centro de curvatura

9
Uma abordagem elementar ao conceito de curvatura André Bernardino e Rui Pacheco Escola Básica Integrada de Vendas Novas / Universidade da Beira Interior 1. Introdução O conceito de raio de curvatura de uma curva num certo ponto é um conceito que matematicamente é abordado apenas a nível universitário. No entanto, no estudo da dinâmica de uma partícula, que consta do programa de Física para o 12º ano, alguns exercícios de aplicação envolvem já esse conceito — por exemplo, na determinação do ângulo de inclinação necessário para que um carro percorra determinada curva em segurança. Nesta comunicação apresentamos uma abordagem possível ao conceito de curvatura que pode ser levada a cabo a um nível elementar e, fazendo uso de um software de geometria dinâmica, propomos duas actividades de forma a explorar as ideias expostas. Pelo seu carácter interdisciplinar e pela profundidade dos conteúdos geométricos e físicos envolvidos, julgamos que estas actividades podem ser uma experiência bastante enriquecedora para a formação dos alunos do 12º ano. 2. O conceito de curvatura Consideremos uma curva C no plano e dois pontos P e Q pertencentes a C. Pensemos em P como sendo um ponto fixo e em Q um ponto móvel. Para simplificar a discussão que se segue, supomos que a nossa curva não se auto-intersecta. Os pontos P e Q definem uma secante s a C. Quando aproximamos, ao longo da curva, o ponto móvel Q do ponto fixo P, a recta s vai coincidir, no limite, com a recta tangente a C no ponto P, que denotamos por t. De entre todas as rectas que passam por P, a recta tangente t é aquela que melhor traduz o comportamento da curva naquele ponto. De facto, se uma partícula percorre a curva C e deixa de ser actuada por qualquer força no instante em que passa pelo ponto P, então ela seguirá a velocidade constante ao longo de t.

Upload: matheus-lima

Post on 07-Dec-2015

213 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Centro de curvatura

TRANSCRIPT

Page 1: Centro de Curvatura

Uma abordagem elementar ao conceito de curvatura

André Bernardino e Rui Pacheco

Escola Básica Integrada de Vendas Novas / Universidade da Beira Interior

1. Introdução

O conceito de raio de curvatura de uma curva num certo ponto é um conceito que

matematicamente é abordado apenas a nível universitário. No entanto, no estudo da dinâmica

de uma partícula, que consta do programa de Física para o 12º ano, alguns exercícios de

aplicação envolvem já esse conceito — por exemplo, na determinação do ângulo de

inclinação necessário para que um carro percorra determinada curva em segurança. Nesta

comunicação apresentamos uma abordagem possível ao conceito de curvatura que pode ser

levada a cabo a um nível elementar e, fazendo uso de um software de geometria dinâmica,

propomos duas actividades de forma a explorar as ideias expostas. Pelo seu carácter

interdisciplinar e pela profundidade dos conteúdos geométricos e físicos envolvidos, julgamos

que estas actividades podem ser uma experiência bastante enriquecedora para a formação dos

alunos do 12º ano.

2. O conceito de curvatura

Consideremos uma curva C no plano e dois pontos P e Q pertencentes a C. Pensemos

em P como sendo um ponto fixo e em Q um ponto móvel. Para simplificar a discussão que se

segue, supomos que a nossa curva não se auto-intersecta. Os pontos P e Q definem uma

secante s a C. Quando aproximamos, ao longo da curva, o ponto móvel Q do ponto fixo P, a

recta s vai coincidir, no limite, com a recta tangente a C no ponto P, que denotamos por t. De

entre todas as rectas que passam por P, a recta tangente t é aquela que melhor traduz o

comportamento da curva naquele ponto. De facto, se uma partícula percorre a curva C e deixa

de ser actuada por qualquer força no instante em que passa pelo ponto P, então ela seguirá a

velocidade constante ao longo de t.

