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EPEA 2001 1 de 16 Revista Educação: Teoria e Prática . Rio Claro: UNESP – Instituto de Biociências, Volume 9, número 16, 2001. (CD-Rom arquivo: tr17.pdf) CAUSALIDADE E FATORES DE RISCO: TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL Renato Rocha Lieber UNESP Campus de Guaratinguetá Nicolina Silvana Romano-Lieber USP Campus de São Paulo palavras-chave: Ambiente; Epistemologia; Conceitos Resumo: O uso de relação causal, ao invés de relação de risco, pode fomentar concepções míticas relativas à realidade. Com o propósito de verificar o gênero de conhecimento prestado pelos conceitos dominantes, examinou-se a obra bem difundida de Meadows 1989 (SEMA, 1999) sob um referencial crítico. Para tanto, apresenta-se a evolução do conceito de causalidade e a essência do conceito de risco como expressão da condição humana. O exame daquela obra constatou (i) uma articulação contraditória com apelo metafísico, sustentado no mito da harmonia e do equilíbrio; (ii) a apologia ao ascetismo em detrimento da crítica aos conflitos decorrentes da desigualdade econômica; e (iii) convergência para a culpa em detrimento da responsabilidade. CAUSALITY AND RISK FACTORS: TRANSCENDENCE AND IMMANENCE IN ENVIRONMENTAL EDUCATION keywords: Environmental; epistemology; concepts Abstract: The use of causal relationships in place of risk relationships can promote a mythical conception of reality. The widely accepted work of Meadows 1989 (SEMA, 1999) is analysed under a critical point of view, with the purpose of ascertaining the specific class of knowledge into which the predominant concepts can be categorised. With this aim, the authors expose the evolution of the concept of causality and the nature of the concept of risk as an expression of the human condition. The analysis of the aforementioned work shows: (i) contradictory argumentation with a metaphysical appeal, supported by the myth of harmony and equilibrium; (ii) an apology to asceticism in detriment of a more critical approach to conflicts originated in economical inequality; and (iii) a drift towards guilt, in detriment of responsibility. 1. Introdução A educação ambiental assumiu um papel de inquestionável relevância na formação de entendimento do mundo natural e social, com profundas implicações nas perspectivas de transformação do status quo político e econômico. A promoção de crítica dos fundamentos conceituais e de suas explicações é a chave para percepção de alternativas, garantindo o efetivo exercício democrático de fomento da diversidade e a da pluralidade. O educador comprometido com a promoção do conhecimento em prol da liberdade não pode, assim, furtar-se à atitude crítica ampla e permanente, reservada tanto às formas de preservação de tradições, como às inovações geradas pelo progresso.

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Revista Educação: Teoria e Prática. Rio Claro: UNESP – Instituto de Biociências, Volume 9, número 16, 2001. (CD-Rom arquivo: tr17.pdf)

CAUSALIDADE E FATORES DE RISCO: TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Renato Rocha Lieber UNESP Campus de Guaratinguetá Nicolina Silvana Romano-Lieber USP Campus de São Paulo

palavras-chave: Ambiente; Epistemologia; Conceitos Resumo: O uso de relação causal, ao invés de relação de risco, pode fomentar concepções míticas relativas à realidade. Com o propósito de verificar o gênero de conhecimento prestado pelos conceitos dominantes, examinou-se a obra bem difundida de Meadows 1989 (SEMA, 1999) sob um referencial crítico. Para tanto, apresenta-se a evolução do conceito de causalidade e a essência do conceito de risco como expressão da condição humana. O exame daquela obra constatou (i) uma articulação contraditória com apelo metafísico, sustentado no mito da harmonia e do equilíbrio; (ii) a apologia ao ascetismo em detrimento da crítica aos conflitos decorrentes da desigualdade econômica; e (iii) convergência para a culpa em detrimento da responsabilidade. CAUSALITY AND RISK FACTORS: TRANSCENDENCE AND IMMANENCE IN

ENVIRONMENTAL EDUCATION

keywords: Environmental; epistemology; concepts Abstract: The use of causal relationships in place of risk relationships can promote a

mythical conception of reality. The widely accepted work of Meadows 1989 (SEMA, 1999) is analysed under a critical point of view, with the purpose of ascertaining the specific class of knowledge into which the predominant concepts can be categorised. With this aim, the authors expose the evolution of the concept of causality and the nature of the concept of risk as an expression of the human condition. The analysis of the aforementioned work shows: (i) contradictory argumentation with a metaphysical appeal, supported by the myth of harmony and equilibrium; (ii) an apology to asceticism in detriment of a more critical approach to conflicts originated in economical inequality; and (iii) a drift towards guilt, in detriment of responsibility.

