castanheira - acao coletiva no espaco organizacional de cooperativas populares

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    AO COLETIVA NO ESPAOORGANIZACIONAL DE COOPERATIVAS

    POPULARES

    MARIA EUGNIA MONTEIRO CASTANHEIRA

    2008

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    MARIA EUGNIA MONTEIRO CASTANHEIRA

    AO COLETIVA NO ESPAO ORGANIZACIONAL DECOOPERATIVAS POPULARES

    Dissertao apresentada Universidade Federal deLavras, como parte das exigncias do Programa de Ps-graduao em Administrao, rea de concentrao emGesto Social, Ambiente e Desenvolvimento, paraobteno do ttulo de "Mestre".

    OrientadorDoutor Jos Roberto Pereira

    LAVRASMINAS GERAIS - BRASIL

    2008

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    Ficha Catalogrfica Preparada pela Diviso de Processos Tcnicos daBiblioteca Central da UFLA

    Castanheira, Maria Eugnia Monteiro.Ao coletiva no espao organizacional de cooperativas populares /

    Maria Eugnia Monteiro Castanheira. -- Lavras : UFLA, 2008.75 p.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Lavras, 2008.Orientador: Jos Roberto Pereira.Bibliografia.

    1. Ao coletiva. 2. Cooperativas populares. 3. Economia solidria. 4.Vnculos sociais. I. Universidade Federal de Lavras. II. Ttulo.

    CDD 334.681

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    MARIA EUGNIA MONTEIRO CASTANHEIRA

    AO COLETIVA NO ESPAO ORGANIZACIONAL DECOOPERATIVAS POPULARES

    Dissertao apresentada Universidade Federal deLavras, como parte das exigncias do Programa de Ps-graduao em Administrao, rea de concentrao emGesto Social, Ambiente e Desenvolvimento, paraobteno do ttulo de "Mestre".

    APROVADA em de de 2008

    Prof. Cndido Ferreira da Silva Filho UNISAL

    Prof. Elias Rodrigues de Oliveira UFLA

    Jos Roberto PereiraUFLA

    (Orientador)

    LAVRASMINAS GERAIS - BRASIL

    2008

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    A Sandinha e Lita,

    mes do corao que me acolheram e apoiaram com todo carinho;

    OFEREO

    minha me Nina, anjo que deixou como legado seu exemplo de vida e

    de amor incondicional;

    Ao meu pai, Eduardo, e meus irmos, Ana Luiza e Luiz Fernando,

    verdadeiros alicerces;

    DEDICO

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, por me guiar e proteger em todos os momentos

    Universidade Federal de Lavras e ao Programa de Ps-Graduao em

    Administrao.

    Ao orientador, Professor Jos Roberto, pelos ensinamentos transmitidos

    durante minha orientao.

    Aos professores do departamento de Administrao, Edgard, Juvncio,

    Robson, Mozart, Paula, Maroca, Elias, Flvia Naves, Ricardo Sette e Antonialli.

    Aos amigos do mestrado, Carol, Mayara, Mari, Llis, Felipe, Max,Alexandre, Wesley, Raquel, Cludia, Vanessa, Knia e Marcelo.

    Aos estagirios da Incubacoop/UFLA, especialmente Mirella e

    Fernanda, pela ajuda na pesquisa.

    s secretrias da ps-graduao Bete e Jaqueline pela pacincia e

    dedicao.

    Ao Z Egmar e ao Roberto pela hospitalidade, ateno e estima.

    Mariana, Izabela e Renata, irms do corao.

    s queridas amigas de longa data, Loren e Del.

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    Melhor serem dois do que um, porque tm melhor paga do seu

    trabalho. Porque se carem, um levanta o companheiro; ai, porm, do

    que estiver s; pois, caindo, no haver quem o levante. Tambm, se

    dois dormirem juntos, eles se aquentaro; mas um s, como se

    aquentar? Se algum quiser prevalecer contra um, os dois lhe

    resistiro; o cordo de trs dobras no se rebenta com facilidade.(Eclesiastes 4, 9-12)

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    SUMRIO

    LISTA DE QUADROS .........................................................................................i

    RESUMO..............................................................................................................ii

    ABSTRACT ........................................................................................................iii

    1 INTRODUO.................................................................................................1

    2 AO COLETIVA, VNCULOS SOCIAIS E COOPERAO.....................6

    2.1 A teoria da ao coletiva de Olson ................................................................. 6

    2.2 A ao coletiva na teoria da ddiva .............................................................. 14

    2.2.1 Postulado da ddiva: a obra de Marcel Mauss...........................................162.2.2 A proposta de um paradigma.....................................................................18

    2.2.3 A ddiva enquanto sistema ........................................................................20

    2.2.4 Sociabilidade e ddiva ............................................................................... 25

    2.3 A ao coletiva nas ideologias de cooperao..............................................30

    2.3.1 A ao coletiva e a cooperao nos ideais utpicos do cooperativismo....30

    2.3.2 A ao coletiva e a cooperao na economia solidria..............................35

    3 METODOLOGIA............................................................................................42

    4 COOPERATIVAS POPULARES NO BRASIL ............................................. 444.1 Cooperativas populares: conceitos e caractersticas .....................................44

    4.2 A organizao das cooperativas populares ................................................... 46

    4.3 Ao coletiva em cooperativas populares: alguns casos em anlise.............50

    5 CONSIDERAES FINAIS ..........................................................................62

    6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................67

    ANEXO ..............................................................................................................72

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    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Ao coletiva nas cooperativas populares.61

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    RESUMO

    CASTANHEIRA, Maria Eugnia Monteiro. Ao Coletiva no EspaoOrganizacional de Cooperativas Populares. LAVRAS: UFLA, 2008. 72p.(Dissertao - Mestrado em Administrao).

    A ao coletiva constitui um fenmeno de mltiplas facetas que estcondicionado s dimenses da vida social. Trata-se de um acontecimentoorganizado, capaz de promover mudanas, e que implica na ampliao deinteresses do nvel individual ao coletivo Enquanto conceito, constitui umacategoria a partir da qual possvel analisar os diversos processos sociais e asinteraes de seus agentes. No caso da economia solidria, e maisespecificamente das cooperativas populares, a ao coletiva configura ummovimento orientado para a consecuo de um bem comum e uma forma deemancipao dos trabalhadores. Esta forma de ao ultrapassa o patamar dasatisfao de interesses compartilhados, buscando inscrever a solidariedade emseu cerne, o que contrape a lgica utilitarista preponderante. Neste sentido, aao coletiva necessita que seus atores se apiem em outras formas de interaoque no se enquadram nos preceitos racionais orientados pelo individualismo.Diante dessas consideraes, parte-se do pressuposto que qualquer tentativa deidentificar as especificidades da ao coletiva no mbito da economia solidriatem incio nas motivaes que orientam os agentes dessa ao e na compreensodas relaes que se estabelecem ao longo dessa trajetria. Tendo em vista estepressuposto, este estudo teve como objetivo identificar e analisar, teoricamente,os vnculos sociais que contribuem, efetivamente, para a ao coletiva no espaoorganizacional das cooperativas populares. Para tanto, utilizou-se comoreferencial terico a lgica da ao coletiva de Mancur Olson, a teoria da ddivae os princpios do cooperativismo e da economia solidria. A partir dessespressupostos tericos, observou-se, a ttulo de hiptese, que os princpios daeconomia solidria e do cooperativismo no so suficientes para sustentar essasformas de ao coletiva, necessitando que os agentes estabeleam entre sivnculos sociais regidos pelos princpios da reciprocidade, capazes de criaralianas e manter a coeso do grupo.

    Comit Orientador: Jos Roberto Pereira (Orientador).

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    ABSTRACT

    CASTANHEIRA, Maria Eugnia Monteiro. Ao Coletiva no EspaoOrganizacional de Cooperativas Populares. LAVRAS: UFLA, 2008. 72p.(Dissertation Business Master Degreee).

    The collective action is a phenomenon with many faces that are conditioned tothe social life dimensions This is an organized event, capable of promotingchange that implies in the expansion of individual to collectives interests Whileconcept, this is a category from which is possible to analyze several socialprocesses and the agents interactions Concerning to solidary economy, andspecifically to popular cooperatives, the collective action sets a movement

    directed to achieve a common benefit and its performers emancipation This kindof mobilization exceeds the satisfaction level of shared interests, seeking toregister solidarity at the heart of action, which contrasts the logic utilitarianprevalent In this sense, the collective activity requires another forms ofinteraction between the agents that do not fall in the precepts guided by rationalindividualism Thus, the workers organization in popular cooperatives needs tobe conducted through experiences which enable to assimilate the principles ofthis enterprises Given these considerations, it is assumed that any attempt toidentify the collective action specificitys within the solidary economy departsfrom the motivations that guide its conductors and from the relationshipsunderstanding that have been set along that path In view of this assumption, thisstudy aimed to identify and examine, theoretically, the social ties that help,effectively, to collective action in the popular cooperatives organizational spaceThus, it was used as a theoretical reference the Olsons collective action logic,the donation theory, and the cooperativism and solidary aconomy principlesFrom these theoretical assumptions, it was observed, as a hypothesis, that thesolidary economy and cooperativism principles are not sufficient to sustain theseforms of collective action, requiring the establishment of social ties betweenperformers governed by reciprocity principles, capable of creating alliances andmaintain the cohesion of the group

    Guidance Comitee: Jos Roberto Pereira (Major Professor).

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    1 INTRODUO

    A compreenso terica da economia solidria remete, inevitavelmente,

    discusso conceitual de ao coletiva e da sociabilidade entre os indivduos. Tal

    entendimento implica apreender os fatores que levam constituio dos vnculos

    sociais e das motivaes que sustentam e orientam a ao coletiva.

    Segundo a definio de Weber (1991) sobre ao social, as condutas

    individuais podem ser compreendidas, basicamente, por quatro motivaes que

    as orientam, quais sejam: tradio, valores, emoo e razo. No entanto, as

    relaes sociais entre os indivduos, orientados por tais motivaes, consistemna adoo de uma conduta que assimilada entre as partes, entendendo que o

    sentido da ao partilhado, embora no seja, necessariamente, recproco. Em

    outras palavras, significa que, ao envolver-se em uma relao social, o indivduo

    pode tomar por referncia certas probabilidades quanto ao do outro ao qual

    sua conduta se refere.

