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C.D.U. 39 MARCOS TEORICOS E METODOLOGICOS NA PESQUISA SOBRE RECEPÇÃO: A QUE~ TÃO CULTURAL * . . . (1) Mund~carmo Mar~a R. Ferrett~ INTRODUÇÃO Em setembro de 1985, a UNESCO, associando-se à INTERCON, reuniu em são Paulo especiali~ tas de várias áreas para debater o problema da recepção na comun~ cação popular e o tratamento téo rico-metodológico que o tema tem recebido na pesquisa cientifica. Nossa colaboração ao referido de bate girou em torno da ~nfase da da à recepção nas pesquisas so bre cultura popular, mais part~ cularmente sobre religião afro-brasileira e música lar. pop~ QUANDO OS RECEPTORES SOMOS NÓS... A recepção nao ocupa lugar de destaque nos estudos so bre cultura popular realizados por cientistas sociais, nem nos que tomam como objeto o que é produzido pelo povo ( religião afro-brasileira, literatura de cordel, ]tc), nem nos que tra tam de produções culturais de outra classe que sao adotadas pelo povo (música de Roberto Carlos, e t.c ) . Na pesquisa de "cultu ra popular", as populações de baixa renda aparecem mais como emissoras do que como recept~ ras, uma vez que são elas que fornecem os dados aos pesquis~ dores. Os trabalhos sobre prod~ çoes culturais "adotadas" pelo povo t~m interessado mais aos folcloristas e comunicadores (os primeiros quando se trata de empréstimos ou imposições ocorridas em um passado 10ngI~ quo, e os segundos, quando se trata de influéncias recentes, particularment2 dos meios massa) . de 1, Apresentado no Seminário Internacional "Estratégias para um melhor uso dos meios de comunicação para a educação dos grupos de populaç~es desfavorecidos: a participação dos receptores" . (UNESCO/INTERCOM, S. Paulo, de 31/8 a 4/9/8~. (1) Mestre em Ciências Sociais. Professora Adjunto do Departamento de Psico logia - UFMA. Cad. Pesq. são Luis, 3 (1) 87 - 93, jan./jun. 1987 87

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C.D.U. 39

MARCOS TEORICOS E METODOLOGICOS NA PESQUISA SOBRE RECEPÇÃO: A QUE~TÃO CULTURAL *

. . . (1)Mund~carmo Mar~a R. Ferrett~

INTRODUÇÃOEm setembro de 1985, a

UNESCO, associando-se à INTERCON,reuniu em são Paulo especiali~tas de várias áreas para debatero problema da recepção na comun~cação popular e o tratamento téorico-metodológico que o tema temrecebido na pesquisa cientifica.Nossa colaboração ao referido debate girou em torno da ~nfase dada à recepção nas pesquisas sobre cultura popular, mais part~cularmente sobre religiãoafro-brasileira e músicalar.

pop~

QUANDO OS RECEPTORES SOMOS NÓS...A recepção nao ocupa

lugar de destaque nos estudos sobre cultura popular realizadospor cientistas sociais, nem nosque tomam como objeto o que éproduzido pelo povo ( religião

afro-brasileira, literatura decordel, ]tc), nem nos que tratam de produções culturais deoutra classe que sao adotadaspelo povo (música de RobertoCarlos, e t.c ) .

Na pesquisa de "cultura popular", as populações debaixa renda aparecem mais comoemissoras do que como recept~ras, uma vez que são elas quefornecem os dados aos pesquis~dores. Os trabalhos sobre prod~çoes culturais "adotadas" pelopovo t~m interessado mais aosfolcloristas e comunicadores(os primeiros quando se trata

de empréstimos ou imposiçõesocorridas em um passado 10ngI~quo, e os segundos, quando setrata de influéncias recentes,particularment2 dos meiosmassa) .

de

1, Apresentado no Seminário Internacional "Estratégias para ummelhor uso dos meios de comunicação para a educação dos gruposde populaç~es desfavorecidos: a participação dos receptores" .(UNESCO/INTERCOM, S. Paulo, de 31/8 a 4/9/8~.

(1) Mestre em Ciências Sociais. Professora Adjunto do Departamento de Psicologia - UFMA.