1. Introdução

A educação ambiental assumiu um papel de inquestionável relevância na formação de

entendimento do mundo natural e social, com profundas implicações nas perspectivas de

transformação do status quo político e econômico. A promoção de crítica dos fundamentos

conceituais e de suas explicações é a chave para percepção de alternativas, garantindo o

efetivo exercício democrático de fomento da diversidade e a da pluralidade. O educador

comprometido com a promoção do conhecimento em prol da liberdade não pode, assim,

furtar-se à atitude crítica ampla e permanente, reservada tanto às formas de preservação de

tradições, como às inovações geradas pelo progresso.

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No ato de educar sob este referencial crítico, cabe destaque à fundamentação dos

conceitos. O ato de definir ou conceituar, embora se imponha como exigência de qualquer

trabalho rigoroso, constitui uma coação desvantajosa ao pensamento crítico construtivo,

voltado ao alargamento das possibilidades de compreensão daquilo que acontece. Ocorre

que os acontecimentos são percebidos enquanto interpretados e é o conceito que corrige o

olhar (Ortega-Gasset, conf. KUJAWSKI 1994, p.46). Como o conceito não é replica da

coisa, mas a medida da coisa, a sua expressão exige relações de conexão com outras coisas.

Graças a essa conexão que se estabelece ao se conceituar algo, pode-se tomar o mundo e as

coisas como pertinentes a uma "rede de conceitos" e, com isso, ganha-se o domínio sobre

as coisas porque elas passam a ser pensadas (ibid).

Em contrapartida, há o desconforto (ou conforto, para a maioria) de se estar preso a

essa teia conceitual, que constrange e mutila a coisa, graças aos propósitos de

universalização do particular ou de homogeneização do heterogêneo. Como toda definição

depende do tipo de relação que o cientista está buscando (SCHWENDIGER &

SCHWENDIGER, 1980), a questão que pode ser colocada é: O quanto os conceitos

propostos na educação ambiental fomentam o (des)entendimento, possibilitando a mesma

dominação sob outras roupagens, através da preservação do conceito de causalidade? De

que forma o uso do conceito de risco poderia oferecer opção, particularmente no

entendimento de acidentes e catástrofes ambientais?

Para atender esta questão, propõe-se o exame crítico dos conceitos básicos em

educação ambiental apresentados por Meadows 1989, patrocinados pelo programa de

Proteção Ambiental da ONU (UNEP/UNESCO) e promovidos no país pelo Ministério de

Educação e Desporto e pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SEMA,

1999). Pretende-se mostrar as implicações do exercício da visão mítica na educação

ambiental, presente nessa obra, e propor o uso da incerteza como instrumento heurístico,

capacitando o educador à promoção da condição humana e à denuncia dos embustes

ideológicos. Para tanto, prestar-se-ia como referencial teórico todo o esforço recente para

superação da metafísica, que se dá a partir das obras fundamentais de Nietzsche (1844-

1900), levado avante por Heidegger (1889-1976) e expresso de forma particular pelo

existencialismo de Ortega-Gasset (1883-1955).

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2. Causalidade e a percepção transcendente

“... porque é unicamente sob olhar de um mundo de fins que a palavra

‘acaso’ toma sentido.” F. Nietzsche, 1882, #109 da “A gaia ciência”.

A lógica da causalidade acompanha a condição humana na sua busca de

entendimento das coisas do mundo. Por esta razão, o ato de expressar “causa” foi e

continua sendo compartilhado em diferentes épocas e por diferentes culturas. Ainda que lhe

falte sustentação, como demonstraram seus críticos já a partir de Hume (1711-1776), a

noção de causalidade preserva-se, pois, em última análise, ela sustenta-se na metafísica,

garantindo e sendo garantida pela concepção transcendental de um mundo criado, produto

de um mistério.

2.1 Causa no pensamento “arcaico” ou “primitivo”

A sobrevivência do homem sob a caça e coleta depende não apenas do exercício

de destreza, da experiência e do conhecimento, mas também de uma maior ou menor dose

de dependências do "acaso". Por acaso entende-se os eventos contingentes que por uma

razão ou por outra se encontram fora do controle do sujeito (ATLAN 1996) . Ao acaso

propriamente, liga-se o risco, sempre presente e determinando um resultado adverso não à

empreitada em si, mas ao sujeito empreendedor. Controlar esse acaso, e não simplesmente

negá-lo ou evitá-lo, foi desde sempre o mais sublime desígnio da vida humana

(CLASTRES 1971, p.68). Os mais antigos registros conhecidos testemunham que, para o

homem, a vida nunca foi um distanciamento dos perigos, mas sempre uma aproximação. A

garantia para essa aproximação, livre dos acasos, foi o conhecimento, o qual nunca excluiu

o mágico ou o religioso em complementaridade à destreza e à experiência (TOKAREV

1986, p.5-15). Embora não se possa formalizar uma distinção absoluta, antropólogos como

