º O patrimônio do Fundo será constituído pelos bens e direitos adquiridos pela instituição administradora, em caráter fiduciário. Art. 7º Os bens e direitos integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário, em especial os bens imóveis mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição administradora, bem como seus frutos e rendimentos, não se comunicam com o patrimônio desta, observadas, quanto a tais bens e direitos, as seguintes restrições: [...]”. (grifamos) 133 “Art. 9º. A companhia securitizadora poderá instituir regime fiduciário sobre créditos imobiliários, a fim de lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis Imobiliários, sendo agente fiduciário uma instituição financeira ou companhia autorizada para esse fim pelo BACEN e beneficiários os adquirentes dos títulos lastreados nos recebíveis objeto desse regime. [...] Art. 11. Os créditos objeto do regime fiduciário: I - constituem patrimônio separado, que não se confunde com o da companhia securitizadora; II - manter-se-ão apartados do patrimônio da companhia securitizadora até que se complete o resgate de todos os títulos da série a que estejam afetados; III - destinam-se exclusivamente à liquidação dos títulos a que estiverem afetados, bem como ao pagamento dos respectivos custos de administração e de obrigações fiscais; IV - estão isentos de qualquer ação ou execução pelos credores da companhia securitizadora; V - não são passíveis de constituição de garantias ou de excussão por quaisquer dos credores da companhia securitizadora, por mais privilegiados que sejam; VI - só responderão pelas obrigações inerentes aos títulos a ele afetados. (...) § 3º A realização dos direitos dos beneficiários limitar-se-á aos créditos imobiliários integrantes do patrimônio separado, salvo se tiverem sido constituídas garantias adicionais por terceiros. Art 12. Instituído o regime fiduciário, incumbirá à companhia securitizadora administrar cada patrimônio separado, manter registros contábeis independentes em relação a cada um deles e elaborar e publicar as respectivas demonstrações financeiras. Parágrafo único. A totalidade do patrimônio da companhia securitizadora responderá pelos prejuízos que esta causar por descumprimento de disposição legal ou regulamentar, por negligência ou administração temerária ou, ainda, por desvio da finalidade do patrimônio separado”. (grifamos)

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105

No tocante à incorporação imobiliária, a versão original da LCI previa que os

adquirentes poderiam concluir a obra em caso de insucesso do incorporador,

retirando, de maneira imperfeita, o empreendimento de seu domínio e poder de

gestão. Ante a realidade que se apresentou nas décadas de 1980 e 1990, editou-se

a Medida Provisória 2.221/2001 introduzindo o patrimônio de afetação. Todavia, a

Medida não foi convertida em lei; foi revogada pela Lei 10.931/2004, que melhorou

as disposições nela inicialmente previstas e introduziu o patrimônio de afetação de

maneira definitiva na atividade de incorporação imobiliária mediante a inserção, no

Título II da LCI, do “capítulo I-A. Do Patrimônio de Afetação” e seus respectivos arts.

31-A a 31-F. Também foram alterados o § 2º do art. 32, o inciso VII do art. 43 e o

caput e o § 2º do art. 50. Na sequência foi editada a Lei de Falência e Recuperação

de Empresas dispondo que, em caso de falência do incorporador, o patrimônio

afetado não é arrecadado pela massa (art. 119, IX, da Lei 11.101/2005), podendo

seguir a execução dos atos necessários ao cumprimento de seu objetivo.

Também acentuando a autonomia funcional das incorporações, a Lei

10.931/2004 criou (arts. 1º a 11) o “Regime Especial de Tributação – RET” para os

patrimônios de afetação, no âmbito federal, de adesão facultativa a critério do

incorporador. Por esse regime, o empreendimento em construção passa a ser

tributado de maneira separada da empresa incorporadora, como se empresa fosse,

nos termos134 do art. 1º. A tributação se dá mediante alíquota de 7% sobre base de

cálculo única representada pela receita mensal do empreendimento (valores

provenientes das vendas) e envolve o pagamento conjunto do “Imposto de Renda

das Pessoas Jurídicas – IRPJ”, “Contribuição para os Programas de Integração

Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP”,

“Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL” e “Contribuição para

Financiamento da Seguridade Social – COFINS”.

134 “Art. 1º. Para cada incorporação submetida ao regime especial de tributação, a incorporadora ficará sujeita ao pagamento equivalente a sete por cento da receita mensal recebida, o qual corresponderá ao pagamento mensal unificado dos seguintes impostos e contribuições”.

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106 III.3 NATUREZA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO

A doutrina tem repetido que o patrimônio de afetação nas incorporações

imobiliárias confere maior proteção aos consumidores, na medida em que estes

passam a ter uma “garantia” de que os recursos entregues ao incorporador como

forma de pagamento da aquisição ou promessa de aquisição de unidade imobiliária,

de fato serão aplicados na construção do empreendimento; evitando assim que

sejam desviados para honrar compromissos do incorporador que não tenham

relação direta com o empreendimento.

Como visto, há, na versão original da LCI, o reconhecimento implícito de que

a incorporação goza de autonomia funcional e que a preservação das clássicas

prerrogativas de proprietário atribuídas ao incorporador ou ao proprietário do terreno,

era desnecessária para o bom desenvolvimento da atividade e segurança dos

adquirentes, já que estes se tornam “proprietários progressivamente”, na medida em

que vão realizando os pagamentos previstos no contrato firmado135, no sentido de o

direito real das promessas de compra e venda registradas e a eficácia real daquelas

desprovidas de registros se potencializam a cada parcela de preço integralizada

pelos consumidores adquirentes.

Quando se refere ao patrimônio de afetação aplicado às incorporações

imobiliárias, em geral a doutrina o descreve como uma parcela menor do patrimônio

geral do incorporador, gravada pela execução de uma finalidade cujo atingimento é

administrado pelo incorporador sob a fiscalização dos adquirentes e do agente

financeiro que eventualmente tenha concedido crédito para a construção.

Não obstante, cabe uma reflexão diferente acerca do patrimônio de afetação

tal qual fora inserido na LCI, e, de consequência, sobre as prerrogativas e os limites

que tocam tanto ao incorporador quanto aos adquirentes na relação que mantêm

entre si, na relação com o próprio patrimônio afetado e também na relação que

mantêm com terceiros.

135 Escrevendo sobre as promessas de compra e venda, José Osório de Azevedo Júnior observara que “À medida em que o crédito vai sendo recebido, aquele pouco que restava do direito de propriedade junto ao compromitente vendedor, isto é, aquela pequena parcela do poder de dispor, como que vai desaparecendo até se apagar de todo”. (AZEVEDO JÚNIOR, José Osório de. Compromisso de compra e venda. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 7).

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107

Pois bem. Toda pessoa tem um patrimônio e todo patrimônio tem pelo menos

um titular. Em que pese haja alguma divergência, têm-se refutado a ideia de

patrimônio sem proprietário136. O patrimônio é, assim, repete a doutrina, uma

extensão da personalidade do sujeito de direito.

Para CLÓVIS BEVILAQUA o patrimônio é composto por todas as relações

jurídicas de natureza patrimonial de uma pessoa, que é o seu titular. CAIO MÁRIO

DA SILVA PEREIRA137 acrescenta que nele se incluem tanto as obrigações

passivas quanto as ativas e que todo patrimônio é marcado pelos princípios da

unidade e da indivisibilidade, vale dizer, cada pessoa tem um único patrimônio que,

por ser único, é também indivisível. O ilustre autor refuta, assim, os casos “em que

parece ocorrer a multiplicidade de patrimônios na mesma pessoa” e contesta a

opinião dada por DE PAGE, segundo quem seriam hipóteses de divisibilidade do

patrimônio “a comunhão parcial, as substituições fideicomissárias, as sucessões

anômalas, a falência, etc”. Para CAIO MAIO, todavia, e com razão, não há, nesses

casos, “pluralidade ou divisibilidade de patrimônio. O que há é a distinção de bens

de procedência diversa no mesmo patrimônio. No mesmo patrimônio, acervos

distintos pela origem ou pela destinação”.

Discorrendo sobre a teoria da afetação patrimonial, ORLANDO GOMES138

afirma que “a idéia de afetação explica a possibilidade da existência de patrimônios

especiais. Consiste numa restrição pela qual determinados bens se dispõem, para

servir a fim desejado, limitando-se, por este modo, a ação dos credores”. Já CAIO

MÁRIO DA SILVA PEREIRA139 considera haver nessa teoria um caráter de novidade

na medida em que rompe com ideia de que o devedor responde pelo pagamento de

suas dívidas com todo seu patrimônio presente e futuro (art. 591 do CPC),

ressalvados aqueles ditos impenhoráveis por força de lei (art. 649 do CPC).

Entretanto, os princípios da unidade e da indivisibilidade do patrimônio seguem

136 Exceção referida pela doutrina encontra-se no art. 1.261 do Código Civil do Quebec, província do Canadá, que assim dispõe: “O patrimônio fiduciário, formado por bens transferidos em fidúcia, constitui um patrimônio de afetação autônomo e distinto deste do constituinte, do fiduciário ou do beneficiário, sobre o qual nenhum deles tem direito real”. 137 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª Ed., 2005, p. 391. 138 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 203. 139 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. I. 21 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 400.

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108 inabalados. Com efeito, o fato de alguns bens, integrantes do patrimônio total,

responderem apenas por uma parte das dívidas de seu titular enquanto os outros

bens podem responder por todas elas, não implica dizer que sejam dois patrimônios

separados na medida em que seu titular segue sendo o mesmo, projetando sua

personalidade sobre toda a gama de relações jurídicas de que participa, mesmo

sobre aquelas vocacionadas ou afetadas para o atingimento de determinado

objetivo.

A expressão “patrimônio de afetação”, com a conotação que é dada na

atividade de incorporação de imóveis, traduz, isto sim, os contornos de uma da

relação jurídica, sua causa ou motivo e a res que ela envolve. Parece tecnicamente

impróprio aludir a um “novo patrimônio”. Na verdade, o patrimônio segue uno e

indivisível do ponto de vista de seu titular porque e a relação jurídica se mantém

ligada ao sujeito ou sujeitos de direito, alterada, porém, pela modificação de seu

conteudo no que toca à parte afetada.

Pesam sobre o patrimônio de afetação das incorporações imobiliárias direitos

pessoais, reais ou com efeitos reais atribuídos aos adquirentes e ao incorporador.

Esse patrimônio de afetação não se resume à afirmação de que seja apenas uma

parte do patrimônio geral do incorporador gravada pela persecução de uma

finalidade. Há, isto sim, uma alteração no direito de propriedade dos bens e direitos

vinculados à incorporação, representada pela atribuição de direitos reais e pessoais

com ou sem efeitos reais aos adquirentes. Essas alterações se traduzem justamente

pela existência de uma propriedade fiduciária . Conforme observa CHRISTOPH

FABIAN140, “em geral, uma pessoa tem um patrimônio que, por sua vez, tem um

titular. Em algumas – mas não todas – formas das relações fiduciárias, porém, a

situação patrimonial é diferente: os bens em fidúcia constituirão um patrimônio

separado”.

Com a inserção do regime de afetação pela Lei 10.931/2004, têm-se uma

alteração na estrutura do direito de propriedade que o incorporador exercia sobre o

terreno, acessões e demais direitos vinculados à obra. Essa alteração se opera

mediante sua divisão entre o incorporador e os adquirentes ou potenciais

adquirentes, seguida de atribuição de uma obrigação e de um poder de gestão

140 FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 51.

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109 conferido ao incorporador (um poder-dever) tendente a armá-lo com os meios

necessários para que cumpra a obrigação de promover a construção, gerindo

interesses que são seus e dos adquirentes, aproximando assim o conceito de

incorporador à de administrador dotado de know how para levar a cabo uma obra

mesmo que não disponha de todos os recursos para tanto necessários, mesmo sem

ser proprietário pleno da incorporação. Essa alteração no direito de propriedade é

justamente um reflexo da função social no caso concreto, no sentido de que os

poderes sobre a coisa ultrapassam os interesses do incorporador proprietário para

favorecer terceiros não proprietários como forma de atingir uma dada finalidade, no

caso a conclusão do empreendimento141.

Frequentemente lembrada e estudada no Brasil como forma de constituição

de garantia (a conhecida alienação fiduciária do DL 911/69), a fidúcia também pode

servir com o fim especial de exploração econômica de um bem ou de

investimento142. Essa alteração estrutural do direito de propriedade, além daquele

escopo de gestão, tem também uma característica de fidúcia de garantia na medida

em que limita o domínio do incorporador sobre as receitas e sobre o terreno

141 Neste sentido FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA: “A extensão dos poderes proprietários, na propriedade funcionalizada, é medida através da relação concreta entre proprietários e não-proprietários. A função social enriquece a propriedade, porque confere ao exercícios dos poderes proprietários valor que ultrapassa a relação entre o proprietários e a coisa. A funcionalização valoriza a utilidade individual e coletiva proporcionada pelo uso do bem, direcionando para o objetivo finalístico traçado pelo ordenamento jurídico”. (OLIVEIRA, FRANCISCO, Cardozo Oliveira. Hermenêutica e tutela da pose e da propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 243). 142 A fidúcia como gênero pode envolver manifestações diversas, com conteudos diversos, mas sempre estruturada em torno das prerrogativas de uso, gozo, fruição e disposição do bem. Assim, não há absoluta correspondência, por exemplo, entre a fidúcia germana, a francesa, clássica romana, ou a anglo-americana (Cfr. MARIA TOMÉ e DIGO DE CAMPOS (A propriedade fiduciária...), FABIAN CHRISTOPH (Fidúcia...) e MELHIM NAMEM CHALHUB ( Negócio fiduciário...). Neste sentido, calha transcrever observação de JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, que faz perceber maior aproximação entre o patrimônio de afetação nas LCI e a fidúcia germânica do que a fidúcia romana: “Se é certo que há autores que pretendem distinguir na propriedade que se transmite ao credor por força de negócio fiduciário, a propriedade formal que pertenceria ao fiduciário e a propriedade material que seria o fiduciante, é também indubitável que os juristas atualmente, em maioria esmagadora, salientam que a propriedade fiduciária transferida por negócio fiduciário ao credor, para garantir-lhe o crédito, não difere estruturalmente do direito de propriedade que, sem tal escopo, se transmite ao adquirente. Em se tratando de negócio fiduciário do tipo romano, a propriedade fiduciária é a propriedade plena, tanto que o credor pode aliená-la a terceiro, sem que o devedor, ao pagar a divida, tenha outro direito contra ele que não o exigir perdas e danos por não poder o credor retransferir-lhe a coisa como se obrigou pelo pactum fiduciae; e contra o terceiro nenhum direito assiste ao devedor. Em caso de negócio fiduciário do tipo germânico, a propriedade fiduciária que dele resulta nada mais é do que uma propriedade limitada, porque subordinada a condição resolutiva (o pagamento do débito pelo devedor), motivo por que, se o credor, antes de ocorrida a condição, a transferir a terceiro, este a adquirirá também como propriedade resolúvel, perdendo-a para o devedor, se a dívida for solvida”. (ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.155).

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110 obrigando-o à prática de atos que digam respeito apenas aos interesses da obra,

preservando assim os interesses pessoais e reais dos adquirentes.

Mesmo antes das alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004, aos direitos

dos adquirentes já eram reconhecidos efeitos reais ou “quase-reais” a despeito de

classicamente se enquadrarem com relações de natureza pessoal com efeitos inter

parts. Citam-se, como exemplos, a sobreposição absoluta dos direitos pessoais com

efeitos dos adquirentes sobre os direitos reais representativos de garantia

hipotecária constituída sobre o terreno e suas acessões (Súmula 308 do STJ); e a

possibilidade de oposição de embargos de terceiro e o reconhecimento da eficácia

dos contratos de promessa de compra e venda ainda que desprovidos de registro

(Súmula 84 do STJ).

Caso de patrimônio afetado a que a lei de forma explicita se refere como

sendo caso de “propriedade fiduciária”, são os Fundos de Investimento Imobiliário143.

Além desse caso, há também o Projeto de Código de Obrigações de 1965, que por

seu art. 675, dispunha sobre o contrato de fidúcia sob forma de patrimônio separado

nos seguintes termos: “Os bens objeto da fidúcia constituem patrimônio separado e

serão administrados de acordo com as instruções prescritas pelo instituidor e, na

falta destes, com a diligência o homem de negócios legal e honesto”.

Deve-se atenção, todavia, para que não se generalize ao ponto de enquadrar

todo e qualquer “patrimônio de afetação” em regime de propriedade fiduciária. Uma

rápida consulta à doutrina passa uma ideia geral segundo a qual patrimônio de

afetação seria qualquer bem, relação jurídica ou parcela de patrimônio que estivesse

vinculada ao atingimento de uma finalidade qualquer. Mas essa mesma noção geral

passa ao largo da tese que ora se põe quando alude, por exemplo, ao bem de

família como propriedade fiduciária só porque destinado a servir de moradia, ou à

massa falida só porque destinada a satisfazer as obrigações do falido144. A par

disso, têm-se em consideração o fato de não haver uma teoria sólida que defina a

143 Sobre a propriedade fiduciária nos Fundos de Investimento Imobiliário escreveu CHRISTOPH FABIAN: “Na área das relações fiduciárias, o patrimônio de afetação existe no caso dos Fundos de Investimento Imobiliário (art. 7º, da Lei 8.668, de 25.6.1993). Há uma separação nítida entre a massa fiduciária e a massa geral da administradora (fiduciária). As duas massas não se comunicam entre si, não devem se juntar e a massa fiduciária não responde por obrigações da administradora. Os credores pessoas da fiduciária não podem penhorar os bens afiduciados”. (FABIAN, CHRISTOPH. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 61). 144 Cfr. FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 57.

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111 natureza jurídica do instituto do patrimônio de afetação, as posições ocupadas pelos

sujeitos de direito. Há, isto sim, casuísmo com que a legislação de diversos países

tratam o instituto, com identidade de nomem iuris mas com diferenças quanto à

natureza jurídica145, conforme CHRISTOPH FABIAN:

A doutrina utiliza várias denominações para esta forma de patrimônio, como “patrimônio separado”, “autônomo” ou de “afetação”. Também, os ordenamentos jurídicos estrangeiros não utilizam o mesmo conceito. Na doutrina francesa, por exemplo, aplica-se o termo “affectacion” enquanto o legislador argentino prefere o termo “separado” e no direito alemão predomina o termo “sonderermöge” (patrimônio especial). Nós não sobrevalorizamos as diversas denominações, pois consideramos que uma abordagem sobre o patrimônio separado não deve ser elaborado através de conceitos. Também, o conceito dos termos mencionados não reflete maiores diferenças.

No caso da LCI, as alterações operadas pela Lei 10.931 de 2004 permitem

concluir sobre sua natureza de propriedade fiduciária na incorporação.

A adoção do regime de afetação patrimonial não é obrigatória, decorre de

declaração unilateral de vontade do incorporador (caput do art. 31-A e § 10). Mas se

o incorporador adotá-la, a disponibilidade sobre o terreno, sobre as acessões e

demais direitos vinculados à incorporação ficarão destinados à consecução da obra

correspondente. Feito o registro a propriedade sobre esses bens é imediatamente

modificada, porque, nos termos do art. 31-A, caput, manter-se-ão “apartados do

patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação”. Esses bens,

então, não mais se comunicarão “com os demais bens, direitos e obrigações do

patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele

constituídos” e só responderão “por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação

respectiva” (§ 1º do art. 31-A). Ainda, só poderão ser objeto de garantia real em

operações cujo financiamento concedido seja integralmente aplicado na construção

do empreendimento e na entrega das unidades aos adquirentes (§ 3º do art. 31-A).

Todos os recursos financeiros gerados em função da incorporação (vendas e

obtenção de financiamento concedido por agente financeiro, v.g.), ficam afetados de

modo a que só possam ser utilizados “para pagamento ou reembolso das despesas

inerentes à incorporação” (§ 6º do art. 31-A).

145 FABIAN, CHRISTOPH. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, pp 53-54.

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112

Tanto se modificam os direitos do incorporador sobre a incorporação (terreno,

acessões, recebíveis creditórios, etc), que só se excluem da afetação, podendo

então por ele serem apropriados, os recursos financeiros que excederem a

importância necessária à conclusão da obra e à quitação do financiamento

eventualmente concedido para a construção (art. 31-A, § 8º, I). Este será,

propriamente, o lucro do incorporador, que pode ou não existir.

Do terreno, que era propriedade sua ou de um terceiro antes do registro da

afetação, restará apenas a possibilidade de receber pelo preço da venda de suas

frações (§ 7º, art. 31-A) para posterior aplicação das quantias recebidas diretamente

na incorporação. E se não houver quem compre as unidades, se o incorporador falir

ou entrar insolvência ou se ele for destituído (art. 43, VII), o patrimônio de afetação,

aí incluídos o terreno e as acessões, deverá ser liquidado para honrar apenas as

dívidas da incorporação afetada ou para que tenha continuidade com os adquirentes

gestionando o término da obra.

O patrimônio de afetação continua patrimônio de titularidade (formal) do

incorporador, que dele ainda pode dispor desse patrimônio, mas não em

consideração de interesses próprios e exclusivos seus. Deverá se atentar também

para os interesses dos adquirentes, do eventual agente financeiro e, de um modo

geral, de todos que tenham se tornado credores ou devedores em decorrência de

atos e negócios jurídicos praticados em consideração à incorporação afetada.

Conforme observa CHRISTOPH FABIAN146, “o patrimônio de afetação qualifica-se

pela sua finalidade e não mais, como no caso do patrimônio unitário, pelo seu titular.

A pessoa que se relaciona com este patrimônio de afetação somente “empresta” a

sua titularidade”147. Tratando dessa mesma questão com alusão a “titularidade

formal e substancial, como expressão da função social da propriedade no direito

atual, escreve PIETRO PERLINGIERI:

Titularidade formal e substancial. [...] Ela [a distinção] inspira-se na quantidade de poder que um determinado sujeito tem e é relevante, sobretudo, na teoria dos direitos reais e, especialmente, da propriedade. Esta última situação é a mais idônea para descrever a referida distinção: sucede freqüentemente que a um sujeito seja reconhecida a titularidade (formal) da situação enquanto que o conjunto de poderes e faculdades que constituem o seu conteúdo seja atribuído a outros, ou mesmo seja excluído

146 FABIAN, Christoph. Fidúcia: negócios fiduciários e relações externas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007, p. 57. 147 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 109-110.