    Na concepo de Mauss (2001), por sua vez, a ao social pode ser

    compreendida por meio da anlise dos vnculos sociais que se estabelecem entre

    os indivduos, especialmente, porque tais vnculos adquirem um carter dealiana, que s pode ser gerada com a instaurao da confiana e a partir de uma

    lgica guiada pela incondicionalidade, isto , o vnculo apenas se estabelece a

    partir do momento em que um capaz de se abrir ao outro sem reservas.

    Somente aps um mnimo de confiana ser instalado que se torna possvel

    desenvolver o campo da contratualidade e da condicionalidade.

    Nesse sentido, as aes sociais nos contextos mercadolgico, estatal ou

    domstico, assumem formas distintas entre si, sendo conduzidas conforme as

    especificidades de cada uma dessas esferas. O mesmo ocorre no espao relativo economia solidria, cujo sentido da ao corresponde expectativa da

    reciprocidade.

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    Refletindo sobre essa questo, a ao coletiva emerge como um

    fenmeno de mltiplas facetas que est condicionado s dimenses da vidasocial. Trata-se de um acontecimento organizado, capaz de promover mudanas,

    e que implica na ampliao de interesses do nvel individual ao coletivo.

    Enquanto conceito, constitui uma categoria a partir da qual possvel analisar os

    diversos processos sociais e as interaes de seus agentes.

    No caso da economia solidria, e mais especificamente das cooperativas

    populares, pressupe-se a ao coletiva como um movimento voltado para a

    consecuo de um bem comum e uma forma de emancipao daqueles que a

    promovem. Essa forma de mobilizao ultrapassa o patamar da satisfao deinteresses compartilhados, buscando inscrever a solidariedade no cerne da ao,

    o que contrape a lgica utilitarista preponderante. Para tanto, a atividade

    coletiva necessita que seus atores se apiem em outras formas de interao que

    no se enquadram nos preceitos racionais orientados pelo individualismo.

    Todavia, a economia solidria no , de modo algum, um processo

    automtico e simples de se realizar, pois exige que os participantes da ao

    coletiva ajam conforme uma lgica contrria s proposies capitalistas que

    vigoram na formao social dos indivduos modernos. Sendo assim, aorganizao dos trabalhadores em cooperativas populares precisa ser conduzida

    por meio de experincias que possibilitem a assimilao dos princpios que

    regem esses empreendimentos. Com o propsito de auxiliar nessa diligncia, as

    Incubadoras Tecnolgicas de Cooperativas Populares ITCPs, do suporte a

    esses grupos por meio de intervenes educativas, capacitao tcnica e

    qualificao profissional, ajudando a construir os alicerces da conscincia

    cooperativista.

    Diante das consideraes apresentadas, parte-se do pressuposto de quequalquer tentativa de identificar as especificidades da ao coletiva no mbito da

    economia solidria tem incio nas motivaes que orientam os agentes dessa

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    ao e na compreenso das relaes que se estabelecem ao longo dessa

    trajetria. Este entendimento visa a explicar o problema de pesquisa que consisteem identificar quais so os vnculos que contribuem, efetivamente, para a ao

    coletiva no espao organizacional das cooperativas populares aps o

    cumprimento de um processo de incubao.

    Tendo em vista estas apreciaes, este estudo tem como objetivo geral

    identificar e analisar, teoricamente, os vnculos sociais que contribuem,

    efetivamente, para a ao coletiva no espao organizacional das cooperativas

    populares que passaram por um processo metodolgico de incubao orientado

    pelos princpios da economia solidria.Neste sentido, os objetivos especficos so:

    a) identificar e analisar, no mbito terico, os vnculos sociais que

    norteiam a ao coletiva em geral;

    b)

    analisar estudos de caso que tratam da ao coletiva no espao

    organizacional de cooperativas populares que passaram por um

    processo de incubao e identificar, nestes casos, os motivos que

    levaram os indivduos a constituir cooperativa popular e os vnculossociais que os mantm enquanto organizao.

    Com esse intento, a primeira parte deste trabalho discute a lgica da

    ao coletiva a partir da concepo de Mancur Olson, que atribui ao interesse a

    mobilizao de um conjunto de indivduos em prol de objetivos comuns. Para

    este autor, a consecuo de tais objetivos est condicionada a um clculo em que

    os agentes avaliam se os benefcios obtidos a partir da ao coletiva compensam

    o esforo a ser empregado para a promoo dos mesmos. Alm disso, Olsonacredita que o indivduo movido pela maximizao de seus interesses pessoais,

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    sendo necessrio que outro fator, alm dos objetivos compartilhados, influencie

    a sua deciso de agir conjuntamente.Em contraponto a essa perspectiva, apresenta-se a teoria da ddiva, que

    tem Marcel Mauss como precursor e atribui ddiva o desgnio de elemento

    essencial para a constituio de qualquer forma de interao social. Tratada

    como pressuposto para a formao da coletividade, a ddiva tem como preceito

    estabelecer relaes atravs do circuito composto pelos momentos de dar,

    receber e retribuir, que desenvolvem o vnculo social entre indivduos. A partir

    dessas proposies, os defensores da teoria da ddiva, dentre os quais destacam-

    se Jacques T. Godbout e Alain Caill, propem a ddiva como uma tipologia daao, em que os agentes so movidos, em primeira instncia, pela vontade de se

    aliar a outros.

    Aps essas discusses tericas, apresentam-se os princpios do

    cooperativismo utpico como forma especfica de ao coletiva. Segundo essa

    abordagem, a cooperao constitui uma alternativa ao individualismo liberal,

    propondo a conduo das atividades econmicas a partir de princpios no

    capitalistas, fundados em pressupostos de autonomia, eqidade, democracia e

    solidariedade. Com base nesses fundamentos, o cooperativismo prope formasalternativas de organizao social, compondo um modelo em que o processo

    produtivo tem como cerne o trabalhador.

    Finalizando essa parte do trabalho, busca-se uma compreenso da

    economia solidria que, fundada nos ideais do cooperativismo, identifica formas

    organizativas que trazem em sua essncia a noo de solidariedade na

    composio de atividades econmicas. Condenando a sobreposio do capital

    sobre o trabalho, a economia solidria se caracteriza por promover uma

    dinmica de reciprocidade que alia os interesses individuais aos coletivos.

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    A seo seguinte descreve o processo metodolgico empregado para a

    realizao deste trabalho, que tem a ao coletiva como categoria analtica dasreflexes tericas propostas.

    Passa-se, ento, ao item 4, que procura conceituar e caracterizar as

    cooperativas populares, assinalando a organizao desses empreendimentos no

    contexto brasileiro e a contribuio das ITCPs para a concretizao dessas aes.

    Por fim so apresentados trs relatos de pesquisas realizadas em cooperativas

    populares com a inteno de ilustrar a discusso terica conduzida at ento e

    desenvolver as anlises pertinentes ao problema de pesquisa.

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    2 AO COLETIVA, VNCULOS SOCIAIS E COOPERAO

    2.1 A teoria da ao coletiva de Olson

    Olson (1999) considera que qualquer estudo sobre um grupo de

    indivduos parte de seu propsito, ou seja, da razo de sua existncia. Neste

    sentido, um propsito que caracteriza a maioria das associaes e das

    cooperativas, seno todas, a promoo dos interesses de seus membros.

    De acordo com Alcntara (2003), Olson discute em suas obras a

    promoo do bem coletivo e a deciso individual de agir em conjunto.

    Orientando seus estudos para a viabilidade da ao coletiva, esse autor tem oindivduo como elemento norteador de sua anlise, considerando-o:

    [...] um ser racional cuja ao se estrutura em raciocnios lgicos,produto do clculo efetuado com as informaes disponveis, portadorde uma caracterstica que determinar todos os cursos da possvel aocoletiva, qual seja, ser um agente maximizador de ganhos individuais(Alcntara, 2003, p.16).

    Baseando suas anlises na teoria econmica, Olson (1999) sustenta que

    no h qualquer sentido em integrar-se a um grupo quando uma ao individual

    independente atende aos interesses do indivduo to bem ou melhor que uma

    associao. Por outro lado, quando a ao individual no suficiente para

    promover os interesses dos indivduos, seja de forma completa ou da maneira

    mais adequada, as associaes podem desempenhar um importante papel no

    sentido de servir a objetivos comuns ou grupais.

    Este aspecto analisado por Alcntara (2003) da seguinte forma:

    o benefcio coletivo permite ao indivduo usufruir de servios eprodutos a um custo menor do que se estes estivessem sendodisponibilizados individualmente. A cooperao para a promoo debens coletivos, levando-se em conta os custos da operao, a

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    alternativa mais vivel, justificada pelo clculo racional (Alcntara,2003, p.17).

    A partir dessa proposio notrio supor que grupos constitudos por

    indivduos com interesses comuns geralmente buscam promover tais interesses,

    agindo em prol dos mesmos com o mesmo afinco empregado na satisfao de

    seus interesses pessoais. Essa noo concebida como uma extenso lgica do

    comportamento racional e centrada nos prprios interesses (Olson, 1999).

    Todavia, preciso lembrar que, embora se unam a favor de objetivos

    comuns, os indivduos tambm tm interesses puramente individuais, diferentes

    dos interesses dos outros membros do grupo.

    Para Olson, no s a necessidade conjunta que impulsiona o indivduo

    a cooperar. necessrio que haja outro fator influenciando esse tipo de deciso.

    [...] a maior vantagem, a princpio, em se agir coletivamente diminuir os gastos e o empenho individual na promoo de um bem,aumentando a margem do lucro obtido com o usufruto do benefcio(Alcntara, 2003, p.18).