Page 2: Centro de Curvatura

E se perguntarmos: de entre todas as circunferências que passam pelo ponto P, qual

aquela que melhor traduz o comportamento da curva nesse ponto? A resposta é obtida

repetindo o procedimento anterior. Agora precisamos de dois pontos móveis sobre C, digamos

Q1 e Q2. Tracemos a circunferência S definida por P, Q1 e Q2. Se aproximarmos os pontos

móveis do ponto fixo P, no limite obtemos uma circunferência SP. O raio rP de SP é designado

por raio de curvatura de C no ponto P e o seu inverso, 1−= PP rk , por curvatura de C no ponto

P. Esta definição de curvatura é bastante apelativa do ponto vista geométrico e, além disso, é

fácil de apreender se considerarmos a sua analogia com os conceitos de derivada e de recta

tangente a uma curva por um ponto. Para uma reflexão mais detalhada e geral sobre estes

conceitos, aconselhamos a referência [2].

Do ponto de vista físico, a curvatura está directamente relacionada com a aceleração

de uma partícula que se move com velocidade (linear) constante ao longo da sua trajectória.

Assim, não é de surpreender que a fórmula para o cálculo de kP envolva derivadas de segunda

Page 3: Centro de Curvatura

ordem. Efectivamente, se identificarmos a nossa curva C com o gráfico de uma função

IRbaf →[,:] , então, para um certo ponto ( ))(, xfxP = , prova-se que

( )2

32)(1

)(

xf

xfkP

′+

′′= (1)

(ver, por exemplo, [1]). Claro que uma circunferência de raio R tem curvatura constante igual

a 1−R e uma recta tem curvatura constante nula.

3. Uso de um Software de Geometria Dinâmica no estudo da curvatura

Descrevemos nesta secção como usar um programa de geometria dinâmica — por

exemplo, o The Geometer's Sketchpad ou o Cabri-Géomètre II — para estimar o raio de

curvatura de uma curva. O método é claramente inspirado na definição geométrica de

curvatura e conduz a valores que, relativamente às aplicações práticas que propomos na

secção seguinte, podemos considerar muito próximos dos valores exactos.

Começamos por considerar três pontos sobre a curva: um ponto fixo A e dois pontos

móveis B e C. Traçamos os segmentos de recta AB e AC e as respectivas mediatrizes.

Denotamos por D o ponto de intersecção das mediatrizes, ou seja, o centro da circunferência

que passa pelos três pontos A, B e C. Traçamos o segmento AD .

Page 4: Centro de Curvatura

De seguida, aproximamos, tanto quanto possível, os pontos B e C do ponto A e o

comprimento do segmento AD obtido desta forma será o valor aproximado do raio de

curvatura.

Para uma elipse de equação

12

2

2

2

=+b

y

a

x ,

o raio de curvatura no ponto )0,(aA = é dado por

a

brA

2

= .

No exemplo que utilizámos para ilustrar este método, fixámos 12=a e 8=b . Assim, o valor

exacto para o raio da curvatura da elipse no ponto )0,12(=A é )3(,5=Ar , que coincide até às

centésimas com o valor estimado.

4. Duas actividades sobre curvatura

Nas actividades que aqui propomos, não se pretende uma solução única e exacta para

as situações reais expostas; os alunos devem pesquisar de forma independente os dados

numéricos que possam ser relevantes; devem encontrar um modelo matemático adequado e

descortinar as ferramentas matemáticas necessárias para a sua resolução; devem finalmente

analisar a plausibilidade das soluções encontradas em relação às situações reais em causa. Nas

Page 5: Centro de Curvatura

duas actividades pressupomos que os alunos tenham já tomado contacto com alguns conceitos

físicos: aceleração normal, Segunda Lei de Newton, forças de atrito, força centrípeta, Primeira

Lei de Kepler e Lei de Newton da gravitação universal (ver, por exemplo, a referência [3]).