Frazer (1854-1941) estabeleceram que a explicação religiosa pressupõe uma ordem

superior flexível e caprichosa, capaz de mudar o curso das coisas pela ação das preces, se

essa for a vontade e capricho dos deuses. Na explicação mágica, por sua vez, o curso da

natureza é dado e estabelecido. A possibilidade de causa não se atém a um capricho divino

mas às forças irrefutáveis presentes na natureza. Não cabem preces para se intervir no curso

das coisas, mas sim rituais mágicos. Numa lógica própria, ações na natureza desviam o

curso da sua causalidade (conf. AZCONA 1989, p.68). Enquanto o exercício mágico volta-

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se para os problemas do cotidiano, o apelo religioso fica reservado aos grandes problemas

coletivos, como as epidemias e às catástrofes naturais. (TOKAREV 1986, ELIADE 1963

p.87, ELIADE 1957 p.103-6).

Na expressão religiosa predomina sobretudo o mito, o qual possibilita a vivência num

plano sagrado, sobre-humano, transcendente, próprio das realidades absolutas (ELIADE

1963, p.123). A religião expressa o terror da incerteza, mas o incerto não é controlado,

como na magia, ele é afastado e negado. Para o homem religioso o mundo tem um fim e

uma ordem que não é a sua própria, embora faça parte dela. Na adversidade, o homem

contrafeito busca resignação na suas crenças, a fé religiosa de uma ordem que está além

dele, que o transcende, ao contrário do homem puramente mágico-supersticioso,

inconformado com a inoperância do seu contra-feitiço ou com o erro de suas fórmulas.

O mito apresenta-se como elo central na causalidade religiosa. Graças ao mito, não

existe acaso na causalidade religiosa, não há também coincidências, pois o mundo é uma

existência ordenada, conforme a concepção mítica. O mito dá a explicação para a ordem

natural e humana das coisas, ele estabelece como e porque a ordem do mundo existe. Ou

seja, melhor do que qualquer outra explicação possível, o mito dá ao mesmo tempo um

sentido perfeito ao mundo. O sentido é perfeito porque está e não está ao mesmo tempo na

realidade do homem, a partir do instante em que toda realidade pressentida deve ser

reduzida àquela anterior, da ordem do fantástico e na forma do mito. Consequentemente,

será no mito ou, mais particularmente, na sua interpretação que a causalidade será buscada.

Assim como no pensamento mágico-supersticioso, haverá causalidade universal (causa

para tudo) e não será tolerado o diferente (exclusão da alteridade), pois o mito garante a

existência de todas as causas e de todos os arquétipos. A operação do mito busca uma

lógica de compensação e conservação social, evitando, assim, qualquer mudança. Graças ao

seu uso, as experiências da história e do tempo ficam excluídas (CHAUI 1995, p. 310)

Viver na condição sagrada, ou, na vivência do mito, é exprimir o desejo de viver uma

realidade objetiva, sem se deixar paralisar pela "relatividade sem fim das experiências

puramente subjetivas" (ELIADE 1957, p.32). O homem afasta o risco das ilusões

oferecidas pela realidade ao se aproximar desse mundo real e eficiente, proporcionado pelas

certezas do mito. Esse horror à desordem, ao caos, atrai o homem para essa perfeição

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exemplar. Em consonância com a interpretação dualista do mundo, a concepção mítico-

religiosa mantém coerência separando o bem do mal. E, nas religiões monoteístas em

particular, o mal fica excluído de qualquer positividade.

Os conhecimentos mágico-supersticioso e mítico-religioso vinculam-se a

determinadas tradições culturais e determinados interesses que estimulam essas construções

heurísticas em detrimento de outras formas. Esta atração pelo pensamento de causalidade

universal e de exclusão da alteridade foi atribuida ao preconceito por Adorno e col. (conf.

JAHODA, G. 1977). Na década de 40 uma pesquisa conduzida entre norte-americanos

mostrou que um cenário doméstico tirânico e arbitrário predispõe o sujeito ao preconceito e

a aceitar explicações supersticiosas. O cenário de arbitrariedade, disciplina e rígido controle

é incubador da intolerância, é a sustentação da rejeição do diferente e o apego às

explicações absolutas.

2.2 Causa na concepção aristotélica e suas implicações

Refutar os mitos, promovendo uma nova forma de compreensão das coisas do

mundo, foi o propósito da filosofia nascida na Grécia antiga. Ao valorizar o “logos”, os

gregos desenvolveram uma outra forma de verdade, baseada na palavra comum, derivada

do conflito e acordo entre pessoas nas situações de divisão do butim. Causalidade passa a

ser objeto de estudo e completa-se na divisão sistemática de Aristóteles, referência

absoluta até a modernidade e fundamento das compreensões subsequentes.