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113

por lei. Existem hipóteses nas quais um sujeito é, para determinados fins, ainda considerado proprietário, titular (formal) da situação proprietária, mas se encontra privado, por vezes irreversivelmente, dos direitos ou dos poderes característicos daquela propriedade. {...}. Vice-versa, há quem assume substacialmente os poderes e os direitos – ou de qualquer jeito, a maior parte deles – que são típicos do proprietário, apesar de não o ser. Nesta hipótese tem-se uma titularidade substancial.

O incorporador, então, é titular da coisa comum apenas para fins de

administrá-la, apondo sua titularidade sobre ela, mediante anotação no registro

imobiliário. Às restrições criadas para incorporador em relação aos bens que antes

do registro da afetação eram plenamente seus, corresponde a perda parcial dos

poderes inerentes ao domínio. O terreno, as acessões e os direitos vinculados à

construção tanto não lhe pertencem como propriedade plena que, por força o art. 31-

A, § 8º, I, o incorporador só recebe com domínio exclusivo, fora do regime de

afetação, portanto, os recursos gerados pela atividade que sejam superiores ao

necessário para concluir o empreendimento.

É digno de nota observar que o patrimônio de afetação opera uma

modificação profunda no direito de propriedade. Com efeito, ele não se limita a

produzir uma divisão compartilhada nos poderes do proprietário haja vista que, ao

separar propriedade em forma e propriedade em substância, o patrimônio de

afetação extingue parcela da propriedade do incorporador na exata medida em que

a transfere aos adquirentes. O incorporador tem o poder de gerir lato sensu o

patrimônio afetado, praticando todos os atos de administração e de disposição que

se afigurem necessárias. Contudo, não tem o poder de uso nem o de colher os

frutos do corpus como se ele existisse para si. Também não tem o poder de destruí-

lo materialmente porque o bem já não lhe pertence. Trata-se de uma propriedade

tão especial que nunca chega a compreender o usus, o fructus, ou o abusus, já que

adstringe o incorporador a ter como propriedade exclusiva apenas o lucro da

atividade representado pela diferença positiva entre o valor das vendas das

unidades imobiliárias e o custo para a conclusão do empreendimento.

A atribuição de natureza de propriedade fiduciária sobre a incorporação

afetada pode ensejar dúvidas quanto à sua adequação a princípios estruturantes do

civil law, concernentes aos poderes de uso, gozo, disposição e reivindicação

atribuídos ao titular de direito de propriedade, à publicidade dos direitos reais, à sua

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114 taxatividade (numerus clausus) e tipicidade148 e também à separação rígida entre

direitos reais e direitos pessoais.

Sob uma lógica dogmática típica das grandes codificações da civil law, uma

das barreiras que se erguem diz respeito à impossibilidade de dividir o direito de

propriedade em “direito em forma” e “direito em substância” entre duas ou mais

pessoas, cindindo assim um direito (o de propriedade) que em princípio é absoluto e

pertence apenas a um proprietário. Quanto a isto não parece haver dificuldade

porque essa divisão entre forma e substância decorre das próprias alterações

introduzidas na LCI. Não se trata, portanto, de contornar o princípio da taxatividade

dos direitos reais. Quando muito, a questão poderia ser situada no campo da

tipicidade, vale dizer, no quadro de permissividades que o princípio da taxatividade

oferece para manipulação da autonomia da vontade. Nesse sentido é que se

enquadraria a possibilidade de a incorporação ser ou não submetida ao regime de

afetação por decisão unilateral do incorporador.

Demais disso, como visto, o próprio direito romano-germânico contempla

tradicionalmente diversas figuras jurídicas que comportam a distribuição de poderes

típicos de proprietário entre mais duas ou mais pessoas, com maior ou menor

intensidade como é o caso, por exemplo, do usufruto.

Com efeito, a natureza jurídica de propriedade fiduciária não é uma

consequência pura da autonomia da vontade, mas sim decorrência de previsão

legal. Em que pese a Lei 10.931/2004 não faça referência expressa à existência, no

caso, de propriedade fiduciária, as alterações que ela introduziu na LCI descrevem

direitos e obrigações e modificam os contornos do direito de propriedade, o que

basta para que se possa cogitar de sua verdadeira natureza jurídica que, como é por

demais sabido, sobreleva o nomem iuris ou a falta de sua indicação pelo texto

legal149. Com efeito, é tarefa do interprete dizer da natureza das coisas sob pena de

148 Porque em geral são tratados como uma coisa, importante distinguir taxatividade e tipicidade dos direitos reais conforme alerta de GUSTAVO TEPEDINO: “Por quanto interessa ao presente trabalho, basta apenas registrar que o princípio do numerus clausus se refere à exclusividade de competência do legislador para a criação de direitos reais, os quais por sua vez, possuem conteúdo típico, daí resultando um segundo princípio, corolário do primeiro, o da tipicidade dos direitos reais, segundo o qual o estabelecimento de direitos reais não pode contrariar a estruturação dos poderes atribuídos ao respectivo titular. Ambos os princípios, tratados indiferentemente pela civilística brasileira, embora se apresentem aparentemente coincidentes, diferenciam-se na medida em que o primeiro diz respeito à fonte do direito real e o segundo à modalidade de seu exercício”. (TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária . São Paulo: Saraiva, 1993, p. 82). 149 Cfr. ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 155-156.

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115 se impedir a investigação científica acerca do conteudo das descrições normativas.

Sobre o assunto já observou a doutrina150

[...] que o legislador não se reservou a prerrogativa de qualificar como reais determinados direitos: esse papel compete ao intérprete. A lei – e só ela – pode criar direitos reais e o intérprete – e só ele – pode, face aos dados legais, decidir se determinada figura integra ou não o numerus clausus imposto pelo Cód. Civil. O intérprete é livre de integrar no conceito de direito real situações que o legislador não qualificou expressamente como tais, e que porventura não considerou sequer figuras autônomas de direito subjectivo, mas a que atribuiu o regime jurídico correspondente aos direitos reais. Com efeito, afigura-se necessário distinguir claramente a criação de novas figuras de direito real, da qualificação como reais de certas situações estabelecidas por lei. A tipicidade taxativa não implica um monopólio legal na qualificação de direitos reais. O intérprete pode incluir nesta categoria qualquer situação, desde que nela encontre os seus traços essenciais. [...] Por outro lado, a interpretação extensiva é perfeitamente admissível no âmbito do direito das coisas e é admitida, nomeadamente, na interpretação das descrições legais dos direitos reais. A tipologia taxativa não impede que se admitam modificações dos direitos reais. Efectivamente, o direito real tem todo um conteúdo acessório, que é vastamente moldável pelas partes, mediante a substituição de disposições supletivas. Esse conteúdo é estranho à descrição fundamental em que consiste o tipo; faz parte do direito real, mas escapa ao objectivo subjacente ao numerus clausus. A tipologia taxativa dos direitos reais não exclui que estes sejam na ordem jurídica portuguesa tipos abertos. [...]

Também não impressiona como barreira à tese, o fato de a incorporação em

geral se iniciar sem que a propriedade fiduciária esteja composta de um lado pelo

incorporador e, de outro, pelos adquirentes151. É que, no caso, a relação fiduciária se

forma de maneira progressiva na medida em que consumidores vão a ela aderindo

ao firmarem contratos relativos à aquisição das unidades. Registrada e tornada

pública a afetação, o incorporador anuncia no mercado a possibilidade de aquisição

mediante adesão, pelos consumidores, ao regime fiduciário. Enquanto as frações

não são vendidas, elas e suas respectivas acessões seguem em regime fiduciário

sob total administração do incorporador e como tal favorecem aqueles que já

tenham firmados contratos com o incorporador na medida em que não poderão ser

150 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, p. 287, nota 590. 151 Comparativamente ao trust, cumpre recordar que o settlor, nos private trusts, pode constituir seus próprios bens em trust elegendo a si próprio como trustee (administrador) dos bens.

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116 destacadas do regime fiduciário (afetação) para que um outro propósito lhes seja

dado senão o de verter recursos para a obra152.

A propriedade da incorporação afetada tanto não é exclusiva do incorporador

que o § 2º do art. 31-A prevê que este “responde pelos prejuízos que causar ao

patrimônio”, vale dizer, ele responde pelos danos causados a um patrimônio que é

comum entre ele e os adquirentes. Fosse patrimônio exclusivo do incorporador, não

haveria razão para que fosse obrigado a reparar dano que, nesta hipótese, seria a

um patrimônio próprio.

Corolário da propriedade dos adquirentes, o art. 31-C e o art. 31-D, III, VI e

VII, garantem-lhes o direito de fiscalizar o patrimônio de afetação, revelando assim

um interesse que não diz respeito apenas ao cumprimento de um contrato especifico

firmado entre um determinado adquirente e o incorporador, mas sim a todas as

relações jurídicas que possam de alguma maneira afetar o empreendimento.

Quiçá os dispositivos que mais deixem em evidência a natureza dos direitos

dos adquirentes sejam o art. 31-F e seus parágrafos. Por eles se chega à conclusão

de que os adquirentes são responsáveis, junto com o incorporador, pela conclusão

da obra e pagamento dos credores que em função dele como tal tenham se

constituído. Esses dispositivos demonstram que os adquirentes deixaram de ser

meros consumidores de uma relação jurídica de natureza pessoal para se tornarem

donos da obra por direito de propriedade constituída de forma fiduciária e com

propósito de administração atribuída ao incorporador em seu próprio nome e em

nome dos adquirentes.

Se o incorporador falir, entrar em insolvência, paralisar ou retardar

injustificadamente a obra, o juiz da falência ou da insolvência, os adquirentes

deverão decidir se concluem a obra sem a participação do incorporador aportando

todos os recursos para tanto necessário, ou se deixam-na inacabada e assim

liquidam o patrimônio de afetação mediante venda do terreno e das acessões

seguida pelo pagamento dos credores do patrimônio afetado.

Se decidem concluí-la, os adquirentes ficam obrigados a honrar todas as

obrigações que o incorporador carreou para o âmbito do patrimônio afetado como,

152 A propósito da multiplicidade de direitos reais presentes na afetação patrimonial e forma que eles se combinam entre si e também com direitos obrigacionais com o propósito de conferir autonomia funcional à incorporação com poderes de passíveis de serem exercidos pela comissão de representantes, calha a classificação de José de Oliveira Ascensão, entre direitos reais simples e direitos reais. (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: direitos reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 166-168).

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117 por exemplo, o contrato de financiamento firmado com o agente financeiro, a mão-

de-obra empregada na construção e, quiçá, até mesmo obrigações constituídas de

forma fraudulenta contra o patrimônio afetado (§§ 11 e 12 do art. 31-F). Concluída a

obra e quitadas essas obrigações, só então os adquirentes receberão suas unidades

desoneradas das dívidas constituídas no âmbito do patrimônio de afetação.

Mas se, por razões as mais diversas, dentre elas o custo, os adquirentes

decidam não concluir a construção, restará a eles vender o terreno e as acessões e,

em seguida, pagar os credores do patrimônio afetado segundo a ordem de

preferências estabelecida (§§ 14 e 18 do art. 31-F). E mesmo se os recursos forem

mais que suficientes para honrar as dívidas afetadas, os adquirentes nada

receberão: terão de entregar o saldo à massa falida e perante ela se habilitarem.

Ora, se os adquirentes não são considerados credores do patrimônio de afetação ao

lado do agente financeiro, do proprietário do terreno, dos empregados, dentre

outros, é porque na verdade os adquirentes são proprietários e como tal não podem

ser “beneficiados” com o produto da venda da coisa que já é sua e que se encontra

onerada153.

Alijados de sua condição de consumidores tecnicamente hipossuficientes, que

poderiam reclamar do incorporador a entrega de suas unidades prontas e acabadas

sem que fossem preteridos, v. g., em favor do direito de crédito do “dono da loja de

materiais de construção” ou do agente financeiro e credor hipotecário (Súmula 308

do STJ); com o patrimônio de afetação os adquirentes passaram à condição de

proprietário fiduciário e dono da obra, ainda consumidores perante o incorporador,

mas responsáveis perante os credores do patrimônio afetado. Assim, de um lado, os

adquirentes são consumidores perante o incorporador e dele recebem uma garantia

fiduciária de que os recursos não são desviados; de outro, perante os credores do

patrimônio, são devedores.

Fosse o caso de manter os adquirentes em uma relação jurídica de natureza

pessoal, não haveria motivo para tirá-los da condição de consumidor perante o

agente financeiro, por exemplo, para colocá-los ao lado do incorporador como co-

responsáveis pelo pagamento da hipoteca.

153 Evidente a distorção criada para o conceito de consumidor. A proteção oferecida pelo patrimônio de afetação para os momentos de crise do incorporador, em nada favorecem os adquirentes, deixando muito a desejar frente à versão original da LCI.

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118

III.4 PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO E SEUS CREDORES

Consoante já referido, no tocante às incorporações imobiliárias, a teoria da

afetação sugere que os bens de uma determinada incorporação, tais como o

terreno, as acessões e os recebíveis decorrentes da comercialização de suas

frações ideais, fiquem vinculados para que o objetivo maior seja alcançado, qual

seja, a conclusão do empreendimento, entrega das unidades imobiliárias e

pagamento dos credores que tenham relação com a incorporação. Assim, por

exemplo, o desvio desses recebíveis para outros objetivos que não seja a quitação

de obrigações nascidas de atos necessários a conclusão do empreendimento

implicaria desvirtuamento da teoria da afetação. Nisto a doutrina é unânime: o

patrimônio de afetação só responde por obrigações que dele próprio tenham se

originado. Neste sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB154 teoriza:

Por efeito da afetação, as receitas provenientes de cada patrimônio de afetação são reservadas para exclusivo cumprimento das obrigações vinculadas à incorporação respectiva, vedado o desvio de recursos de um empreendimento para outro ou para o patrimônio geral do incorporador. [...] A afetação patrimonial protege os credores vinculados à incorporação, entre eles os adquirentes das unidades imobiliárias, os trabalhadores da obra, o fisco, a previdência, a entidade financiadora, os fornecedores, etc. Via esse regime assegurar a conclusão da obra e a entrega das unidades aos adquirentes e, para esse fim, estes podem assumir a administração da incorporação em caso de atraso injustificado da obra ou em caso de falência; considerando a incomunicabilidade do patrimônio de afetação, os adquirentes, ao assumir a administração, estarão obrigados a destinar as receitas da incorporação exclusivamente ao pagamento dos seus próprios débitos, vedada sua utilização para pagamento de débitos não vinculados à incorporação, entre eles, os decorrentes das atividades gerais da empresa incorporadora.

Estabelecida essa larga premissa pode-se dizer que os bens componentes do

patrimônio afetado são impenhoráveis. Credores do incorporador que não tenham

relação com a afetação não poderão penhorar sequer as frações ideais de terreno

que eventualmente estejam registradas em seu nome porque elas, na verdade, não

lhe pertencem. Pertencem sim à afetação, em favor de quem devem ser convertidas

154 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, pp. 68-69.

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119 em recursos para serem aplicados na obra. Logo, quem, além de estar penhorando

indevidamente a fração, levar a cabo eventual leilão, adjudicação ou qualquer outra

forma de venda judicial, ficará obrigada a pagar os custos da construção que toquem

à fração de terreno. Não fosse desta forma, seria o caso de se cogitar que uma

minoria de dois adquirentes sejam obrigados a concluir a obra apenas porque as

frações ideais restantes foram transferidas de maneira quitada para credores do

incorporador. Claro que o incorporador “responde pelos prejuízos que causar ao

patrimônio de afetação” (art. 31-A, § 2º), mas isto não implica dizer que as unidades

do empreendimento podem ser desvinculadas da afetação sob pena de frustrar-se a

própria lógica do sistema instituído pela Lei 10.931/2004.

Enquanto o incorporador administra o patrimônio afetado e também o seu

patrimônio geral cumprindo todas as obrigações inerentes a cada um deles;

enquanto ele leva a termo a construção, quita todas as obrigações trabalhistas,

fiscais e todos os fornecedores que tenham vendido material utilizado na obra, quita

o preço do terreno e também o financiamento bancário concedido para alavancar

recursos necessários à construção até que a comercialização das unidades gerasse

recurso em volume; a incorporação imobiliária afetada não enfrentará problema

algum. Não há questionamentos, já que nestas circunstâncias todos receberam o

que de direito. Coisa bem diversa ocorre quando a incorporação entra em colapso,

atrasando ou paralisando sem justificativa ou ainda em caso de falência ou

insolvência do incorporador. Quando isto ocorre, e em geral ocorre por insuficiência

de recursos, muitos credores do incorporador, dentre eles os adquirentes das

unidades em construção, terão seus direitos frustrados. Empregados não recebem

seus salários nem rescisões, tributos deixam de ser recolhidos, fornecedores deixam

de pagos. Em geral a doutrina tem mencionado que a afetação patrimonial protege

os credores vinculados à incorporação, aí incluídos os consumidores, os

trabalhadores da obra, o fisco, o agente financiador, etc. Mas é preciso indagar mais

de modo a saber de fato quais são os credores com direito a serem satisfeitos com o

acervo que compõe o patrimônio de afetação. A Lei n° 10.931/2004 não tratou

suficientemente dessa questão e nem a doutrina.

É crucial que o incorporador administre a afetação com boa-fé e ética

empresarial, mantendo uma administração transparente, agindo com lealdade e

prudência ao tratar dos direitos e obrigações que se vinculam ao patrimônio de

afetação, atentando sempre para o dever de proteção que sobre ele recaia pela

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120 ocupação de uma função de administrador, de interesses alheios. Deve ele ter

sempre em conta que o patrimônio também pertence aos adquirentes numa

combinação de forças que legitima interesses de múltiplas pessoas, devendo, por

isto, atentar-se para a ocorrência de conflitos de interesses exclusivos seus com

interesses da afetação, evitando auferir vantagens que a administração da

incorporação lhe facilita. Neste ponto novamente calham as observações de MARIA

JOÃO RAMÃO CARREIRO VAZ TOMÉ e DIOGO LEITE DE CAMPOS155 acerca dos

deveres de gestão que o trustee tem frente ao trust que administrada em favor dos

beneficiários:

Conforme foi mencionado supra, o direito da administração fiduciária, o fulcro do moderno direito dos trusts, estabelece dois princípios fundamentais: o dever de lealdade e o dever de prudência. O primeiro obriga o trustee a administrar os bens única e exclusivamente no interesse do beneficiário e implementa aquela titularidade do beneficiário sobre os bens ou direitos constituídos em trust. O trustee é o legal owner dos bens ou direitos, mas apenas para seu gozo por parte do beneficiário. O dever de lealdade impede o trustee de celebrar negócios consigo mesmo que tenham por objecto os bens ou direitos em trust de um lado e, de outro, de se encontrar em situação de conflito de interesses adversa ao bom funcionamento do trust. Por seu turno, o dever de administração prudente consagra um critério de razoabilidade, comparável àquela do bom pai de família do direito da responsabilidade civil. Trata-se de um padrão objectivo de diligência que coloca o trustee “under a duty to the beneficiary in administering the trust to exercise such care and skill as a man of ordinary prudence would exercise in dealing with his own property”. São muitas as normas sobre a administração fiduciária, como aquelas que regulam os deveres de guarda e de prestação de contas, de informação, de investimento ou de preservação dos bens em trust e de os tornar produtivos, de execução e de defesa de direitos, de diversificação dos investimentos e de minimização dos custos. Todas estas normas se subsumem, em último recurso, aos deveres da lealdade e de prudência e constituem meios de satisfação dos direitos eqüitativos do beneficiário. A combinação da ampla discricionaridade do trustee com estas normas sobre a administração fudiciária, que visam proteger o beneficiário contra eventuais abusos dessa mesma discricionaridade, constitui a segunda melhor solução para o problema da execução do negócio trust. A lealdade e a prudência, enquanto normas do trust fiduciary law, forma o regime supletivo da conduta do trustee.

Em caso de paralisação, retardamento injustificado da obra, falência ou

insolvência do incorporador, dispõe o art. 31-F e seu § 2º, que os credores por

“obrigações e encargos objeto da incorporação” não carecem de se habilitar junto à

massa, nem procurar receber seus créditos do incorporador mediante

direcionamento de suas pretensões sobre seu patrimônio geral, porque seus direitos

155 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 167-168.

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121 serão honrados com as forças do patrimônio de afetação, quer os adquirentes

decidam continuar a obra sem a participação do incorporador, quer decidam liquidar

o patrimônio vendendo-o sem concluir a obra (art. 31-F, §§ 1º e 7º).

Qualquer que seja a decisão dos adquirentes - conclusão da obra ou

liquidação do patrimônio de afetação -, a Lei n° 10 .931/2004 deixou evidente que os

direitos de crédito do agente financeiro que conceder empréstimo para a construção

há de ser pago (art. 31-F, § 11).

O § 18 do art. 31-F prevê que, uma vez liquidado o patrimônio de afetação, a

Comissão de Representantes deverá utilizar o produto de sua venda para quitar as

obrigações trabalhistas, previdenciárias e tributárias vinculadas ao patrimônio de

afetação segundo a ordem de preferência de direito material prevista na legislação

e, caso tenham os adquirentes realizado algum rateio para quitar qualquer dívida

dessa natureza, a preferência seguinte dirá respeito ao reembolso desses valores,

como que uma subrrogação na natureza do crédito (trabalhista ou fiscal) que os

adquirentes hajam quitado.

Em seguida a preferência a se quitar diz respeito aos valores que os

adquirentes, por meio do condomínio construtivo, houverem, por algum motivo156,

desembolsado para a construção das acessões de responsabilidade do

incorporador, prevista no § 6º do art. 35 e § 5º do art. 31-A. Ato contínuo, quita-se os

direitos do proprietário do terreno quando este não seja o próprio incorporador.

Por fim, se sobejarem recursos, dispõe o inciso VI do § 18, estes deverão ser

entregues à massa falida, sem que se faça qualquer previsão quanto aos valores

que os adquirentes pagaram pelas frações ideais e acessões realizadas ou não

(estas porque os respectivos recursos foram desviadas de sua finalidade pelo

incorporador). Aos adquirentes restará então se habilitar na massa, mesmo tendo

direitos vinculados e exercitáveis contra o patrimônio de afetação, mesmo tendo

vertido valores para ele.

A Lei 10.931/2004 também não faz nenhuma alusão aos demais credores do

patrimônio de afetação como, por exemplo, os fornecedores de material e os

156 A previsão, ao que parece, diz respeito à hipótese em que os adquirentes tenham pago valor superior ao necessário para que a obra atingisse o estágio em que se encontrar no momento da paralisação, o que leva a crer que o incorporador fez uso do excedente dos recursos pagos para quitar a parte das acessões que ainda eram de sua obrigação em razão de não ainda terem sido comercializadas, oportunidade que o custo por seu pagamento é assumido pelo novo adquirente.