Estes conceitos são abordados na Unidade 1 - Mecânica do programa de Física para o 12º

ano. Os conceitos e conhecimentos matemáticos envolvidos estão presentes no programa de

Matemática-A do 11º ano: conceito de derivada (necessário para melhor apreensão do

conceito de curvatura) e obtenção da equação cartesiana de uma elipse a partir da sua

propriedade focal. Finalmente, é necessário que os alunos tenham alguma destreza a trabalhar

com algum software de geometria dinâmica. Não é nosso objectivo fazer uso da fórmula (1)

para o cálculo da curvatura.

São, pois, actividades que nos parecem especialmente enriquecedoras para a formação

dos alunos: pela profundidade dos conteúdos físicos e matemáticos envolvidos; pelo seu

carácter interdisciplinar.

Actividade 1

Durante a projecção de uma auto-estrada, o engenheiro encarregue da obra desenhou

um certo troço da mesma num programa informático apropriado para o efeito (ver figura

seguinte), utilizando para a escala 1/100000.

Ajuda o engenheiro a estimar o grau de inclinação que a auto-estrada deverá ter no ponto A

de forma a que os carros possam descrever a curva em segurança.

Page 6: Centro de Curvatura

Para esta actividade é necessário que os alunos tenham acesso a um ficheiro do

software de geometria dinâmica onde a curva e o ponto A da figura anterior estejam

representados. Não é necessário que conheçam a expressão analítica da curva. Aqui estamos a

utilizar um troço do gráfico da função )3/cos()( xxf = e o ponto A é o ponto de coordenadas

)1,0( . Exercícios sobre a inclinação de segurança de uma estrada fazem parte da rotina nos

manuais de Física do 12º ano. No entanto, o raio de curvatura é um dado sempre estabelecido

a priori.

Proposta de Resolução: Consideramos que a curva em A é plana. Repetindo o procedimento

descrito na secção anterior, e tendo em conta a escala em que estamos a trabalhar, obtemos

que o raio de curvatura da estrada no ponto A é aproximadamente igual a m9000 . Jogando

pelo seguro, desprezamos o atrito e consideramos para os nossos cálculos a velocidade

máxima permitida numa auto-estrada: 11 3,33120 −− ≈ smhkm . Tudo o resto é ditado pelas

leis da dinâmica: na ausência de atrito, para que um carro descreva uma curva plana com raio

de curvatura Ar mantendo o valor da velocidade V lido no velocímetro, é necessário que o

ângulo de inclinação θ da curva satisfaça:

,.

2

Arg

Vtg =θ

Tendo em conta os dados considerados, obtemos º7,0≈θ .

Observações:

1. O valor exacto do raio de curvatura no ponto )1,0(=A da curva definida pelo gráfico

da função )3/cos()( xxf = é precisamente 9=Ar , que coincide até às centésimas com

o valor experimental que obtivemos.

2. Do ponto de vista físico, seria interessante que os alunos levassem em consideração o

atrito entre as rodas dos automóveis e o piso da estrada, investigassem qual o valor

para o coeficiente de atrito adequado a esta situação e determinassem o respectivo

valor para a inclinação.

3. Ao supormos que a curva é plana, estamos claramente a simplificar a nosso problema.

Em geral as estradas atravessam regiões com relevo acentuado. Caso não tivéssemos

Page 7: Centro de Curvatura

partido desta suposição, quais as dificuldades que daí resultariam? Como calcular a

curvatura? Como definir curvatura para uma curva não plana? Como escrever o

balanço das forças? Ao tornarmos os modelos mais de acordo com a realidade, é

inevitável que se aumente a complexidade da matemática e da física envolvidas. Do

nosso ponto de vista, é muito relevante para a formação científica dos alunos que estes

enfrentem e reflictam sobre estas dificuldades, mesmo não tendo ainda os

conhecimentos necessários para as contornar da forma mais eficaz.

