catadores de materiais recicláveis - a construção de novos sujeitos políticos

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105 Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009 Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos Mari Aparecida Bortoli Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC- RS) Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos Resumo: Este texto relata uma experiência no âmbito da extensão universitária, realizada junto a um grupo de catadores de materiais recicláveis para geração de trabalho e renda. A proposta teve a participação dos catadores desde a elaboração até a avaliação e constituiu- se num projeto, cuja intenção foi associar as habilidades de gestão a uma ação de geração de trabalho e renda, a partir da construção de alternativas socioeconômicas, com foco na autogestão. Além de relatar os procedimentos metodológicos e apresentar os resultados da intervenção, são discutidas as condições de vida e trabalho às quais os catadores estão submetidos e a construção de espaços de discussão para construção desses sujeitos políticos. Palavras-chave: participação, formação política, trabalho e renda. Collectors of Recyclable Materials: the Construction of New Political Subjects Abstract: This text reports on an experience of a university extension project, conducted with a group of collectors of recyclable materials to generate labor and income. The project had the participation of the collectors from its creation until the evaluation process and constitutes a project whose intention was to associate management abilities to an action to generate work and income, based on the construction of socio-economic alternatives, with a focus on self-management. In addition to reporting on the methodological procedures and presenting the results of the intervention, the living and working conditions to which the collectors are submit are discussed, as well as the construction of discussion spaces to help the formation of these political subjects. Key words: participation, political education, labor and income. Recebido em 30.10.2008. Aprovado em 04.02.2009. RELATO DE EXPERIËNCIA

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Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009

Catadores de materiais recicláveis: a construção denovos sujeitos políticos

Mari Aparecida BortoliPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)

Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticosResumo: Este texto relata uma experiência no âmbito da extensão universitária, realizada junto a um grupo de catadores de materiaisrecicláveis para geração de trabalho e renda. A proposta teve a participação dos catadores desde a elaboração até a avaliação e constituiu-se num projeto, cuja intenção foi associar as habilidades de gestão a uma ação de geração de trabalho e renda, a partir da construção dealternativas socioeconômicas, com foco na autogestão. Além de relatar os procedimentos metodológicos e apresentar os resultados daintervenção, são discutidas as condições de vida e trabalho às quais os catadores estão submetidos e a construção de espaços de discussãopara construção desses sujeitos políticos.Palavras-chave: participação, formação política, trabalho e renda.

Collectors of Recyclable Materials: the Construction of New Political SubjectsAbstract: This text reports on an experience of a university extension project, conducted with a group of collectors of recyclablematerials to generate labor and income. The project had the participation of the collectors from its creation until the evaluation processand constitutes a project whose intention was to associate management abilities to an action to generate work and income, based on theconstruction of socio-economic alternatives, with a focus on self-management. In addition to reporting on the methodological proceduresand presenting the results of the intervention, the living and working conditions to which the collectors are submit are discussed, as wellas the construction of discussion spaces to help the formation of these political subjects.Key words: participation, political education, labor and income.

Recebido em 30.10.2008. Aprovado em 04.02.2009.

RELATO DE EXPERIËNCIA

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Introdução

Agnes Varda, no filme Les glaneurs et laglaneuse (2000), retrata a França moderna e mos-tra aqueles que vivem da recuperação dos restos esobras, a partir de fragmentos de histórias decatadores urbanos e rurais. Do aproveitamento dassobras de batatas e maçãs para alimentação humanaaté a recuperação de sucatas através da reciclagem,é traçado o percurso de uma sociedade para a qual odescartável vai dos “alimentos feios” até “aquelesque vivem da recuperação das coisas”.

A atividade de catar alimentos para comer e ma-terial reciclável para vender foi registrada no Brasilpor Marcos Prado, no documentário Estamira(2004). Questionamentos sobre o destino do lixo esobre a realidade insuportável à qual pessoas sãosubmetidas atravessam o documentário, que contaa história de uma mulher que busca no lixo sentidopara viver. No aterro de Gramacho, Rio de Janeiro,as pessoas são flagradas vivendo do lixo e tem nolixão seu lugar de trabalho.

Tanto no filme francês quanto no documentáriobrasileiro, catar alimentos e catar material para serreciclado são atividades quese misturam, por vezes seacumulam, e estão presen-tes na vida de moradores derua, de desempregados, da-queles que nunca trabalha-ram ou que se tornaram nãoempregáveis e são obrigadosa se deslocarem para ainformalidade ou para o tra-balho por conta própria.

No Brasil, a profissão decatador de material reciclávelé reconhecida e foi oficiali-zada em 2002, pela Classifi-cação Brasileira de Ocupa-ções (CBO). Estima-se queno país sejam mais de 500 milcatadores de lixo. Contudo, o reconhecimento da pro-fissão não implicou mudança nas condições de vidae trabalho dos catadores, os quais atuam sem vínculoempregatício e sem direitos, ganham, em geral, me-nos de um salário mínimo, disputam materiaisrecicláveis com seus pares, não estão inseridos nossistemas de gestão de resíduos e enfrentam a explo-ração da indústria da reciclagem.