Na sistematização Aristotélica, causa subentende algo que produz algo. Além disso,

graças à ela, passou a ficar claro que não se pode atribuir causalidade sem que uma

finalidade seja estabelecida. Caracteristicamente, o pensamento aristotélico tentou sempre

ser completo, concebendo diferentes gêneros de causa, sendo 4 os mais conhecidos. A

causa material corresponde àquela que dá a matéria, a causa formal refere-se àquela que dá

a forma, a causa motriz ou eficiente responde pela presença da forma e, finalmente, a causa

final é aquela que responde pelo o que a coisa é (conf. CHAUI, 1995, p250-79).

Como Aristóteles concebia uma causa maior, a causa final ou teleológica, todo o

pensamento medieval vai tentar fazer convergir esse gênero de causa aristotélica com a

vontade divina, dando ensejo àquilo que se conhece como escolástica. As etapas

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subsequentes foram extremamente ricas, destacando-se, na formação do pensamento

contemporâneo, as obras de Newton, Galileu e Descartes.

Para se apreciar a contribuição de Newton (1642-1727) convém lembrar que até o

século XVI e XVII predominava o princípio aristotélico separando as coisas cognoscíveis,

presentes no mundo sublunar, das coisas dos céus, a rigor, à margem da razão. Com as leis

da gravitação universal, Newton pode demonstrar que as relações observadas na terra

podiam explicar os fenômenos entre planetas. Com isso, todo o universo tornou-se fronteira

de especulação e de constatação de “leis”, cuja validade deve vincular-se essencialmente ao

seu caráter universal.

Essa nova forma de pensar, em franco desprezo às dicotomias clássicas de

Aristóteles, tomou corpo já antes no início do renascimento, com a redescoberta da obra de

Platão. A impossibilidade grega de confundir-se o mundo sensível com o mundo imaginado

(como o cálculo e a geometria) é subitamente revogada quando Galileu (1564-1642) impõe

ao artesão fórmulas geométricas para a construção de um telescópio. A Galileu não

interessava os princípios dicotômicos da impossibilidade, mas sim que o telescópio

operasse como se fosse um produto de geometria. Com isso, ele fez surgir a tecnologia

(própria da ciência) em oposição ao artesanato (próprio da técnica). O valor passou então a

ligar-se não mais às condições singulares, mas sim às propostas generalizantes, frutos da

imaginação e da especulação mental.

Mas tais concepções não teriam sido possíveis sem Descartes (1596-1650), que

viabiliza a concepção aristotélica de causa à ciência, ao adotar apenas duas formas dentre as

quatro originais. Ao reconhecer como causa apenas a causa eficiente e a causa final,

rechaçando a causa formal e a causa material, ele apenas confirmava a sua concepção de

primazia do pensamento sobre a matéria. (res pensans sobre res extensa). E ainda, se tudo

submete-se às leis, qual o sentido de uma causa sem causa, ou do acaso? Como a causa

final compete a Deus, coube a ciência limitar-se à causa eficiente.

2.4 Causalidade sob concepção pós-filosófica ou científica

Até o início deste século ninguém poderia pensar cientificamente sem referir-se à

relação causa-efeito, conforme a melhor tradição de ordenamento mecânico do mundo. O

melhor exemplo nesse sentido na área da saúde foi o advento da bacteriologia. Causa, antes

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um tema da filosofia, passou a ser objeto de especulação científica e a causalidade passou a

ser configurada conforme o método científico. As formulações de hipóteses, verificação no

mundo empírico e validação de teorias transformaram-se em descritores da realidade, até

que a realidade recusou-se a se conformar às formas de descrição praticadas. Este golpe na

prática do entendimento deu-se novamente na física e obrigou todas as outras ciências a

reconsiderarem as relações mecânicas de causa-efeito.

A necessidade de rever não apenas teorias mas os próprios referenciais metateóricos

surge quando a física passa a se ocupar da ultra-estrutura da matéria. Reações químicas já

vinham sendo explicadas de forma incompleta pelos químicos graças ao uso do conceito de

molécula. Mas entender como isso estava ocorrendo só veio a ser possível com o uso do

conceito de átomo, como partícula mais elementar. As compreensões complicaram-se

quando se descobre a existência de outras partículas mais elementares no próprio átomo e

entraram em crise com o paradoxo de Heisenberg, ao constatar-se que não se pode medir a

carga e a posição do elétron ao mesmo tempo. Em paralelo, havia as disputas relativas à

natureza da luz, ondulatória para alguns ou corpuscular para a física quântica. Mas o

sistema clássico acaba desestruturado quando Einstein propõe (e constata) os efeitos

gravitacionais na luz e opta pela sua dupla natureza, ondulatória e corpuscular, dependendo

daquilo que se quer explicar.

Essa aparente contradição decorre de várias particularidades nem sempre explícitas

na prática científica. Ocorre que só há descoberta para aquilo que se procura. Ou seja, o

fato de uma explicação apresentar elevada coerência não a faz mais próxima da realidade,

às vezes, muito pelo contrário. Isto porque, embora a ciência tenha como referência o

mundo empírico, ela em si é fruto da imaginação, absolutamente não existe numa forma

material. Com isso, ela faz uso freqüentemente de coisas que também não existem, tais

como molécula, partícula elementar, homem médio ou movimento retilíneo uniforme.