    Sendo assim, Olson (1999) refuta a deduo de que os grupos agiropara atingir seus objetivos como uma seqncia lgica da premissa do

    comportamento racional e centrado nos prprios interesses. Nas palavras deste

    autor,

    no fato que s porque todos os indivduos de um determinado grupoganhariam se atingissem seu objetivo grupal eles agiro para atingiresse objetivo [...]. Na verdade, a menos que o nmero de indivduos dogrupo seja realmente pequeno, ou a menos que haja coero ou algumoutro dispositivo especial que faa os indivduos agirem em interesse

    prprio, os indivduos racionais e centrados nos prprios interesses noagiro para promover seus interesses comuns ou grupais (Olson, 1999,p.14).

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    Baseando-se em Max Weber, Olson (1999) afirma que nem mesmo

    motivaes ideolgicas, visando o interesse de terceiros, so suficientes paraimpelir o esforo contnuo de grandes massas, j que, em uma economia de

    mercado, toda atividade econmica sustentada e guiada por indivduos

    centrados em seus prprios interesses materiais ou ideais. Ao citar o postulado

    de Parsons e Smelser, que condiciona a performance de uma organizao ao

    emprego de recompensas e sanes, Olson (1999) preconiza que

    necessariamente o interesse pela maximizao dos ganhos que move a ao dos

    indivduos. Sendo assim, embora os membros de um grupo ou organizao

    tenham interesse em alcanar um benefcio coletivo, eles no tm interesse emarcar voluntariamente com o custo que a aquisio desse benefcio acarreta.

    Na concepo de Olson (1999), em uma ao coletiva, tanto as parcelas

    do benefcio quanto o nus pela participao podem ser distribudos de forma

    diferente entre cada um dos participantes. Naturalmente, o que o indivduo

    racional maximizador busca obter ganhos superiores aos acordados entre os

    integrantes do grupo, procurando, assim, reduzir seus esforos para aumentar o

    valor real do seu benefcio. Em outras palavras, esse indivduo subestima o

    raciocnio lgico dos demais agentes e no se empenha na promoo do bem,mas mesmo assim busca usufruir dos seus benefcios, pegando carona na ao

    do grupo. A este agente Olson confere a alcunha defree rider(Alcntara, 2003).

    Ofree rider(carona) nada mais que o indivduo racional, defensor de

    interesses individuais, portanto, egosta, que vislumbra a possibilidade de ganhar

    com a promoo do bem pblico sem, no entanto, ajudar na sua produo

    (Alcntara, 2003, p.19).

    A presena do carona, portanto, torna a possibilidade de se prover

    benefcios coletivos mais remota. Sua figura nociva no s porque reduz aeficincia da ao, mas tambm porque sua recusa em colaborar desmotiva o

    esforo de outros agentes.

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    Essa questo, contudo, pode variar, de acordo com o tamanho do grupo

    e tambm de acordo com os custos e benefcios envolvidos na ao dosindivduos. De acordo com Olson (1999),

    se uma determinada quantidade de um benefcio coletivo puder serobtida a um custo suficientemente baixo com relao s vantagens quetrar, a ponto de uma pessoa sozinha do grupo em questo sairganhando, mesmo que tenha que arcar sozinha com esse custo, ento huma boa probabilidade de que o benefcio coletivo seja proporcionado(Olson, 1999, p.35).

    No que tange ao tamanho, Olson (1999) alega que para grupos pequenos possvel prover-se de benefcios coletivos sem recorrer a qualquer artifcio

    alm do benefcio coletivo em si mesmo, uma vez que em tais grupos a ao de

    um membro tem efeito perceptvel sobre os demais, fazendo com que os

    relacionamentos individuais tenham importncia e permitindo que os integrantes

    se auto-regulem. Em grandes grupos, por outro lado, as contribuies

    individuais no afetam de forma perceptvel o grupo como um todo. Dessa

    forma, o mais provvel que o benefcio coletivo no seja promovido, a menos

    que haja coero1

    ou algum incentivo adicional que incite seus membros aagirem em proveito de seus objetivos comuns. Para tanto, necessrio haver,

    entre os membros do grupo, algum acordo que proporcione um mnimo de

    coordenao ou organizao.

    A partir dessas constataes distinguem-se trs tipos diferentes de

    grupos cuja diferenciao toma como elemento principal o nmero de indivduos

    que os compem: privilegiados, intermedirios e latentes. Um grupo

    privilegiado, segundo Olson (1999),

    1A coero um recurso usado pelas instituies e organizaes para forar o indivduo a agirsob o argumento de que a sua no-ao custa mais a ele que a sua ao (Alcntara, 2003, p.20).

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    um grupo em que cada um de seus membros, ou pelo menos um deles,tem um incentivo para se esforar para que o benefcio coletivo sejaprovido mesmo que ele tenha de arcar sozinho com todo o nus. Em umgrupo assim h uma predisposio de que o benefcio coletivo serobtido e pode ser obtido sem nenhuma organizao grupal oucoordenao de qualquer tipo. Um grupo intermedirio um grupoem que nenhum membro obtm sozinho uma parte do ganhosuficientemente grande para incentiv-lo a prover o benefcio, mas queno tem tantos integrantes a ponto de um membro no perceber se outroest ou no ajudando a prover o benefcio coletivo. Em tal grupo, umbenefcio coletivo pode ser obtido ou pode no ser, mas nenhumbenefcio coletivo jamais ser obtido sem alguma coordenao ouorganizao grupal (Olson, 1999, p.62).

    J em um grupo latente, que um grupo muito grande,

    se um membro ajudar ou no ajudar a prover o benefcio coletivo,nenhum outro membro ser significativamente afetado e, portanto,nenhum ter razo para reagir. Assim, no grupo latente um indivduono pode, por definio, fazer uma contribuio perceptvel a qualqueresforo grupal e, j que ningum no grupo reagir se ele no fizernenhuma contribuio, ele no ter incentivo para contribuir (Olson,1999, p.63).

    Quando comparados aos grupos menores, os grupos grandes se mostram

    muito menos radicalistas2 e decididos, caractersticas que, na concepo de

    Simmel (1983), so essenciais para que o indivduo se dedique sem reservas

    base lgica do grupo. na solidariedade incondicional dos elementos que se

    baseia a possibilidade de radicalismo, mas essa solidariedade diminui na medida

    em que o crescimento numrico envolve a admisso de elementos individuais

    heterogneos. O fato de no sustentar espontaneamente a coeso imediata e

    pessoal, tpica do grupo pequeno, faz com que o grupo grande ou latente adote

    alguns mecanismos que atuam como compensaes para essa incapacidade.

    Sendo assim, criam instrumentos que canalizam e servem de mediadores

    2Aqui o termo radicalismo assume o sentido de fidelidade proposta do grupo social.

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    para a interao de seus membros, atuando como veculos de uma unidade social

    que j no resulta mais das relaes diretas entre seus elementos.Nesse caso, necessrio lanar mo do que Olson (1999) chama de

    incentivo independente e seletivo para estimular um membro de um grupo

    latente3a agir coletivamente. Tal incentivo considerado de carter seletivo por

    constituir um tratamento diferenciado, atribudo queles que contribuem ou no

    para a promoo dos interesses do grupo. Dessa forma, podem coagir com

    alguma punio aqueles que no arcarem com parte do nus da ao grupal, ou

    pode ser uma recompensa para aqueles que agirem pelos interesses do grupo.

    Simmel (1983) afirma que depois de chegar a certo tamanho, um grupotem, necessariamente, que desenvolver formas e rgos que sirvam sua

    manuteno e promoo, o que no ocorre em um grupo menor. Segundo este

    socilogo, os grupos menores so dotados de qualidades, dentre elas as formas

    de interao de seus membros, que inevitavelmente desaparecem quando esses

    grupos aumentam. Um exemplo so as sociedades socialistas ou quase

    socialistas, que s foram possveis em grupos pequenos e inviveis nos grupos

    maiores. A explicao para isso encontra-se no fato de que a eqidade na

    distribuio da produo e o reconhecimento mtuo, aspectos essenciais aosocialismo, so facilmente realizados em um grupo pequeno, j que a

    contribuio de cada um ao todo e sua relevncia no grupo so claramente

    visveis. No grupo grande, contudo, a comparao e a compensao so difceis,

    especialmente por causa das inevitveis distines de seus membros, suas

    funes e pretenses, decorrentes da complexa diviso do trabalho. Esta,

    conforme Simmel (1983), o que garante a unidade de um nmero muito grande

    de pessoas, pois produz o tipo de interpenetrao e interdependncia capaz de

    ligar, por meio de intermedirios, cada pessoa a todas as outras.

    3Os grandes grupos so chamados de latentes justamente porque seu potencial para a ao spode ser concretizado ou mobilizado com o auxlio de incentivos seletivos (Olson, 1999).

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    Na concepo de Olson (1999), o nmero de indivduos tambm um

    fator decisivo para gerar comportamento coletivo no que tange busca racionale voluntria de um interesse. Esse autor acredita que os pequenos grupos

    possuem melhores condies que os grandes para promover seus interesses

    comuns, uma vez que, em meio a muitos participantes, um elemento tem

    conscincia de que seus esforos individuais no influenciaro muito no

    resultado final.

    Quando uma parceria tem muitos membros, o parceiro individual notaque seu prprio esforo ou contribuio no afetar muito odesempenho grupal e espera obter sua parcela preestabelecida dosganhos tanto se contribuir quanto se no contribuir com tudo o quepoderia ter contribudo. [...] quando o nmero de parceiros aumenta, oincentivo que cada um deles tem para trabalhar pelo sucesso daempreitada diminui (Olson, 1999, p.67).

    J no pequeno grupo, em que cada um dos membros conhece os outros

    diretamente, as aes individuais no s so perceptveis, como afetam

    imediatamente os demais, o que por si s j conduz a uma auto-regulao e a um

    esforo para que tudo corra bem (Olson, 1999), eliminando a necessidade de

    empregar recursos coercitivos ou incentivos adicionais (Alcntara, 2003).

    Com base nas diferenas entre os pequenos grupos (privilegiados e

    intermedirios) e os grandes, Olson (1999) traa uma relao entre a eficincia e

    o tamanho do grupo, concebendo que os primeiros freqentemente triunfam

    sobre os segundos por, geralmente, serem mais organizados e ativos. Tal

    conjectura est fundamentada na avaliao desse autor sobre a distribuio tanto

    do benefcio quanto do nus entre os participantes, e sobre a coeso grupal que

    est relacionada ao conhecimento que cada indivduo tem sobre as aes dos

    demais membros do grupo (Alcntara, 2003).