Nesse contexto, marcado pela emergência de pro-cessos e dinâmicas que contribuem para a precarizaçãodo trabalho e penalizam os trabalhadores, os catadoresde materiais recicláveis iniciam seus processos de or-ganização social e econômica e de luta por direitos.Os primeiros acontecimentos datam dos últimos anosda década de 1990 e início do século 21, nos quais

foram realizados os encontros e congressos que cul-minaram na criação do Movimento Nacional deCatadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Em1999 foi realizado o Primeiro Encontro Nacional deCatadores de Papel. Em 2001 aconteceu o PrimeiroCongresso Nacional de Catadores de MateriaisRecicláveis, em Brasília, e em 2003 foi realizado oPrimeiro Congresso Latino-Americano de Catadoresde Materiais Recicláveis, em Caxias do Sul, Rio Gran-de do Sul. O Segundo Congresso Latino-Americanoaconteceu em 2005 e, em 2006, mais de 1.200catadores marcharam até Brasília, levando demandasao Governo Federal e exigindo a criação de postos detrabalho em cooperativas e associações, bases orgâ-nicas do movimento. As reivindicações dos catadoressão por alimentação, moradia, condições mínimas devida, além da inclusão no processo de gestão dos resí-duos e da luta pela criação de postos de trabalho.

Boaventura de Souza Santos (2007), ao se referira sua participação como conferencista no Sexto Fes-tival do Lixo e Cidadania, realizado em Belo Hori-zonte, lembra que os catadores não desistem de lutarpor uma vida digna, a partir da exigência de formasde organização e mobilização autônomas para pas-

sarem de “miseráveis come-dores de lixo” a uma “ocupa-ção profissional”. Não sepode ignorar que “outras for-mas de sociabilidade” emer-gem como iniciativas deenfrentamento da crise nasrelações de produção. Noentanto, muitas vezes, no di-zer de Mota e Amaral (2006,p. 30) “relacionam-se com anecessidade que tem o capi-tal, neste momento, de criarnovas formas de subordina-ção do trabalho.”

Assim, uma aproximaçãoaos processos sociais em quese inserem os catadores de

materiais recicláveis possibilita desvelar acomoda-ções, resistências e lutas, bem como as expectativasde mudança das condições de vida e trabalho dessapopulação. Com esta intenção, o objetivo deste textoé relatar uma experiência de intervenção no âmbitoda geração de trabalho e renda, realizada junto a umgrupo de catadores de materiais recicláveis do Nú-cleo Habitacional Santa Bárbara (NHSB), no muni-cípio de Cruz Alta, Rio Grande do Sul, entre os anosde 2006 e 2008. De caráter qualitativo, o estudo trazinformações e a possibilidade de conhecer os sujei-tos envolvidos em ações realizadas a partir de umprojeto de extensão universitária1.

A construção de espaços de questionamento etensionamento das relações econômicas, políticas,

...a profissão de catador dematerial reciclável é

reconhecida e foi oficializadaem 2002, pela Classificação

Brasileira de Ocupações(CBO). Estima-se que no país

sejam mais de 500 milcatadores de lixo.

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culturais e sociais e a compreensão histórica das ins-tituições, organizações e modos de viver dos catadoresde materiais recicláveis mostram o surgimento des-tes novos sujeitos políticos. Faz-se necessário reco-nhecer que na execução da intervenção aqui apre-sentada não se procurou avaliar o retorno econômi-co, mas sim evidenciar as contribuições das açõesdesenvolvidas para a formação política e para a trans-formação das realidades vividas por estes trabalha-dores. Sendo assim, neste relato ganha importânciao papel do catador de material reciclável, o qualprotagonizou esse processo de organização econô-mica e de participação social desde a elaboração daproposta até a avaliação dos resultados.

1 Geração de trabalho e renda: um cenáriodesafiador

A geração de trabalho e renda está relacionadaao incentivo ao associativismo, ao cooperativismo,ao empreendedorismo e ao trabalho em equipe, ha-bilidades de gestão que tendem a possibilitar ao tra-balhador a tomada de decisão. Se, por um lado, es-sas formas de gestão e organização do trabalho res-pondem pela sobrevivência dos trabalhadores, poroutro, estão associadas ao regime de acumulaçãoflexível, o qual tem ditado as regras para a consti-tuição de instrumentos de regulação social, afina-dos com as necessidades de coesão do sistema dereprodução do capital.

Na implementação dessas formas de gestão dotrabalho, torna-se comum a presença de populaçõesque foram, de certa forma, afastadas das possibilida-des de trabalho e são “capturadas” em estratégiasque, ao aproximá-las do trabalho, as faz reféns depráticas que competem para a manutenção e con-servação das relações sociais instituídas. Esta reali-dade se constitui num cenário desafiador tanto paraa compreensão quanto para a intervenção, pois, emcerta medida, como lembram Yazbek e Silva (2005,p. 31) “implica no deslocamento para a sociedade dastarefas de enfrentar a pobreza e a exclusão social.”

Porém, frente a um quadro de 180 milhões dedesempregados e quase três bilhões de pessoas quevivem na pobreza no mundo, conforme registraYazbek (2005), seria “perverso recusar a diversida-de das inspirações e das ações de intervenção narealidade problemática”. Visão compartilhada porMartins (2002, p. 9), para quem:

Tudo de sensato e fundamentado que se fizer epropuser no sentido de acelerar a inclusão social epolítica das populações pobres no processo de de-senvolvimento econômico, para com elecompatibilizar o ritmo do desenvolvimento social,será historicamente bem-vindo.