Todas essas coisas, embora não existam, são abstrações fundamentais e necessárias para um

dado entendimento humano. Isto fica bem claro com a exposição feita por POINCARÉ,

1902. Desde Galileu, o mundo empírico e o mundo teórico se relacionam (mas não se

confundem) e se distanciam devido ao erro da observação, próprio à todo órgão sensível.

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Ao reconhecer essa posição arbitrária, a ciência assume como perspectiva conhecer o

“como” das coisas e não o seu “porque”. Com isso, as questões relativas às “causas”

passam a ser impróprias, pois se a atenção deve ater-se ao “como”, interessa o contexto em

que os fenômenos se dão (GRANGER 1974). Assim, nas ciências da saúde, explicar a

doença de um sujeito “porque” ele tem um bacilo, tornou-se uma explicação pobre. Mesmo

porque, um portador de bacilo nem sempre fica doente. Por outro lado, ao se configurar a

doença a partir da presença concomitante do bacilo, da subnutrição, do desgaste, do estresse

e dos genes, expressa-se os fatores de risco, ou seja, o contexto danoso.

Contribuiu também para essa revisão de paradigmas a constatação definitiva da

impossibilidade ou da inconveniência da mimética. Enquanto nos séculos anteriores

popularizava-se a figura do autômato para descrever o homem, desvirtuando a colocação de

Descartes, para quem o “homem podia ser entendido como uma máquina”, no século atual

a verdade por correspondência pôde ser posta em dúvida. Com isso, foi possível

desenvolver representações mais atentas às funções e menos às estruturas. Se o homem

podia ser entendido como uma máquina, em termos de estrutura, a sua função não é ser

máquina. Esse conhecimento será sistematizado pela teoria de sistemas, que, ironicamente,

irá resgatar as categorias causais de Aristóteles, ao usar conceitos como modelo, software e

hardware. Como conseqüência, o entendimento do mundo e do homem será reduzido ao

entendimento das suas funções.

2. 5 A contribuição da teoria de sistemas

Conceber um sistema é definir “espaços” ordenados, onde se pressupõe

controle. A ordem, graças ao arranjo estruturado das entidades, delimita o meio interno, em

contraste com o meio externo (o ambiente). Por definição, ambiente é tudo aquilo que

importa, mas que não se tem controle (CHURCHMAN, 1971). Entre os espaços há a

fronteira, cuja natureza poderá ser fechada, semifechada ou ainda, semi-aberta. Esta

condição de fronteira, ou de comunicação entre o espaço ordenado com o não-ordenado,

implica em diferentes processos para o funcionamento dos sistemas, admitindo-se,

respectivamente, 3 arquétipos de funcionamento, como mecânico, orgânico e cibernético ou

morfogênico (BUCKLEY, 1967).

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Ponderar sobre problemas ambientais pressupõe essencialmente a reflexão sobre

teoria de sistemas. Mas considerar o ambiente como um problema só foi possível a partir de

uma abordagem muito particular nessa teoria. Isto porque, o ambiente só torna-se um

problema quando ele passa a fazer parte do meio interno do sistema, convertendo-se em

objeto de controle. Os problemas ambientais tornaram-se “problemas” quando os sistemas,

até então concebidos como sistemas fechados ou mecânicos, passaram a ser interpretados

como sistemas semifechados ou semi-abertos. Não é sem razão, portanto, que as soluções

de controle usualmente propostas (como a reciclagem) sejam medidas típicas dos sistemas

semifechados ou orgânicos (como a retroalimentação). Não é sem razão também que as

análises de vanguarda se obrigam a considerar a “teoria do caos”, “conjuntos difusos”,

“fractais”, e outras abordagens distantes do determinismo mecânico tipo “causa-efeito” em

proveito da “complexidade” (MUNNÉ, 1995).

Sendo assim, embora o mundo possa ser interpretado como uma condição fechada em

dada escala, isto não implica que ele seja fechado. Da mesma forma, o fato de se observar

variações sob uma ordem geneticamente dada (sistemas orgânicos) isto não implica numa

ordem irrevogável. Muito pelo contrário, a concepção morfogênica sustenta-se na

observação do processo histórico, o qual, embora possa ser carente de pleno sentido, mostra

que a imutabilidade é uma ficção mítica e que o viver não pode se excluir do acaso.