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122 prestadores de serviço de modo a que, em caso de liquidação, seus créditos

possam ser perseguidos junto à massa falida.

Em sendo esta a forma preconizada para quitar os direitos cuja quitação deva

ocorrer por conta da afetação patrimonial, com desamparo total dos maiores

interessados (os adquirentes) e dos fornecedores e prestadores de serviço, haveria

desrespeito ao § 1º do art. 31-A, segundo o qual a afetação garante a quitação das

“dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva”.

Considerada a incongruência, a ordem de preferências prevista no § 18 do

art. 31-F deve ser completada mediante inserção do direito de reembolso dos

adquirentes pelos valores pagos ao incorporador e também o direito de recebimento

dos fornecedores de material utilizado na obra e dos prestadores de serviços.

Demais disso, a própria ordem preferências contida no referido § 18 não se

mostra correta em caso de liquidação do patrimônio de afetação, na medida em que

a instituição financeira deveria ter grau de preferência igual ao dos adquirentes pelos

valores vertidos em acessões de sua responsabilidade, assim como o grau de

preferência dos fornecedores de material e prestadores de serviço. Isto porque, a

garantia real do agente financeiro, prevista no § 3º do art. 31-A só prevalece se

acaso se consumar o objetivo da previsto no dispositivo, qual seja, “a entrega das

unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”. Uma vez frustrado este objetivo

por decisão de assembleia que opte por liquidar o patrimônio afetado, a garantia real

do agente financeiro perde essa natureza e passa à condição de garantia pessoal

em pé igualdade com o direito de reembolso dos adquirentes que, assim com o

agente financeiro, outra coisa não fizeram senão entregar recursos ao incorporador

que passaram a compor o patrimônio afetado assim como os recursos financiados

pelo agente financeiro.

Igualmente perde o caráter de direito real caso os recursos financiados pelo

agente financeiro não sejam integralmente empregados na construção do

empreendimento. Não basta, deve-se frisar, a mera previsão contratual constante do

contrato de empréstimo aludindo a que os recursos mutuados devam ser utilizados

na construção. No caso a destinação há de ser fática, comprovada

documentalmente, cabendo ao agente financeiro adotar auditoria contábil na

afetação e ainda vincular a liberação do empréstimo a pagamento que ele próprio

fará a credores comprovadamente vinculados a incorporação afetada.

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123

O patrimônio de afetação pode ser instituído mesmo depois de iniciada a obra

(art. 31-B) e, como tal, acabar servindo para prejudicar credores do incorporador

que, neste caso, não poderão dirigir suas pretensões sobre os recebíveis ou sobre

as unidades não comercializadas pelo incorporador. De todo modo,

Fica implícito que terceiros de boa fé estarão protegidos desde que comprovem haver sido instituído o patrimônio de afetação, quando já existentes obrigações e, tal instituição, tenha por fim driblar a expectativa de seus direitos, mesmo que estranhos à incorporação. Contudo, a casualidade desta concorrência, entre terceiros e adquirentes - todos em mesmo nível de boa fé -, tornar-se-á desafio para os Tribunais estabelecerem a quem atribuir preferência. Em qualquer caso, como ressalva o parágrafo 2o do citado artigo 31-A da Lei 4.591/64, fica o incorporador responsável pelos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação, quando então responderá pessoalmente com seus bens157.

Como visto, o incorporador responde com seus bens pessoais pelo prejuízo

que causar ao patrimônio de afetação. No entanto, a Lei 10.931/2004 não esclarece

a legitimidade para pleitear essa reparação. Considerada a inspiração conferida pelo

trust ao patrimônio de afetação, as seguintes providências lá adotadas aqui podem

ser empregadas, fazendo os adquirentes as vezes dos beneficiários do trust e o

incorporador a do trustee, conforme notícia de MARIA JOÃO RAMÃO CARREIRO

VAZ RAMÃO e DIOGO LEITE DE CAMPOS158:

O beneficiário tem igualmente o poder de exigir ao trustee a contabilidade devidamente organizada dos benefícios que lhe são devidos. Não sendo titular dos rendimentos actuais produzidos pelos bens ou direitos constituídos em trust, pode exigir a apresentação da sua contabilidade. Tem igualmente a faculdade de requerer a respectiva auditoria. Pode também exigir ao trustee a evolução de qualquer proveito que, sem o devido consentimento, haja retirado da administração do trust. Em certas circunstâncias, tem o poder de exigir ao trustee a reconsideração do exercício da sua discricionaridade, ou seja, do exercício do poder de selecção, assim como de impugnar o seu exercício aparentemente caprichoso. O beneficiário tem igualmente o poder de intentar acções judiciais fundadas na desonestidade, ausência ou incompetência do trustee. Deste modo, é, em geral, titular do poder de requerer ao tribunal a investigação e a fiscalização da administração do trust.

157 Cfr. AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de afetação. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009). 158 TOMÉ, Maria João Ramão Carreiro Vaz; CAMPOS, Diogo Leite de. A propriedade fiduciária (trust): Estudo para a sua consagração no direito português. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 139-140.

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124

Pode outrossim exigir ao trustee a adopção das medidas adequadas contra terceiro adquirente de má fé de bens ou direitos constituídos em trust. Tendo todos os beneficiários contemplados pelo acto constitutivo do trust já nascido completamente e com vida, e tendo capacidade de exercício de direitos, é-lhes permitido extinguir consensualmente o trust e dar instruções ao trustee sobre o destino dos respectivos bens ou direitos. O poder de modificar o trust não lhes era, contudo, reconhecido

Questão sem trato legal diz respeito aos direitos trabalhistas do empregado

que tenha empenhado seu labor em mais de um empreendimento do incorporador

gerando, todavia, créditos trabalhistas durante toda a relação de emprego, quiçá até

mesmo em decorrência de um acidente de trabalho. Pela teoria da afetação, o

empregado só poderá exigir do patrimônio de afetação os créditos que se formaram

durante o período que trabalhou naquela específica incorporação. Entretanto, a Lei

10.931/2004 não trata desta questão, deixando margem a que o empregado exija a

totalidade de seus créditos.

Credores do incorporador que não tenham seus créditos constituídos em

função do patrimônio afetado obviamente não podem pleitear pagamento com as

forças da incorporação. Além de tal impedimento constar de lei expressa, a

publicidade dos direitos reais decorrentes do registro da afetação patrimonial não o

permite. Como meio de conferir segurança e proteção da boa-fé, disponibilizando à

sociedade meio adequado para conhecer e saber dos direitos reais existentes sobre

a coisa, o registro da afetação gera eficácia erga omnes revestida de publicidade.

III.5 LEGITIMIDADE ATIVA PARA DEFESA DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO

A separação da incorporação do patrimônio geral do incorporador por meio de

afetação não lhe retira a titularidade nem legitimidade processual para defender o

patrimônio afetado, o que, aliás, está expressamente previsto no inciso I do art. 31-

D.

Não obstante, a afetação patrimonial vai além da mera atribuição de

finalidade específica a determinada parcela do patrimônio geral do incorporador. E

em que pese continue a integrar seu patrimônio geral, acentuam-se interesses de

terceiros sobre a gestão da incorporação afetada. Esses interesses, aliás, já podiam

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125 ser vistos no texto original da LCI ante os poderes conferidos à Comissão de

Representantes159.

A titularidade representada pelo registro do imóvel em nome do incorporador

passa a ter um caráter mais formal que material. A natureza jurídica do incorporador

ganha acentuado ar de gestor, administrando interesses que são próprios,

relacionados ao lucro que almeja, e também interesses que são de terceiros que lhe

entregam recursos e forças para que realize o interesse comum relacionado com fim

do patrimônio de afetação.

Uma das obrigações do incorporador que atue sob o regime de afetação

consiste em separar e dar tratamento atomizado aos bens, direitos e obrigações que

constituem a massa patrimonial. Só assim se consegue conhecer o que de fato

integra o patrimônio afetado, quais suas receitas e por quais obrigações ele

responde. Daí o porquê de art. 31-D exigir que se mantenha apartados os bens e

direitos objeto de cada incorporação; que se preserve os recursos captados pela

incorporação de modo a que de fato sejam direcionados à conclusão da obra;

prestar informação obrigatória trimestralmente acerca do estágio da obra e dos

recursos captados no período com auxílio de profissionais habilitados; manter e

movimentar os recursos do patrimônio em conta bancária aberta com esta específica

finalidade; e ainda franquear acesso à contabilidade do patrimônio afetado aos

adquirentes e ao agente financeiro que tenha concedido empréstimo para a

construção da obra.

São deveres que visam a que os direitos dos adquirentes (conclusão da obra

e pagamento do empréstimo) sejam conduzidos de modo a que ao final se frustrem

por má administração.

Deixando o incorporador de atender essas obrigações estará ele

descumprindo o contrato de incorporação e, em razão disto, sujeitando-se a

medidas judiciais e extrajudiciais que podem variar de pedidos de indenização,

cumprimento de obrigações de fazer e, como medida extrema, à sua destituição da

função de incorporador.

De fato, o art. 43, VII, não prevê a possibilidade de destituição do

incorporador por decisão de assembleia em caso de descumprimento dos deveres

159 Poderes de fiscalização do andamento das obras (art. 49); destituição do incorporador e tomada das obras em nome dos próprios adquirentes (incisos VI e VII do art. 43 e art. 50); gerência direta do contrato de construção, em nome dos adquirentes, nas incorporações sob o regime de preço de custo, com possibilidade de contratação de valores de forma vinculativa (arts. 60 e 61); legitimidade ativa nos casos do art. 63 e seu § 5º.

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126 que têm ele frente ao patrimônio de afetação, notadamente daqueles previstos no

art. 31-D. A letra do dispositivo se restringe a permiti-la em caso de paralisação ou

retardamento injustificado da obra, falência ou insolvência do incorporador. Não

obstante, tal providência possa ser alcançada pela via judicial, considerando que a

lei não pode excluir de apreciação do Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito.

Do contrário, ter-se-ia que admitir a situação em que o incorporador dilapide o

patrimônio de afetação, vincule-o a dívidas e obrigações que em rigor não lhe digam

respeito, mesmo mantendo temporariamente em dia o andamento da obra de modo

a que, no futuro, quiçá quando as obras venham a ser paralisadas de maneira

proposital e fraudulenta, tenham os adquirentes que honrar tais obrigações, ou

quando pouco discutir se elas têm relação com o patrimônio.

III.6 CRÍTICAS À INTRODUÇÃO DO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NA ATIVIDADE

DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

O art. 31-A dispõe que o incorporador pode submeter a incorporação a regime

de afetação, em função da qual o terreno e acessões objeto da incorporação

afetada, bem assim os demais bens e direitos a ela vinculados mantenham-se

“apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação,

destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades

imobiliárias aos respectivos adquirentes”.

A constituição formal da afetação patrimonial sobre a incorporação se dá

mediante averbação de termo no registro de imóveis firmado pelo incorporador,

podendo ocorrer antes ou depois de já iniciada a obra (art. 31-B).

Instituído o patrimônio de afetação, o incorporador torna-se “administrador de

interesses alheios”. Daí porque serem exigíveis fiscalizações na contabilidade

mediante auditoria dos adquirentes, representados pela Comissão de

Representantes, ou pelo agente financiador da obra (art. 31-C).

A adoção do regime de afetação exige do incorporador o cumprimento de

uma série de obrigações contábeis e deveres acessórios. Nesse sentido, por

exemplo, dispõe o art. 31-D que o incorporador tem o dever de manter apartados os

bens e direitos de cada incorporação (inciso II), informar periodicamente os

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127 adquirentes sobre o estado da obra (inciso IV), manter e movimentar os recursos

financeiros do patrimônio de afetação em conta de depósito aberta especificamente

para tal fim (inciso V), fornecer balancetes trimestrais aos adquirentes (inciso VI) e

manter escrituração contábil completa relativamente a cada incorporação imobiliária

sob regime de afetação (inciso VIII).

Adotado o regime de incorporação, o incorporador lançará então em

contabilidade própria da incorporação afetada, suas receitas e despesas, seus

direitos e suas obrigações, até a conclusão da obra e pagamento dos credores

vinculados ao patrimônio afetado. Obtendo, por exemplo, financiamento bancário

para a construção, o incorporador lançará como passivo daquela incorporação

(patrimônio de afetação) o crédito que tem a instituição financeira.

Da mesma forma, segue contabilizando como crédito seu (do incorporador) a

aquisição de materiais de construção, despesas com formalização de documentos,

projetos, obtenção de alvarás e etc, realizadas com recursos próprios do

incorporador. Iniciadas as alienações, os valores recebidos ou a receber serão

contabilizados na conta de créditos e utilizados para pagamentos das dívidas da

incorporação e assim sucessivamente, até que o empreendimento esteja concluído

e quitadas estejam todas as obrigações que com ele se relacionem.

Esse é, basicamente, o funcionando e algumas das obrigações do

incorporador que atue sob o regime de afetação patrimonial.

Outras inovações foram introduzidas na LCI.

Além da possibilidade de retomada da obra pelos adquirentes em caso de

falência do incorporador, paralisação ou atraso injustificado a obra (art. 43, VI) tal

qual já era previsto na LCI em sua redação original; os §§ 1º e 2º do art. 31-F

aprofundam a noção de segregação patrimonial estabelecendo que as

incorporações sob o regime de afetação não sofrerão, em hipótese alguma, os

efeitos da decretação da falência ou insolvência do incorporador (art. 31-F, caput),

mesmo que os adquirentes não optem por concluir a obra (o que não ocorria

anteriormente à Lei 10.931/2.004). Neste caso, abriu-se uma possibilidade nova,

qual seja, a de liquidação do patrimônio de afetação mediante sua alienação integral

com o propósito de pagamento dos credores a ele vinculados (art. 31-F, §§ 9º e 18).

Em caso de falência não há comunicação entre o patrimônio de afetação

representado por determinada incorporação imobiliária e o patrimônio geral do

incorporador, ou mesmo qualquer outro patrimônio de afetação gerido pelo

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128 incorporador falido. Concatenado a essa previsão, dispõe o art. 119, IX, da Lei de

Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2.005) que,

os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.

Em caso de falência do incorporador, paralisação ou atraso injustificado a

obra, os adquirentes então decidirão (§§ 9º e 18 do art. 31-F) o destino da

incorporação em assembleia, podendo ser a conclusão da obra por eles próprios ou

a liquidação do patrimônio de afetação mediante sua alienação integral. Em

qualquer dessas hipóteses a Comissão de Representantes (órgão representativo

dos interesses dos adquirentes) ficará responsável e investida por força de lei dos

poderes necessários para alienar o patrimônio de afetação para fins de liquidação

mesmo que o imóvel esteja (como geralmente está) registrado em nome do

incorporador, ou ainda (se for o caso) de prosseguir no gerenciamento da obra até

sua conclusão (art. 31-F, § 3º a 11 e § 14; art. 63, § 5º). Nesse momento (o da

assembleia – art. 31, § 1º) os adquirentes devem refletir profundamente acerca da

decisão a ser tomada, tendo por base propostas de valor para término da obra e

quitação de todo o passivo do patrimônio de afetação.

Essa decisão é crucial (liquidar o patrimônio ou concluir a obra). No entanto, o

art. 31-F, § 1º, confere apenas 60 dias para que a decisão seja tomada. Ora, se já é

difícil que compradores de um imóvel “na planta” se conheçam em uma grande

cidade, mais ainda será exigir que estejam preparados para uma decisão dessa

importância.

Mas optando por liquidar o patrimônio de afetação mediante sua alienação

para posterior rateio entre os credores e eles próprios, nada mais terão os

adquirentes que aplicar na obra. Pelo contrário, optando por concluir a obra, os

adquirentes se tornam pessoalmente devedores por todo o passivo do patrimônio de

afetação conforme dispõe o § 11 do art. 30-F: “Caso decidam pela continuação da

obra, os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas

obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao

contrato de financiamento da obra, se houver”.

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129

A grande questão que se coloca é a de conhecer a extensão do que sejam as

“obrigações” e os “encargos” relativos à incorporação. Nesse sentido, obviamente é

crédito do patrimônio de afetação o preço de venda das unidades para os

adquirentes. Esse crédito de ordinário deve ser pago ao incorporador no prazo

pactuado sob pena de incidirem juros e multa moratória. Todavia, esse mesmo

crédito pode ser transferido pelo incorporador como meio de antecipar receita (que

se espera seja aplicada na obra), fazendo com ele cessão fiduciária. Para tal

hipótese, dispõe o art. 31-A, § 4º, que, “No caso de cessão, plena ou fiduciária, de

direitos creditórios oriundos da comercialização das unidades imobiliárias

componentes da incorporação, o produto da cessão também passará a integrar o

patrimônio de afetação, observado o disposto no § 6o”.

Se o incorporador consegue concluir a obra de maneira ideal, esse dispositivo

não gera perplexidade alguma. A cessão fiduciária será e deverá ser honrada nos

termos contratados com os adquirentes. Mas se o incorporador vier a falir ou

abandonar a obra, certamente que os adquirentes terão direitos em decorrência

desse inadimplemento, dentre os quais a exceção do contrato não cumprido. A

dificuldade está em cobrar do patrimônio de afetação, certamente com encargos, um

crédito cedido fiduciariamente por um inadimplente (o incorporador), imputando os

ônus à conta dos adquirentes (parte contratante inocente) para que estes

posteriormente sejam ressarcidos pelo incorporador (art. 31-A, § 2º). O mesmo se

diga sobre o financiamento concedido por instituição financeira para conclusão da

obra. Fracassando o incorporador, novamente se imputará aos adquirentes o

pagamento do financiamento (que também se espera tenha sido aplicado na obra)

com os encargos previstos no contrato firmado entre incorporador e instituição

financeira.

O § 18 do art. 31-F também estabelece que, optando por liquidar o patrimônio

de afetação, após sua alienação os adquirentes devem quitar as obrigações

trabalhistas a ele vinculadas. No entanto, não existe menção para o caso de os

adquirentes optarem por concluir a obra, restando então certa dúvida sobre também

haver nesta hipótese (retomada da obra), integração das obrigações trabalhistas no

passivo do patrimônio. Destaque-se que a única referência a obrigações trabalhistas

é essa constante do § 18 do art. 31-F. De todo modo, a interpretação leva a crer que

sim, que há dita integração em caso de continuidade das obras, não só porque seria

incongruente houvesse apenas para o caso de liquidação (§ 18 do art. 31-F), mas

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130 também porque o raciocínio está em conformidade com a teoria da afetação

patrimonial.

Outrossim, a previsão de vinculação das obrigações trabalhistas ao

patrimônio de afetação leva à necessidade de que os empregados, via de regra os

que laboram no canteiro de obras, sejam separados por patrimônio de afetação. Não

pode o incorporador utilizar a mão-de-obra de um empregado na construção de mais

de um empreendimento. É o que sugere a teoria da afetação (segregação de riscos,

obrigações e patrimônio). Ocorre, no entanto, que essa separação de empregados

por patrimônio de afetação é absolutamente incompatível com a legislação

trabalhista. Certamente que se o incorporador, após concluída determinada

incorporação que estivesse afetada, vier a transferir o empregado para o canteiro de

obra de outra incorporação também afetada, o eventual passivo trabalhista

decorrente do período de trabalho no patrimônio anterior acarretará consequências

para o próximo. Logo, não existe possibilidade de separação absoluta do passivo

trabalhista, salvo se a cada obra encerrada o incorporador demitir todos os

empregados e contratar novos, diversos dos primeiros, nas futuras obras que vier a

iniciar.

Também se deve considerar o risco do acidente de trabalho, acentuado na

construção civil, cujo ressarcimento passa à responsabilidade do patrimônio de

afetação, podendo atingir somas consideráveis.

Os riscos das obrigações trabalhistas correm contra os adquirentes. E

certamente existirão porque incorporador que vem a falir, paralisa ou retarda obra,

dificilmente está quite com seus empregados, isto sem considerar o passivo

trabalhista oculto, de difícil visualização, que só se apresenta ao término da relação

empregatícia com a propositura de uma reclamatória.

A maneira como a questão laboral foi tratada pela Lei 10.931/2004 deixou

muito a desejar pondo a descoberto os adquirentes. O tema mereceria tratamento

mais detalhado de modo a que se impusesse com modificações explícitas também

para o Direito do Trabalho como forma de conferir maior segurança às partes.

O mesmo § 1º do art. 31-F dispõe que os adquirentes também devem quitar

as obrigações tributárias e previdenciárias vinculadas ao patrimônio de afetação.

Sobre o tema dispõe também no § 20 que

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Ficam excluídas da responsabilidade dos adquirentes as obrigações relativas, de maneira direta ou indireta, ao imposto de renda e à contribuição social sobre o lucro, devidas pela pessoa jurídica do incorporador, inclusive por equiparação, bem como as obrigações oriundas de outras atividades do incorporador não relacionadas diretamente com as incorporações objeto de afetação.

Ocorre, todavia, que a conjugação desses dispositivos é incompatível com os

arts. 1º a 11 da Lei 10.931/2004. Com efeito, estes dispositivos criaram o Regime

Especial de Tributação-RET para os patrimônios de afetação, com adesão

facultativa, tributando-os de maneira destacada do patrimônio geral do incorporador

mediante alíquota de 7% sobre base de cálculo única consistente na receita mensal

do empreendimento, representando pagamento único para Imposto de Renda das

Pessoas Jurídicas-IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de

Formação do Patrimônio do Servidor Público-PIS/PASEP, Contribuição Social sobre

o Lucro Líquido-CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social-

COFINS.

Assim, se o incorporador aderiu ao Regime Especial de Tributação-RET, em

caso de falência, atraso ou retardamento da obra, os adquirentes liquidam o

patrimônio de afetação ou concluem a obra e, em qualquer dos casos, haverão de

pagar o tributo devido pela adesão ao RET, calculado à taxa de 7% sobre as

receitas auferidas porém não recolhidas pelo incorporador. No entanto, se o

incorporador não optou pelo RET, a tributação que existirá será sobre o patrimônio

geral do incorporador. Logo, pelo disposto no inciso I, § 18, art. 31-F, não haverá

tributo vinculado “ao respectivo patrimônio de afetação”. A este argumento alia-se o

§ 20 ao estabelecer que os adquirentes não são obrigados a pagar os tributos

decorrentes do patrimônio geral do incorporador.