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    Retomando a questo dos incentivos seletivos, Olson (1999) acredita

    que os incentivos econmicos no so, com certeza, os nicos que movem osindivduos. Interesses como status, respeito, amizade e outros de cunho social ou

    psicolgico tambm so capazes de motivar aes. E tais recursos podem ser

    eficientes, j que a maioria das pessoas tende a zelar por seu prestgio e auto-

    estima.

    No entanto, a presso e os incentivos sociais funcionam somente em

    grupos de tamanho menor, pequenos o bastante para que cada membro possa

    ter um contato face a face com todos os demais (Olson, 1999, p.74). O que

    sustenta esse argumento : primeiro, o fato de que, nos grandes grupos, cadamembro representa uma parte to pequena em relao ao total que sua ao no

    decisiva; e segundo, porque nesses grupos um indivduo no afetado

    socialmente caso no cumpra sua parte em favor do conjunto, j que nenhum

    membro capaz de se relacionar com todos os outros.

    Sendo assim, Olson (1999) julga que os grupos pequenos o bastante para

    serem considerados privilegiados ou intermedirios so duplamente

    abenoados, pois, alm dos incentivos econmicos, contam tambm com

    incentivos sociais para estimular seus membros a agir em prol do grupo.Procurando combater possveis crticas, Olson (1999) explica que o fato

    de incentivos sociais no surtirem efeito sobre os membros de grupos latentes

    no significa que esses indivduos apresentem exclusivamente propsitos

    egostas ou comportamentos maximizadores de lucros. Conforme este autor,

    mesmo na ausncia de presses sociais possvel que as pessoas ajam de forma

    desprendida. O que se deve compreender que,

    o conceito de grupo grande ou latente aqui oferecido se sustenta tantose o comportamento de seus membros for egosta quanto se fordesprendido - desde que seja racional no sentido estrito do termo(Olson, 1999, p.76).

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    aparentemente voluntrios, mas que so obrigatoriamente dados e retribudos

    (Godbout, 1999).Procurando demonstrar o que h por trs disso, Mauss (2001) analisa o

    direito e a religio dessas sociedades e revela que, nas relaes de troca entre os

    membros do grupo, o presente recebido e trocado cria uma obrigao, na qual o

    doador tem uma ascendncia sobre o beneficirio porque aceitar qualquer coisa

    de algum aceitar qualquer coisa da sua essncia espiritual, da sua alma

    (Mauss, 2001, p.66). Nesse sistema, a recusa de dar ou receber significa a recusa

    aliana e comunho.

    De acordo com Lanna (2000), o argumento central do Ensaio de quea ddiva produz a aliana, tanto as alianas matrimoniais como as polticas,

    religiosas, econmicas, jurdicas e diplomticas (Lanna, 2000, p.175). O

    pensamento maussiano observa, prioritariamente, no indivduos e estruturas,

    mas o que circula entre os atores a favor do vnculo social. Nessa perspectiva, a

    ddiva (ou dom) se faz presente em todos os espaos da vida em sociedade,

    influindo decisivamente na formao dos atores e na definio de seus lugares

    nesse conjunto (Martins, 2004).

    A ddiva constitui, portanto, o elemento essencial a toda sociedade, epode ser definida como qualquer prestao de bem ou de servio, sem garantia

    de retorno, com vistas a criar, alimentar ou recriar os vnculos sociais entre as

    pessoas (Godbout, 1999, p.29). O aspecto essencial atribudo ddiva no

    sentido de trat-la como pressuposto para a formao da coletividade. Sua

    natureza estabelecer relaes atravs do circuito composto pelos momentos de

    dar, receber e retribuir que, embora ocorram de forma espontnea,

    implicitamente conservam um carter de obrigatoriedade moral.

    Em outros termos, a ddiva consiste em algo que dadoespontaneamente - sejam objetos, palavras, gestos - e, ao ser recebido, gera no

    beneficirio dessa ao a necessidade moral e a vontade de retribuir. Essa

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    contraddiva, ao ser feita, torna-se uma nova ddiva, que em outro momento

    ser retribuda, e assim sucessivamente. Desencadeia-se, ento, um ciclo decirculao de ddivas cujo efeito o desenvolvimento do vnculo social.

    A afirmativa mxima da ddiva considera que nada mais importante

    que a construo do lao social, visto que a aliana que ele constitui permite a

    passagem da guerra paz e da desconfiana confiana, condies inerentes a

    qualquer empreendimento e prosperidade. Neste sentido, possvel julgar que

    a ddiva o que h de mais til no mundo, embora no se encontre no registro

    do utilitrio. Compreende-se que seus objetivos conservam uma mistura

    profundamente paradoxal e indissocivel de interesse e desinteresse, rogandoque a relao deve ser construda pelos indivduos que nela entram antes que

    estes possam pensar em tirar proveito dela (Caill, 2002, p.8). Em suma, o

    dom pressupe que o doador encontra a sua satisfao por meio da satisfao do

    outro.

    2.2.1 Postulado da ddiva: a obra de Marcel Mauss

    Dedicando-se compreenso do direito contratual5 e do sistema das

    prestaes econmicas entre os diversos grupos que compem as sociedadesprimitivas, Mauss (2001) observa, nas prticas dessas coletividades, os

    chamados fenmenos sociais totais que misturam tudo o que constitui a vida

    propriamente social, expressando, ao mesmo tempo, instituies de natureza

    religiosa, jurdica, moral, poltica, familiar e econmica. Mauss constata que, no

    transcorrer dessas convenes, embora as trocas ou prestaes apresentem um

    carter voluntrio, elas so, na verdade, obrigatrias. Diante dessa percepo,

    projeta a questo que consagra seu trabalho analtico:

    5Em Mauss a noo de contrato no remete aos acordos entre indivduos racionais, mas a regrasda organizao social primitiva (Lanna, 2000).

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    Qual a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipoatrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido sejaobrigatoriamente retribudo? Que fora existe na coisa que se d quefaz com que o donatrio a retribua? (Mauss, 2001, p.52).

    Em outras palavras, o que Mauss procura desvendar a natureza das

    transaes humanas nas sociedades precedentes e contemporneas e a ao da

    moral e da economia nessas transaes.

    Adotando um rigoroso mtodo de comparao, Mauss realizou uma

    srie de investigaes acerca das formas arcaicas do contrato em reas como

    Polinsia, Melansia, Noroeste americano, entre outras, cujos sistemas sociais

    foram descritos na sua integridade. Desses estudos provm a percepo de que

    nas sociedades primitivas no ocorrem simples trocas de bens, de riquezas e de

    produtos no decurso de um mercado passado entre os indivduos (Mauss, 2001,

    p.55). Essencialmente, as prestaes e contratos se realizam num contexto de

    obrigao mtua entre coletividades (cls, tribos, famlias), que no trocam

    somente o que til economicamente, mas tambm gentilezas, festejos, ritos,

    entre outras simbologias. O mercado figura apenas como um dos momentos de

    um contrato muito mais geral e perene ao qual atribudo o nome de sistema das

    prestaes totais(Mauss, 2001) ou reciprocidade total(Graeber e Lanna, 2005).

    As prestaes totais, segundo Graeber e Lanna (2005), caracterizam as

    trocas em diversas sociedades arcaicas, nas quais dois lados de uma aldeia

    dependem um do outro quanto a comida, servios militares e rituais, parceiros

    sexuais, danas, festas, gestos de respeito e reconhecimento etc. (Graeber e

    Lanna, 2005, p.507). Nesse sistema, a obrigao de dar to importante quanto

    a obrigao de receber, uma vez que a recusa de um ou de outro equivale a

    declarar guerra, a negar a aliana. Essa propriedade exprime, antes de qualquer

    coisa, uma convergncia espiritual em que tudo objetos, pessoas, gestos

    constitui substncia de transmisso e de entrega (Mauss, 2001).

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    Mauss (2001) apresenta o fenmeno social total constitudo pela ddiva

    nas sociedades primitivas, valendo-se de diversas ilustraes etnolgicas, dasquais extrai, principalmente, os exemplos do potlatch, relatado por Franz Boas

    no estudo realizado entre os ndios do Noroeste americano, e o kula, descrito por

    Malinowski emArgonautas do Pacfico Ocidental(Godbout, 1999).

    2.2.2 A proposta de um paradigma

    A ddiva, dotada de uma realidade complexa e paradoxal que admite

    sobrepujar a anttese entre obrigao e liberdade, o eu e o outro, indica a

    necessidade de pensar e conceituar a relao social e a ao individual segundocaminhos diferentes dos que costumeiramente so trilhados pelas cincias

    sociais: Pensar segundo o dom implica aprender a superar a tenso no

    resolvida entre os dois grandes paradigmas em que se dividem as cincias

    sociais (Caill, 2002, p.11). O paradigma individualista, que parte do indivduo

    para explicar a totalidade social, e o paradigma holista, que segue o sentido

    inverso.

    Caill (2002) acredita que a ddiva no s capaz de superar a oposio

    habitual entre esses dois paradigmas como possui todas as dimenses paraconstituir um terceiro paradigma, inerentemente relacional. Tal constituio,

    inspirada em Marcel Mauss, representa o desenvolvimento do trabalho que vem

    sendo realizado pelo conjunto dos autores que se identificam com o projeto que

    aRevue du MAUSS(Movimento Antiutilitarista nas Cincias Sociais) comps na

    tentativa de transpor a dicotomia entre individualismo e holismo.