2 Aproximação e construção de estratégiasmetodológicas

Com a intenção de associar as habilidades de ges-tão a uma ação de geração de trabalho e renda apartir de uma demanda dos catadores do municípiode Cruz Alta/RS, foi elaborado um projeto de exten-são universitária, a partir de um Edital do CNPq2, oqual previa apoio ao desenvolvimento de tecnologiassociais para os catadores de materiais recicláveis.

As tecnologias sociais são metodologiasreaplicáveis que se destacam pelo êxito na melhoriadas condições de vida da população. Configuram-secomo soluções participativas, estritamente ligadas àrealidade local. Segundo Dagnino (2004, p. 194), sãotecnologias “capazes de viabilizar economicamenteempreendimentos autogestionários.”

A construção de uma tecnologia social para gera-ção de trabalho e renda se tornou um desafio para auniversidade, principalmente em torno da sua relaçãocom os catadores de materiais recicláveis. O ponto departida para a construção do projeto foi a constituiçãode uma equipe que deveria definir, a partir de estudosrealizados anteriormente, a área da cidade e o grupocom o qual se construiria o processo de intervenção.

Seguindo, em certa medida, as sugestões teórico-metodológicas de Freire (1990), foram iniciadas visi-tas exploratórias como forma de identificar as orga-nizações e lideranças populares da área delimitada.Na aproximação com o grupo lhe foi apresentado oEdital do CNPq e discutida a realidade dos catadoresdo município de Cruz Alta e do Núcleo HabitacionalSanta Bárbara (NHSB).

À medida que se discutia a realidade e a equipeesclarecia os objetivos da intervenção, o método detrabalho a ser realizado ganhava contornos e se cons-tituía um grupo que estaria junto na construção daproposta. Depois da síntese das discussões acercada realidade dos catadores – feita pelos pesquisado-res e pelo próprio grupo de catadores – foi elaboradoo projeto Autogestão para geração de trabalho erenda com catadores de materiais recicláveis(Agetrec)3.

Foi traçado como objetivo principal do projeto aconstrução de alternativas para geração de trabalhoe renda e melhoria das condições de vida doscatadores a partir do desenvolvimento de cinco fa-ses: fortalecimento da organização dos catadores,instalação de um entreposto, organização para o tra-balho e participação social, construção de parceriase consolidação da organização e fortalecimento daautonomia dos catadores.

A estratégia metodológica proposta para condu-zir as ações do projeto foi a autogestão, sustentadapor dois pilares de ação, quais sejam, formação polí-tica e capacitação para o trabalho, incluindo nestametodologia o acompanhamento e a avaliação do

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processo de organização para geração de trabalho erenda com pesquisadores e catadores participantes.

Os processos autogestivos ou autogestionáriosimplicam processos de organização social e econô-mica e incluem a divisão do trabalho, visto que setrata de processo produtivo. No entanto, não impõe aexistência de uma hierarquia, tampouco diferença depoder. Os quadros hierárquicos não têm como fun-ção impor a vontade de um sobre o outro, pois naautogestão é o coletivo que delibera e decide. Nestaperspectiva, o saber é exercitado no coletivo, no qualse conhece a realidade, o que permite definir açõespara transformá-la, como alerta Baremblitt (1996).

Para facilitar o processo de organização socio-produtiva, foi prevista a participação de integrantesdo grupo de catadores em seminários e trocas deexperiências com catadores da região, campanhasna rádio, elaboração e distribuição de panfletos in-formativos para a comunidade local e outras mídias.

Foi prevista no projeto a organização de eventose oficinas com o objetivo de proporcionar o debate ea participação do coletivo. Técnicas de reuniões eplenárias foram projetadas para viabilizar a forma-ção e capacitação dos pesquisadores e catadores.Também foram previstas visitas domiciliares paramobilização da população. Reuniões com entidadeslocais e com o poder executivo municipal foram pla-nejadas para articular e inserir os catadores nos pro-gramas e projetos sociais desenvolvidos no municí-pio. Para a avaliação deste projeto, foram definidosindicadores qualitativos e quantitativos de avaliaçãoem processo e avaliação final.

3 Ações desenvolvidas e resultados alcan-çados

Apesar de muitas vezes as condições para a reali-zação das atividades propostas não terem sido favorá-veis, pois geralmente o coletivo respondia aos interes-ses de outras entidades e grupos, no próprio coletivoforam definidos os problemas e as possíveis soluções.Assim, a atuação da equipe de pesquisadores estevesincronizada com a realidade dos catadores, sem apreocupação de impor um ritmo à organização, e simde orientar o processo e o tempo do grupo para queeste se consolidasse e, com isso, favorecer a experi-mentação de outras formas de trabalho e de vida.

Durante o processo de intervenção, foram reali-zadas 92 visitas domiciliares no bairro e na regiãopara mobilização e organização dos catadores. Naexecução do projeto, foram realizadas mais de 90reuniões. Algumas reuniões foram dirigidas à forma-ção e capacitação dos catadores, privilegiando te-mas como a autonomia, a função social da atividadede coleta e a organização para o trabalho. Tambémforam desenvolvidos estudos e elaborados fôlderes

informativos. Foram realizadas oficinas voltadas àprodução, comercialização e viabilidade financeira deempreendimentos associativos.