Ainda tratando sobre o que se possa considerar como “obrigações” e

“encargos” relativos à incorporação afetada, dúvidas maiores surgem quando se

analisa a questão contábil do patrimônio de afetação. Neste sentido, questiona-se se

também seria obrigação do patrimônio eventuais dívidas dolosamente contabilizadas

e dívidas omitidas de sua contabilidade. Com efeito, optando por concluir a obra e

chamando à aplicação o disposto no § 11 do art. 31-F, os adquirentes podem ser

surpreendidos com credores não mencionados na contabilidade.

A esse pequeno catálogo de problemas que só agravam a posição dos

adquirentes outros ainda se somam. Na maioria esmagadora dos casos em que

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132 decidem concluir um edifício em razão do inadimplemento do incorporador, os

adquirentes se veem obrigados a aplicar na obra mais recursos do que aqueles que

haviam pactuado no contrato de compra e venda firmado com o incorporador. A obra

consome mais do que seu custo projetado. É ingênua a suposição de que esse fato

não se repetirá tão-somente porque adotado o regime de afetação patrimonial sob

fiscalização contábil de um agente financeiro ou de uma Comissão de

Representantes. O propósito da afetação patrimonial é este. É um propósito ético e

legal. Discorrendo sobre a questão do limite de recursos (ou sua falta) que devem

ser aportados pelos adquirentes que assumem a conclusão da obra, discorre

MELHIM NAMEM CHALHUB160 explicando que:

O fato de o aporte de recursos dos adquirentes estar limitado ao valor contratado para a aquisição das suas unidades não significa que este devem, necessariamente, interromper o aporte uma vez que atingido esse valor; podem e, conforme as circunstâncias, talvez devam os adquirentes continuar aportando recursos além daquele limite, se julgarem conveniente a conclusão da obra; o limite de responsabilidade dos adquirentes apenas indica que o quantum do aporte que exceder o valor contratado para a aquisição poderá ser ressarcido pelo incorporador, malgrado as dificuldades de obtenção de ressarcimento em caso de falência.

Atualmente, pelo contido no § 11 do art. 31-F, optado pela conclusão das

obras, os adquirentes serão responsabilizados perante uma plêiade de credores do

patrimônio de afetação, que lhes cobrarão responsabilidades que não existia no

regime originalmente previsto na LCI.

Indubitavelmente, o maior favorecido com o surgimento da afetação foram as

instituições financeiras, que por meio dela ficaram imunes à Súmula 308 do STJ,

que é anterior à Lei 10.931/2004 (§ 3º do art. 31-A; art. 31-E, I; § 18, II, do art. 31-F).

Além da garantia real, os agentes financeiros passaram a contar com a garantia

pessoal de liquidação de seus créditos mediante esforço dos adquirentes (§ 11 do

art. 31-F; § 4º do art. 31-A; §§ 12, IV, e 15 do art. 31-F), doravante devedores

subsidiários das dívidas contraídas pelo incorporador para a construção da obra

ainda que, teoricamente, utilizadas com outras finalidades (“desvio de recursos”).

Por fim, também se afastou das instituições financeiras a jurisprudência que vinha se

formando no sentido de responsabilizá-las pela qualidade e segurança das obras (§

12 do art. 31-A; § 1º do art. 31-C).

160 CHALHUB, Melhim Namem. Das incorporações. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 118.

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133

Tanto é correto dizer que o maior beneficiado foram as instituições financeiras

que apenas se têm utilizado o patrimônio de afetação (é facultativo a “critério” do

incorporador – art. 31-A, caput) nas incorporações em que haja financiamento

bancário161. Quer dizer, são as instituições financeiras que têm exigido a afetação,

não os incorporadores nem os consumidores (estes nem imaginam que ela exista).

Compartilhando do entendimento sobre o agravamento da posição dos

adquirentes, NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO162 assim se posicionou

quando escreveu ao tempo da Medida Provisória 2.221/2001:

A lei 4.591/64 sempre previu a proteção coletiva dos adquirentes no caso de fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras ou falência. Esse direito materializa-se, através de decisão assemblear, vinculativa para a maioria, de destituir o incorporador e prosseguir nas obras, com ou sem um novo incorporador, o que se faz sem prejuízo do direito de pleitear perdas e danos do incorporador destituído (artigos 34, III e VI e 49, da lei 4.591/64 e artigo 43, da lei 7.661/45). Na hipótese destituição, o patrimônio era na prática destacado, e os adquirentes somente respondiam pelo débitos previdenciários, necessários à obtenção de certidão negativa de débito a ser averbada com a baixa da construção, além do IPTU não pago. As próprias hipotecas em favor de bancos vinham sendo questionadas, ultimamente, quanto à sua oponibilidade aos compradores. Com a instituição do patrimônio de afetação, as normas previstas para as hipóteses de fracasso do incorporador diferem das anteriores, com vantagens e desvantagens para os adquirentes. [...]

161 Conforme notícia veiculada pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção-CBIC em 15.01.2007, até o ano de 2006, ou seja, passados mais cinco anos desde a edição da MP 2.221/2001, em todo o país apenas para 90 empreendimentos fora aplicado o regime de afetação, em geral pela presença de interesse de instituição financeira, verbis: “Só 90 empreendimentos imobiliários em todo o país adotaram o patrimônio de afetação em 2006, o equivalente a 20% dos que tiveram financiamento da caderneta de poupança para construção de imóveis residenciais. A adesão das construtoras a esse regime opcional de segregação contábil -criado para proteger pessoas que compram e bancos que financiam moradia na planta - ainda está está longe da pretendida pelas instituições financeiras. Mas, vem crescendo desde o primeiro ano de sua efetiva utilização, em 2005, quando foi de apenas 12%.

Essa foi a conclusão a que chegou o vice-presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), José Carlos Martins, ao confrontar dados da Secretaria da Receita Federal (SRF) com números do Banco Central sobre operações do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE, cuja fonte é a caderneta) com as construtoras. Embora lenta, a evolução está dentro do esperado tanto pela CBIC quanto pela Abecip, associação que representa as instituições financeiras com carteira de crédito imobiliário.

Para os bancos, o cenário ideal seria uma adesão de 100%, reconhece o diretor geral da Abecip, Osvaldo Fonseca, sabendo que isso ainda vai demorar. "O patrimônio de afetação exige uma profunda mudança de cultura das construtoras. Se fosse fácil, seria obrigatório", diz Fonseca. Ele acredita que a exigência do regime em todos os empreendimentos financiados pelo sistema bancário só será possível a partir de 2014, quando completará dez anos a lei atualmente em vigor.”. (CÂMARA Brasileira da Indústria da construção. Segregação contábil atinge 20% do empreendimentos. Disponível em: < http://www.cbic.org.br/mostraPagina.asp?codServico=1491&codPagina=7930>. Acesso em 20.10.2009).

162 O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Coordenação: THEODORO JÚNIOR, Humberto. 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 318-320.

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A grande desvantagem da destituição do incorporador, no caso de patrimônio de afetação e decisão assemblear pela continuidade das obras, consiste na responsabilidade solidária dos adquirentes pela liquidação de débitos trabalhistas, previdenciários e tributário do referido patrimônio (art. 30C, § 3º), bem como pela sub-rogação em todas as demais obrigações e encargos do patrimônio afetado, inclusive do financiamento (artigo 30C, § 7º).

Essas são algumas críticas. Outras aqui poderiam ser incorporadas mas para

evitar de repeti-las, foram deixadas inseridas na parte que trata do inadimplemento

na incorporação imobiliária.

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135 IV INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

IV.1 INADIMPLEMENTO NA INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. DIVERSIDADE DE

CONSEQUÊNCIAS

Em geral, o inadimplemento contratual abre a possibilidade de pedir-se a

resolução do contrato com perdas e danos ou sua execução forçada, colocando as

partes da relação contratual em pólos opostos. Assim também se dá na

incorporação imobiliária, a depender do regime de incorporação adotado, quando

um determinado consumidor descumpre o contrato firmado com o incorporador ou

com o construtor, e vice-versa.

No entanto, considerada a multiplicidade de interesses presentes na

incorporação imobiliária, unidas entre si ainda pela função social da atividade

(conclusão da obra), quando o inadimplente for o incorporador, soluções diversas se

abrem de modo a que se alcance o desiderato inicial dos consumidores, de adquirir

um imóvel. Pelos mesmos motivos, quando o inadimplente for o consumidor regras

especiais permitem procedimentos diferenciados para a execução do contrato.

Essas particularidades é que serão abordadas nos itens que se seguem.

IV.2 O ART. 53 DO CDC E O INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES FRENTE

AO INCORPORADOR

Um dos meios de que se valem os incorporadores para alavancar os recursos

necessários à construção de um edifício consiste em combinar recursos de caixa do

próprio incorporador com recursos provenientes das vendas antecipadas dos

imóveis, feitas ainda no curso da obra (vendas de “imóvel na planta”). Esse sistema

de financiamento da construção é previsto e autorizado pela LCI, notadamente em

razão da insuficiência de recursos por parte dos incorporadores brasileiros, indo

além, autoriza até mesmo que o incorporador construa sobre terreno alheio com

base em uma procuração. Tanto assim que a própria LCI prevê, como já referido, a

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136 possibilidade de o incorporador desistir dos contratos firmados se acaso perceber

que o volume de vendas “na planta” não será suficiente para obter os recursos

necessários para que a construção seja concluída no prazo previsto.

São opções adotadas pelo legislador com o intuito de fomentar a atividade,

franqueando sua prática a um maior número de empresários que, não obstante não

disponham de todos os recursos necessários, são responsáveis e tecnicamente

capazes.

Assim, considerado esse sistema de financiamento, a previsibilidade do fluxo

de recursos decorrentes das vendas realizadas pelo incorporador é fator decisivo

para o sucesso da incorporação ou, quando menos, para o lucro do incorporador.

Sem esses recursos e sem caixa suficiente, para concluir a incorporação o

incorporador terá que se socorrer de linhas de crédito que lhe gerarão encargos

financeiros.

Evidente então que a manutenção dos contratos de compra e venda de

imóveis “na planta” é condição para que a atividade empresarial do incorporador

tenha sucesso e, de consequência, para que a função social da atividade seja

alcançada permitindo a conclusão da obra em prol dos consumidores e todos os

demais partícipes que se relacionam direta ou indiretamente pela rede contratual

que se forma na incorporação.

Não obstante tais ponderações, significativa parcela da jurisprudência passou

a interpretar o art. 53 do CDC como se fosse lícito ao consumidor desistir do contrato

de compra e venda firmado sem que haja culpa do incorporador, até mesmo depois

que o consumidor tenha recebido a posse do imóvel já concluído. Segundo essa

jurisprudência, mesmo que inadimplente, o consumidor pode desistir do contrato e

ainda obter devolução de parte considerável dos valores que já tenha pago163. A

simples “insuportabilidade das prestações”, mesmo que não haja excesso de

cobrança, tem justificado essa desistência164.

163 Em geral, a jurisprudência tem permitido que do total pago pelo consumidor seja retido pelo incorporador um percentual entre 20% e 30% como forma de indenizar seus prejuízos, indenização esta que, diga-se de passagem, tem sido arbitrada sem atenção às especificidades do caso concreto, como se todo e qualquer prejuízo suportado pelo incorporador fosse indenizado pela retenção daquele percentual de 20% a 30%. Evidente que há casos em que a fixação desse percentual representará uma retenção superior ao prejuízo causado ao incorporador e, em outras, inferior. 164 Neste sentido é que se firmou a orientação do STJ no REsp 1056704/MA que “[...] o promitente-comprador, por motivo de dificuldade financeira, pode ajuizar ação de rescisão contratual e, objetivando, também reaver o reembolso dos valores vertidos”.

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Ocorre, todavia, que tal jurisprudência implica rejeitar o próprio significado de

contrato como vínculo que une as partes e torna obrigatório o cumprimento das

obrigações sob pena de execução ou de pedido de rescisão à disposição sempre do

contratante inocente (no caso o incorporador – art. 475 do CC/02), exceto, é claro,

naqueles casos previstos em lei como, v. g., a onerosidade excessiva superveniente.

A questão passo ao largo de uma justificativa dos consumidores da qual se

possa dizer embasada em boa-fé, considerando, conforme anota PAULO NALIN,

que boa-fé não se presta para frustrar “legítimas expectativas contratuais formuladas

na esfera jurídica de qualquer dos contratantes”165. Em que pese a relativização da

força obrigatória do contrato, permanece hígido o dever de cumprimento das

obrigações e a necessidade de imputação da culpa sob pena de tornar sem efeito as

expectativas criadas em um dos contratantes em razão das declarações de vontade

feitas pelo outro.

A função social do contrato, que no caso consiste em colaborar para que o

empreendimento seja concluído em benefício dos consumidores adquirentes, da

atividade do incorporador e de toda a rede contratual que se forma no entorno da

incorporação, também é desrespeitada. Na medida em que se faculta a um

comprador desistir do contrato sem imputação de culpa à parte contrária, confere-se

tal direito a todos os demais, criando assim descompasso no fluxo de recursos que

frustra a expectativa projetada pelo incorporador. Como resultado possível têm-se a

paralisação ou atraso da obra, causando prejuízos a todos os contratantes,

especialmente àqueles adimplentes.

A função social do contrato de compra e venda de unidade imobiliária em

construção só será atendida se acaso o funcionamento do negócio ocorrer com uma

segurança jurídica mínima. Por isso, o fundamento econômico e jurídico do contrato,

quando este for firmado em conformidade com a lei, deve ser respeitado166. A pacta

sunt servanda não pode ser relativizada ao ponto de permitir o fim do vínculo em

razão de qualquer dificuldade financeira particular do consumidor. Com efeito, se as

cláusulas contratuais não estabelecem prestações desproporcionais e se não há

desproporcionalidade das prestações em decorrência de onerosidade excessiva 165 NALIN, Paulo Roberto Ribeiro. Ética e boa-fé no adimplemento contratual. In FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 195. 166 Evidente que não se defende, em nome do ato jurídico perfeito, os abusos que contra os consumidores são praticados no mercado de consumo.

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138 superveniente (art. 6º, V, do CDC), o contrato continua a vincular as partes. A

propósito desse assunto o enunciado nº 22 das Jornadas de Direito Civil do STJ

conclui que “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil,

constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato,

assegurando trocas úteis e justas”.

Na realidade, a correta interpretação do art. 53 do CDC sequer confere direito

de ação ao inadimplente para que peça a rescisão do vínculo invocando como causa

de pedir seu próprio inadimplemento. O dispositivo de fato proíbe que o fornecedor

se aproprie de todos os valores pagos pelo consumidor quando do desfazimento do

contrato, mas só confere pretensão jurídica para rescisão contratual ao contratante

inocente. Comentando o art. 53 do CDC, NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA

PINTO167 explica com clareza seu real sentido e acusa a jurisprudência de

paternalista:

A crise do contrato de incorporação passou a ser extremamente grave, com o rompimento de seu equilíbrio e funcionalidade, quando expressiva corrente jurisprudencial passou a ignorar os princípios da culpa contratual e da irretratabilidade das promessas de compra e venda, prestigiados inclusive no Código de Defesa do Consumidor, interpretando as avessas o artigo 53, da Lei 8.079/90, para conceder ao comprador inadimplente o direito de arrependimento ou resilição, diante de áleas ordinárias, como valorização ou desvalorização do imóvel ou perda de renda ou salário. Examinado-se o citado artigo 53, verifica-se que o sujeito da oração é sem dívida o credor , o fundamento que enseja o pedido é o inadimplemento do comprador , a pretensão é o pedido de retomada do bem e a conseqüência é a devolução de parte do preço pago. Assim sendo, a lei não contempla rescisão do contrato quando não há iniciativa do incorporador em pedir a retomada do imóvel do inadimplente. Negando esse direito de resilição por parte do inadimplente, há forte e expressiva corrente jurisprudencial que não se deixa levar pelo paternalismo e pelo subjetivismo do direito alternativo, que busca fazer "justiça social" através de decisões judiciais. Nesse sentido temos, entre outros, os seguintes julgados: Resp. 61.190/SP, relator ministro Carlos Alberto Menezes Direto; Resp 59.870/SP, relator ministro Ari Pargendler; TAMG, apelação 234.121-3, relator juiz Caetano Levi Lopes [...]

167 PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (Coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 294-295, grifos e negritos do autor.

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No mesmo sentido, o HUMBERTO THEODORO JUNIOR168, para quem tais

decisões ferem a ética e a boa-fé:

O art. 53 do CDC, porém, não veio inovar em matéria de legitimidade de partes para provocar a dissolução do contrato bilateral. As regras básicas, para tanto, continuam sendo as do Código Civil. O dispositivo em questão nada mais fez do que sintetizar, em matéria de resolução contratual por inadimplemento do consumidor na aquisição de bens imóveis e moveis por alienação fiduciária, os princípios da ética, boa-fé, equidade e equilíbrio que presidem as relações obrigacionais, de molde a garantir-se a compensação do fornecedor que aquela não deu causa, como também prestações pagas. [...] A boa-fé, valorizada pelo CDC, obviamente não pode servir de pretexto para anular a força do contrato, indispensável à ideologia do regime econômico adotado constitucionalmente. Admitir por outro lado, que o infrator do contrato, ou seja, a parte inadimplente, venha a usar sua própria infração como justificativa para pleitear a rescisão do contrato importa simplesmente anular a maior conquista da teoria do direito contratual, que é a boa-fé, tão ressaltada, entre nós, pelo próprio Código de Defesa do Consumidor. Segundo princípio fundamental dos contratos bilaterais, aquele que não cumpre a prestação a seu cargo não pode exigir o cumprimento da prestação do outro contratante; e aquele que, tendo cumprido a prestação que lhe competia, se vê prejudicado pelo inadimplemento, tem a opção entre executar a prestação da parte faltosa e romper o contrato com perdas e danos. Jamais se poderá, em respeito ao principio da boa-fé, aceitar que o responsável pela violação do contrato se torne titular do direito potestativo de impor sua vontade a parte inocente, forçando-a rescisão do negocio jurídico.

O art. 421 do CC/02 dispõe que “A liberdade de contratar será exercida em

razão e nos limites da função social do contrato”. Muito se invoca esse dispositivo

mediante deturpação de seu sentido, não raras vezes concluindo que, no mercado

de consumo, há função social quando se decide em favor do consumidor porque é a

parte mais fraca da relação quem necessita de proteção. Altera-se até mesmo a

equação econômica do contrato redistribuindo seus valores entre as partes a fim de

conferir “justiça” à decisão em prol do consumidor.

O art. 421 do CC/02, que em verdade nada traz de novo em relação ao

CC/16, apenas deixa explícito que o contrato é um meio para atingir um determinado

fim (ele tem uma função). Esse fim, essa função, não é algo imanente ao contrato,

mas ao regime de produção em que ele está inserido. Assim, a função de um

contrato no regime socialista pode ser a realização de justiça distributiva. No 168 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato imobiliário e legislação tutelar do consumo. In THEODORO JÚNIOR, Humberto (coord). O contrato imobiliário e a legislação tutelar de consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, pp. 99-102.

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140 entanto, no regime capitalista a função social do contrato é meio de desenvolvimento

da atividade produtiva do particular, é instrumento de trabalho, é meio para

circulação de riqueza, para realização de trocas justas e também meio de acesso ao

mercado de consumo. Funcionalizar o contrato para atender um objetivo (fazer

justiça social, distributiva) que ele não tem em determinado regime econômico

(capitalista), significa ir contra sua própria existência, frustrando suas

potencialidades econômica e social.

O efeito causado pelo desfazimento imotivado do contrato consiste, em última

análise, em prejudicar o próprio consumidor. A suposição de que tais decisões

judiciais melhoram sua situação padece de visão coletivista porque apenas vê os

consumidores envolvidos no litígio de que resulta a decisão judicial, estes sim os

reais favorecidos.

Para o bom funcionamento do mercado se fazem necessárias regras claras e

interpretação razoável que não deturpe os direitos e obrigações das partes,

condizentes com a função social dos contratos. A necessidade de avaliação de

riscos para fins de projeção de lucros é um fato determinante na decisão sobre em

que e como trabalhar. Se não há objetividade nessa avaliação, teoricamente o risco

pode ser adotado como máximo. E quanto maior o risco para o mercado menos

mercado há.

Não obstante a fundamentação das decisões que autorizam a desistência

imotivada do contrato, o que de mais contundente há para se dizer contra elas talvez

seja o fato de não refletirem a noção que o cidadão comum tem acerca da ideia de

contrato. Essa noção não é algo que seja fruto de desinformação do leigo, mas sim

decorrente do senso comum que inspira as mais básicas regras de direito. Mais que

isso, é uma noção que se depreende da prática do dia-a-dia, que impõe a conclusão

de que não se pode desistir dos contratos por ato de mera potestatividade. Esse

cidadão comum, que se guia pelas regras da experiência que inspiram o direito e

que nele se encontram positivadas, deve ter seus direitos respeitados em nome da

boa-fé e da segurança jurídica. Ele é a figura ideal de um honesto e cuidadoso pai

de família, que se toma como modelo de comportamento nas relações jurídicas. É,

enfim, o homem adimplente, o cidadão que atua em respeito ao direito alheio e exige

o respeito ao seu, que tem um padrão de comportamento objetivamente visível no

mundo jurídico e sensível a qualquer razão. Esse homem é aquele que a doutrina

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141 usualmente designa de homo medius. Ao levar em conta os fatos da vida, o juiz

deve encarar a qualquer um, nas suas negociações habituais da vida, como o bonus

pater familias, o homo diligens, isto é, quem, como tal, é homem diligente e zeloso.

A interpretação jurisprudencial dominante acerca do art. 53 do CDC, todavia,

não parece razoável a esse homem médio, na medida em que desafia o senso

comum que confere uma determinada boa-fé a quem contrata. E na medida em que

esse senso comum encontra-se positivado (garantia mínima de preservação dos

contratos), certamente também há desrespeito à segurança jurídica em seu mais

comezinho significado, qual seja, a impossibilidade de o contratante inadimplente

desistir do pacto passando os ônus de seu insucesso ao contratante inocente.