    Declarando-se antiutilitarista e recusando-se a reconhecer o homo

    economicus como pilar das cincias sociais, MAUSS adotou posio

    desfavorvel ao que Caill (2002) qualifica como primeiro paradigma.Relacionando o conjunto dos fenmenos sociais exclusivamente com as

    decises e os clculos dos indivduos (Caill, 2002), este paradigma afirma que

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    a ao individual necessariamente interessada e racional, o que lhe confere a

    alcunha de individualista.Uma vez destacada a irredutibilidade da ddiva ao primeiro paradigma,

    resta mostrar que o dom igualmente irredutvel ao segundo paradigma -

    qualificado como holista - que explica as aes individuais ou coletivas como

    manifestaes da dominao exercida por uma totalidade social, preexistente aos

    indivduos e infinitamente mais importante que eles, predeterminando seus atos

    e pensamentos (Caill, 2002).

    A ddiva, enquanto princpio propulsor e mantenedor das alianas

    (Caill, 2002), no se encaixa em nenhuma dessas percepes, uma vez que ano equivalncia, a espontaneidade, a dvida, a incerteza, o prazer do gesto e a

    liberdade, presentes no seio da relao social, se opem s teorias que do

    suporte a esses dois paradigmas (Godbout, 1999).

    Na concepo da ddiva,

    a totalidade social no preexiste aos indivduos como tampouco oinverso, pela simples razo que tanto uns como os outros, como a suaposio respectiva, se geram incessantemente pelo conjunto das inter-

    relaes e das interdependncias que os ligam. portanto amodalidade geral dessa ligao e dessa interdependncia que importaantes de mais nada compreender (Caill, 2002, p.18).

    Sendo assim, prope-se a ddiva como um terceiro paradigma capaz de

    superar as limitaes do individualismo e do holismo e tambm de pensar essas

    duas vises de forma integrada. Neste sentido, o paradigma do dom mistura,

    indissociavelmente, obrigao e liberdade, interesse e desinteresse, delineando

    com bastante eloqncia o plano sobre o qual essas perspectivas podem se

    harmonizar. Para tanto, dispe-se a analisar como se gera o vnculo social no apartir dos indivduos, nem a partir de uma totalidade social, mas a partir de seu

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    meio, de forma horizontal, considerando o conjunto das inter-relaes que ligam

    os indivduos e os tornam atores sociais (Caill, 2002).Conforme Reinhardt (2006), ao analisar o vnculo propriamente, a teoria

    da ddiva possibilita apreender, atravs da significao, a dimenso das trocas

    sociais sem o espectro dualista que freqentemente assombra as cincias sociais,

    atribuindo sentido ao do agente e no s suas intenes (individualismo) ou

    a um sistema simblico que o conduz (holismo). A perspectiva do dom

    compreende que a sociedade primeiramente instituda por uma dimenso

    simblica e prope a idia de sociedade enquanto fenmeno total, ou seja, um

    todo integrado que deve ser analisado a partir das mltiplas significaes quearticulam atores e instituies sociais em uma nica e mesma rede (Martins,

    2004).

    2.2.3 A ddiva enquanto sistema

    Assim como o mercado e o Estado, tambm a ddiva deve ser

    compreendida como um sistema que, conforme afirma Godbout (1999), o

    sistema social como tal: a ddiva constitui o sistema das relaes propriamente

    sociais na medida em que estas so irredutveis s relaes de interesseeconmico ou de poder (Godbout, 1999, p.22).

    Apesar da crena no desaparecimento da ddiva, Godbout (1999)

    acredita que ela se mantm fortemente presente na modernidade. Este autor

    sustenta que a ddiva diz respeito totalidade da existncia social e que, mesmo

    nos dias atuais, nada pode se iniciar ou empreender, crescer e funcionar se no

    for alimentado pela ddiva (Godbout, 1999, p.20).

    Buscando ilustrar essa sistemtica, Godbout (1999) discorre sobre a

    funo da palavra como indcio de tal assero. Segundo este autor, soprincipalmente palavras, frases e discursos que o ser humano produz e troca

    com os demais (Godbout, 1999, p.21) e elas s podem circular se a relao que

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    as autoriza e que delas se alimenta for previamente criada e simbolizada. As

    palavras no tm, a princpio, um valor utilitrio e sua funo principal circular. Simmel (1983) considera que, de fato, entre todos os fenmenos

    sociolgicos, a conversa a forma mais pura e elevada de interao,

    constituindo uma relao que no pretende ser nada alm de uma relao.

    Embora seja mais ntido no plano das relaes interpessoais, o sistema

    da ddiva tambm pode ser encontrado no plano das relaes funcionais atravs

    da confiana na reciprocidade que, alimentada de forma subjetiva pelos

    envolvidos, reporta continuidade da relao (Martins, 2004). A confiana,

    essencial para que qualquer relao se estabelea (Godbout, 1999), no nasce decontratos jurdicos e formais, por mais elaborados que sejam, mas da relao

    interpessoal e da expectativa de que o parceiro da troca - seja ela simblica ou

    material - retribua o bem oferecido.

    O valor-confiana constitui um atributo que apenas se desenvolve

    primariamente no nvel das relaes de ddiva, no dar ao outro

    (espontaneamente) um crdito de honra, no acreditar que ao se dar esse crdito a

    algum ele ser retribudo com algo que faa circular adequadamente a

    confiana inicialmente depositada.

    [...] o sistema da ddiva tende a influir sobre a construo dasprticas que do suporte ao funcionamento das instituies sociais,sendo a confiana um dos primeiros bens simblicos a circular a favorda validao da relao social. Sem ela nem o Mercado, nem o Estado,nem a Poltica, nem a Religio, nem a Cincia funcionam (Martins,2004, p.6).

    A modernidade, contudo, s reconhece a ddiva como elemento do

    passado, inexistente nas sociedades contemporneas. Essa negao, declaraGodbout (1999), reflete a fora do pensamento utilitarista, que obscurece a

    forma como o individual e o coletivo interagem no todo social. Essa viso

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    transmite a imagem do indivduo egosta e confinado aos espaos funcionais da

    sociedade, mas no considera que alm dos contornos do mercado ou daburocracia esse indivduo participa da vida comunitria e possui redes sociais.

    legtimo afirmar que a ddiva no tem a sua realidade percebida pelo

    pensamento moderno e, segundo Godbout (1999), a crena de que para haver

    ddiva ela precisa ser gratuita, contribui para ocult-la. Acredita-se que, como

    essa gratuidade impossvel, a ddiva tambm impossvel. Realmente, a

    ddiva gratuita no existe, pois sua funo estabelecer vnculos sociais e estes

    no acontecem sem retorno e nem se consolidam atravs de atos unilaterais e

    descontnuos. Sendo assim, Caill (2002) esclarece que a ddiva privilegia osinteresses de aliana e de solidariedade em detrimento dos interesses

    instrumentais, no devendo, portanto, ser concebida pela gratuidade.

    Godbout (1999) observa que costumeiramente as cincias sociais

    interpretam a histria e o jogo social como estratgias de agentes racionais

    que procuram maximizar a satisfao de seus interesses materiais ou que

    concentram todos os seus esforos na busca do poder. Essa tradio do

    pensamento leva a crer que existem apenas dois grandes sistemas de ao social:

    o sistema do mercado, onde se confrontam e se harmonizam os interessesindividuais, e o sistema poltico, estruturado pelo monoplio do poder legtimo

    (Godbout, 1999, p.23). Mas como este autor argumenta, a instncia secundria,

    composta pelo mercado e pelo Estado no a nica e nem a principal dimenso

    que constitui a sociabilidade do ser humano. importante lembrar que, antes de

    ocupar funes econmicas, polticas ou administrativas, ele se constituiu como

    pessoa no registro da sociabilidade primria, composta pelas relaes

    interpessoais familiares, de vizinhana, de camaradagem e amizade.

    Martins (2004) refora a concepo da ddiva como um sistema aolembrar que,

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    a sociedade moderna no regida por uma lgica, mas por umapluralidade de lgicas. Nesta perspectiva pode-se avanar queenquanto o mercado regido por um sistema de trocas equivalentes(dar-pagar), o Estado conhece um outro sistema de reciprocidades(receber-devolver), enquanto a sociedade civil regida por um sistemade trocas no equivalentes: o dar-receber-retribuir. A lgica mercantilno suprflua como foi pensado por certos setores da esquerda nosculo XX, tendo importncia central para a existncia da ordemmoderna e para a liberdade individual. Mas um erro imaginar que algica mercantil pode substituir o Estado ou as prticas comunitrias eassociativas respectivamente na proteo e na inveno do social [...].A inveno do social apenas ocorre a partir da solidariedade entre osindivduos, isto , a partir do risco de se tomar uma iniciativaespontnea de doao sem garantias de retorno e, igualmente, do riscode se aceitar espontaneamente algo de algum. Esta iniciativa sempreincerta e paradoxal de doao, recebimento e devoluo conhecidacomo a aposta no dom, aposta na qual o valor da relao em si tidocomo mais relevante que o valor das coisas ou dos usos (Martins,2004, p.7).

    importante ressaltar que a postura conceitual da ddiva no implica

    menosprezar a fora e a legitimidade dos interesses materiais e utilitrios, e nem

    afirma que o ser humano age por puro desinteresse. De acordo com Caill

    (2002), essa postura crtica apenas sugere que nenhuma sociedade se ergue

    somente atravs do contrato e do utilitrio, reiterando que a solidariedade,

    indispensvel a qualquer ordem social, somente surge a partir da subordinao

    dos interesses materiais a uma regra simblica que os transcenda (Caill,

    2002, p.46).

    Godbout (1999) enfatiza que os estudiosos da ddiva, ao contrrio do

    que se possa pensar, no preconizam a eliminao nem do Estado, nem do

    mercado, uma vez que a sociedade atual necessita desses aparelhos para a sua

    sustentao.

    Na verdade, a compreenso da ddiva, enquanto sistema de trocas bsico

    da vida social, permite questionar a concepo caracterstica da modernidade de

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    que a sociedade mantida unicamente pela ao planificadora do Estado ou

    pelo movimento fluente do mercado (Martins, 2004, p.9). O entendimento daddiva desfaz essa bifurcao e introduz a idia da ao social como interao

    que ocorre em meio a uma pluralidade de lgicas no redutveis umas s outras e

    nem aos determinismos calculistas sugeridos pelos tericos neoliberais (Martins,

    2004).