Para mobilização das entidades e construção deparcerias, foram realizadas 25 visitas a entidadespúblicas e privadas, com o objetivo de apresentar oprojeto e buscar parcerias para a destinação dos re-síduos sólidos para os catadores. Ademais, forampromovidas reuniões e discussões com representan-tes do poder executivo local para inclusão doscatadores no programa Restaurante Popular da Se-gurança Alimentar e Nutricional (SAN) e no Progra-ma Bolsa Família de Transferência de Renda.

Dentre os 105 catadores que participaram do pro-jeto Agetrec, 67 eram mulheres e 38 eram homens.A idade variava de 18 a 60 anos, predominando aque-les entre 30 a 50 anos. Com relação à escolaridade,80% dos catadores não concluíram o ensino funda-mental. Muitos não sabiam ler nem escrever e me-nos de 2% concluiu o ensino médio. Moravam emcasas cedidas e em estado de degradação e viviamde doações ou “biscates”.

A participação dos catadores nas reuniões e ofi-cinas, geralmente motivada pela expectativa de tra-balho e renda, constituía-se em espaços de discus-são sobre as trajetórias, geralmente comuns, de em-pregos sem vínculos formais, com baixa remunera-ção e sem direitos. Os catadores expressavam oinconformismo com as situações de riscos, precon-ceitos e humilhações às quais se submetiam ao reali-zar seu trabalho. Também era comum a manifesta-ção de dificuldades em organizar um processo de tra-balho de forma autogestionária, pois percebiam quecontinuariam sem proteção social e com rendimen-tos eventuais e incertos.

A formação de parcerias com entidades do muni-cípio e região foi apontada como uma alternativa ca-paz de contribuir com a ampliação e expansão dasatividades de coleta. Foram mobilizadas entidadespúblicas e privadas como bancos, correios, universi-dades, cartórios, empresas, estabelecimentos comer-ciais, escolas e igrejas. Muitas se manifestaram inte-ressadas, mas somente três enviavam regularmenteos resíduos sólidos descartados ao grupo de catadores– um banco estatal, uma universidade privada e umaescola pública.

Os resultados apresentados mostram o aprofun-damento do conhecimento dos catadores e dos pes-quisadores em suas relações com a realidade. Todasas fases da intervenção aconteceram simultaneamen-te. A todas as fases foi dirigida atenção e importância,visto que constituíam um processo interventivo, o qualteve o pretexto de saber em que consiste a realidadeconcreta dos catadores de materiais recicláveis, a partirda percepção que esses trabalhadores têm de si, doseu trabalho, da sua vida e da sociedade e de comoconstroem sua condição de sujeitos.

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3.1 Fortalecimento da organização doscatadores

A primeira fase do projeto esteve voltada para aorganização do grupo de catadores constituído pormoradores do NHSB, os quais faziam a coleta deforma individual e vendiam para atravessadores. Se-gundo os catadores, o armazenamento de materiaisrecicláveis, por não existir nenhum tipo de trabalho eorganização, é realizado nos próprios domicílios. Essasituação ocasiona problemas de saúde e acidentesdomésticos, tais como incêndios nas moradias. Já acomercialização caracteriza-se pela troca derecicláveis por leite ou outros alimentos comatravessadores ou intermediários. A venda individuale em pouca quantidade faz com que os preços levemos catadores a um nível de renda muito baixo.

Para mudar essa realidade, foi traçada como metaa promoção de articulação entre os catadores e asinstâncias organizadas da região e do estado parapotencializar o processo de organização, através datroca de experiências e de informação.

Um grupo de catadores passou a discutir a viabi-lidade da criação de uma associação ou cooperativa.Os catadores optaram pela criação de uma associa-ção, visto que o processo de organização era recentee até então não haviam experimentado a possibilida-de de geração de trabalho e renda de forma coletiva.

Após a elaboração de estatuto e da realização deassembleia geral, foi formada a Associação deCatadores de Cruz Alta (ACCA), com registro emcartório e cadastro em órgão competente. Tambémfoi elaborado e aprovado o regimento interno, comoforma de regulamentar a operacionalização do tra-balho dos catadores associados.

Apoiadores do MNCR visitaram o grupo decatadores da ACCA, trazendo experiências sobreoutras organizações de catadores. Foram realiza-das análises de conjuntura para discutir as condi-ções de trabalho dos catadores no município e re-gião. Nesta ocasião foram definidas e distribuídasatividades para todos os catadores e também paraa equipe de pesquisadores.

Nos encontros, através do uso de cartazes, eramexibidas as atividades e os nomes dos responsáveispor elas, para avaliar o andamento destas atividadese traçar novas estratégias. A partir dessas ativida-des, os catadores organizaram uma manifestaçãopública em frente à Prefeitura Municipal, com o ob-jetivo de reivindicar ao Poder Executivo um espaçofísico capaz de comportar a realização de atividadesde separação, armazenamento e comercialização demateriais recicláveis. Na ocasião, foram distribuídospanfletos informativos sobre a importância da coletaseletiva e concedidas entrevistas na rádio e na tevê,com o propósito de informar sobre a realidade doscatadores no município.

Como forma de aproximação da luta e do conhe-cimento da realidade, os catadores participantes doprojeto visitaram associações e cooperativas, paratroca de experiências e articulação com outros gru-pos da região e do estado4.