Falando-se no senso comum desse homem médio relativamente a questões

patrimoniais, vê-se aí a questão da legitimidade da lei e da ilegitimidade das

decisões judiciais. O que seja legitimo pode ter significado diferente para um mesmo

fato, conforme o tempo, o lugar e, especialmente, o regime de produção adotado

pela sociedade (capitalista, socialista, anarquista, corporativista, artesanal ou

feudalista). O caráter de um direito patrimonial em razão de sua (i)legitimidade é

aferido segundo os padrões de funcionalidade em que a economia está inserida. O

mercado é um fato social169 que integra a própria estrutura e o modo de ser da

sociedade. Não se trata de indagar qual é o melhor regime de produção, mas sim a

noção de legitimidade que de cada regime brota. Tratando desta questão, EROS

ROBERTO GRAU170 identifica a legitimidade como sendo o “direito pressuposto”,

fruto de padrões histórico-culturais e do regime de produção adotados na sociedade,

o qual informa a lei (o “direito posto”):

169 Sobre o mercado como fato social, escreve Luciano Benetti Timm: “Em uma perspectiva de análise econômica do Direito, não se rejeita que existam interesses coletivos dignos de tutela nas relações contratuais. Contudo a coletividade é identificável na estrutura do mercado que está por trás do contrato que está sendo celebrado e do processo judicial relacionado ao litígio a ele pertinente (em verdade, a própria Lei 8.884/94 reconhece ser o mercado protegido por ela um interesse difuso ou coletivo digno de tutela). Nesse sentido, o todo em um contrato de financiamento habitacional é representado pela cadeia ou rede de mutuários (e potenciais mutuários), que dependem do cumprimento do contrato daquele indivíduo para alimentar o sistema financeiro habitacional, viabilizando novos financiamentos a quem precisa. Assim, se houver quebra na cadeia, com inadimplementos contratuais, quem sai perdendo é a coletividade (que ficará sem recursos e acabará pagando um juro maior). Até porque, conceitualmente e mesmo na vida real, os bancos não emprestam o seu dinheiro, mas uma moeda captada no mercado”. ( Direito, economia e a função social do contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no mercado do crédito. <http://www.viadesignlabs.com/lawandeconomics/Funcao_Social_Contrato.pdf>, acessado em 04/12/2007). 170 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 5ª Ed., 2003, pp. 88-92.

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A legitimidade de que ora cuido, pois – legitimidade que não se identifica com legalidade; legitimidade do direito posto –, é produto da autoridade, entendida esta como decorrente da captação de padrões histórico-culturais, e não da captação de qualquer vontade ou conjunto de vontades (...). Impõe-se superarmos, no entanto, qualquer idealismo que se pretende sustentar desde minha afirmação inicial, neste capítulo. É que a necessidade de revelação (captação) dos padrões histórico-culturais da sociedade induz que dotado de autoridade é o legislador capaz de reconhecer as aspirações sociais e o interesse social, onde esboçada a idéia de uma sociedade ideal. O que importa é podermos definir quando e como o legislador exercita autoridade. A questão resolve-se no plano da realidade histórico-cultural e do estado de atuação das forças materiais produtivas, consideradas, ainda, as noções de direito pressuposto e de direito posto. [...] Diremos, então, que um direito posto é legítimo quando permite o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas, em determinada sociedade; ilegítimo, quando constitui entrave ao pleno desenvolvimento dessas forças, ocasião em que se instala um época de revolução social. [...] Minha postulação, que afasta qualquer idealismo, permite-nos verificar que, inúmeras vezes, um direito posto legítimo é precisamente o que instumenta dominação de classe e justifica a titularidade do poder por essa mesma classe. Assim, as sociedades feudais veiculavam direitos legítimos enquanto esses direitos, ainda que instrumentando dominação de classe e justificação do poder, permitiram o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas feudais. E assim por diante: a ilegitimidade de um direito se manifesta quando se instalam, em todas as suas possíveis nuanças, movimentos e épocas de revolução social. Com isso, creio, desmitificamos a legitimidade. Os padrões culturais e as aspirações de cada sociedade estão informados por condições históricas. Assim, houve uma legitimidade feudal, como há uma legitimidade capitalista e se poderá falar (ainda) de uma legitimidade socialista. Legítimo, assim – direito de outro modo -, é o direito posto que permite o pleno desenvolvimento das forças materiais produtivas. Os padrões culturais e as aspirações que estão em jogo, caracterizantes ou não caracterizantes da legitimidade de um direito, são os que afirmam ou negam o estado de coexistência dos vários modos de produção que coexistem na sociedade ao qual é aplicado.

Em conclusão, a desistência dos contratos de compra e venda com base no

art. 53 do CDC não encontra amparo em nível constitucional e infraconstitucional,

atentando contra a função social dos contratos, contra a boa-fé, além de desvirtuar o

sistema de incorporação imobiliária quando visto como rede contratual.

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143 IV.3 INADIMPLEMENTO DOS ADQUIRENTES E A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL

(ART. 63 DA LCI). CONSTITUCIONALIDADE

No tocante à forma de realizar o custeio da construção têm-se que ela pode

se dar por três meios conforme se trate: (a) incorporação a prazo e preço certos ou

por preço fechado (arts. 41 e 43); (b) incorporação com construção a preço de custo

ou por administração (art. 58); e (c) incorporação com construção por empreitada a

preço reajustável ou fixo (art. 55).

No regime de construção a prazo e preço certos, conhecido no jargão

comercial como “a preço fechado”, como visto, os compradores pactuam com o

incorporador um preço que envolve a fração ideal do terreno e o custo da construção

da obra, cujo data de conclusão é assumida por conta e risco do incorporador.

Assim, o incorporador vende a fração e se compromete a entregar a unidade

construída, sendo indiferente para os compradores se os custos efetivos forem

superiores ou inferiores à soma dos preços de venda de todas as unidades

alienadas pelo incorporador. Neste regime de construção, o construtor poderá ser o

próprio incorporador ou um terceiro por ele contratado. O preço da compra e venda

firmada com os adquirentes pode ser pactuado com ou sem correção monetária.

Já na incorporação a preço de custo ou por administração, os adquirentes são

compradores apenas de uma fração ideal do terreno. O custo efetivo da construção

que se levantará é de responsabilidade de quem compra dita fração, ou seja, são os

compradores quem, diretamente, paga pela construção e arca com os riscos de

elevação do preço final da construção. Lançada a incorporação, até que a fração

ideal de terreno seja vendida, é do incorporador a responsabilidade pelo pagamento

do custo da construção que lhe diga respeito (§ 6º do art. 35 e § 5º do art. 55). Uma

vez alienada a fração pelo preço pedido pelo incorporador, seu adquirente assumirá

o custo remanescente da construção. Assim, o incorporador segue pagando o custo

da construção relativa às frações que não comercializar, até que todas estejam

comercializadas, quando então só os recursos dos compradores é que verterão para

o pagamento da construção. O próprio incorporador pode figurar como construtor,

firmado contrato de construção à parte. No regime de preço de custo não se imputa

ao incorporador a responsabilidade por demora na conclusão da obra ocasionada

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144 pelo inadimplemento dos adquirentes, que neste caso são condôminos da

construção, responsáveis entre si.

Já no regime de empreitada, o incorporador vende aos interessados

exclusivamente as frações ideais de terreno, que depois passam a pagar o custo da

construção previamente pactuado em um contrato de empreitada. Tal qual no

regime de preço de custo, até que a fração ideal seja vendida, a responsabilidade

pelo pagamento do custo da construção que lhe diga respeito é do incorporador (§

6º do art. 35 e § 5º do art. 55). O custeio da construção é dos compradores, mas ele

não é sujeito a alterações como se dá no regime de preço de custo, salvo no tocante

à correção monetária. O empreiteiro poderá ser o próprio incorporador ou um

terceiro. A lei também permite que a empreitada seja contratada por preço fixo ou

com correção monetária.

Como se vê, os recursos necessários à construção dos edifícios, direta ou

indiretamente, provêm dos adquirentes. São eles quem paga o custo das

construções levadas a cabo sob os regimes de empreitada e de administração

(preço de custo). Já nas incorporações a preço e prazo certos (preço fechado),

quem assume os riscos de concluir a obra é o incorporador, mas indiretamente

também são os compradores que, pelas mãos daquele, canalizam recursos para a

construção.

Em qualquer dos casos, sem que os adquirentes vertam recursos para

custear a obra muito provavelmente ela entrará em colapso, retardando ou

paralisando. Considerada essa possibilidade, importa analisar um dos instrumentos

que lei põe à disposição das partes com a finalidade de solucionar a inadimplência.

Trata-se do procedimento de cobrança previsto no art. 63 da LCI, conhecido por

“execução extrajudicial” ou “leilão extrajudicial”.

Sem passar pelo crivo do Judiciário, esse procedimento de cobrança torna

viável a perda de propriedade de bem imóvel (fração ideal de terreno com a eventual

construção acrescida) e móvel (direito de crédito), decorrentes da relação jurídica

que mantém o inadimplente vinculado à edificação, ao incorporador e aos demais

adquirentes.

Sua adoção pode se dar em qualquer espécie de incorporação (por fechado

ou com construção a preço de custo e por empreitada). O que substancialmente se

altera é legitimidade ativa para recebimento do crédito reclamado.

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145

Assim, quando o pagamento construção é rateado diretamente entre os

adquirentes das unidades (regimes de empreitada e a preço de custo), dependendo

que constar previsto no contrato de construção e na convenção do condomínio

construtivo (se houver), o procedimento de cobrança do art. 63 da LCI poderá ser

deflagrado pela comissão de representantes, composta por pessoas eleitas dentre

os adquirentes (arts. 49 e 50), ou pelo construtor, conforme autoriza o caput daquele

artigo combinado com os incisos VI e VII do art. 1º da Lei 4.864/65171. Quando

houver previsão de que o débito do inadimplente seja cobrado pela Comissão de

Representantes, após recebido o valor, ela deverá tomar as providências para que o

crédito do construtor seja satisfeito. Na mesma linha de raciocínio, o art. 52 da LCI

prevê que o adquirente inadimplente não receberá a posse do imóvel enquanto não

quitar o preço da construção que lhe toca, caso em que permanecerá retida com o

construtor ou com o condomínio construtivo, conforme o caso.

Em qualquer dos casos, o construtor ou a comissão de representantes deverá

remeter notificação ao inadimplente para que este purgue a mora no prazo de 10

(dez) dias sob pena de sua fração ideal de terreno e respectiva construção, com

todos os direitos e obrigações com ela conexos, serem vendidas em leilão público.

Em havendo arrematação no leilão, devem ser observadas as regras de imputação

de pagamento previstas nos §§ 2º e 4º do art. 63. Quitado o débito principal,

despesas, honorários e multa, o que sobejar do valor pago será entregue ao

devedor, à semelhança do que se dá nas execuções judiciais.

Pouco usual, mas nem por isso ilegal ou incompatível com o CDC

considerado o caráter de lex specialis da LCI, nas construções sob o regime de

preço fechado também pode ser adotado o procedimento de cobrança previsto no

171 “Art. 1º Sem prejuízo das disposições da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 os contratos que tiverem por objeto a venda ou a construção de habitações com pagamento a prazo poderão prever a correção monetária da dívida, com o conseqüente reajustamento das prestações mensais de amortização e juros, observadas as seguintes normas: (...) VI - A rescisão do contrato por inadimplemento do adquirente sòmente poderá ocorrer após o atraso de, no mínimo, 3 (três) meses do vencimento de qualquer obrigação contratual ou de 3 (três) prestações mensais, assegurado ao devedor o direito de purgar a mora dentro do prazo de 90 (noventa) dias, a contar da data do vencimento da obrigação não cumprida ou da primeira prestação não paga. VII - Nos casos de rescisão a que se refere o item anterior, o alienante poderá promover a transferência para terceiro dos direitos decorrentes do contrato, observadas, no que forem aplicáveis, as disposições dos §§ 1º a 8º do art. 63 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, ficando o alienante, para tal fim, investido dos podêres naqueles dispositivos conferidos à Comissão de Representantes”.

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146 art. 63172. Para tanto, os incisos VI e VII do art. 1º da Lei 4.864/65, investem o

incorporador dos mesmos poderes que têm as Comissões de Representantes para

realização do procedimento de execução extrajudicial. Neste caso, todavia, tendo

em conta que no regime de “preço fechado” (art. 43) é o incorporador quem

responde pelo término da obra frente aos adquirentes e suporta com recursos

próprios a insuficiência das vendas ou o inadimplemento de seus clientes, a ele é

atribuída a legitimidade ativa para realizar a cobrança e para apropriar-se dos

valores pagos a título de purgação da mora ou de arrematação.

O procedimento de execução extrajudicial previsto no art. 63 é rápido e eficaz.

Foi o meio encontrado pelo legislador para reduzir o tempo de recuperação do

crédito. Diante da necessidade de estabilização do fluxo de entradas para

pagamento da construção e atendimento do cronograma de execução da obra, de

modo a não penalizar os adimplentes e toda a rede contratual que se forma em

torno da edificação, a LCI demonstra preferência por este procedimento.

Trata-se de opção pela coletividade em detrimento da obrigatoriedade de

processamento pela via judicial a demandar maiores sacrifícios à parte inocente e

maior dilatação de tempo em favor do devedor, prevalecendo o interesse coletivo

representado no bom andamento da obra sem que impedir que o devedor questione

a dívida judicialmente se assim o desejar.

Determinadas relações exigem soluções processuais próprias ou até mesmo

para-processuais, especializadas, sem as quais se compromete o direito material.

Aspectos marcantes da modernidade, a velocidade e a eficiência são indispensáveis

para que certas relações jurídicas atinjam seu escopo no tempo projetado de modo

a evitar perda patrimonial.

A opção em questão parece ser a que melhor atende ao interesse coletivo

sem desrespeitar o direito fundamental à ampla defesa. A pergunta, que já se deixou

antever linhas atrás, diz respeito à constitucionalidade da perda de propriedade pelo

procedimento previsto no art. 63, considerada previsão de inafastabilidade da

apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito pelo judiciário, do devido processo

legal, contraditório e ampla defesa, previstos no art. 5º, XXXV, LIV e LV, da CF/88.

Os princípios em que se traduzem esses incisos do art. 5º, estão intimamente

ligados e coordenados entre si, podendo ser traduzidos todos eles como “direito ao

172 Cfr. CÂMARA, Hamilton Quirino, Falência do incorporador imobiliário: o caso Encol. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, pp. 66-68.

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147 devido processo legal”173. Destrinchando-os, aí se têm, por alto, os princípios da

proibição de autotutela, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório

e da ampla defesa.

A incidência desses princípios se percebe com vigor diante de algum ato ou

lei que impeça ou dificulte o direito de defesa. Daí que, considerada a possibilidade

de perda de propriedade sem o devido processo legal pelo procedimento do art. 63

da LCI, a resposta acerca de sua constitucionalidade deve envolver todos os três

incisos, em que pese a sugestão primeira que sobressai indicar que o desrespeito

seria apenas do inciso LIV, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou

de seus bens sem o devido processo legal”.

A discussão, aliás, não diz respeito apenas ao procedimento da LCI. Com

efeito, guardadas as peculiaridades de cada procedimento, há modos semelhantes

de cobrança de créditos pela via extrajudicial, com perda de propriedade (plena ou

fiduciária), previstos em outros diplomas legais. Dentre eles têm-se a chamada

“execução extrajudicial” de contratos de mútuos com garantia hipotecária vinculados

ao Sistema Financeiro da Habitação, regulada pelo art. 29 e seguintes174 do

Decreto-Lei 70/66.

Nos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis e móveis, a venda

extrajudicial da coisa como forma de satisfação do direito do credor, também é

prevista, respectivamente175, nos arts. 25 a 30 da Lei 9.514/97 e no art. 2º do

173 Neste sentido opina NÉLSON NERY JÚNIOR, para quem bastaria que a Constituição tivesse previsto que todos tem direito ao devido processo legal para que estivessem envolvidos todos os incisos XXXV, LIV e LV, em um só. (NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 28). 174 Dispõem os arts. 31 e 32 do DL 70/66: “Art. 31. Vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o credor que houver preferido executá-la de acordo com este decreto-lei formalizará ao agente fiduciário a solicitação de execução da dívida, instruindo-a com os seguintes documentos: [...] Art. 32. Não acudindo o devedor à purgação do débito, o agente fiduciário estará de pleno direito autorizado a publicar editais e a efetuar no decurso dos 15 (quinze) dias imediatos, o primeiro público leilão do imóvel hipotecado. [...]”. 175 Lei 9.514/97: “Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário. § 1º. Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação”.

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148 Decreto-Lei 911/69. O mesmo se dá no CC/02 que, reafirmando o que já previa o

CC/16, continua autorizando, por meio dos arts. 1.433, IV, e 1.436, que o credor

pignoratício venda o bem empenhado para quitação de seu crédito176.

Curiosamente, não se veem debates judiciais acerca da constitucionalidade

do art. 63 da LCI, diferentemente do que se dá com procedimento de execução

extrajudicial regulado pelo Decreto-Lei 70/66, de todos aqueles acima citados, o que

mais se assemelha com o procedimento da LCI. Por isto, então, interessa colher

entendimentos acerca deste Decreto-Lei.

Sobre o DL 70/66 ficou conhecido o posicionamento do extinto Primeiro

Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo, que chegou a editar uma súmula,

a de número 39, por maioria de votos na Arguição de Inconstitucionalidade n.

493.349-9/01, julgada em 23/06/1994177. No mesmo sentido foi a posição firmada

pelo extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul no Incidente de

Inconstitucionalidade na Apelação Cível n. 189040938, julgado em 01/06/1990.

Há sérios argumentos por parte daqueles que sustentam a incompatibilidade

das chamadas “execuções extrajudiciais” com a CF/88. Todavia, há dentre eles

quem invoque argumentos de pouca pertinência, trazidos para o bojo da discussão

de maneira forçosa, e ainda outros tanto demasiadamente apaixonados.

Invocam-se, por exemplo, o princípio republicano para afirmar que todo o

poder emana do povo e que como tal todos devem ser considerados iguais perante

a lei (princípio da isonomia), ao passo, na contramão, a execução extrajudicial (no

caso do DL 70/66) só é permitida “em favor de instituições financeiras”, além de

remeter ao período da Ditadura Militar em nosso país. A alegação de existência de

autotutela é citada com frequência, ao passo que, em sentido contrário, o Estado

teria chamado para si, com exclusividade, o dever de solucionar os conflitos sociais

por meio de processos judiciais. Argumenta-se também com meras citações

Decreto-Lei 911/69: “Art. 2º. No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver”. 176 O CC/16 também contava com essa previsão no art. 774, III, e no art. 802, V. 177 Súmula 39 do extinto 1º TAC de São Paulo: “São inconstitucionais os artigos 30, parte final, e 31 a 38 do Decreto-lei nº 70 de 21.11.1966”.

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149 conceituais, sem êxito na demonstração de conexão com o tema da

constitucionalidade propriamente dita, os princípios da dignidade da pessoa

humana, o direito à cidadania e o direito à habitação, querendo com isso supor que

dignidade, cidadania e habitação são suficientes para evitar a cobrança de um

crédito que, diga-se de passagem, na maioria esmagadora dos casos é composto

por parcela incontroversa e significativa.

Não obstante, a constitucionalidade se faz presente. E neste sentido é que a

jurisprudência majoritária se formou, inclusive a do STF. De início deve-se assentar

que o direito nem sempre veda a autotela. Razões de ordem prática e equidade

recomendam que em certos casos ela seja exercida como, por exemplo, na legítima

defesa do patrimônio ou da incolumidade física. O que se exige para que a

autotutela seja lícita e constitucional é sua previsão normativa acompanhada de

proporcionalidade, exercício não abusivo do direito subjetivo e acesso aberto às vias

judiciais. Discorrendo sobre a lei arbitragem, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR178

observa:

Já se afirmou que a noção de jurisdição veio se afirmando e consolidando à medida que o desenvolvimento do Estado pôde substituir a primitiva autotutela (justiça pelas próprias mãos do ofendido) pela atual tutela jurisdicional, com que se intentou estabelecer o monopólio da jurisdição. No entanto, a assunção desse monopólio não foi completa, porque, mesmo em nossos dias a ordem jurídica ainda tolera, embora como exceções, algumas modalidades de autotutela, como a legítima defesa, no âmbito do direito penal, e o desforço imediato, o direito de retenção, o penhor legal, etc., no campo do direito civil. Fora, porém, das hipóteses excepcionais previstas em lei, a justiça pelas próprias mãos é vetada e configura, até mesmo, crime tipificado no Código Penal (art. 345).

O inciso XXXV do art. 5º da CF/88 dispõe que “a lei não excluirá da

apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Dele, duas leituras

podem ser feitas. Uma é a de que toda controvérsia poderia ser levada à decisão do

Judiciário, que teria o dever de conhecê-la e resolvê-la. A outra é a de que toda

controvérsia só poderia ser decidida pelo Judiciário. Comentando o “amplo acesso

ao Judiciário”, CELSO RIBEIRO BASTOS179 diz ser excessivo este último ponto de

vista. Para ele, o significado correto é apenas o de que “lei alguma poderá auto-

178 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Arbitragem e terceiro: litisconsórcio fora do pacto arbitral. Outras intervenções. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n. 14. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2001. 179 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1990, p. 198.

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150 excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem

poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário

para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação”.

Para infirmar a constitucionalidade do procedimento de cobrança em questão,

também importa a orientação que se adotou em relação à arbitragem extrajudicial

prevista180 pela Lei 9.307/1996. Por ocasião do julgamento do pedido de

homologação de sentença arbitral prolatada na Espanha (SE 5.206), o STF decidiu

analisar de ofício e incidentalmente, como matéria prejudicial, a constitucionalidade

da previsão de atribuição de efeito de coisa julgada material à sentença arbitral que

torna inatacável seu mérito pela via judicial quando preenchidos os requisitos

formais previstos em lei181.

Comparativamente, a Lei 9.307/1996 restringe a possibilidade de discussão

judicial em um nível bem mais acentuado que os procedimentos de “execução

extrajudicial” antes referidos. Com efeito, a análise de mérito das questões

submetidas à arbitragem não podem ser apreciadas pelo Judiciário. Não obstante, o

STF reconheceu a constitucionalidade da Lei 9.307/1996 por ocasião daquele

julgamento.

Prevaleceu o entendimento de que a inafastabilidade do controle jurisdicional

em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito, não significa que o interessado

esteja obrigado a buscar o Judiciário para decidir as divergências em que esteja

envolvido. Entendeu-se que o art. 5º, XXXV, da CF/88, garante o direito de ação,

mas não obriga sua utilização uma vez que o ajuizamento de medida judicial é uma

faculdade, não um dever. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional dá

conta de que “a lei não excluirá da apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça

180 “Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. “Art. 3º As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral”. “Art. 18. O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. 181 Consoante histórico contido no voto do Min. Sepúlveda Pertence, a questão da inconstitucionalidade da arbitragem passou a ser aventada com a Constituição Federal de 1946, que foi a primeira a prever, assim como todas as que lhe sucederam, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão seria afastada do conhecimento do Judiciário. Não obstante, a arbitragem já era prevista em nossa legislação desde as Ordenações Filipinas (Livro III, Título XVI e XVII), passando pela Constituição do Império, pelo Código Comercial de 1850 (arts. 245, 294, 348, 739, 783 e 846), pelo Regulamento 737/1850 (art. 411, § 1º), pela Lei 1.350/1866, pelo Decreto 3.900/1867, pelo Código Civil de 1916 (arts. 1.037 a 1.048) e pelos Códigos de Processo Civil de 1938 (arts. 1.031 a 1.046) e 1973 (1.072 a 1.102).