Cad. Pesq. são Luis, 3 (1) 87 - 93, jan./jun. 1987 87

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A falta de trahalho $0

bre recepção se faz sentir mesmonas pesquisas sobre o que se co~vencionou chamar de "literaturaoral" - contos, poes ia, can tos ,tn~

tos, etc - que, quando nao e examinada, de uma forma ou d,? outra, como algo estático que setransmite de geração em geração,ê ~ncarada enquanto porta-voz deuma ideologia que, em última an~lise, reproduz a da classe dominante.

A maioria doslhos de cientistas sociais

t.r aba

se debruçam sobre as produç6~sliterárias populares est~o centrados na "leitura" que Cl pr~prio pesquisador faz da obra,apoiado ou não no conhecimentode s~u contexto hist6rico e ~ocial.

Os trabalhos que levamem conta o contexto hist6rico-social onde a obra foiou utilizada, embora geralmentemais sensiveis às peculiarid~despor ela apresentada, carecem ainda de apoio na interpretação dopr6prio grupo de produtores e receptores.

A pesquisa da rece,Jçaotorna-se particularmente necess~ria nas situações onde existe heterogeneidade cultural entre pr~dutores da mensagem e recept~

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res, uma vez que nestes casosa decodificação da mensagemco~[na-se mais diEicil e a interpretação em sentido muito difsrente do pretendido torna-seainda n~ior. Contudo, esta pe~

quisa ~ tambêm necess§~ia ond2

não existe aq8ele tipo d2 Leterogeneidade cultural.

Entre o produtor d~

mensagem e os receptores ~r.qüentemente se encontra um co·junto de intermediários 'apazesde lúél,ipülar o seu sí.qní f Lcad c.

orientan~8 ~s interprets~oss e~dí.reooes diversas. Neste s er. c í.

do, Chico Buarque de H~].andac omp os i.t.or )-,r as í Le í.ro c·~ gréLr,desucesso na "]VjPB"dos anos 7afirmou cer~a vez que ao grav~rem disco ~ma mfisic2, o auto:perde o controle sobre elasobre os uso-~ e inter[retaç6esque se ~ossa fazer del~.

A~sim. po~ maior 0ue

sej~ o cuidado Dé prodLçáo ~emissão da mensagem, ela podechegar aos ~eceptores de úlodomuito diferente daquel.e que se

pretendeu no momento de sua pr~dução.

Nos meioscos, a atenção dos pesquiséLd~res foi muitas vezes desviédado problema da recepçao porfluência do "estrut.uralismo"

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do "marxismo", tendências dominant.es,na maioria dos tl::abaln9satuais sobre cultura popular.

No caso do estruturalismo, a análise de texto forado contexto de produção e utilização, e o desejo de penetrar emseu significado profundo peladescoberta de sua estrutura, teEminaram conferindo ao pesquis~dor uma onipotência em matériade interpretação, desinteressando-o do problema da recepçao efazendo-o, muita.svezes,negar ouesquecer que a "leitura" feitapor ele não tinha lugar no contexto social onde o texto forarecolhido.

o mesmo tipo de afastamento ocorreu também em trabalhos realizados dentro de umaperspectiva marxista. A avaliação estereotipada e apressadados receptores em termos de" alienação", o engajamento do pesquisador na luta pela transformaçãos~cial, enquanto vanguarda intele~tual, forneciam uma atmosferapouco favorável às pesquisas s~bre recepção, apesar de as crit~cas feitas por GRAMSCI a esqueEda italiana serem tão conhecidas.

Segundo a ótica marxista clássica, na cultura popularso é verdadeiramente popular a

obra que atenta para.as contra.dições sociais e coLoca-cse aserviço da revolução, daI, freqüentemente, intelectuais deoutra origem social produziremobras direcionadas às camadaspopulares, na tentativa de substituir as produzidas pelo povo,que exibem um conteúdo "reacionário".

A pesquisa da receEção exige antes de tudo que setenha consciência da atividadedo receptor e se esteja convencido de sua importància no pr2cesso de comunicação, uma vezque esse trabalho não é fácil,exige tempo e, muitas vezes, d~manda grandes recursos finance!ros. Vendo o receptor como umser "universal", "passivo", ouque nada de interessante tem adizer, o pesquisador não tem estímulo suficiente para direcionar o seu trabalho para o pr~blema da recepçao.