    Convicto quanto a isso, Godbout (1999) alerta para a necessidade de

    romper com as explicaes da prtica humana propostas pelo utilitarismo e pelas

    teorias que apresentam o ser humano como um egosta natural, sedento de poder,

    j que essas teorias, embora dotadas de pertinncia, centralizamsistematicamente a ao no indivduo isolado ou nos aparelhos que constituem a

    sociabilidade secundria.

    Neste sentido, a ddiva compe uma proposta terica que sugere pensar

    a constituio das cooperativas populares e do conjunto das atividades coletivas

    com fins no lucrativos a partir dos vnculos de solidariedade e confiana, que

    na concepo de Caill (2002) consistem na essncia da associao. Para tanto,

    preciso ter em mente que o dom no destitudo nem do interesse, nem da

    obrigao, mas dialetiza ambos propondo uma tipologia da ao que privilegiaos interesses de aliana e solidariedade. Em outros termos, a ddiva pressupe

    que a ao coletiva tem como propsito fundamental a constituio da aliana

    com outros indivduos, sendo movida, simultaneamente e em propores

    variveis e instveis, pelo interesse e pela obrigao. Nas palavras desse autor,

    o dom no deve ser pensado sem o interesse ou fora dele, mas contra o

    interesse instrumental. Ele [o dom] o movimento que, para fins de aliana

    subordina os interesses instrumentais aos interesses no instrumentais (Caill,

    2002, p.145).Assim, a ddiva concebe que a ao humana se desenvolve na

    interseco de duas grandes oposies, quais sejam: a oposio da obrigao e

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    da liberdade somada oposio entre o interesse pessoal e o interesse pelos

    outros.

    2.2.4 Sociabilidade e ddiva

    A ddiva na sociedade moderna possui particularidades que a

    distinguem da ddiva primitiva. De acordo com Godbout (1999), em muitas

    civilizaes primitivas as trocas e os contratos se realizavam na forma de

    ddivas, mas, diferente do que ocorre em diversas instncias da sociedade

    moderna, aquilo que dado e retribudo no se resume a bens materiais

    imbudos de valor econmico ou a simples acordos formais. Ao contrrio, estrepleto de significado e transcende a dimenso material.

    Embora no seja completamente estranha s sociedades ditas arcaicas, a

    troca mercantil no interfere nas trocas cerimoniais e limita-se a prestaes

    intermitentes. Nessas sociedades, o consumo de bens um trabalho ritual e a

    lgica do valor das coisas permanece subordinada do valor das pessoas. Essa

    afirmao contraria o evolucionismo economicista que insiste em ver na ddiva,

    e na permuta cerimonial, ancestrais do sistema econmico moderno. Segundo

    essa perspectiva, o dar para receber consiste, na verdade, em escambo, que como passar do tempo foi racionalizado e desenvolvido graas ao surgimento da

    moeda (Godbout, 1999).

    Essa linha de raciocnio, contudo, no tem fundamento, uma vez que o

    escambo, e at mesmo o mercado, no so ignorados pela sociedade primitiva,

    apesar de mantidos rigorosamente sua margem. A moeda primitiva , na

    verdade, um meio de troca social, cujo valor no atribudo pela relao que

    mantm com as coisas, mas pela complexa conexo que mantm com as

    pessoas.A moeda primitiva s circula em permuta com um nmero muito restrito

    de bens e apenas entre certo nmero de parceiros determinados. Ela no pode

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    percorrer qualquer caminho. [...] a moeda primitiva no mede o valor das

    coisas, e sim das pessoas. Se ela mede o valor das coisas, apenasindiretamente, por refrao do valor das pessoas. Tanto assim que a moeda

    primitiva no permite comprar qualquer coisa (Godbout, 1999, p.138).

    A acumulao material no a preocupao primordial das civilizaes

    primitivas e a obrigao de dar, to enfatizada por Mauss, contradiz as

    exigncias da acumulao. Sendo assim, a ddiva no pode ser tratada, nessas

    sociedades, como um mecanismo de relao econmica entre os indivduos, pois

    ela representa, muito alm da simples troca de bens, a forma geral das relaes

    que congregam os diversos elementos que compem o cosmos6

    .Enquanto a economia de mercado, prpria da sociedade moderna, visa a

    produzir coisas por meio de coisas, a sociedade primitiva prioriza o

    relacionamento entre as pessoas, fazendo com que as coisas sirvam, atravs da

    ddiva, gerao e ao fortalecimento dos vnculos sociais. Conforme C.

    Gregory, a troca mercantil,

    uma troca de objetos alienveis entre pessoas que se encontram numestado de independncia recproca, traduzindo-se pelo estabelecimentode uma relao quantitativa entre os objetos trocados (...).Inversamente, a troca por ddiva consiste numa troca de objetosinalienveis entre pessoas que se encontram num estado de dependnciarecproca, traduzindo-se pelo estabelecimento de uma relaoqualitativa entre os protagonistas (Gregory apud Godbout, 1999,p.161).

    Ocorre que a modernidade introduz uma ruptura radical entre o que

    Godbout (1999) chama de pessoas-sujeitos e o restante do cosmos, que passa a

    ser tratado como objeto subordinado ao domnio da produo. O indivduo

    6A ddiva primitiva circula entre todos os elementos do universo do qual faz parte, o que inclui oshumanos, os animais, vegetais, minerais, os antepassados, os espritos e os deuses (Godbout,1999).

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    vende a sua fora de trabalho e torna-se instrumento da estrutura racional e

    burocrtica hegemnica que se baseia no princpio da impessoalidade e dapadronizao, ou seja, da negao do nico.

    Nessa objetificao do mundo, a sociedade moderna d origem a novas

    formas de ddiva, cujo circuito passa a operar em instncias especficas que

    compensam o carter funcionalista da sociabilidade secundria, constituda pelo

    mercado e pelo Estado (Caill, 2002). Dentre essas esferas encontra-se o espao

    das relaes pessoais, das redes individuais ntimas e personalizadas, que

    consiste na sociabilidade primria, e considerada a dimenso natural da

    ddiva na sociedade moderna. Esse ambiente serve para lembrar a todoindivduo que ele nico (Godbout, 1999, p.171) e reserva a cada um a

    condio de construir a sua singularidade social. Em outras palavras, onde o

    ser conserva a qualidade de sujeito e encontra meios de se distinguir da

    sociedade.

    Caill (2002) observa que as sociedades primitivas desconheciam a

    separao dos espaos de sociabilidade, no havendo motivos para a existncia

    de redes individuais e nem para que o circuito da ddiva atuasse como construtor

    da unicidade dos seres, pois estes so nicos em toda parte e no soinstrumentos em parte alguma (Godbout, 1999). Na modernidade, contudo, a

    personalidade social concreta dos atores abstrada da sociabilidade secundria,

    cujo imperativo o da funcionalidade dos agentes. Isso faz com que a lgica da

    ao se distinga da linguagem da ddiva, tornando-se irredutvel ao domnio das

    relaes entre as pessoas. Sendo assim, a obrigao de dar, receber e retribuir

    no se manifesta mais de maneira dominante, a no ser no seio da sociabilidade

    primria ou na forma bastante transformada e especfica da sociedade moderna

    que a ddiva a estranhos (Caill, 2002).

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    A ddiva entre estranhos compe a quarta esfera7 do sistema de

    circulao de coisas, materializada em uma diversidade de grupos comunitriosque se constituem livremente com a finalidade de prestar servios. So

    diferentes formas de associao que podem ter ligaes com o Estado e com o

    mercado e ser por eles financiados, mas que se distinguem por ter a ddiva no

    centro do sistema de circulao das coisas e servios (Godbout, 1999, p.81).

    Essas organizaes tm o carter de ddiva visto que so criadas

    livremente, a partir de iniciativas da sociedade civil, tendo como principal

    finalidade o bem estar social.

    Conforme Godbout (1999), a ddiva entre estranhos pode ser agrupadaem duas categorias: organismos beneficentes e grupos de ajuda mtua. No

    primeiro caso, os servios prestados so voluntrios, sem retorno aparente, j

    que a retribuio est no prprio ato de dar. No segundo, as aes so baseadas

    na reciprocidade, estabelecendo claramente o circuito da ddiva de dar, receber e

    retribuir, havendo uma responsabilidade de transmitir o que se recebe. Incluem-

    se, neste ltimo caso, os empreendimentos concernentes economia solidria.

    Classificando como espetacular o desenvolvimento do voluntariado e do

    engajamento associativo no mundo, Caill (2002) atribui s insuficincias doEstado e do mercado a dilatao de tais fenmenos. Conforme este autor, a

    incapacidade das dimenses mercadolgica e estatal em responder a problemas e

    necessidades sociais faz com que, alm das solidariedades tradicionais, prprias

    da sociabilidade primria, sejam criadas novas formas de solidariedade,

    expressas atravs das cooperativas sociais, das associaes e do conjunto das

    atividades coletivas com fins no lucrativos (Caill, 2002, p.141).

    Esse engajamento associativo e voluntrio ocorre, em primeira instncia,

    sob a denominao da ddiva, uma vez que o motor da ao tem origem no

    7Segundo Polanyi (2000), o sistema de circulao de coisas compe-se de trs esferas: o mercado,o Estado e a instncia domstica.

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    vnculo existente entre os membros da organizao ou entre a associao e a

    pessoa ajudada (Godbout, 1999, p.89). Como bem destaca Vizeu (2006), nasorganizaes substantivas as relaes interpessoais so de grande magnitude e

    entre os membros h um alto grau de afetividade e solidariedade, rompendo com

    a lgica impessoal e com o calculismo das relaes sociais secundrias.

    Sendo assim, o fato associativo, orientado pelo registro da ddiva, no

    pode ser considerado um espao de sociabilidade secundria. Mesmo quando as

    associaes sofrem interferncias dessa esfera, as pretenses funcionais

    permanecem subordinadas a um princpio de personalizao que recorre a

    modalidades tpicas da sociabilidade primria. Por outro lado, as relaesconstitudas no seio dessas organizaes preservam um carter facultativo e

    revogvel que no condiz com as designaes prprias dos vnculos primrios.