Actividade 2

O matemático e astrónomo alemão Johann Kepler (1571-1630) representa um marco

na história da ciência pela contribuição decisiva que deu para o entendimento do movimento

dos objectos celestes. Após ter estudado afincadamente as observações registadas pelo

lendário astrónomo dinamarquês Thyco Brahe (1546-1601), reparou que estas observações

concordavam muito aproximadamente com três leis matemáticas relativamente simples, hoje

conhecidas pelas Três Leis de Kepler. Em 1596, estas foram publicadas na obra Sobre o

movimento do planeta Marte. A Primeira Lei de Kepler atribui aos planetas uma trajectória

elíptica, sendo o Sol um dos focos da elipse que o planeta descreve. A segunda Lei de Kepler

afirma a linha que liga o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais

O afélio é o ponto A da trajectória de um planeta que está mais afastado do Sol. O

periélio é o ponto P da trajectória de um planeta que está mais próximo do Sol. Estima a

velocidade, em relação ao Sol, do planeta Mercúrio quando este passa em cada um dos

pontos Af e AP da sua trajectória.

Nesta actividade pretende-se também que os alunos identifiquem e pesquisem os

dados numéricos relevantes: o afélio e o periélio da trajectória do planeta Mercúrio, a

constante de gravitação universal e a massa do Sol. Estes dados podem ser facilmente

encontrados após pesquisa rápida na internet.

Proposta de Resolução: Pela primeira Lei de Kepler, Mercúrio descreve uma elipse Σ em

torno do Sol. No periélio, Mercúrio encontra-se a km61046× do Sol e, no afélio, encontra-se a

km61070× . Assim, o eixo maior da elipse Σ descrita por Mercúrio tem comprimento

km610116× . Fixemos um sistema de eixos cuja origem coincida com o centro de Σ e o eixo

Page 8: Centro de Curvatura

correspondente à coordenada x coincida com a recta que une os dois focos, F (onde se situa

o Sol) e 'F . Note-se que )0,12(=F e )0,12(' −=F , tomando km610 como unidade.

Assim, Σ é o lugar geométrico dos pontos Q tais que a soma das distâncias de Q aos dois

focos F e 'F é igual a 116. A equação da elipse correspondente à órbita de Mercúrio é então

dada por

17,5658 2

2

2

2

=+yx

(aproximámos às décimas o comprimento do semi-eixo menor). Repetindo o procedimento

descrito na secção anterior, concluímos que o raio de curvatura r da elipse que Mercúrio

descreve em torno do Sol é, no periélio (e, por simetria, também no afélio), aproximadamente

igual a km6104,55 × . Tudo o resto é ditado pelas leis da dinâmica e pela Lei da Gravitação

Universal de Newton: as velocidades de mercúrio no periélio, Pv , e no afélio, Av , vão ser

dadas por

2FA

GMrvA =

2FP

GMrvP = ,

Onde NkgmG 22111067,6 −−×≈ é a constante de gravitação universal e kgM 301099,1 ×= é a

massa do sol. Assim, 17,36 −≈ skmvA e 19,58 −≈ skmvP .

Observações:

1. Para esta actividade, de entre todos os planetas que orbitam em torno do Sol,

escolhemos Mercúrio por ser aquele cuja trajectória elíptica tem maior

Page 9: Centro de Curvatura

excentricidade, tornando assim mais evidente a diferença entre as velocidades no

afélio e no periélio.

2. Estão os resultados obtidos, em particular o facto de a velocidade no periélio ser

maior do que a velocidade no afélio, de acordo com a Segunda Lei de Kepler? Qual a

velocidade de Mercúrio quando este se encontra numa posição equidistante dos focos

da elipse Σ ? São questões que podem dar continuidade a actividade aqui sugerida.

5. Bibliografia.

[1] — P. V. Araújo, Geometria diferencial, Publicações IMPA, 1998.

[2] — D. Hilbert, S. Cohn-Vossen, Geometry and the Imagination, American Mathematical

Society, 1999.

[3] — G. Ventura, M. Fiolhais, C. Fiolhais, J. Paixão, 12 F, Texto Editores, 1ª edição, 2005.