As pesquisas quantit~tivas, tão necessárias para av~liar o grau de difusão da comunicação e se detectar as características do~ receptores,poutonos oferecem em termos de conhecimento de "como" a mensagem érecebida e de qual o seu ~nos diversos segmentos do públ~co, preocupação esta que deve

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ter lugar desde o seuprodutivo.

processo

o estudo da recepçaobaseado no comportamento do pQblico em programa de auditórioou na análise de cartas e telefonemas precisa ser incentivado.Parece, no entanto, que um estudoaprofundado da recepção exigiriaa participação do pesquisador emcontextos sociais determinados ,como: grupos políticos, esport~vos, religiosos, etc, particip~ção esta tradicionalmente realizada pelos antropólogos.

A "pesquisa-ação" ou"pesquisa engajada" reali~adapor pessoas que, por razoes teóricas ou por inspiração cristãou socialista, estabelecem umcontato .prolongado com popul~ções, não só como observadores,mas também como membros do gr~po, comprometidos em sua práticacom seus interesses, é uma excelente oportunidade para esse tipo de investigação.

A observação partic~pante fornece ao pesquisadormaior segurança na interpretaçãodos dados e maior riqueza nas i~formações. Ir a um terreiro(casade culto afro-brasileiro) paraassistir com o grupo a um progr~ma de TV que enfoca algum aspe~to da religião de origem africa

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na (como ocorre em "Chico Anisí.o shov",onde a figura do. "pa~nho· é das mais popularesl,con!titui-se numa. excelente opcrtunidade, tanto para se conheceras reações de um público determinado do programa, como paraampliar o nosso conhecimento dopróprio grupo.

Em 1980 tivemos opo~tunidade de tomar conhecimentode duas pesquisas sobre famíliae mulher, realizadas independe~temente no Nordeste Brasileiro,onde a novela de TV era utilizáda como ponto de partida paraentrevistas que eram realizadasprincipalmente após o térmiúodos capítulos.

No tocante ã ReligiãoAfro-Brasiliera, a observaçãoparticipante tem permitido também que se avalie o impacto daspróprias pesquisas na culturapopular, haja visto que as conmnidades religiosas constituemum dos segmentos do pGblico co~sumidor da literatura cientifica produzida naquela área.

Devido ao "statusltelevado do saber erudito, mesmo osgrupos que valorizam a culturapopular e a transmissão oral,têm dificuldade em fazer umaleitura critica das obras quevão sendo publicadas por cien

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tistas e pessoas ligadaa aosmeios aéadêmicos, sobre a religi~o de origem africana. Dai,comcerta freqüência, estas obras seconverterem em norma ou em p~drão de ortodoxia, passando a influenciar, de modo marcante, at.radí çao das casas. Um exemplotIpico dessa influência ~ a "nagoizaç~o" dos terreiros afro-brasileiros, apos a publicaç~o deestudos onde a chamada "culturanagô" ~ apresentada como mais p~ra e evolulda do que outras culturas africanas conhecidas noBrasil. Tal processo, al~m decontribuir para o desaparecime~to em nos s.o país de muitas tradições religiosas de origem africana, tem levado a religiãoafro-brasileira a uma '-'crescenteuniformizaç~o, inexistente emsua origem.

No rmranhão e no Parátem ocorrido nos últimos anos emvários terreiros o que se chamade "mudança de nação" substituição gradual da Mina pelo Candombl~ da Bahia. Um processo desses, depois de deflagradot ê difieil de ser interrompido, mesmoquando se faz sentir a açao deoutros pesquisadores atuantes naarea e avisados para o problema.

A analise de fatos como este tem levado ã conclusão

de que a pesquisa SODre recepçâo de.uma ohra não deve se realizar apenas após sua conclusãoe publicação, mas deve acomp~nhar todo o seu processo prod~tivo, orientando-o e ajustando-o.Esse dinamismo não ~ um privil~gio das novelas de TV. Os trabalhos cientIficos, antes de serem publicados, são discutidosem sala le aula, grupo de estudo, congresso, etc. ~ claroque, uma vez publicados em livro, essa reelaboraç~o torna-semenor, pois n~o é a toda horaque se pode lançar uma ediçãorevista de uma obra.