    Dessa forma, Caill (2002) acredita que o fato associativo se

    desenvolve na interface da primariedade e da secundariedade, do privado e do

    pblico, operando uma mescla e uma transformao de lgicas opostas

    (Caill, 2002, p.149) que permite realizar tarefas funcionais sob a forma da

    personalizao e formar alianas em escalas macrossociais sem renunciar

    forma da microssociedade. Neste sentido, a associao inaugura aquilo que sepode denominar espaos pblicos primrios, assentados sobre o

    interconhecimento.

    Essa mescla, na opinio de Godbout (1999), constitui uma nova forma

    de sociabilidade a ser pensada (Godbout, 1999, p.89), esboando o que pode

    compor um sistema de ddiva nos dias de hoje e oferecendo uma preliminar da

    sociedade e das relaes humanas diante da superao do individualismo e da

    estrutura burocrtica predominante.

    Isso porque, enquanto a economia de mercado est assentada sobre oprincpio da liberdade e do interesse privado, e o Estado se baseia na coero

    para que o interesse pblico seja alcanado, a associao, tal como a ddiva,

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    realiza o bem comum por meio da integrao dos princpios de liberdade e de

    obrigao. importante ressaltar que, nessa perspectiva, a idia de bem comum no

    constitui a primazia das identidades coletivas sobre os direitos liberdade

    individual, mas o entendimento de que a vida associativa pode constituir um

    elemento diferencial importante para se pensar uma moral do indivduo que seja

    compatvel com a sobrevivncia do coletivo democrtico (Martins, 2004, p.3).

    Os princpios da liberdade e da obrigao e, por conseguinte, da

    democracia e da justia social tambm esto presentes nos ideais utpicos do

    cooperativismo social-reformista ou rochdaleano, especialmente, na sociedadeconcebida por Robert Owen, considerado o fundador do chamado socialismo

    utpico. Neste sentido, na prxima seo ser tratada a ao coletiva na

    perspectiva terica e ideolgica do cooperativismo social-reformista.

    2.3 A ao coletiva nas ideologias de cooperao

    2.3.1 A ao coletiva e a cooperao nos ideais utpicos do cooperativismo

    A cooperao sempre esteve presente na histria humana como uma

    alternativa de sobrevivncia ou uma soluo para momentos de crise.Considerado etimologicamente, o termo cooperao significa operar junto com

    algum e pode ser entendido como colaborao ou o ato pelo qual pessoas unem

    seus esforos e recursos no sentido de alcanarem objetivos comuns. Do ponto

    de vista sociolgico uma forma de interao e de integrao social que se d a

    partir de uma ao conjugada. Quando orientada conforme estatutos previamente

    estabelecidos, d origem a organizaes sociais dentre as quais encontram-se as

    cooperativas (Pimentel, 2006).

    Todas as iniciativas de cooperao ocorridas at o final do sculo XVIIIeram informais e no sistemticas, como as formas de ajuda mtua existentes

    entre a populao rural de vrios pases. A cooperao mais organizada,

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    realizada de acordo com certos parmetros axiolgicos e metodolgicos, surgiria

    apenas a partir do sculo XIX com a pretenso de instaurar um novo sistema8econmico e social. quando surge o cooperativismo, um novo modelo

    conceitual, construdo e aperfeioado na vivncia concreta, e inspirado nas

    orientaes e doutrinas defendidas pelos socialistas utpicos9(Schneider, 1999).

    Segundo Schneider (1999), o cooperativismo surgiu como reao

    grave crise econmica e social disseminada pelo capitalismo no sculo XIX,

    como forma de modificar o conjunto das circunstncias e o ambiente social para

    criar um espao que proporcionasse maior dignidade para o trabalhador.

    Santos & Rodriguez (2002) explicam que, desde as suas origens, ocooperativismo se desenvolveu como alternativa tanto ao individualismo liberal

    quanto ao socialismo centralizado. Um dos componentes dessa ideologia, o

    pensamento associativista, baseia-se na defesa de uma economia fundada em

    princpios no capitalistas de cooperao e mutualidade, bem como na

    preferncia por formas de organizao poltica pluralistas, em que a sociedade

    civil ocupa papel central. Um outro componente, a prtica cooperativa, inspira-

    se nos valores de autonomia, democracia participativa, igualdade, eqidade e

    solidariedade para conduzir as atividades econmicas.Entre os que contriburam para a emergncia do cooperativismo, Robert

    Owen e William King, na Inglaterra, Charles Fourier, Michel Derrion, Philippe

    Buchez, Pierre-Joseph Proudhon e Louis Blanc, na Frana, so considerados os

    principais precursores do cooperativismo em termos de concepes ou

    experincias. As idias defendidas por esses pensadores e reformadores

    8 Os defensores do cooperativismo esperavam que, ao final do processo de expanso dascooperativas, fossem constitudas colnias cooperativas autnomas que, na medida em que

    multiplicassem, pudessem transformar a sociedade capitalista e competitiva em uma sociedadesolidria e fundada na cooperao (Schneider, 1999).9 O socialismo utpico compreendido como o conjunto de doutrinas socialistas pr-marxistas(Noronha, 2004) cujos seguidores cultivavam ideais de justia e fraternidade, e condenavam asmodificaes provocadas pela Revoluo Industrial sobre as formas de organizao da sociedade(Pimentel, 2006).

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    convergem, conforme Schneider (1999), em caractersticas fundamentais ao

    movimento cooperativo. Dentre elas, destacam-se a idia da associao comoexpediente de luta por objetivos comuns, a cooperao na organizao do

    trabalho como ao emancipadora dos operrios e a ao da ajuda mtua na

    defesa dos interesses do trabalhador. Tambm se pronunciam o capital como um

    meio para a realizao dos objetivos da cooperao, a necessidade de integrao

    e articulao entre empreendimentos cooperativos, o carter democrtico das

    decises e a constituio de um sistema scio-econmico predominante, baseado

    na cooperao.

    De acordo com Santos & Rodriguez (2002), foi a partir dessesfundamentos que os primeiros cooperados contemporneos, conhecidos como

    pioneiros de Rochdale, sistematizaram em estatuto os princpios que passaram a

    guiar as cooperativas em todo o mundo. Estes princpios so:

    a)

    vnculo aberto e voluntrio;

    b) controle democrtico por parte dos membros, sendo as decises

    fundamentais tomadas de acordo com a premissa um membro um

    voto;c) participao econmica dos membros no sentido de obter proveitos

    de acordo com a contribuio prestada;

    d)

    autonomia e independncia em relao ao Estado e a outras

    organizaes;

    e) compromisso com a educao dos membros da cooperativa para

    lhes facultar uma participao efetiva;

    f)

    cooperao com outras cooperativas atravs de organizaes locais,

    nacionais e mundiais;g) contribuio para o desenvolvimento da comunidade em que a

    cooperativa est situada.

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    Segundo Paul Lambert (apud Schneider, 1999), o que conferiu mrito

    aos pioneiros, entre outras coisas, foi aproveitar fundamentos isolados deexperincias anteriores e realizar uma sntese original destes princpios, dando-

    lhes sua expresso definitiva. O cooperativismo emerge, ento, como um

    modelo de insero econmica que situa o trabalhador no centro do processo

    produtivo, se destacando como alternativa de trabalho forjada por meio de uma

    racionalidade flexvel e compatvel com os princpios da solidariedade e da

    democracia (Nascimento, 2003).

    A cooperativa de Rochdale, bem como as primeiras cooperativas, no

    possua funcionrios, sendo as atividades da organizao desempenhadas pelosprprios associados. Na medida em que realizavam o trabalho e participavam

    das decises, no havia separao entre concepo e execuo do trabalho,

    condio essencial para a autogesto10(Canado, 2007).

    Porm, no final do sculo XIX, com o aumento do tamanho e da

    respectiva movimentao financeira, as cooperativas dispensaram a autogesto

    plena e passaram a contratar funcionrios, reproduzindo, at certo ponto, a

    lgica de explorao do trabalho que as primeiras cooperativas combatiam.

    Alm disso, outras mudanas ocorreram nessas organizaes que, antesautnomas e independentes nas suas atividades, receberam o reconhecimento do

    Estado, gerando, conforme Canado (2007), um arcabouo jurdico que passou a

    sustentar sua estrutura. Houve, ento, a institucionalizao desses grupos ao

    longo do sculo XX, tornando-os praticamente um apndice do aparelho estatal.

    Em funo desse processo, as cooperativas encontraram dificuldades

    para conservar a plenitude de sua base democrtica e, progressivamente, as

    decises foram se concentrando em uma elite diretorial, o que trouxe, de certo

    modo, a hierarquizao para o contexto dessas organizaes (Thiollent, 2006).

    10 A autogesto, em seu sentido mais amplo, designa o exerccio coletivo do poder (Dorneles,2007).

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    Da experincia de Rochdale, permaneceram os princpios de associao

    cooperativa considerados fundamentais e o pressuposto de que a sociedadecooperativa no pode ser empregada para fins de aplicao capitalista. No

    entanto, Arajo (1982) argumenta que o sistema cooperativo no segue uma

    filosofia rgida, no assume a condio de dogma. Sendo assim, admite-se que,

    existindo no seio da sociedade capitalista, sua filosofia tende a emanar das

    prticas que considera mais adequadas para manter sua existncia. Em outras

    palavras,

    a organizao cooperativa, porque inserida no sistema capitalista,acaba por corresponder s exigncias deste para sobreviver comoassociao. Portanto, em suas caractersticas organizacionais, umacooperativa [...] coincide com os pontos vitais da prpria gnese daproduo capitalista (Arajo, 1982, p. 89).

    Nessas circunstncias, a cooperao ao nvel idealista fica situada mais

    no campo discursivo, enfatizando a causa comum e propondo atingir esferas

    universais, ao passo que a cooperao no sentido objetivo destaca o plano que a

    orienta, pretendendo que a realizao de suas atividades resulte, em ltima

    instncia, na multiplicao do capital e no crescimento do patrimnio

    institucional, o que inevitavelmente a identifica com a prpria lgica do sistema

    capitalista (Arajo, 1982).