3.2 Instalação do entreposto

A organização e o planejamento do processo detrabalho dos catadores se efetivaram a partir da ins-talação do entreposto de coleta, seleção, armaze-namento e comercialização dos recicláveis. Oscatadores constituíram um grupo permanente paraacompanhar a instalação do entreposto e o prefeitomunicipal assinou um termo de concessão de usode um prédio5. Este espaço materializou a conquis-ta do grupo de catadores para realização do traba-lho coletivo.

Para viabilizar o trabalho dos catadores, foramadquiridos equipamentos e material permanente e deconsumo, como prensa, balança, carrinhos,empilhadeira e outros. Os catadores acompanharama aquisição tanto das máquinas quanto dos equipa-mentos de proteção individual (EPI’s). As empresasfornecedoras foram convidadas a visitar o grupo decatadores e apresentar os equipamentos. As máqui-nas foram adquiridas de acordo com o previsto noprojeto e com as necessidades dos catadores e pas-saram a ser utilizadas por eles.

O entreposto foi instalado para receber, separar,armazenar e expedir os materiais recicláveiscoletados. Além de ser um local para separar e pro-cessar o material recolhido, esse espaço passou afuncionar como um centro de referência para a pro-moção da organização dos catadores e como espaçode formação e capacitação.

3.3 Organização para o trabalho e participaçãosocial

A capacitação para o trabalho, através da apro-priação de conteúdos e do desenvolvimento de ha-bilidades associadas à organização do trabalho co-letivo e à autogestão associativa, envolveu ativida-des de coleta, seleção, armazenamento e comer-cialização de materiais recicláveis, nas dimensõestécnica, ecológica e econômica. Destacou-se nestafase o planejamento operacional para a organiza-ção do trabalho.

Através da realização de oficinas, foram aborda-das as temáticas de autogestão, das dimensões ad-ministrativas e financeiras do empreendimentoassociativo, do coletivo e do poder de decisão, alémda discussão de temas como custos, produção, orga-nização do trabalho, rateio e prestação de contas.Foram criados instrumentos de controle da produçãocomo planilhas de controle, fluxo de caixa e outros.

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O grupo de catadores se reuniu semanalmentepara discussão das atividades e da auto-organiza-ção. O diálogo entre os catadores e seus pares provo-cou a apreensão da realidade de trabalho/desem-prego à qual estão submetidos. Ao mesmo tempoem que reconheciam que não estavam sozinhosnesta atividade, percebiam que as mudanças seri-am geradas a partir da criação de instâncias de re-sistência e luta.

As atividades realizadas nessa fase do projetoenvolveram a escolha de representantes doscatadores para participarem de eventos na região,como forma de multiplicar a experiência. Foram or-ganizadas atividades na Universidade de Cruz Altapara os catadores contarem sua experiência de or-ganização social e econômica e com isso promove-rem discussões acerca das condições de trabalho aque estão submetidos.

3.4 Construção de parcerias

A quarta fase do projeto contemplou a constru-ção de parcerias com entidades públicas e privadaspara a realização da separação dos resíduos edestinação aos catadores. Acompanhados pelos bol-sistas, os catadores realizaram visitas às várias enti-dades. Foi criado um formulário com a definição dosdias e horários que os catadores passariam nas enti-dades para coletar o material reciclável.

As entidades públicas federais, de administraçãodireta e indireta, foram visitadas e informadas sobreo Decreto n. 5.940, de 25 de outubro de 2006, o qualinstitui a separação dos resíduos recicláveis descar-tados na fonte geradora e a sua destinação às asso-ciações e cooperativas de catadores.

O grupo de catadores enquadra-se no artigo ter-ceiro do referido Decreto, pois está formal e exclusi-vamente constituído por catadores que têm a cataçãocomo única fonte de renda, não possui fins lucrati-vos, possui infra-estrutura e apresenta sistema derateio entre os associados.

A partir de visitas a entidades e empresas, foi for-mada a rede de parcerias, abrangendo também con-domínios, comércios, escolas e comunidade. Muitasempresas do município contataram os catadores parasaber se estavam organizados legalmente, ou seja,se a associação era uma entidade registrada comCNPJ e se era do seu interesse receber doações6.

3.5 Consolidação da organização e autonomiados catadores

Esta última fase do projeto buscou a consolida-ção da organização e o fortalecimento da autonomiado grupo de catadores. Tratou-se, principalmente, dediscutir com os participantes a continuação do pro-cesso pelo próprio grupo. Por se tratar de um pro-

cesso autogestivo, desde o início os catadores foramchamados a participarem e decidirem.

É importante considerar que os catadores tive-ram uma história de subemprego e desemprego. Por-tanto, a organização de forma autogestiva para gerartrabalho e renda deve ser um investimento de longoprazo. Além disso, por se tratar de uma proposta deaplicação de tecnologia social para gerar trabalho erenda, é necessário um período maior para que o gru-po venha a construir saberes sobre o processo deprodução e fazer com que esta produção lhe garantamelhores condições de vida. A despeito da disponibi-lidade dos catadores para discutir e decidir sobre asações propostas, as decisões tomadas muitas vezesnão foram colocadas em prática.