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151 a direito”, mas não proíbe que as partes busquem outros meios de solução para

suas controvérsias, na medida em que já é aceita a transação extrajudicial como

meio de prevenir ou extinguir litígio que verse sobre direito disponível.

O Min. NÉLSON JOBIM votou naquela oportunidade dizendo que, não

obstante constar do capítulo dos direitos individuais fundamentais, “o destinatário da

norma [o art. 5º, XXXV, da CF] não é o cidadão, mas, sim, o sistema legal, ou seja, é

proibido ao sistema legal criar mecanismos que excluam da apreciação do Poder

Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Lançando mão de uma interpretação histórica, JOSÉ MARIA ROSSANI

GARCEZ182 relata como o princípio da inafastabilidade surgiu pela primeira vez em

uma Constituição brasileira (a de 1946), concluindo, com PONTES DE MIRANDA,

que seu destinatário é o legislador, não o particular:

O mesmo remonta aos tempos do Estado Novo, em que o regime ditatorial fazia com que os inquéritos parlamentares e policiais fossem levados a efeito sem que os envolvidos tivessem assegurado direito e garantias mínimas, sendo vedado ao Judiciário o reexame da questão. Nesse contexto, no regime legal de 1937, justificou-se o preceito inserido na Constituição Federal de 1946 em razão da legislação existente, excludente de apreciação judicial inquéritos parlamentares policiais, prevendo não poder a lei excluir a apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de direito, sendo ele mantido nas Cartas de 1967 e 1988, quase com a mesma redação. Como ensina Pontes de Miranda (Comentários...), o objetivo do referido dispositivo constitucional foi educar as próprias autoridades governamentais, já que é para elas que se direciona o princípio – diz Pontes: “dirige-se ela aos legisladores: os legisladores ordinários nenhuma regra jurídica podem editar que permita preclusão em processo administrativo, ou em inquérito parlamentar, de modo que exclua a cognição pelo Poder Judiciário. O mesmo, evidentemente, não se aplica às partes, desejosas de solucionar suas controvérsias por um método fora da jurisdição estatal, teoricamente ao menos com maior especialização e rapidez, atribuindo por sua própria a exclusiva manifestação de vontades, poderes para que árbitros privados possam ditar a solução de suas controvérsias através de um laudo que se obrigam a cumprir e que tem agora, também no Brasil, força de lei e eficácia coativa similar à sentença judicial transitada e julgado.

O que se garante ao cidadão, então, seria apenas uma opção de submeter o

litígio à decisão do Judiciário ou a um terceiro particular. No mesmo sentido votou a

Minª. ELLEN GRACIE no julgamento da SE 5.206:

182 GARCEZ, José Maria Rossani. Constitucionalidade da Lei 9.307/96. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, n° 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, out-dez de 2000.

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152

Entendo que a garantia de acesso ao judiciário é daqueles direitos fundamentais nos quais se reconhece maior peso ao que Canotilho (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Livraria Almedina, 4ª ed., p. 401 e seguintes) denomina de função de direitos de defesa dos cidadãos. Ou seja, no plano jurídico-objetivo, representa a impossibilidade, para o Estado legislador, de excluir da apreciação judicial determinadas matérias e, no plano jurídico-subjetivo, “o poder de exercer positivamente o direito de ação”. A mesma garantia, em função de prestação social , corresponde à obrigação estatal de instituir e manter mecanismos judiciários equipados e suficientes ao atendimento dos litígios judicializáveis. E, por último, em sua função de não discriminação , obriga o Estado a prestar jurisdição a todos, assegurando a gratuidade a quem não possa enfrentar as custas do processo, garantindo o concurso de defensor dativo ao criminoso pobre e, mesmo, os serviços de consultoria e advocacia gratuita no cível, como forma de equalizar os cidadãos em suas condições de efetivo acesso à Justiça. Como se vê, o cidadão pode invocar o judiciário, para a solução de conflitos, mas, não está proibido de valer-se de outros mecanismos de composição de litígios. Já o Estado, este sim, não pode afastar do controle jurisdicional as divergências que a ele queiram submeter os cidadãos.

No caso aqui tratado, nem o art. 63 da LCI e nem o Decreto-Lei 70/66,

felizmente em passagem alguma, impedem que o devedor bata às portas do Poder

Judiciário e suspenda o procedimento de execução extrajudicial. Ainda que se trate

de devedor confesso ao menos de parte da dívida reclamada, também felizmente, o

Judiciário tem determinado a suspensão das execuções. O mesmo se diz acerca da

possibilidade de suspensão do procedimento caso haja nele algum vício formal (v.g.,

falta de notificação para purgação da mora ou de publicação de editais de leilão).

De fato, o procedimento do art. 63 da LCI não prevê contraditório em seu

bojo. Isto, todavia, não o inquina de inconstitucional na medida em que o devedor

poderá se valer do Judiciário antes, durante e até mesmo depois de o procedimento

ser encerrado. Ainda, a falta de contraditório extrajudicial é coerente com o sistema

adotado, porque sua finalidade é a cobrança da dívida, não se tratando de um

sistema de julgamento, mediação, conciliação ou arbitragem que tenha por escopo

compor as partes ou dizer o direito aplicável. O iuris dictum continua com o

Judiciário. Demais disso, é intuitivo que o contraditório numa fase extrajudicial de

cobrança, sem atribuição de poder de decisão e controle com força vinculante a

quem quer seja, seria algo totalmente inócuo, de modo que o mais adequado

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153 realmente foi permitir, como permitido está, que o devedor que pretender discutir

valores ou formalidades, valha-se de medida judicial própria.

No momento em que o devedor recebe a notificação para que purgue a mora

no prazo de 10 dias, abre-se-lhe a oportunidade de exercer o contraditório mediante

propositura de uma ação judicial, equivalendo ela ao recebimento de uma citação. A

marca do contraditório é a possibilidade de reação. Nas ações de execução judicial,

o devedor é citado para pagar, dar, fazer ou deixar de fazer algo. O contraditório

será exercido mediante oferecimento de embargos do devedor. Logo, a iniciativa do

contraditório é do devedor. O mesmo se dá, mutatis mutandi, com o procedimento

do art. 63: o devedor será notificado e poderá, se quiser, ajuizar ação própria para

impedir o leilão, podendo alegar toda a matéria de fato e de direito, de maneira até

mais abrangente (é interessante observar) do que poderia fazer no bojo uma ação

de embargos à execução de título extrajudicial, considerada a nova redação do

inciso III do art. 739, e do caput e §§ 3º e 5º do art. 739-A, todos do CPC. Neste

sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB183:

Com efeito, o contraditório se caracteriza, fundamentalmente, pela efetiva possibilidade de reação, a partir do momento em que a parte toma ciência de algum ato que lhe seja desfavorável, como observa Sergio La China, para quem a manifestação técnica do contraditório decorre da articulação de dois aspectos, quais sejam, a informação (notificação, citação), e reação (embargos, ação), necessária sempre a primeira, eventual a segunda (mas necessário que seja efetivamente viável).

Dizendo da possibilidade de acesso ao Judiciário e da constitucionalidade do

art. 63, FRANCISCO ARNALDO SCHMIDT184 já escrevera que:

Isso a lei não impede, nem poderia fazê-lo, sob pena de, aí sim, abrigar preceito inconstitucional. Veja-se que a existência de processos judiciais questionando a validade do art. 63 constitui o melhor argumento contra a alegação de que a matéria teria sido subtraída à apreciação do Poder Judiciário.

No mesmo sentido, posicionou-se HUMBERTO THEODORO JÚNIOR185:

183 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 301-302. 184 SCHMIDT, Francisco Arnaldo. Incorporação Imobiliária . 2ª ed. Porto Alegre: Norton Editor, 2006, p. 141. 185 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Incorporação imobiliária: atualidade do regime jurídico instituído pela Lei n° 4.591/1964. Revista Forense, n° 100, vol. 376. Rio de Janeiro: Editora Forense, nov-dez de 2004.

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154

Não procede, também, acusação de ofensa ao devido processo legal, por autorizar a Lei n° 4.591/64 a alienação forçada sem prévia decisão judicial. De fato, o leilão previsto pela Lei de Incorporações é extrajudicial e será realizado por leiloeiro oficial. Não depende, pois, de qualquer procedimento em juízo, o que, todavia, não impede o condômino inadimplente de recorrer ao Judiciário se se considerar prejudicado ou se tiver motivo para discutir o débito, sobrestar o leilão ou formular qualquer pretensão prejudicial à hasta pública ou aos seus resultados. Autorizando o procedimento sumário e extrajudicial do leilão, a lei objetivou apressar o reequilíbrio econômico do empreendimento, sem, contudo, trancar ao condômino que não se julgue em mora as vias judiciais para a defesa de seus direitos.

Como já mencionado, em que pese não se verificarem questionamentos

judiciais sobre a constitucionalidade do art. 63 da LCI, os Tribunais têm aceito o

procedimento em questão exceto em caso de inobservância de regularidades

formais. Neste sentido têm-se acórdãos do STF186 (RE 79.431-RJ, RE 81.144-SP e

RE 83.287-RJ) do Stj (REsp 345.677-SP, REsp 66.699-RJ e REsp 9.818-SP) e do

TJ-PR (Apelações Cíveis n°: 62.602-0, 120.991-4, 17 .025-8, 156.259-4, 49.123-6,

114.503-7 e 355.322-2. Agravos de Instrumento n°: 4 40.617-5, 321.751-8 e 462.074-

4).

IV.4 FALÊNCIA DO INCORPORADOR, PARALISAÇÃO OU RETARDAMENTO

EXCESSIVO E INJUSTIFICADO DA OBRA

O inadimplemento do incorporador ou do construtor toma proporções

preocupantes quando da decretação de sua falência ou em caso de paralisação ou

retardamento excessivo e injustificado da obra. Revestindo-se de natureza absoluta,

esse inadimplemento ganha contornos coletivos atingindo interesses ou direitos

individuais homogêneos relacionados ao conjunto de consumidores adquirentes.

186 A propósito, têm a ementa que mais adentro foi na questão: “INCORPORAÇÃO IMOBILIARIA. ACÓRDÃO QUE CONSIDEROU LEGITIMA CLÁUSULA CONTRATUAL EM QUE OS CONDOMINOS OUTORGARAM AO INCORPORADOR OU AO CONSTRUTOR AUTORIZAÇÃO PARA EFETUAR O LEILÃO PREVISTO NO ART. 63, PARAGRAFO 1., DA L. 4.591, DE 16.12.1964. PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO INSCRITA CONSTITUI DIREITO PESSOAL E DISPENSA A NOTIFICAÇÃO DA MULHER DO COMPRADOR PARA A PURGAÇÃO DA MORA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA A DIREITO FEDERAL OU DISSIDIO DE JULGADOS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (RE 79431, Relator(a): Min. RODRIGUES ALCKMIN, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/11/1975, DJ 12-03-1976)”.

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155 Demais disso, atinge também todos os demais contratos que de alguma forma

estejam relacionados com a incorporação como são o caso, por exemplo, do

financiamento bancário concedido para a construção da obra e do contrato de

compra e venda do terreno sobre o qual se erige a construção.

A apreciação do tema deve levar em conta se a incorporação encontra-se ou

não sob o regime de afetação patrimonial, haja vista a diversidade de efeitos,

direitos, obrigações e providências que o inadimplemento absoluto provoca para as

partes contratantes.

IV.4.1 Na Incorporação Imobiliária sem Afetação Patrimonial

As obras das incorporações em que não se tenha adotado o regime de

afetação patrimonial podem ser concluídas pelos consumidores adquirentes, sem

participação do incorporador. A possibilidade está prevista no art. 43, III e VI, desde

a edição da LCI no ano de 1964. Os incisos III e VI situam-se em artigo que trata

especificamente das incorporações sob regime de prazo e preço certos, em que o

incorporador se compromete a transferir a propriedade da fração ideal de terreno e

ainda construir o empreendimento em determinado prazo, fazendo-o ele próprio ou

um construtor por ele contratado e remunerado. Não obstante, a aplicabilidade

desses incisos se estende a todos os regimes por força do art. 49 da LCI.

O inciso VI prevê que a paralisação ou o atraso injustificado da obra por

tempo superior a 30 (trinta) dias pode se converter em inadimplemento absoluto. O

inciso III, por sua vez, prevê que “em caso de falência do incorporador, pessoa física

ou jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir na construção das edificações”,

restará aos adquirentes se habilitarem individualmente na massa falida como

credores privilegiados pela quantia que tenham pago ao incorporador, respondendo

subsidiariamente seus bens pessoais.

No entanto, ao contrário do que o dispositivo possa dar a entender, a falência

do incorporador por si só não implica paralisação da obra e não permite “à maioria

prosseguir na construção das edificações”. Com efeito, em que pese seja raro, pelo

fato de a incorporação tratar-se de contrato bilateral, mesmo falido o incorporador

terá direito de concluir o empreendimento se acaso tiver condições de fazê-lo e se

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156 neste sentido se manifestar o administrador da massa187. Do contrário, abre-se aos

adquirentes a possibilidade de decidirem se concluem a construção ou não.

Decidindo positivamente, o terreno e suas acessões não serão arrecadas pela

massa falida188. E se o incorporador falido que tenha optado por cumprir o contrato

vir a atrasar ou paralisar o andamento da obra, os adquirentes poderão concluir a

obra sem sua participação189, caso em que deverão adotar as medidas previstas no

187 Conforme art. 117 e art. 119, VI, da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência de Empresas), combinados com o Decreto-Lei 58/1937 e seu regulamento (Decreto 3.079/1938). 188 MELHIM NAMEM CHALHUB ao justificar a adoção do regime de afetação patrimonial demonstra, e com razão, apreensão acerca da possibilidade de se destacar o empreendimento da massa falida, vendo empecilhos jurídicos no tocante à outorga da propriedade das frações ideais de terreno e à destinação do estoque de unidades que o incorporador eventualmente ainda não tenha comercializado. Segundo ele, essas providências são facilmente contornadas quando se está diante de incorporação com regime de empreitada ou de administração, em que as frações ideais tenham sido alienadas mediante um contrato registrado na matrícula da incorporação. Do contrário, os adquirentes que não tenham registrados seus contratos deveriam se habilitar como credores obrigacionais. Neste ponto, todavia, parece equivocada a observação do ilustre autor na medida em que o art. 43 da LCI prevê que, em decidindo a maioria prosseguir com a obra, não há o que habilitar na massa, mas sim requerer a transferência da propriedade definitiva das frações ideais de terreno, verbis:

“Além disso, em caso de falência da incorporadora, os bens que integram o acervo de todas as suas incorporações devem ser arrecadados à massa, daí surgindo dúvidas e incertezas quanto à plena eficácia das disposições dos incisos III e VI do art. 43 da Lei 4.591/64.

De fato, o inciso III do art. 43 prevê que, em caso de falência do incorporador, os adquirentes serão considerados credores privilegiados da massa, enquanto que o inciso VI admite a substituição do incorporador, em caso de atraso ou paralisação da obra.

Se a incorporação tiver sido pactuada mediante compra e venda da fração ideal do terreno (pela qual cada adquirente se torne proprietário das frações ideais, mediante escritura de compra e venda registrada) e celebração de contrato de construção do edifício, a solução, caso sobrevenha a falência do incorporador, há de ser relativamente simples, pois o terreno já não estará integrando o patrimônio deste e, portanto, não será arrecadado, enquanto que, no que tange à obra, o contrato de construção poderá ser distratado, nos termos do art. 43 da Lei de Falências, que permite ao síndico prosseguir ou não a execução dos contratos em curso, conforme seja conveniente para a massa ou não.

Essa forma jurídica de contratação da incorporação, entretanto, é rara, sendo mais comum a contratação de promessa de compra e venda de unidade imobiliária (fração ideal + acessões) como “coisa futura”. Nesse caso, o incorporador é titular do domínio sobre imóvel e, em contrapartida, é sujeito passivo de obrigação de construir e entregar a unidade, bem como da obrigação de outorgar o contrato definitivo de compra e venda.Muito embora aqui, também, se aplique a regra do art. 43 da Lei de Falências, pela qual Síndico da Massa dirá da conveniência ou não do cumprimento desse contrato de promessa de compra e venda, será necessária autorização judicial para transmissão do domínio para o adquirentes. Nesses casos, é comum apresentarem-se duas situações: a primeira, contemplando contratos de promessa de compra e venda registrados no Registro de Imóveis e a segunda contemplando contratos de promessa sem registro. No primeiro caso, estando os contratos registrados, a autorização poderá ser deferida à vista de documento comprobatório do registro e da comprovação do pagamento do preço; em regra, esses pedidos de autorização não encontram obstáculo. (..) Entretanto, poderão ocorrer dificuldades nos casos em que os adquirentes tenham deixado de registrar seus contatos de aquisição de unidades, pois, enquanto na primeira hipótese (...) o adquirente é investido de direito real sobre o imóvel, na outra hipótese (...), o direito do adquirente tem natureza meramente obrigacional, e é na configuração de direito de crédito que deve ser habilitado no Juízo onde se processa falência, ali passando a concorrer com os demais créditos, de acordo com o regime de preferências estabelecido em lei”.(CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 73).

189 Fazendo referência ao inciso III do art. 43 da LCI, observa HAMILTON QUIRINO CÂMARA, comentando caso concreto resultannte da quebra da incorporadora ENCOL: “Foi fundamental a corajosa desvinculação de mais de 700 empreendimentos do processo de falência, com rigoroso cumprimento do artigo 43, III da Lei

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157 inciso VI do art. 43, vale dizer, deverão notificar o incorporador marcando-lhe prazo

de 30 (trinta) dias para que lhe dê andamento regular.

Passado o prazo de 30 (trinta) dias sem as obras tenham se normalizado, os

adquirentes poderão ser reunir em assembleia e destituir o incorporador da posição

de incorporador, condição sine qua nom para que o este não possa mais praticar

atos tendentes a promover a incorporação, o que parece implicar proibição de

continuar a alienar novas frações ideais de terreno e cobrar ou receber valores

eventualmente devidos pelos adquirentes, em que pese não haja um sistema de

proteção aos incautos que, desconhecendo essa proibição, acabem por adquirir ou

pagar o incorporador.

A destituição do incorporador não depende de medida judicial com

contraditório e ampla defesa a ser proposta pelos adquirentes. A mera notificação

seguida de assembleia dos adquirentes já lhe produz os efeitos. Até pelo contrário: é

o incorporador quem deverá adotar alguma medida judicial para evitar sua

destituição, caso em que deverá comprovar que a paralisação ou o atraso não

existem, que são inferiores a 30 (trinta) dias ou que são justificados. Assim, além da

força desconstitutiva que a LCI confere à decisão da assembleia, inverte-se o ônus

da prova relativa ao estágio da construção obrigando a que o incorporador vá ao

judiciário provocar o contraditório e a ampla defesa.

Escrevendo sobre o inciso VI do art. 43, CAIO MÁRIO DA SILVA

PEREIRA190 escreve a que a função do juiz, neste caso, é a de determinar a

notificação do incorporador e nada mais. Posteriormente, verificado pelos

4.591/64. Afinal de contas, na dicção do texto legal, se os compradores retomam as obras ficam fora da falência”. O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que, na forma da Lei n. 4.591/64, os empreendimentos de obras paradas não integram a massa falida, desde que os adquirentes decidam retomar as obras, passando para a propriedade dos condôminos, inclusive as unidades de estoque, o que é obtido mediante simples alvará judicial, para proceder às ”. (CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 3). Também comentando a questão, JÉVERSON LUÍS BOTTEGA demonstra incerteza quanto ao entendimento do art. 43, III, ao comparar as incorporações com e sem regime de afetação patrimonial: “Pelo sistema da Lei 4.591/64, segundo o disposto no artigo 43, III, em caso de falência do incorporador os adquirentes podem optar por prosseguir na construção da edificação ou serem credores privilegiados da empresa incorporadora nas importâncias pagas até o momento da decretação da falência. O benefício em relação à nova Lei é que, pela 4.591/64, segundo a jurisprudência majoritária [apelação cível n. 200100508574, 3ª Turma do TJ-GO, p.e.], os adquirentes não assumem a responsabilidade pelo pagamento das dívidas tributárias, previdenciárias e trabalhistas que deveriam ter sido pagas pelo incorporador falido com recursos provenientes das prestações já pagas pelos adquirentes, enquanto que, constituído o patrimônio de afetação, os adquirentes tem que, de certa forma, pagar pelo que já pagaram” (BOTTEGA, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton Editor, 2005, p. 64). 190 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 286-287.

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158 adquirentes que este não retomou a conclusão da obra, podem eles se reunir em

assembleia, votar e aprovar ou não a destituição do incorporador sem que, para

tanto tenham que obter qualquer tipo de manifestação judicial. Veja-se:

Verificado o fato – paralisação ou retardamento excessivo -, o incorporador será notificado para reiniciar a obra ou imprimir-lhe andamento normal. Aqui é preciso dar uma explicação: fala-se que o juiz poderá notifica o incorporador, não para significar que tomará a iniciativa desta providência, pois que o juiz não procede ex officio, mas que, a requerimento de qualquer interessado, ordenará notificação. Realizada esta, e decorrido o prazo de 30 dias sem que as obras se reiniciem ou o andamento readquira a normalidade, os interessados não precisam ir a juízo para resolver o contrato, porque a lei lhes oferece a faculdade de, pela sua vontade, destituírem o incorporador. Invertendo-se a situação, armam-se os adquirentes de formidável poder. Na verdade, lançá-los nos azares de uma demanda para, ao fim de luta profiada, conseguirem com a resolução do contrato a liberdade de prosseguir com outro incorporador ou tomarem diretamente a direção da edificação, sempre constitui maior obstáculo para que os interessados se movimentassem.

Ainda, o art. 43, VI, não exige qualquer espécie de assembleia ou quórum

para que seja realizada a notificação judicial ali prevista. Quórum será necessário

posteriormente, se acaso os adquirentes optarem por destituir o incorporador em

decisão assemblear. Para requerer a notificação judicial basta uma única pessoa,

conforme também opina NÉLSON LUIZ GUEDES FERREIRA PINTO191.