No ãmbito da pesquisasobre Religião Afro - Brasileirano Maranhão, campo onde estamosatuando, ao lado de Sérgio Ferretti e Maria do Rosário Santos, essa prática encontra-seem pleno desenvolvimento. Porexigência dos próprios grupos,à medida que o nosso trabalhode investigação vai prossegui~do, vamos deixando de nos relacionar com os grUIX'SCEl;lOrrerospe~quisadores, passando a ser vistos por eles como aliados oumembros do terreiro, e a assumir ali alguma função(como a depadrinho, conselheiro, etc).

Por outro lado,os membras do grupo pouco a pouco vao

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deixando de ser na pesquisa meros fornecedores. de dados. pas.s;a~do a discutir com o pe squisado'ro que este vai produzindo e aparticipar com ele de discussõesem seminários realizados por in~tituições da comunidade maranhe~se, sobre religião afro-brasile~ra e cultura popular. Neste sentido, vão também participando doprocesso de elaboração do quevai sendo produzido pela pesqu~sa.

Ninguêm seria tão ingenuo a ponto de pensar que sepoderia fazer "observaçao part~cipante" em um terreiro sem exe.!:.cer qualquer tipo de influênciasobre ele. Nossos valores e preocupações, de uma forma ou de outra, são comunicados e interferem na suá vida. (Temos plenaconsciência de que, como estamospesquisando sobre o caboclo naMina maranhense, corremos o risco de, no futuro, sermos acusados de termos encorajado a expa~sao dos caboclos nos terreirosde são Luis).

Na pesquisa da culturapopular,a colaboração de pessoasdo próprio meio é fundamental,tanto na coleta como na interpretação dos dados, principalmentequando o pesquisador tem outraorigem social e deseja penetrar

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realmente no "gosto" e na "v í

s.ãode.mundo" das.camadas pop~Lar es.

Não basta, no entanto, o cientista social penetrarno pensamento do povo e ser oseu porta-voz. E necessário ampliar os espaços onde o povopossa falar diretamente comoautor e nao como informante), efacilitar o seu acesso a cultura erudita.

Em relaçao ã obra ljterária, como se exige para a

sua publicação: correçã.o gram~.tical, referências bibliográf~cas, organização conforme 05

padrões eruditos, etc, um lotelectual do povo não pode conco~rer, por exemplo, num concursode monografias sobre folclore,promovido por uma instituiçãogovernamental da ~rea de cultura, mesmo que ele seja o maiorconhecedor de determinada manlfestação da cultura popular.Aquele conhecimento vai aparecer ali, na obra escrita porpesquisadores, ap6s geralmenteter passado por um processo de"higienização", como fala ARANTES, que se encarrega de desp~já-Ic de tudo o que não satisfaz as camadas dominantes.CONCLUSÃO

A dicotomia emis

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sor-receptor, cultura enKlita-cu!tura popular é ideológica e colonialista, uma vez que, em última análise, aceita e justifica a dominação de classe.

As camadas popularesnao podem continuar sendo consideradas no processo de comunicação apenas enquanto "receptor "~ necessário a ampliação dos espaços hoje existentes nos meiosde comunicação de massa para quesua voz seja ouvida e a prolif~raçao de meios alternativos ondepossa atuar com maior autonomiae apresentar sua proposta.

REFER~NCIA BIBLIOGRÂFICA

/ GRAMSCI, Antonio. Literatura evida nacional. 2. ed. Rio deJaneiro, Civilização Brasileira. (trad. da edição italiana)

o ARANTES, Antonio Augusto. O queé cultura popular. S. PauloBrasiliense, 1981.

ENDEREÇO DO AUTOR

MUNDICARMO MARIA ROCHA FERRETTI

Depto. Psicologia - CentroEstudos Básicos.Campus Universitário - Bacanga

de

Te 1.: (O98) 221- 5433

65.000 SÃO Luís - MA.

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