Entre 2006 e 2008 mais de 100 catadores partici-param do projeto Agetrec. Porém, o número decatadores oscila de um mês para o outro. Por exem-plo, num mês foi constituído um grupo formado pormais de 60 pessoas; no mês seguinte esse númerofoi reduzido à metade. Em períodos mais longos ha-via apenas 10 participantes.

Existiam no grupo aqueles que desempenhavama atividade de catadores havia algum tempo e aque-les que se somavam a esses trabalhadores em fun-ção do desemprego. Isso provocou uma transição depessoas dentro do grupo e dificultou a organização:muitas vezes um catador participava de umaassembleia e deliberava acerca dos seus interessese dos interesses coletivos, mas em seguida ingressa-va em outra atividade (geralmente informal), ou, aocontrário, ingressava no grupo após as tomadas dedecisão, não tendo, muitas vezes, a compreensão dadinâmica e da direção que o grupo havia tomado.

3.6 Monitoramento e avaliação

As ações destinadas a subsidiar a implementaçãodo projeto, bem como seu monitoramento e avalia-ção, foram definidas a partir de três indicadores: dedesempenho em relação ao processo auto-orga-nizativo, de desempenho em relação à atividade decoleta seletiva e de resultados.

Para a avaliação do processo auto-organizativo,foi elaborado e discutido entre os participantes doprojeto um roteiro de coleta de dados. Dentre umuniverso de 57 catadores, 13 responderam às ques-tões relacionadas à avaliação. Dentre os entrevis-tados, 92% disseram participar dos espaços de dis-cussão promovidos através do projeto. Todavia,quando indagados sobre a participação nas toma-das de decisão, somente 75% afirmaram que opi-navam e deliberavam sobre a organização. Para87%, o grupo trabalhava de forma organizada, e75% entendiam que as atividades eram distribuí-das de forma equitativa. Para os catadores, existi-am muitas dificuldades em relação ao processo de

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organização para o trabalho, relacionadas à faltade humildade, de compreensão e de solidariedadedos colegas, o que implicava brigas por motivosalheios à organização produtiva. Os catadores en-tendiam que o trabalho em grupo exigia paciência,convívio e perseverança.

No que diz respeito à apropriação de conheci-mento sobre a organização do processo de traba-lho, 50% dos catadores afirmaram ter se apropria-do dos instrumentos de registro. Entretanto, 87%disseram não saber como organizar a divisão daprodução. Para 87% dos trabalhadores, as mudan-ças em relação às condições de trabalho eram evi-dentes e consideraram que a partir da inserção nogrupo passaram a conhecer as instâncias organiza-das da categoria e participar de atividades relacio-nadas à geração de renda.

No que toca às mudanças na quantidade da pro-dução, os catadores observaram uma grande fragi-lidade, relacionada principalmente ao fato de quemuitas das pessoas que participavam do processoviam o trabalho do catador como um “bico”. O pre-conceito da sociedade associado às dificuldades doexercício de coleta eram elementos que contribuí-am para isso.

A comercialização permaneceu sendo feita como atravessador, pois, como a produção era pequena ea coleta seletiva ainda não fora implantada pelosgestores públicos, nenhuma empresa comprava omaterial no município. Mesmo assim, 75% doscatadores afirmaram ter conquistado melhores pre-ços depois da aquisição dos equipamentos e da for-mação da associação.

Para 92% dos catadores, as parcerias esta-belecidas com as entidades públicas e privadas fo-ram alternativas para o aumento da produção. O usode EPI’s diminuiu os riscos e a insegurança no traba-lho: 62% afirmaram que as condições de trabalhomelhoraram, conquanto ainda existissem riscos. Cons-tatou-se que somente 62% utilizavam os EPI’s ade-quadamente. Para os catadores, a utilização adequa-da do maquinário, bem como dos EPI’s, depende demais tempo.

As condições socioeconômicas das famílias queparticiparam do projeto continuaram precárias: 80%continuaram com uma renda inferior a um saláriomínimo. Para os catadores, a organização para o tra-balho era importante, mas se mostraram decididos anão fazer do trabalho seu maior investimento.

Muitas famílias possuíam cadastros em progra-mas sociais como o Programa Bolsa Família, alémde vínculos com equipamentos sociais como igrejas,pastorais, associações de bairro, o que lhes proporci-onava condições de subsistência. A inclusão doscatadores no Programa Restaurante Popular, da Se-gurança Alimentar e Nutricional (SAN), foi conquis-tada a partir da organização da associação.

4. Discussão da/pela experiência

A experiência de organização de processossocioprodutivos com catadores de materiaisrecicláveis mostrou as fragilidades e as dificuldadesenfrentadas por esses trabalhadores, na medida emque os recursos investidos para instauração de espa-ços de trabalho para essa população são mínimos.Não bastassem as dificuldades relacionadas ao pou-co investimento, os catadores não têm estabilidadena sua ocupação nem nos seus rendimentos, além deficar à mercê da boa vontade da sociedade e da ex-ploração da indústria da reciclagem.

Mota (2002, p. 10), ao abordar o desenvolvimen-to da indústria de reciclagem e as inflexões que assuas práticas produzem na esfera do trabalho e daação do Estado, diz que o crescimento da atividadede catador nos centros urbanos está relacionado aolugar que este trabalhador ocupa no processo de pro-dução da indústria de reciclagem, uma vez que “asempresas o desconhecem como partícipe do seu pro-cesso de trabalho, embora o integre ao processo ge-ral de produção dos reciclados.”