3. Inerência do risco na condição humana

“... Amo aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, pois

são os que atravessam....” (F. Nietzsche1884, “Prólogo de Zaratustra”)

O homem encontra-se num sistema natural, cujas condições são estabelecidas pelo

solo, pela água e pelo ar. Ao mesmo tempo, ele cria ambientes ou sistemas sintéticos, como

o ambiente doméstico, do trabalho e do lazer. Cabe lembrar que um ambiente

absolutamente natural não é de forma alguma adequado ao homem. Nem mesmo o

selvagem na floresta admite viver como um animal, pressupondo sempre a modificação da

natureza como adequação desta à condição humana. Consequentemente, as condições de

vida do homem viabilizam-se num sistema ambiental misto, onde a natureza estabelece os

meios e o homem os fins, uma vez que para a natureza, por ela mesma, não há fins. A rigor,

como quis Lacan, “no real não falta nada” (conf. ZIZEK 1989 p.17). A natureza é o que é.

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Mas quando homem interage com a natureza ele impõe a esta uma finalidade, encontrando

faltas e excessos, e promove a aproximação deste fim trabalhando.

Essa condição particular dos sistemas ambientais próprios à vida humana implica que

a natureza deve sempre ser modificada nas suas condições físicas, químicas e biológicas.

Isto quer dizer que, ao interagir com a natureza no sentido de humanizá-la (ou torná-la

própria à vida humana) o homem se envolve em condições de riscos, os riscos ambientais.

Mas porque tais interações determinam uma condição de risco?

O homem recusa este estado de indiferença da natureza em relação a si mesmo. Ele

recusa a perspectiva da morte combatendo a doença. Aquilo que é natural torna-se um sem

sentido e, quando a sua luta contra a doença é inglória, ele ultrapassa a morte reinventando

a vida. Esse exemplo de estado radical de insubordinação pode ser expresso numa condição

contraditória:

O homem é um ser natural contra a natureza.

Dessa contradição, surgem ao homem duas possibilidades em relação à natureza:

Intervir no seu curso e sujeitar-se ao “risco artificial” ou “tecnológico”, ou deixar de

intervir e sujeitar-se ao “risco natural”, como no furacão ou no vendaval. Esse dilema

estabelece um espaço de opção configurado pela ignorância. Como toda vida humana

consciente tem uma finalidade, projetada graças à certeza da razão, o homem depara-se

com a condição necessária e irremediável de se expor às incertezas, tanto àquelas

decorrentes da sua ação (ou trabalho), como daquelas decorrentes da sua omissão. Disso

pode-se estabelecer o segundo estado contraditório na condição humana:

O homem é um ser para o risco.

Reconhecendo-se um ser para o risco, o homem que busca certeza admite não se

contentar com os seus instintos, a única certeza que a natureza pode oferecer a cada ser

vivo, graças à combinação de genes dos mais aptos. Ao reconhecer-se nessa condição não-

natural (ou humana), e obrigando-se ao risco, o homem não só admite a sua ignorância em

relação à natureza, como mostra a possibilidade de torná-la cognoscível. Isto porque,

prevalece tanto o seu estranhamento em relação à ela, como o permanente convívio com a

incerteza (ou risco), necessário à promoção de descobertas. Pois será nesse convívio com o

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risco que a ignorância poderá ser superada, promovendo-se o conhecimento. Este é o seu

preço e aquela é a sua tragédia.

Mas tal reconhecimento não é o fim mas é o começo, quando o homem pergunta-se

“qual é o papel do conhecimento” e se dá conta que a resposta não é única. Assim, seria

papel do conhecimento buscar as “leis” da natureza ou descrever suas contradições? O

mundo é lógico ou se dá lógica ao mundo, convivendo-se com uma eterna incompletude

explicativa? O propósito é dominar o mundo ou compreendê-lo para melhor aceitá-lo nas

suas contingências?

Estas dúvidas, ao contrário das aparências, não constituem obstáculos à promoção

humana, mas são os seus degraus de ascensão. O desafio ao espírito lúcido é o seu fomento

e preservação, ou, em outras palavras, não se deixar que a dúvida se perca no conforto dos

preconceitos e dos mitos. E a dúvida se renova a todo instante, quando o homem se vê

diante das forças brutas da natureza, onde conta muito pouco o legado natural (os seus

genes), e muito mais aquele legado dolorosamente construído nas incertezas, que é a

cultura. É por isso que a cada cultura caberá uma solução, ou que a cada cultura caberá um

conhecimento. É isto que justifica a rejeição à dominação cultural, ao “aculturamento” ou à

indústria cultural de massa.

4. Discussão: Cultivo dos mitos e o sustento da opressão

“...se o ‘próximo’ louva o desinteresse é porque dele tira

lucro!” F. Nietzsche, 1882, #21 em “A gaia ciência”.