Aprovada a destituição do incorporador, os adquirentes devem tomar a posse

do terreno e das acessões, o que se faz de forma indiferente ao fato de serem

propriedade formal o incorporador ou de um terceiro que tenha autorizado a

incorporação sobre o terreno. Se necessário, poderão adotar medidas judiciais

porque sem a posse frustra-se o direito de retomar a obra garantida pelo art. 43.

Ainda, os adquirentes deverão contratar construtor para concluí-la, rateando

entre si o custo do término da construção e também adotar as medidas judiciais

necessárias para que tenham registrado em seus nomes a propriedade da fração

ideal adquirida.

191 “No caso de paralisação da obra pelo incorporador ou de sua falência, qualquer adquirente poderá promover a notificação do mesmo para reiniciar e dar andamento normal à construção, no prazo de 30 dias”. (PINTO, Nélson Luiz Guedes Ferreira. Contrato de incorporação imobiliária. In THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 271).

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159

Até o advento da Lei 10.931/2004, que introduziu o patrimônio de afetação, a

LCI não contava com nenhum dispositivo que orientasse como haveria de se realizar

o rateio da construção entre os adquirentes. Atualmente, em que pese faça alusão

apenas às incorporações sob o regime de afetação, o § 12 do art. 31-F também

pode ser aplicado às incorporações desprovidas de afetação patrimonial. Com

efeito, além de provocar um efeito sistemático sobre toda a LCI, a norma deste

dispositivo atende os princípios da boa-fé dos adquirentes e da solidariedade para

com o objetivo de concluir a obra, consideradas a perspectiva prévia e

espontaneamente assumida com o incorporador no sentido de pagar pela unidade o

valor expresso no contrato (boa-fé) e também a contribuição para o término na obra

em conjunto com os demais adquirentes (solidariedade). Sobre a decisão solidária

da maioria, J. NASCIMENTO FRANCO e NIESKE GONDO destacam que

fracassando o incorporador “... e assumindo o encargo de dar andamento às obras,

por intermédio da comissão, a maioria [dos adquirentes] menos não faz do que agir

em benefício de todos, salvando o patrimônio comum”192.

Assim, o rateio do custo da retomada das obras deve ser realizado levando

em consideração, em primeiro lugar, o valor que cada adquirente já pagou ao

incorporador. Em havendo quem ainda não tenha quitado o preço da aquisição,

deverá pagar o remanescente ao fundo de construção formado pelos adquirentes

para o término da obra. Ato contínuo, se acaso a soma desses saldos

remanescentes não for suficiente para concluir o empreendimento (como na prática

em geral não é), todos os adquirentes hão de realizar novos aportes rateados

segundo a área total de cada unidade, inclusive aqueles que haviam quitado seus

contatos junto ao incorporador destituído193. Sobre esta questão, mesmo que

dissesse respeito ao condômino pro indiviso e geral de Direito Civil, ainda assim

todos os adquirentes ficariam obrigados a contribuir para com o custeio das

192 FRANCO, J. Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 136. 193 Neste sentido, veja-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: “Reunião dos adquirentes sob a forma de Comissão, através de Assembléia Geral, para o reinício das obras. Despesas de manutenção e com a regularização jurídica do terreno, para o fim de viabilizar o reinício das obras, as quais incumbem aos adquirentes, tenham ou não quitado integralmente o preço junto ao incorporador original (artigo 43, VI da Lei nº 4.591/64). Situação que se equipara a do condômino de cota-parte para as despesas de conservação da coisa comum e a suportar os ônus a que estiver sujeita (art. 624 do Código civil), sob pena de enriquecimento ilícito”. (apelação cível .6.276/01, de 05.06.01, da 7ª Câmara Cível, relatora a Des. Célia Vidal) (destacamos). Sobre o assunto, têm-se também julgado do Tribunal de Justiça do Paraná, proferido na apelação cível nº 142.018-4, de que foi relator da apelação o Des. Domingos Ramina.

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160 benfeitorias ou acessões realizadas em seu proveito, consoante art. 1.315 do CC/02.

Ainda, calha transcrever novamente as lições (incisivas) de J. NASCIMENTO

FRANCO e NIESKE GONDO194 para quem

todos os beneficiários ficam obrigados a contribuir com sua cota para a construção, pois não é justo que eles se coloquem na cômoda posição de esperar o término das obras, para receber os apartamentos prontos, sem nada pagar ou pagando afinal. Num ou noutro caso haveria enriquecimento ilícito à custa dos que lutaram para evitar o colapso da incorporação. Que se voltem os inconformados contra o incorporador, responsabilizando-o civil ou criminalmente. Mas que paguem a sua parte, contribuindo para o êxito do plano estabelecido pela maioria.

A aquisição e quitação de imóvel na planta não exime adquirente algum de

contribuir para o custeio do término da obra, porque se trata de dívida comum. É

uma regra de equidade porque seria injusto que alguns paguem pelo término da

construção enquanto outros recebem-na pronta sem nada contribuir, quando na

realidade o culpado é o incorporador. Prejuízo com a paralisação da obra todos os

adquirentes têm. Se aqueles que haviam quitado seus contratos junto ao

incorporador tiveram um prejuízo, igualmente tiveram quem tenha quitado apenas

em parte. A diferença de prejuízo entre um e outro se igualará com a retomada das

obras e o dever de quitação dos saldos para com o incorporador transferido ao

condomínio de adquirentes. Com efeito, a destituição do incorporador por decisão da

assembleia altera a relação jurídica de direito material, em certa medida

individualista, que ligava os adquirentes ao empreendimento por via do contrato

firmado com o incorporador, fazendo surgir uma nova relação jurídica diretamente

com os demais adquirentes por força do art. 43, VI, da LCI, agora marcadamente

coletiva, solidária e voltada para o alcance da função social da incorporação

imobiliária, qual seja, a construção do empreendimento mediante contribuição de

todos os consumidores sem a participação do incorporador.

Em verdade, as dívidas oriundas da assembleia que decide concluir a obra

têm natureza jurídica de dívida propter rem, que se vincula ao imóvel, tornando

obrigatória sua quitação por quem quer que venha se tornar seu proprietário, o que,

aliás, encontra-se previsto na parte final do art. 63 da LCI (“... pelo débito respondem

os direitos à respectiva fração ideal de terreno e à parte construída adicionada”).

194 FRANCO, J Nascimento et GONDO, Nieske. Incorporações imobiliárias. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 126-127.

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161 Essa natureza jurídica de dívida propter rem já foi reconhecida pelo STJ, consoante

acórdão prolatado no Recurso Especial nº 255.593-SP, do qual foi relator o Min.

RUY ROSADO DE AGUIAR, acolhido por unanimidade. Nessa decisão, reconheceu-

se a obrigação de pagamento de credor hipotecário que arrematou o imóvel para

satisfação de seu crédito, mas ainda assim, na condição de novo proprietário, foi

obrigado a pagar a dívida relativa à construção195.

Deve-se também analisar situação possível em que o incorporador ainda não

tenha comercializado todas as frações ideais de terreno por ocasião de sua

destituição e retomada das obras por decisão da assembleia. Neste caso, o

incorporador tem a obrigação de arcar com os custos de construção a elas

inerentes. A obrigação vem disposta no art. 35, § 6º, da LCI. Do contrário, o

incorporador não poderia ser considerado responsável pela promoção da

incorporação, notadamente nas incorporações em regimes de preço fechado (arts.

41 e 43). Esta obrigação não se altera pela destituição ou falência do incorporador 195 Sobre a questão assim decidiu o STJ no Recurso Especial nº 255.593-SP, de que foi relator Min. RUY ROSADO DE AGUIAR: “São duas as questões propostas neste especial: a legitimidade ativa da autora e a ilegitimidade do banco réu em ação de cobrança de parcelas do preço de custo para a construção do imóvel, parcelas devidas pelos primitivos condôminos, cujas unidades foram adjudicadas ao agente financeiro em execução hipotecária.

A comissão de representantes dos condôminos de edifício em construção por incorporação, que recebe da assembléia geral dos contratantes da construção, depois de destituída a incorporadora do empreendimento por decisão judicial (art 43, inc. VI, da lei 4591/64), a função de “prosseguir na obra”, fica, por força da lei, “investida nos poderes necessários para exercer todas as atribuições e praticar todos os atos que esta lei e o contrato de construção lhe deferirem, sem necessidade de instrumento especial outorgado pelos contratantes” (art 50, § 1º da Lei 4591/64), entre eles o de cobrar as parcelas ema atraso. Ressalta a circunstância anotada no r. acórdão dos embargos declaratórios, de lavra do Des. Rodrigues de Carvalho: a comissão atua ex lege, daí a impropriedade da referência ao art. 18 do C Civil, pois é desnecessária a criação de pessoa jurídica e a sua formalização por atos cartorários. Trata-se de situação especial decorrente, de um lado, da frustração do plano da incorporadora e, de outro, da exigência de prosseguir-se na obra para a defesa do interesse dos condôminos, para a qual a lei muito acertadamente – traça normas específicas e trata de dispensar formalidades e burocracias. Disse bem a r. Sentença da Dra Berenice Cesar: “a comissão de condôminos é uma realidade jurídica que tem fundamento na ‘teoria da realidade’ , segundo esta é ‘um agrupamento de pessoas físicas para alcançar um fim excedente da esfera dos interesses individuais torna-se um organismo social dotado, como o homem, de um poder próprio para agir e, por isso, se categoriza como sujeito de direitos’.

A responsabilidade do agente financeiro, adjudicante das unidades, decorre da aplicação de duas ordens de argumentos: a) pelo princípio geral que veda o enriquecimento sem causa, o banco que recebe o imóvel para pagamento de seu crédito não pode deixar de pagar as parcelas correspondentes ao custo da construção, pois, do contrário, estaria incorporando ao seu patrimônio, sem nada despender, o que foi feito às custas dos demais condôminos; b) nos termos do art 33 do DL 70/66 , terão preferência sobre o credor hipotecário as demais obrigações contratuais vencidas, especialmente as fiscais e os prêmios de seguro. Diante dos termos claros desse dispositivo, não se pode acolher a assertiva do recorrente, no sentido de que as obrigações contratuais vencidas são apenas as estabelecidas entre o mutuário em atraso e o agente financeiro, pois a regra principal traçada no referido artigo de lei existe para estabelecer que os outros créditos terão preferência sobre o credor hipotecário. Se tais dívidas devem ser satisfeitas com o que for apurado no leilão, a adjudicação pelo banco lhe acarreta a responsabilidade por elas.

Lembro a especificidade da situação, porquanto a relação se estabeleceu no âmbito do sistema da habitação, com regramento próprio, em que houve a adjudicação pelo agente financeiro, o que a distingue de outras hipóteses em que o terceiro adquirente de ordinário não responde pelas obrigações contratualmente assumidas pelo primitivo proprietário”.

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162 que, nestas hipóteses, assume posição idêntica à dos adquirentes no tocante ao

dever de contribuir para a conclusão da obra tornando-se assim um deles de fato e

de direito, obrigado a contribuir para com a construção sob pena de ver seus direitos

serem alienados em leilão público196 conforme § 6º do art. 63. Sobre o assunto, a

opinião de JÉVERSON LUÍS BOTTEGA197:

Não tendo sido todas as unidades comercializadas, a massa poderá ser condômina no empreendimento, tendo, como os demais condôminos, que custear a obra (artigo 35, § 6º) ou, não sendo de interesse, os condôminos, que retomaram a obra para finalizá-la, poderão comercializar referidas unidades como objetivo de buscar aporte financeiro para a construção.

Assim, destacado o empreendimento do patrimônio do incorporador destituído

e decidindo pela conclusão das obras segundo as regras estabelecidas pela LCI

para as incorporações sem regime de afetação, os adquirentes apartam do

patrimônio geral do incorporador a propriedade sobre as frações ideais de terreno já

comercializadas e suas respectivas acessões. Ante a necessidade de um construtor

para concluir a obra, os adquirentes hão de contribuir para sua retomada. Já as

unidades que porventura ainda não tenham sido comercializadas pelo incorporador

destituído, igualmente gerarão uma obrigação de pagamento para seu proprietário

que, em não pagando, poderá ser cobrado judicial ou extrajudicialmente (art. 63 da

LCI). Eventuais saldos devedores dos contratos firmados com o incorporador a ele

não mais serão pagos, transferindo-se esse direito ao novo fundo construtivo, por

força de alteração da relação jurídica de direito material que ligava os adquirentes ao

empreendimento.

As dívidas do incorporador, sejam elas apuradas ou não em processo de

falência, não atingem os adquirentes, não oneram o empreendimento e nem

permitem a criação de constrição judicial sobre (penhora, arrestos...), exceto em

196 Comenta HAMILTON QUIRINO CÂMARA caso concreto de falência decreta no Estado de Goiás, dizendo: “O Tribunal de Justiça de Goiás decidiu que, na forma da Lei n. 4.591/64, os empreendimentos de obras paradas não integram a massa falida, desde que os adquirentes decidam retomar as obras, passando para a propriedade dos condôminos, inclusive as unidades de estoque, o que é obtido mediante simples alvará judicial, para proceder às devidas transferências no Registro de Imóveis. Isto porque o incorporador é obrigado a contribuir, para as unidades não comercializadas, da mesma forma que os compradores. O mesmo haverá de se aplicar nos casos em que não houve falência do incorporador, que ainda possui unidades em estoque. Na verdade, ele é proprietário da cota de terreno, mas deverá aportar todo o valor da construção, sob pena de ter leiloada sua unidade, em processo extrajudicial”. (CÂMARA, Hamilton Quirino. Falência do incorporador imobiliário: O caso Encol. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 41). 197 BOTTEGA, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton Editor, 2005, p. 65.

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163 relação as frações ideais não comercializadas desde que ainda não tenham sido

levadas a leilão. De todo modo, a aquisição por venda judicial ou adjudicação de

unidades não comercializadas pelo incorporador implica transferência, ao

arrematante ou adjudicatário, da obrigação de pagamento dos custos da construção

(obrigação propter rem), na medida em que a unidade, neste caso, não é transferida

isenta de obrigações, mas sim oneradas pelo custo da construção.

Exceção se faz presente em relação ao IPTU incidente sobre o terreno e à

contribuição devida ao INSS calculada sobre a obra edificada (art. 30, VI, da Lei

8.212/91) que. A despeito de terem como sujeito passivo tributário o proprietário do

terreno (em geral o incorporador) e o construtor ou o promotor da construção, se os

adquirentes destituem o incorporador e optam por concluir as obras, com o

empreendimentos se transferem as obrigações essas obrigações tributárias.

De todo modo, malgrado a econômica disciplina da LCI no tocante à

descrição das providências, direitos e obrigações por ocasião da retomada das

obras em caso de inadimplência do incorporador que não tenha adotado o regime de

afetação patrimonial, há base legal suficiente para que a função social da atividade

seja alcançada sem impor obrigações desproporcionais aos consumidores já

desgastados e prejudicados.

IV.4.2 Na Incorporação Imobiliária com Regime de Afetação Patrimonial

O propósito da introdução do patrimônio de afetação pela Lei 10.931/2004 foi

o de evitar prejuízo aos consumidores adquirentes de imóvel “na planta”. Para

alcançar tal desiderato, os vários, incompletos e tecnicamente censuráveis

dispositivos inseridos na LCI (ao todo 6 artigos, 46 parágrafos e 27 incisos), do

pondo de vista dos benefícios atribuídos aos adquirentes, podem assim ser

divididos: (i) dispositivos com escopo de evitar que os recursos pagos pelos

adquirentes sejam gastos com outras finalidades que não a própria conclusão do

empreendimento; (ii) dispositivos que visam a conferir segurança jurídica para os

adquirentes caso decidam eles próprios concluir o empreendimento em hipóteses de

falência do incorporador, retardamento ou paralisação das obras, facilitando-lhes,

para tal fim, a transferência da posse e da administração do empreendimento, dos

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164 créditos e débitos a ele vinculados, e do eventual estoque de unidades que ainda

não tenham sido comercializadas pelo incorporador.

Idealmente têm-se alardeado boas intenções ao patrimônio de afetação.

Todavia, uma análise detida que dele se faça em comparativo com as “garantias”

que a LCI já conferia aos adquirentes, aliadas a jurisprudência que se formou em

torno da atividade de incorporação imobiliária, desmistifica a boa nova e demonstra

que, em caso de retomarem das obras, os adquirentes deixam de ser consumidores

responsáveis apenas pelo custo da construção remanescente, IPTU e contribuição

ao INSS, para se tornarem responsáveis por obrigações passivas que o

empreendimento tenha gerado e ainda gerará no curso de sua execução.

Quando o incorporador tem sucesso no empreendimento, levando-o a cabo

no prazo, com ou sem regime de afetação, os adquirentes nada sofrem. No entanto,

é ingenuidade supor que a falência de um incorporador ou o retardamento ou

paralisação excessiva e injustificada da obra não cause prejuízo aos adquirentes só

porque previsto em lei que os recursos pagos pelos consumidores ficam “afetados”

ao empreendimento de modo a que dele não podem ser desviados.

Não só porque a Lei 10.931/2004 ficou aquém de uma regulação completa,

com ou sem afetação sabe-se que, exceto em caso de rigorosa fiscalização no curso

da obra por parte de um agente financeiro ou dos próprios adquirentes (fato este

último de que não se têm notícia), o incorporador de má-fé ou encurralado pela

derrocada que se avizinha, perde as rédeas do negócio e acaba por desvirtuar a

afetação patrimonial.

Também não há avanços significativos no tocante à operacionalização da

retomada das obras, considerando as condições que para tanto são impostas pela

Lei 10.931/2004.

Enquanto o regime tradicional da LCI autoriza que os adquirentes concluam o

empreendimento sem fixar prazo algum para decidam se o farão ou não (desde, é

claro, que seja antes da venda do ativo do falido), os §§ 1º e 2º do art. 31-F da LCI

exigem que os adquirentes, que por certo nem se conhecem, no exíguo prazo de 60

dias contados da decretação da falência do incorporador, formem opinião suficiente

para decidir se irão ou não concluir o empreendimento. Caso positivo, deverão

decidir desde logo sobre “os termos da continuação da obra ou da liquidação do

patrimônio de afetação”. Evidente que, em termos de operacionalização o dispositivo

em questão foi deveras otimista considerando que os consumidores, pessoas

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165 desprovidas de conhecimento técnico em engenharia, contabilidade e direito, até

então se encontram alheios à real situação por que passa a incorporação. Na

mesma linha de otimismo irreal laborou o § 14 do ar. 31-F ao designar prazo exíguo

de 60 dias para que se consiga designar o leilão extrajudicial de trata o art. 63 com o

propósito de cobrar o saldo dos adquirentes inadimplementos ou alienar a

integralidade do terreno e das acessões caso a assembleia tenha deliberado pela

liquidação do patrimônio de afetação ao invés do término da obra (§ 1º do art. 31-F).

Uma vez deliberada a continuidade das obras, o art. 9º da Lei 10.931/2004

fixa prazo de um ano, ou até a data de concessão do “habite-se” se esta ocorrer em

prazo inferior, para que os adquirentes realizem o pagamento das “obrigações

tributárias, previdenciárias e trabalhistas” vinculadas ao patrimônio de afetação cujas

hipóteses de incidência tenham ocorrido até a data de “decretação da falência, ou

insolvência do incorporador”. Caso o pagamento não ocorra no prazo, dispõe o

mesmo art. 9º que “perde a eficácia a deliberação pela continuidade da obra a que

se refere o § 1º do art. 31-F da Lei nº 4.591, de 1964”. Essa previsão, inserida em

capítulo da Lei 10.931/2004 voltado à regulação tributária do patrimônio de afetação,

tem por mais evidente dos objetivos o atendimento de interesses fiscalistas do

Estado. Representa, na verdade, retrocesso quando comparado com as

incorporações sem regime de afetação, na medida em que retira um direito (o de

concluir a obra) que já era garantido desde 1964 e de forma incondicionada ao

pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas referidas no art.

9º da Lei 10.931/2004198. De todo modo, é muito severa a pena de perda do caráter

de afetação da incorporação, mormente porque um ano não parece ser tempo

absolutamente seguro para que os adquirentes consigam adotar todas as

providências necessárias para levar a leilão as unidades dos adquirentes

inadimplentes ou aquelas integrantes do estoque não comercializado pelo

198 No mesmo sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB: “A restrição ao exercício dos direitos dos adquirentes é inadmissível, mesmo se se considerar que eles sejam devedores, ainda que sejam devedores inadimplentes e mesmo que se mantenham na condição de devedores inadimplentes.Ora, a pendência do débito não priva a pessoa do uso e da fruição de seus bens ou direitos, mesmo que estes estejam submetido a constrição judicial”. (CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p. 116). A essas observações acrescenta-se que a exigência de pagamento em um ano ou até a data do “habita-se” não equivale a dizer que os credores do incorporador já estariam suportando o ônus da demora na solução de seus créditos em razão de os adquirentes terem deliberado pela conclusão do empreendimento porque, como é sabido, a falência ou qualquer processo judicial dificilmente satisfaz o credor de forma plena em período inferior a 12 meses. Logo, o art. 9º de fato só se presta para impingir dificuldade aos consumidores em benefícios dos credores, como se aqueles fossem culpados pelo inadimplemento do incorporador.

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166 incorporador, conclusão esta que se agrava na medida em que não há como saber

se de fato haverá arrematante sem o qual os adquirentes não terão os recursos

necessários para quitar as obrigações especificadas no art. 9º. Demais disso,

medidas judiciais podem suspender a realização desses leilões.

Ainda sobre o art. 9º da Lei 10.931/200, a perda de efeitos da afetação

patrimonial só poderá ocorrer se acaso os adquirentes tenham assumido a

conclusão das obras em concomitante decretação de falência ou insolvência do

incorporador. Assim, por ausência de previsão o dispositivo não tem aplicabilidade

às incorporações afetadas em que a retomada da construção seja decorrência de

seu atraso excessivo ou paralisação injustificada sem concomitante falência ou

insolvência do incorporador (art. 43, VII, da LCI). Com efeito, além de se referir

especificamente à falência e insolvência, o art. 9º da Lei 10.931/2004 cita apenas a

deliberação a que se refere o § 1º do art. 31-F, ao passo que a decisão pela

retomada das obras sem que tenha havido falência ou insolvência encontra-se

prevista no art. 43, VI.