Já o Estado, avalia Mota, sob o discurso da pre-servação ambiental ou com a justificativa da ne-cessidade de assegurar ocupação e renda, tem pro-movido a inserção produtiva desses trabalhadores,o que acaba muitas vezes por “garantir a qualida-de das mercadorias exigida pelas indústrias” ouentão simplesmente se apropria “do trabalho docatador ao integrá-lo de forma precária nos servi-ços de limpeza urbana.”

O estatuto de trabalhador não garante aoscatadores condições mínimas de trabalho e vida,mesmo quando a atividade constitui-se na única for-ma de subsistência. Marcados pelo desemprego epor terem se tornado não empregáveis, os catadoressobrevivem em condições mínimas de saúde, de mo-radia e de alimentação.

A escolha da autogestão como estratégiametodológica para condução da intervenção aquiapresentada possibilitou o exercício coletivo do sa-ber e gerou o conhecimento acerca da realidade,permitindo a definição de ações para sua transfor-mação. Contudo, se, por um lado, os catadores expe-rimentaram protagonizar a organização sociopro-dutiva, através de processos de autogestão e partici-pação social, por outro, trabalharam sem o exercíciodos direitos trabalhistas.

Antunes (2006), ao abordar o contexto atual dotrabalho, destaca a proliferação de distintas formasde empreendedorismo, cooperativismo, trabalho vo-luntário e outros. Para o autor, longe daquilo que fo-ram as cooperativas em sua origem, construídas comoinstrumentos de luta e defesa dos trabalhadores, hojesão formas precárias que visam à redução e destitui-ção dos direitos do trabalho.

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Mari Aparecida Bortoli

Ao se referir à subalternização do trabalho à or-dem do mercado e à desmontagem de direitos soci-ais e trabalhistas, Yazbek (2001, p. 35), lembra que“a proporção de trabalhadores brasileiros que estáfora do mercado de trabalho e, portanto, sem garan-tia de proteção social cresce continuamente e hojeultrapassa mais da metade da população economica-mente ativa.”

Romani (2004), ao analisar experiências desen-volvidas nas Regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordestedo Brasil, destaca as dificuldades enfrentadas peloscatadores de materiais recicláveis de Belém do Pará,Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiroe São Paulo. As dificuldadesenfrentadas pelos catadoresdessas cidades são semelhan-tes àquelas dos participantesdo Agetrec: constituição degrupos organizados decatadores e continuidade deações e compromissos esta-belecidos, bem como garan-tia de envolvimento dos ór-gãos administrativos e opera-cionalização da coleta derecicláveis. Somam-se a es-sas dificuldades as condiçõesde vida e trabalho doscatadores: baixa escolarida-de, necessidade de desenvolver diversas atividadespara sobreviver e o trabalho sem proteção social.Percebe-se que o grande desafio nos processos deorganização socioprodutiva com catadores de mate-riais recicláveis é combinar a criação dos postos detrabalho com a possibilidade de participação doscatadores na gestão dos resíduos, para que estes tra-balhadores não se vejam como beneficiários, mascomo responsáveis por suas conquistas e conscien-tes de que sua luta precisa continuar avançando.

Considerações finais

Neste percurso de dois anos, as ações desen-volvidas neste projeto buscaram apoiar a organiza-ção socioeconômica dos catadores para romper comseu isolamento, a partir da articulação com outrosgrupos e instâncias representativas. Nesses proces-sos de participação os trabalhadores puderam seapropriar criticamente da realidade de desemprego,de dependência de programas governamentais oufilantrópicos e desvelar as determinações da reali-dade em que vivem.

Filhos de analfabetos que não conseguiram inser-ção no mercado de trabalho, muitas vezes por nãosaberem nem mesmo seguir instruções, os catadoresexpressam a expansão da população que se tornou

não empregável e que não encontra um lugar na so-ciedade que lhe assegure condições dignas de traba-lho e de proteção social. Sem garantias ou vínculos,os catadores tornam-se cada vez mais pobres.

As políticas de trabalho e renda não alcançam arealidade dos catadores7. Na verdade, aos catadoressão dirigidas ações no campo das políticas de inclu-são e não no campo das políticas públicas de traba-lho e renda. Trata-se de ações focalizadas, dirigidasaos grupos vulneráveis como desempregados, mu-lheres e jovens.

Interesses individuais, restrito exercício de parti-cipação, oportunismos, presença de práticas cliente-

listas e a demanda por um“salvador” capaz de resolvertodos os problemas relaciona-dos à organização doscatadores foram forças pre-sentes no processo de reali-zação desse projeto. O fatode os catadores não possuí-rem um histórico de partici-pação em movimentos soci-ais dificultou a organizaçãodestes trabalhadores em prolde interesses coletivos. Con-tudo, essa dificuldade passoua ser superada após a cria-ção de espaços de discussão

e o intercâmbio de experiências proporcionadas pe-los encontros promovidos na região e no estado. Aarticulação com outros grupos contribuiu para a cons-tituição de uma identidade coletiva para o grupo decatadores de materiais recicláveis de Cruz Alta.