A educação ambiental é uma atividade política (PHILIPPI JR. & PELICONI,

2000). Mas quando a educação toma por base as “causas”, excluindo o acaso e, portanto, a

análise do contexto e do processo nele expresso, ela exclui a possibilidade de conflito e

alimenta o mito da harmonia, dissimulando os interesses da opressão. Tal como a prática

capitalista que não opera sem a contradição intrínseca dos seus princípios, pois é impossível

a universalização do processo de extração de mais valia, também os conceitos de Meadows

1989 (SEMA, 1999) não alcançam coerência a não ser na contradição. Seus temas não

diferem da exposição aqui oferecida, mas a sua articulação denuncia o seu referencial.

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Defendendo a observância das “leis imutáveis” (p.29) Meadows refere-se tanto à

entropia (p.27) como aos sistemas “auto-sustentáveis” (p.57). Ora, nessa condição

contraditória, o seu conceito de “ciclos” (p.35) só se viabiliza sob a égide de outro sistema

não mencionado: o do sistema sustentante. Propostas para uma “ecologia global”, onde a

reciclagem em diferentes níveis opera para preservar “recursos limitados” e para “reduzir

dejetos” (p.78), desconsidera que os “recursos limitados” são tanto de ordem financeira

como não-financeira. Como os primeiros são bem mais limitados que os segundos, aqueles

terão preferência, não se poupando materiais, energia ou esforço humano (recursos não-

financeiros). Além disso, o pressuposto que um sistema pode operar com elevadas taxas de

trabalho interno (reciclagem) sem algum aporte externo de energia é um pressuposto

tipicamente mecânico (o relógio). Sem energia vindo do meio externo, como nos sistemas

orgânicos ou sócio-culturais, há consumo de recursos de meio interno, cujo destino é o

fenecimento. Logo, não é sem razão que países pobres, carentes de recursos financeiros,

sofram crescente degradação ambiental e aviltamento da força trabalhadora, enquanto que

nos países ricos se observa cada vez mais recursos financeiros direcionados para a

reciclagem de dejetos, cuja viabilidade não pode prescindir dos aportes de capital a “fundo

perdido”. Assim, a aproximação da utopia de desenvolvimento “auto-sustentado”, uma

impossibilidade termodinâmica, dá-se de fato na forma de “desenvolvimento sustentado por

outro”, com os sistemas periféricos transferindo aos sistemas centrais cada vez mais

matéria e energia, graças às relações desiguais de troca da economia capitalista (1).

Tal como a economia capitalista, dependente de formas não-capitalistas para a sua

viabilização (como denunciou Rosa Luxemburgo no século passado e hoje ainda se

constata no apelo às ações voluntárias), assim também o ecologismo dos países centrais

depende ora da hiperexploração dos recursos naturais das economias periféricas, ora do seu

controle para que as suas próprias “commodities” não percam o valor de troca.

Ultrapassada esta fase, às economias periféricas cabe explorar seus recursos “de acordo

com a cultura local” (p.88-90), na forma de “produção tradicional”, à margem da

exploração capitalista praticada pelo monopolismo dos países centrais. Como aquelas não

podem praticar o “desenvolvimento sustentável”, sustentado por alguma “outra”, só lhes

resta para tal a “organização, educação e disciplina” (p.84), os valores ascéticos pregados

por Schumacher, calcados na corrente liberal-individualista, onde o problema e a solução

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competem a cada um (p.87). O freqüente apelo ao “trabalho duro” (p.90), como se a

iniquidade pudesse ser assim ultrapassada, trai o uso da ética protestante, que proclama os

males da ganância (p.74-5) mas que evita em todas as passagens a denúncia da

desigualdade nas relações de troca. Porque o problema dos pobres é a falta de educação

(p.76) e, na vigência da desigualdade, quem tem menos deve ser mais criativo, ou

“sofisticado” (p.77), ou então se contentar com esse menos (p.67).

Em consonância com uma postura de aversão ao conflito, Meadows sustenta seus

argumentos no mito, declarando-se de forma manifesta ao defender a “sacralização da

natureza” (p.103) e a validade do processo não racional, ou “intuição”, para se lidar com a

incerteza (p.101). Ora, tratar a intuição como um processo heurístico não-racional

demonstra a confusão entre racionalidade e lógica da não-contradição. Se um ignorante é

incapaz de compreender a obra de arte, isto não a faz menos racional. Pela mesma razão,

tanto o acaso destituído de sentido, como o comportamento da natureza (FENSTAD 1998),

não se excluem necessariamente da racionalidade, ainda que lhes faltem “leis” ou

“previsibilidade”.

O uso da mesma lógica mítica se dá também em termos mais implícitos, ao proclamar

o planeta como um “organismo vivo”, a “Gaia”, (p.42), fruto de equilíbrios, expresso sob a

interpretação de “sistemas complexos” (p.45). Não ocorre a ela, entretanto, que a

proponente da teoria da Gaia (Lymn Margulis) tem se dedicado a refutar tal paralelismo,

calcado na ignorância das concepções fisiológicas (www:xsnrg.com/sciencewriters). Não

ocorre a ela também que sistemas complexos são precipitantes (PERROW 1984) e, por isso

mesmo, morfogênicos. A simples idéia de que um sistema possa se viabilizar

“revolucionando” as suas estruturas torna-se inconcebível para uma lógica fundamentada

na noção de equilíbrio, cuja validade ficcional ficou bem representada no fracasso da

missão de MacCallum e seus colegas na “Biosfera 2”, em 1994 no Arizona, EUA (maiores

detalhes em www.bio2.edu).