    Isso explica por que nem a prtica cooperativa nem o pensamento

    associativo que lhe serve de base chegaram a ser predominantes enquanto forma

    de organizao social. Conforme declarou Hirst (apud Santos & Rodriguez,

    2002), o associativismo jamais alcanou o amadurecimento necessrio para se

    converter em uma ideologia capaz de resistir aos ataques provenientes tanto do

    socialismo centralizado quanto do liberalismo individualista. Em outras

    palavras, o cooperativismo deu forma a experincias exemplares de cooperao

    baseada na solidariedade, mas no conseguiu se impor ao capitalismo.

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    Convm, contudo, ressaltar que a teoria e as prticas cooperativas tm

    desafiado as conjecturas pessimistas quanto sua capacidade de se reproduzir.Resgatando os elementos centrais do pensamento associativista e os ideais do

    cooperativismo, a economia solidria vem emergindo como um conjunto de

    atividades econmicas cuja lgica se distingue tanto da lgica do mercado

    capitalista quanto da lgica do Estado, propondo formas alternativas de

    organizao social (Santos & Rodriguez, 2002).

    2.3.2 A ao coletiva e a cooperao na economia solidria

    A compreenso da economia solidria, na opinio de Frana Filho(2007), supe repensar o fato econmico, cuja noo predominante11 remete

    idia de mercado ou troca mercantil. Conforme este autor, enxergar a economia

    apenas por essa lente significa trat-la de forma reducionista, como uma questo

    de escolha racional, em que os recursos so escassos e o comportamento do

    indivduo est pautado apenas pelo clculo utilitrio de custos e benefcios.

    De acordo com Laville et al. (2006), essa definio da economia,

    relacionada s noes de utilidade e escassez, esquece seu outro sentido

    possvel, que integra a dependncia entre seres humanos e entre estes e anatureza. Enxerg-la em sua definio substantiva, por outro lado, aborda a

    economia como um processo de interao entre o homem e a natureza que

    possibilita um abastecimento regular de meios materiais para a satisfao de

    necessidades (Caill apud Frana Filho, 2007). Este sentido no s resgata a

    concepo aristotlica de economia como a prpria etimologia da palavra,

    reportando noo de cincia da boa gesto da casa (oiks), ou das condies

    materiais de existncia (Frana Filho, 2007, p.158). Em sntese, tal

    compreenso pode associar a idia de economia a toda forma de produo e

    11A economia mercantil est imbuda de grande legitimidade no mundo contemporneo,repercutindo nas dimenses da vida social e na maneira de conceb-la (Laville et al., 2006).

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    distribuio de riqueza, o que significa assumir o pressuposto de uma economia

    plural.Diante disso, Laville et al. (2006) sustentam que a economia moderna

    pode ser apreendida a partir de trs princpios de circulao de bens e servios:

    do mercado, da redistribuio e da reciprocidade. O princpio do mercado,

    marcado pela impessoalidade e pela equivalncia monetria, permite que a

    conexo entre ofertante e demandante se estabelea numa base contratual a

    partir de um clculo de interesse. A redistribuio, pautada pela verticalizao

    da relao de troca e por seu carter obrigatrio, compreende uma autoridade

    central (o Estado) que se apropria dos recursos a fim de reparti-los. J areciprocidade corresponde ao vnculo estabelecido entre grupos ou pessoas

    atravs de prestaes que manifestam o propsito de se instaurar um lao social.

    Pautado pela lgica da ddiva, esse ciclo se ope troca mercantil por ser

    indissocivel das relaes humanas, e se distingue da troca redistributiva por no

    estar submetido a um poder central.

    Reconhecendo a diversidade de princpios econmicos existentes,

    permite-se considerar a economia pela ponderao entre suas extremidades, que

    Laville et al. (2006) chamam de tripolaridade. Trata-se, nas palavras destesautores, de identificar no funcionamento da economia real, de um perodo e de

    um contexto dados, as modalidades de mobilizao dos diferentes princpios

    econmicos para caracteriz-la enquanto economia plural (Laville et al., 2006,

    p.14).

    A noo de economia plural permite ampliar o olhar sobre o econmico,

    enxergando alm da viso dominante que reduz seu significado idia de

    economia de mercado (Frana Filho, 2007). A partir dessa compreenso, as

    prticas de economia solidria podem ser abordadas como atividades que soempreendidas com o intuito de democratizao da economia, supondo para a sua

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    realizao uma subordinao do princpio do mercado s proposies da

    reciprocidade (Laville et al., 2006).O termo economia solidria, segundo Frana Filho (2002), identifica,

    enquanto conceito, uma srie de experincias organizacionais inseridas nas

    chamadas novas formas de solidariedade, que fazem aluso a iniciativas

    cidads no condizentes com as formas de solidariedade tpicas das sociedades

    tradicionais12.

    Originalmente, a concepo de economia solidria remete aos trabalhos

    de Jean Louis Laville e Bernard Eme os quais, atravs desse termo, procuraram

    retratar a emergncia e proliferao de formas organizativas que indicam ajuno das noes de iniciativa e solidariedade e a inscrio dessa ltima na

    composio de atividades econmicas. Enquanto fenmeno, a economia

    solidria est ligada problemtica da excluso social crescente e perspectiva

    de encontrar novas formas de regulao da sociedade atual (Frana Filho, 2002).

    Trata-se, na perspectiva de Lima (2001), de uma economia voltada para

    a satisfao das necessidades dos seres humanos, no sentido do bem estar de

    todos e para todos, vista como caminho para uma nova forma de ordenar a

    produo e distribuio de bens e servios na sociedade capitalista que, a partirda solidariedade, cria vnculos de organizao e de comunidade.

    De acordo com Gaiger (2006), as chamadas iniciativas solidrias contm

    um carter coletivo tanto na gesto e na posse dos meios de produo quanto no

    processo de trabalho, o que minimiza a presena de relaes assalariadas e

    provoca o envolvimento com as questes da cidadania. Tendo em comum esse

    aspecto, as experincias se apresentam sob formas diversas, variando em funo

    de seus protagonistas, suas origens e motivaes, suas atividades econmicas,

    entre outros elementos.

    12A organizao dessas sociedades est pautada na chamada solidariedade mecnica (Durkheim)ou socialidade comunitria (Weber), em que os laos so mecnicos, devendo-se s similitudesque os membros do grupo social compartilham (Quintaneiro, 2003).

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    Nas palavras de Lima (2001),

    a economia solidria fundamenta-se em organizaes sociais dotrabalho, caracterizadas por serem iniciativas associativas, nas quais oslaos solidrios constituem o princpio bsico. Em geral, prima-se pelano-mercantilizao das relaes de trabalho e fala-se em lucro social(Lima, 2001, p.1).

    Conforme Singer (2000), a economia solidria no provm de uma

    produo intelectual, embora muito de seu desenvolvimento se deva aos grandes

    pensadores e realizadores do cooperativismo no sculo XIX, mas advm de um

    processo contnuo gerado pelos trabalhadores em luta contra o capitalismo, de

    modo que para compreender sua lgica, fundamental considerar a crtica

    socialista e operria ao sistema em questo.

    Acima de tudo, o que a economia solidria condena a ditadura do

    capital sobre o trabalho e a crescente desigualdade entre os proprietrios dos

    meios de produo e aqueles que vendem a sua fora de trabalho. Tanto que

    estabelece suas bases sobre a propriedade e a gesto coletiva dos meios de

    produo e distribuio, recusando a diviso da sociedade em uma classe

    proprietria dominante e uma classe subalterna sem propriedade (Singer, 2005).

    Benini (2003) acredita que as razes e especificidades da economia solidria so

    determinadas pelo contexto histrico, uma vez que,

    questes referentes ao desenvolvimento econmico, desemprego,financeirizao da riqueza, organizao do trabalho, convergem para aproposta de construo de outras instituies e setores econmicos,pautados por outras lgicas e princpios (Benini, 2003, p.11).

    Os resultados desse processo histrico Singer (2000) sintetiza daseguinte forma:

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    a)

    homens e mulheres vitimados pelo capital organizam-se como

    produtores associados visando, alm de uma fonte de renda, areintegrar-se diviso social do trabalho;

    b)

    pequenos produtores de mercadorias, do campo e da cidade, se

    associam para comprar e vender em conjunto, visando a economias

    de escala, e eventualmente criam empresas de produo socializada;

    c)

    assalariados se associam para adquirir em conjunto bens e servios

    de consumo, visando a ganhos de escala e melhor qualidade de vida;

    d) pequenos produtores e assalariados se associam para reunir suas

    poupanas em fundos rotativos que lhes permitem obteremprstimos a juros baixos e eventualmente financiar

    empreendimentos solidrios;

    e) os mesmos criam tambm associaes mtuas de seguros,

    cooperativas de habitao, etc.

    Esse autor qualifica tais iniciativas como de cunho no-capitalista, pois

    so constitudas por pessoas excludas da posse dos meios sociais13 de

    produo e distribuio.A partir dessa juno, a economia solidria pode ser compreendida

    como um fenmeno que reveste diferentes formas de organizao onde os

    cidados agem em conjunto, seja para criar sua prpria fonte de trabalho, seja

    para ter acesso a bens e servios de qualidade, numa dinmica de reciprocidade

    que articula os interesses individuais aos coletivos (Roca, apud Tauile, 2002).

    A problematizao da economia solidria, contudo, requer uma

    apreenso de seus elementos constitutivos e da forma como se articulam em seu

    13De acordo com Singer (2005), os meios sociais de produo so aqueles que s podem seroperados coletivamente, e a concentrao da propriedade destes em poucas mos que caracterizao capitalismo. A propriedade privada de meios individuais de produo, ao contrrio, caracterizaa pequena produo de mercadorias, no o capitalismo, e os trabalhadores que possuem seusprprios meios de produo tendem a integrar a economia solidria.

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    contexto. Diante disso, Benini (2003) define a autogesto, a solidariedade e a

    sustentabilidade como aspectos que do sentido a essa proposta.A autogesto implica na forma como o trabalho organizado, ou seja,

    sem a existncia da relao patro-empregado. Cada membro do grupo , a um

    s tempo, scio e proprietrio, o que leva negao do trabalho como

    mercadoria e de