As ações desenvolvidas com catadores no muni-cípio ainda são isoladas, mas remetem à articulaçãodestes trabalhadores com instâncias organizadas parareivindicações e luta por melhores condições de tra-balho e vida.

Mesmo diante de contradições relacionadas àsformas de gestão associativas, muitas vezes entendi-das como conquistas próprias de cada indivíduo, dis-posto a sobreviver através da criação de formas “al-ternativas” de trabalho, engendradas por si mesmos,ou então fundamentadas pela perspectiva de desen-volvimento social como investimento para a amplia-ção das “capacidades” de participação e superaçãoda pobreza pelos próprios pobres, as ações executa-das e os resultados alcançados nesta intervençãoapontam para as reivindicações dos catadores porum projeto social e político de transformação das for-mas vigentes de sociabilidade. Um projeto societárioque se faça na luta dos grupos e movimentos sociaisque, diante das novas expressões da questão social,forjam instrumentos de enfrentamento, com limites,mas também com possibilidades de interferir comosujeitos políticos na construção da sociedade.

...os catadores expressam aexpansão da população que setornou não empregável e que

não encontra um lugar nasociedade que lhe assegure

condições dignas de trabalho ede proteção social.

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Notas

1 Trata-se de uma intervenção que envolveu catadores epesquisadores na elaboração e execução do projetoAutogestão para geração de trabalho e renda com catadoresde materiais recicláveis (Agetrec). O projeto foi financiadopelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico(CNPq) e executado pela Universidade de Cruz Alta (Unicruz),em parceria com o Movimento Nacional de Catadores deMateriais Recicláveis (MNCR) e com o Poder Executivo deCruz Alta/RS. O projeto foi orientado pela professora MariAparecida Bortoli, com a colaboração das professorasEnedina Maria Teixeira da Silva e Rosane Rodrigues Felix.Foram bolsistas do projeto: Fernanda Bortolini Klein, AdrianoChrist Guma, Aline Mello Paes e Jaqueline Pereira Paes.Colaboraram com o desenvolvimento do projeto 105catadores. Os dados foram coletados de acordo com aDeclaração de Helsinque V, 1996, e a Resolução 196/96 doConselho Nacional de Saúde. Na ocasião do envio do projetoao CNPq não foi solicitado parecer de aprovação do Comitêde Ética em Pesquisa. No entanto, todo o processo deintervenção foi construído com os catadores e professores,a partir de reuniões para discussão e sistematização,registradas e datadas em atas com assinaturas dosparticipantes. O projeto foi submetido para Declaração deParceria à Equipe de Articulação Nacional – MovimentoNacional de Catadores de Materiais Recicláveis – RegionalSul e ao Poder Executivo Municipal de Cruz Alta/RS.

2 Em 2005 o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), porintermédio do CNPq, lançou o Edital n.18/2005, prevendorecursos para apoio a projetos de tecnologias sociais parainclusão dos catadores de materiais recicláveis.

3 Em outubro de 2005, o CNPq aprovou recursos financeirospara execução do projeto e disponibilizou bolsas de estudo.Duas bolsas foram dirigidas aos integrantes do grupo decatadores para articulação e intercâmbio de informações comoutras instâncias organizativas e outras duas dirigidas aestudantes. O valor aprovado foi de R$ 91.406,80, além dequatro bolsas nas modalidades ATPA e ATPB. Modalidade:Auxílio Integrado. Processo: 553727/2005-2.

4 Destaca-se a participação dos catadores nos seguinteseventos e atividades: Fórum Regional de Economia Solidária,Plenária Regional do Noroeste sobre Economia Solidária,Conferência Estadual de Economia Solidária, Revisão doPlano Diretor de Cruz Alta, Jornada Ambiental da Região doAlto Jacuí, Feira das Profissões, Congresso Estadual doMNCR. Foram realizadas visitas às organizações de catadoresdos municípios de Júlio de Castilhos, Tupanciretã, Erechim,Cachoeirinha e Porto Alegre.

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5 Através do Decreto n. 0138, foi concedida autorização deuso de um prédio para a realização do projeto. A estruturafísica constitui-se numa área de 192,50m2, cedida pelo PoderExecutivo Municipal.

6 Na verdade, as empresas querem se enquadrar num padrãode qualidade que lhes garanta a gestão ambiental para ocertificado ISO 14.000.

7 As políticas passivas, ao atuarem no provimento deassistência financeira temporária ao trabalhador, através doabono salarial ou do seguro-desemprego, não podem seracionadas pelos catadores de materiais recicláveis: eles nãoexperimentam as condições de desempregados, visto que,ao trabalharem como catadores, não estão em condições detrabalho formal. Portanto, ao não gerarem contribuição social,não têm assegurados esses benefícios. As políticas ativas,por sua vez, buscam aumentar as oportunidades de trabalhoe renda e garantir a subsistência daqueles trabalhadoresoriundos do setor formal. Os programas de investimentoestão voltados à capacidade produtiva da economia e àdotação de capital social básico para a geração e manutençãode empregos.

Mari Aparecida BortoliDoutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)Orientadora: Profa. Dra. Gleny Terezinha Duro Gui-marães

PUC-RSPrograma de Pós-Graduação em Serviço SocialAv. Ipiranga, 6681PartenonPorto Alegre – Rio Grande do SulCEP: 91530-000

Mari Aparecida Bortoli

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