Presa a essa concepção de estruturas e funções na tentativa de estabelecer relações de

equilíbrio, Meadows não se dá conta de que há uma distinção entre os sistemas naturais

(relativos à natureza) e os sistemas sintéticos (relativos ao homem). Enquanto estes são

plenos de finalidade, aqueles carecem de objetivos (SIMON,1968). Pressupor “objetivos”,

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“harmonia entre subsistemas”, “estabilidade, flexibilidade e eficiência” (p.54) nos

sistemas naturais é negar a condição de natureza ao vulcão, ao cometa em rota de colisão

ou à explosão solar capaz de enregelar o planeta por séculos. No seu conflito contra a

“ordem” natural, é também o homem que promove a tão admirada biodiversidade (2).

Traindo o seu referencial lógico, liberalismo individualista em prol da ordem burguesa

calcada em Spencer, a autora é incapaz de refletir sobre as conseqüências dessa distinção

fundamental e de suas possibilidades, pois se a natureza é o que é, onde só sobrevive o mais

forte, os homens são o que são porque não aceitam o perecimento do mais fraco, seja outro

homem, seja outro ser vivo. Ou, como expressou Nietzsche: "Darwin esqueceu o espírito"

(F. Nietzsche, 1888 #14 "Incursões de um extemporâneo" em “Sobre o niilismo e o eterno

retorno”).

Esquivando-se da crítica à lógica da acumulação capitalista, Meadows refugia-se na

transcendência para expor os “fins fundamentais” do homem (p.71). Com isso, ela exclui da

discussão um dos maiores paradoxos da modernidade, que é o fato do homem preferir

sujeitar-se à exploração capitalista em troca da abundância de bens de consumo. Por outro

lado, quando se tem em mente que a condição humana caracteriza-se pelo bem-estar, algo

mais que o estar-no-mundo, e que este bem-estar expressa-se pela disponibilidade de

supérfluos, como quis ORTEGA-GASSET (1963), entende-se porque a proteção ambiental

apresenta este discurso em detrimento dos menos possuídos. Para estes, a natureza

converte-se numa necessidade à própria existência miserável, enquanto que para os países

ricos, tal necessidade já não mais existe e a natureza é um mero supérfluo a ser conservado

(LIEBER & ROMANO-LIEBER,1997).

4. Conclusão

Uma forma de educação incapaz de promover a liberdade não se justifica como

prática e nem se sustenta enquanto teoria. Sua proposta de solução não pode ser a apologia

ao não-racional, mas sim a promoção de uma racionalidade cada vez mais completa, capaz

de sustentar a justa atribuição de responsabilidades relativas aos riscos. A conservação da

natureza imposta como uma obrigação generalizada, em contraste com a opção do homem

livre, fomenta o mito da culpa em detrimento da atribuição de responsabilidades. Alguém

tem opção mas não a usa, alguém tira mais proveito mas não repara ou ressarce. Alguém

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cria contextos em benefício próprio, passíveis de imprevistos ou acasos. A rigor, nem o

selvagem conserva, ele apenas explora sem objetivo de acúmulo, pois sua necessidade não

se satisfaz com o simples estender da mão. O homem pobre, preso às urgências da

sobrevivência, também se constrange com o ambiente degradado, mas a redução da sua

liberdade vai além do assumir riscos, como o selvagem. O homem pobre presta-se ao

processo de acumulação e a sua esperança é que, algum dia, seus filhos possam alcançar a

verdadeira liberdade (ou a plena autonomia como definiu SEN, 1999), capaz de converter a

natureza explorada no supérfluo a ser admirado e guardado para os que virão a seguir,

como um símbolo de exaltação da memória.

Notas

(1) Recente estudo do fundo Monetário Internacional, FMI, (Dollar & Kraay Growth is

good for the poor , 2000), usado para justificar as suas políticas, confirma que os países

pobres acompanham os países ricos nas fases de crescimento e estagnação. Ou seja, o

processo de “sustento” depende da contínua drenagem desigual de recursos de um

sistema para outro, pois “soma zero” (auto-sustentado) é a operação sob “perdas zero”

ou de reversibilidade absoluta, uma contradição ao aumento da entropia do universo.

(2) Estudo recente demonstrou que a floresta amazônica só é virgem na imaginação

ocidental. A grande diversidade biológica observada foi devida a intensa antropia

decorrente das culturas nativas, conf. Baleé, 1994. (Apud. DESCOLA, 1999, p. 115).

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