No § 6º do art. 31-F, criou-se um empecilho para os adquirentes que ainda

não tenham quitado seus contratos com o incorporador como acontece com

considerável quantidade de consumidores199. Ao exigir-lhes que ofereçam garantias

reais para que possam receber a propriedade de suas unidades, dificultou-se algo

que, pelo regime original da LCI, já contava com solução suficiente por meio de

vinculação da fração ideal de terreno e acessão ao pagamento dos custos da

construção por via de obrigação de natureza propter rem (art. 63).

Por outro lado, representando um avanço, os §§ 1º e 7º do art. 31-F permitem

que os adquirentes decidam concluir a obra ou liquidar o patrimônio de afetação 199 HÉRCULES AGHIARIAN assim explica o propósito do § 6º do art. 31-F:

“Mais uma vez a redação dada ao dispositivo da lei constitui-se em técnica tímida. Em estilo confuso estabelece o parágrafo sexto do mesmo artigo 31-F que os contratos definitivos serão celebrados mesmo com os adquirentes que tenham obrigações a cumprir perante o incorporador ou a instituição financiadora, desde que comprovadamente adimplentes; situação em que a outorga do contrato fica condicionada à constituição de garantia real sobre o imóvel, para assegurar o pagamento do débito remanescente.

Ao que tudo indica, o legislador quis ressaltar que qualquer adquirente, mesmo aquele que tenha obrigações pendentes para com o incorporador – isto é, o que ainda não integralizou os valores devidos para aquisição das unidades prometidas -, não estará impedido de celebrar contratos com a Comissão de Representantes. Para tanto, será necessário, apenas, que tais obrigações pendentes, de natureza de trato sucessivo, estejam sendo adimplidas em seu tempo de pagamento. Ou seja, o adquirente em mora, ou o inadimplente, não poderá firmar contrato com a Comissão de Representantes. De toda sorte, em face das obrigações pendentes, e para não colocar em risco o empreendimento, será necessário a este adquirente dar garantia, de alguma forma, de que as obrigações pendentes serão adimplidas, quer pelo pagamento normal, quer através da garantia”. (AGHIARIAN, Hércules. Patrimônio de afetação. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6408>. Acessado em 20.05.2009).

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167 mediante alienação de seu terreno e suas acessões seguida de pagamento de seu

passivo. Em qualquer dos casos, o empreendimento é destacado da massa falida,

providência esta que não se permite nas incorporações desprovidas de afetação

patrimonial, em que o empreendimento acaba arrecado pela massa caso os

adquirentes não decidam concluí-lo.

Decidindo pela liquidação, o produto da venda do terreno e das acessões as

dívidas do patrimônio de afetação devem ser pagas pela Comissão de

Representantes segundo a ordem de preferências estabelecida no art. 31-F, § 18.

Também representativo de avanço em relação às incorporações não

afetadas, como já referido, o § 12 do art. 31-F disciplina a forma de rateio dos custos

para o término da obra pelos adquirentes em caso afastamento do incorporador

original, minorando as dúvidas até então existentes.

Outra inovação trazida pela Lei 10.931/2004 refere-se aos poderes

necessários para outorga de escrituras aos adquirentes quando estes tenham

firmado apenas promessa de compra e venda com o incorporador. Até então,

destituído o incorporador, os adquirentes haviam de obter junto a ele a transferência

da propriedade de suas frações ideais, providência esta que nem sempre se

satisfazia de maneira pacífica e fácil. Agora, por força dos §§ 3º, 4º e 5º do art. 31-F,

a destituição do incorporador investe a Comissão de Representantes, composta por

consumidores eleitos dentre os adquirentes, ope legis, dos poderes necessários

para transferir a propriedade aos adquirentes, podendo, do mesmo modo, alienar em

leilão público todo o estoque de unidades (§ 15 do art. 31-F) que o incorporador não

tenha comercializado. Do mesmo modo, caso a assembleia dos adquirentes (§§ 1º

e 2º do art. 31-F) decida pela liquidação do patrimônio de afetação, a Comissão de

de Representantes terá poderes para vender a propriedade do terreno e acessões (§

7º, 8º, 9º e 14 do art. 31-F).

A má técnica com que foram redigidos os §§ 14, 15, 17, 18 do art. 31-F,

sugere iguais consequências para o arrematante e para os credores do patrimônio

afetado em caso de leilão extrajudicial das frações ideais e acessões em

decorrência da decisão pela continuidade das obras, e também em caso de

alienação integral do terreno e suas acessões para fins de liquidação do patrimônio

de afetação. Na realidade, quando o § 15 dispõe que o arrematante fica sub-rogado

“nos direitos e obrigações relativas ao empreendimento, inclusive nas obrigações de

eventual financiamento” e também nas obrigações existentes perante o proprietário

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168 do terreno, está ele se referindo à arrematação de frações ideais e acessões de

adquirentes inadimplementos ou integrantes do estoque não comercializado pelo

incorporador, realizada com o propósito de alavancar recursos para concluir a obra

tal qual decisão tomada na assembleia de trata os §§ 1º e 2º do art. 31-F. Pelo

contrário, quando a arrematação tenha se realizado com o propósito de liquidar do

patrimônio de afetação, caso em que a venda envolverá todo o terreno e acessões,

obviamente o arrematante não ficará obrigado a quitar as obrigações do

empreendimento, nem mesmo aquelas atinentes a eventual financiamento e aos

direitos do proprietário do terreno. Com efeito, a arrematação efetivada em

liquidação do patrimônio é feita em vias de extinguir a afetação (art. 31-E, II) e por

isto mesmo não pode obrigar o arrematante a pagar, além do preço que se

comprometeu a pagar pelo terreno e acessões, eventuais dívidas do

empreendimento. Assim, uma vez arrematado e pago o preço, o único direito os

credores do empreendimento afetado será o de participar de seu rateio segundo a

ordem de preferências estabelecida no § 18 do art. 31-F. Sendo o preço de

arrematação insuficiente para cobrir todo o passivo, aos credores só restará dirigir

seu inconformismo contra o incorporador destituído de modo a que pague os valores

faltantes (art. 31-A, § 2º).

Aos consumidores somente os ônus. Concluído o empreendimento ou

liquidado o patrimônio de afetação, se acaso sobejar receitas depois de quitado o

passivo do patrimônio de afetação, o excedente deve ser entregue ao incorporador

destituído (§ 13 do art. 31-F) ao invés de ser rateado entre ele, incorporador, e os

adquirentes segundo a lógica da afetação patrimonial e também em consideração

aos prejuízos de ordem material e moral que por certo a um ou a outro sempre são

acarretados. Observe-se que esta previsão de restituição também não existe nas

incorporações desprovidas de afetação patrimonial.

Questão um tanto séria e que deixa à mostra o quanto o regime de afetação

pode ser desfavorável aos adquirentes em comparação ao sistema original da LCI,

diz respeito à real extensão das obrigações que assumem os adquirentes quando

deliberem a continuidade da obra em assembleia. O § 11 do art. 31-F prevê que,

neste caso, “os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas

obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao

contrato de financiamento da obra, se houver”. A leitura deste dispositivo somada à

lógica da afetação patrimonial, leva a crer que os adquirentes se tornam

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169 responsáveis por todas as obrigações que estejam afetadas à incorporação, ainda

que, para tanto, seja necessário que todos os adquirentes vertam recursos em

quantia superior àquela prevista nos contratos firmados com o incorporador, de

modo a permitir que essa responsabilidade seja infinita em termos de valores. A

conclusão ganha reforço quando se leva em consideração o inciso I do art. 31-E,

segundo o qual a extinção do patrimônio de afetação se dá, dentre outras causas,

pela averbação da conclusão da obra na matrícula imobiliária e, quando for o caso,

pela “extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financeira do

empreendimento”. Vale dizer, a conclusão da obra em si não basta: é preciso quitar

também o agente financeiro que tenha concedido crédito para a construção do

empreendimento.

Antes da Lei 10.931/2004 ter alterado a LCI, o regime de afetação patrimonial

nela figurou inserido na forma dos arts. 30-A a 30-F por força da Medida Provisória

2.221, de 04.09.2001. Para o término do patrimônio de afetação, o art. 30-B, § 8º, I,

impunha, como uma das condições, a “extinção das obrigações do incorporador

perante a instituição financiadora do empreendimento”. Já o art. 30-A, § 14, II,

acrescentava que a extinção também dependia da quitação das “obrigações

tributárias, trabalhistas e previdenciárias” vinculadas ao empreendimento.

Revogada a Medida Provisória 2.221/2004, a Lei 10.931/2004 não manteve

na LCI o teor do art. 30-A, § 14, II. Todavia, o art. 9º da Lei 10.931/2004 continua a

prever, como já visto, que os adquirentes devem quitar integralmente as obrigações

tributárias, trabalhistas e previdenciárias que tenham hipótese de incidência em data

anterior à falência ou insolvência do incorporador. Logo, por força de interpretação

entre o art. 9º da Lei 10.931/2004, o inciso I do art. 31-E da LCI e a lógica do

patrimônio de afetação, é possível que ainda haja quem conclua que os adquirentes,

ao retomar as obras, ficam responsáveis pelo pagamento das dívidas fiscais,

previdenciária, trabalhista e mais o financiamento bancário contraído pelo

incorporador ainda que a soma desse passivo supere o custo projetado do

empreendimento.

No entanto, essa interpretação correta não parece a correta, notadamente

porque as alterações introduzidas pela Lei 10.931/2004 na LCI, são carentes de

técnica e exigem esforço do intérprete. Já à época da Medida Provisória 2.221/2001,

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170 MELHIN NAMEM CHALHUB200 criticava essa transferência de responsabilidades do

incorporador para os adquirentes com argumentos que continuam aplicáveis ainda

hoje:

Esclarece o § 14 do art. 30C que “na hipótese dos §§ 2º a 6º os valores arrecadados à massa constituirão crédito privilegiado dos adquirentes” e que, ainda na hipótese dos citados parágrafos, “a extinção do patrimônio de afetação (...) não poderá ocorrer enquanto não integralmente pagas as obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias a ele vinculadas”; a segunda parte dessa disposição, que condiciona a extinção do patrimônio de afetação ao resgate das obrigações tributárias, trabalhistas e previdenciárias, não comporta dúvida, pois, de acordo com a ordem natural das coisas, a extinção de qualquer massa patrimonial se dá mediante a realização do ativo e liquidação do passivo, no limite das forças do patrimônio , salvo em casos especiais, como, por exemplo, nas hipóteses de responsabilização do sócios. No caso das incorporações imobiliárias, ressalve-se apenas, que, embora o incorporador responda com seus bens pessoais pelos prejuízos que causar aos adquirentes e ao patrimônio de afetação, bem como aos credores, nos termos da Lei de Falências, essa responsabilidade não é extensiva aos adquirentes, não só por não terem estes nenhuma vinculação societária com a empresa incorporadora ou com a vida pessoal do incorporador, como, também, porque, dada sua qualidade de contratantes da aquisição de unidades, sua responsabilidade é limitada às forças do patrimônio de afetação, tendo como teto o valor da aquisição de suas unidades imobiliárias.

Com razão o autor. Os consumidores, vulneráveis e em geral

hipossuficientes, com direito de indenização passível de ser exigido de maneira

solidária contra todos os fornecedores que tenham figurado na cadeia de produção,

não podem, ao adquirir um bem de consumo, ver sua condição jurídica ser

subvertida de modo a que passem eles a responder pelo insucesso da atividade

empresarial de seu fornecedor, assumindo condição de incorporador substituto e

devedor solidário frente aos credores daquele. Nota-se o desassossego da situação:

passam a devedores do agente financeiro e até mesmo dos empregados de um

possível construtor contratado pelo incorporador, pessoas essas que na verdade,

pelo CDC, podem se responsabilizados pelo consumidor.

Ademais, o patrimônio de afetação se forma com receitas e trabalho vindos

dos adquirentes, do agente financeiro, dos trabalhadores empregados na obra, do

proprietário do terreno, enfim. É essa soma que compõe o patrimônio de afetação.

Assim, não faz sentido que apenas os adquirentes sejam responsabilizados pelo

insucesso da incorporação, que inclusive pode ser fruto de fraude praticada pelo 200 CHALHUB, Melhim Namem. Da incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, 2003, p 123.

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171 incorporador, de modo a garantir os créditos dos demais partícipes da rede

contratual. Daí porque, se o patrimônio não é suficiente para cobrir as obrigações,

ele é insolvente e deve necessariamente acarretar algum prejuízo a todos os

partícipes, não só aos consumidores sob pena de transformá-los em incorporadores

substitutos e solidariamente responsáveis pelo passivo afetado.

De todo modo, interpretação sistemática da LCI pode afastar esse absurdo.

Nesse sentido, o § 12 do art. 31-F dispõe que, decida a continuidade das obras

pelos adquirentes, procede-se ao rateio das obrigações em que eles se sub-rogam

de modo a que cada adquirente responda “individualmente pelo saldo porventura

existente entre as receitas do empreendimento e o custo da conclusão da

incorporação na proporção dos coeficientes de construção atribuíveis às respectivas

unidades, se outro critério de rateio não for deliberado em assembléia geral”. Em

complemento, o inciso III do § 12 conceitua “receitas” como sendo as parcelas

vencidas e vincendas, ou seja, aquelas que tenham constatado do contrato firmado

com o incorporador; ao passo que inciso IV do mesmo § 12 conceitua “custo de

conclusão da incorporação” como sendo todo o “custeio da construção do edifício e

a averbação da construção das edificações para efeito de individualização e

discriminação das unidades nos termos do art. 44”.

Com base nessas premissas legais, os adquirentes só estariam obrigados a

quitar os débitos fiscais, previdenciários, trabalhistas e também o financiamento

bancário (art. 9º da Lei 10.931/2004 e art. 31-E, I, da LCI), se acaso as “receitas”

representativas dos saldos dos contratos firmados com o incorporador e do eventual

estoque de unidades ainda não comercializadas excederem o valor necessário ao

“custeio da construção do edifício” que, como bem esclarece o § 12, tem por fim

apenas individualizar e discriminar as unidades junto ao cartório de imóveis.

Têm-se outro argumento no § 18, VI, do art. 30-F. Uma vez que as receitas

sejam superiores às dívidas do patrimônio de afetação e ao custeio da construção, o

excedente deve ser entregue ao incorporador, providência esta que não ocorria se

acaso os adquirentes fossem (o que não são) sucessores e responsáveis solidários

do incorporador.

Dúvida também há, sobre a qual algo já fora dito, no tocante à facultatividade

da adoção do “Regime Especial de Tributação (RET)”, exercitável pelo incorporador,

e a efetiva vinculação do passivo tributário ao empreendimento a comprometer os

adquirentes.

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Regulamentado sucessivamente pelas Instruções Normativas da Receita

Federal do Brasil n. 474/2004, 689/2006 e 934/2009, ao criar o RET, a Lei

10.931/2004 teve por escopo permitir que as receitas do empreendimento afetado

sejam tributadas de forma separada do incorporador, como se fosse uma nova

pessoa.

Segundo o disposto no art. 1º da Lei 10.931/2004, a adoção do RET é

opcional, vale dizer, o incorporador pode optar pela adoção do regime de afetação

da incorporação, mas não submetê-la ao RET. Adotado o RET, todavia, o

incorporador ficará sujeito (art. 4º da Lei 10.931/2004) ao pagamento equivalente a

6% (seis por cento) da receita mensal do empreendimento, alíquota essa que

corresponde ao pagamento mensal unificado do Imposto de Renda das Pessoas

Jurídicas – IRPJ, Contribuição para os Programas de Integração Social e de

Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, Contribuição Social

sobre o Lucro Líquido – CSLL e Contribuição para Financiamento da Seguridade

Social - COFINS. Se a incorporação versar sobre imóveis residenciais de interesse

social de valor máximo correspondente a R$ 60 mil reais no âmbito do “Programa

Minha Casa, Minha Vida (PMCMV)”, o percentual de recolhimento é reduzido a 1%

da receita mensal (§§ 6º e 7º do art. 4º da Lei 10.931/2004).

A facultatividade de adoção do RET, no entanto, não se mostra coerente com

a lógica da afetação patrimonial porque, se não for adotado, os tributos gerados no

âmbito da incorporação (à exceção do IPTU) não farão parte das obrigações do

patrimônio afetado. Assim, o que de fato vincularia os demais tributos ao

empreendimento não é submissão da incorporação ao regime de afetação

patrimonial levada a registrado na matrícula imobiliária, mas sim a opção pelo RET,

exercida na forma da Lei 10.931/2004 e da IN 934/2004 da Receita Federal.

Daí porque entendido o RET como opcional, caso os adquirentes decidam

concluir a obra ou liquidar o patrimônio de afetação, não será necessário quitar as

obrigações fiscais e previdenciárias do empreendimento porque que não afetadas e,

neste caso, fica parcialmente afastada a previsão do art. 9º da Lei 10.931/2004

segundo a qual os adquirentes teriam prazo para quitar as obrigações tributárias e

previdenciárias sob pena de ficar sem efeito o regime de afetação e a deliberação

pela retomada das obras ou liquidação do patrimônio.

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Restaria aos adquirentes pagar as obrigações trabalhistas e ao fisco cobrar

do incorporador os tributos devidos pelo incorporador por regime de lucro real ou de

lucro presumido segundo esteja ele enquadrado.

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174

CONCLUSÕES

1 - A atividade de incorporação se caracteriza pela alienação de unidades

imobiliárias autônomas integrantes de edificação ou conjunto de edificações em

construção ou cuja construção ainda não esteja iniciada, seguida de uma divisão

física e jurídica que se espelham entre si criando novos imóveis sob a forma de

condomínio pro diviso.

2 - A incorporação imobiliária pode se desenvolver sob três modelos

(incorporação por preço fechado, com construção por regime de empreitada e com

construção por regime de administração), que conjugam entre si o contrato de venda

das frações ideais de terreno com o contrato de construção do edifício.

3 - O incorporador pode figurar como construtor em todos os três modelos de

incorporação ou apenas como incorporador.

4 - A incorporação imobiliária se desenvolve em rede contratual que une

direta ou indiretamente o incorporador, o construtor, os consumidores adquirentes, o

agente financeiro que eventualmente tenha concedido crédito para financiar a

promoção da incorporação, o proprietário do terreno sobre o qual se erige a

construção, os fornecedores de matéria-prima, os trabalhadores empregados na

obra e o Estado.

5 - A função social da atividade de incorporação imobiliária se traduz pela a

conclusão do edifício.

6 - A rede contratual da incorporação imobiliária tem como causa sistêmica a

aquisição de imóvel por parte do consumidor adquirente.

7 - Análise da função que o incorporador assume nos modelos incorporação

por preço fechado, empreitada e preço de custo indicam, nesta ordem, a diminuição

de suas responsabilidades mediante correspectiva transferência aos consumidores

adquirentes.

8 - Como promotor-produtor do empreendimento, o incorporador sempre será

considerado fornecedor perante os consumidores, em qualquer modelo de

incorporação (preço fechado, empreitada e administração), mesmo que não atue

como construtor, respondendo assim tanto por acidentes de consumo quanto por

vícios inseridos em qualquer fase da cadeia de produção e prestação de serviço de

que resulte a conclusão do empreendimento.

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9 - O proprietário do terreno que tenha permitido ao incorporador a promoção

de empreendimento imobiliário sobre seu imóvel só tem responsabilidade para com

os consumidores nas hipóteses expressamente previstas na LCI.

10 – Exceto nas incorporações por preço fechado, o construtor do

empreendimento, quando não seja ele o próprio incorporador, participa apenas

como prestador de serviços de construção, responde por acidente de consumo e

vícios decorrentes de seus serviços propriamente ditos, mas não responde por atos

que a LCI qualifique como sendo tipicamente incorporativos.

11 - O agente financiador não tem responsabilidade por atos tipicamente

incorporativos nem por acidentes de consumo ou vícios decorrentes da prestação de

serviços de construção.

12 - A hipoteca constituída em favor de agente financeiro como forma de

garantia do crédito concedido para a construção do empreendimento, no regime de

afetação patrimonial, não tem eficácia se os recursos não forem comprovadamente

empregados na incorporação.

13 - A incorporação imobiliária goza de autonomia funcional e patrimonial em

relação ao incorporador e seu patrimônio geral.

14 - A afetação patrimonial nas incorporações imobiliárias implica atribuição

de propriedade fiduciária sobre o terreno, acessões, créditos e demais direitos e

obrigações a ela vinculados, divida entre o incorporador e os adquirentes, aquele

com propriedade formal e estes com a propriedade substancial.

15 - Como integrante da relação fiduciária, o incorporador só mantém sua

propriedade formal sobre a incorporação como meio de cumprir dever de

administração voltada ao atingimento de sua função social da atividade.

16 - A desistência dos contratos de compra e venda com base no art. 53 do

CDC pelos consumidores não encontra amparo legal, atentando contra a função

social dos contratos e contra a boa-fé, além de desvirtuar o sistema de incorporação

imobiliária quando visto como rede contratual.

17 - O artigo 63 da LCI não fere os princípios da inafastabilidade do controle

jurisdicional, da proibição de autotutela e do contraditório, tendo sido recepcionado

pela CF/88.

18 - Em caso de falência, insolvência, paralisação ou retardamento da obra,

os adquirentes podem destituir o incorporador e decidirem concluir o

empreendimento sem sua participação, caso em que todos os titulares de direitos

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176 sobre as unidades imobiliárias em construção ficam obrigados a contribuir para o

seu término, inclusive o incorporador, falido ou não, que ainda disponha de unidades

sem comercialização.

19 - As obrigações fiscais da incorporação imobiliária só ficam de fato

afetadas se acaso, além de adotar o regime de afetação, o incorporador também

aderir ao Regime Especial de Tributação-RET.

20 - No regime de afetação, caso decidam concluir o empreendimento sem a

participação do incorporador, os recursos aportados pelos consumidores

adquirentes com o propósito de quitar as obrigações da incorporação não devem

exceder o custo projetado do empreendimento, de modo que só estarão obrigados a

pagar, com essa finalidade, os recursos que correspondam à soma das prestações

vencidas e vincendas constantes dos contratos firmado com o incorporador. Uma

vez pagas as prestações vencidas e vincendas, se ainda remanescer credores estes

haverão de receber os créditos remanescentes pessoalmente do incorporador. A

partir daí os consumidores poderão concluir o empreendimento sem que haja

necessidade de quitar obrigações afetadas à incorporação.

21 - O regime de afetação patrimonial não favorece os consumidores

adquirentes de imóvel “na planta” caso tenham eles próprios que concluir o

empreendimento, quando comparado ao sistema tradicional da LCI, salvo no tocante

a algumas facilidades operacionais.

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