cartografia.inovaçãometodológica

Upload: igor-amorim

Post on 01-Mar-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    1/9

    Rev Tempus Actas Sade Col //203

    Wnia Regina Veiga Martines1

    Ana Lcia Machado2

    Luciana de Almeida Colvero3

    RESUMO

    O objetivo deste estudo divulgar a

    cartograa como importante inovador

    metodolgico na pesquisa em sade. O

    mtodo, originalmente descrito pelos lsofos

    franceses Gilles Deleuse e Flix Guattari ao

    nal da dcada de 1960, e cuja abordagem

    considerada relativamente nova quanto a seu

    uso na pesquisa qualitativa no Brasil , surge nos

    ltimos anos como proposta metolgica adotada

    por pesquisadores brasileiros. Na cartograa,

    a construo de mapas permite a captao dacomplexidade presente no campo e nos dados

    produzidos, que falam dos encontros entre

    prossionais, gestores, pacientes e familiares.

    Nesta perspectiva, a cartograa um modo de

    mapear a realidade, de acompanhar processos

    1Doutora em Cincias da Sade com ttulo pela Escolade Enfermagem da USP.2 Professora Associada da Escola de Enfermagem daUSP Departamento de Enfermagem Materno Infantil e

    Psiquitrica Enfermagem em Sade Mental .3 Professora Associada da Universidade de So Paulo,Escola de Enfermagem, Departamento de EnfermagemMaterno-Infantil e Psiquiatria .

    de produo, de possibilitar o acompanhamentode movimentos e intensidades dos sujeitos que

    compem a complexa produo de cuidados

    em sade.

    Palavras chave: Cartograa; Pesquisa

    qualitativa; Cuidados de sade.

    ABSTRACT

    The aim of this study is to promote the

    cartography as an important methodological

    innovation in health research. The method,

    originally described by the French philosophers

    Gilles Deleuze and Flix Guattari in the late

    1960s, and whose approach is considered

    a relatively new as to its use in qualitative

    research in Brazil, appears in recent years

    as a methodological proposed by Brazilian

    researchers. In cartography, the construction

    of maps enables the researchers to capture

    the complexity in eld and in the data

    produced, which regarding meetings between

    professionals, managers, patients and relatives.

    In this perspective, the cartography is the way

    of mapping reality by monitoring production

    processes in order to record movements and

    intensities of the subjects that make up the

    Temas Livres Tempus - Actas de Sade Coletiva

    A cartografa como inovao metodolgica na

    pesquisa em sade

    The cartography as a methodological innovation inhealth research

    La cartografa como innovacin metodolgica en lainvestigacin en salud

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    2/9

    204 // Rev Tempus Actas Sade Col

    complex production of health care.

    Key Words: Cartography; Qualitative

    research; Delivery of Health Care.

    RESUMEN

    El objetivo de este estudio es divulgar la

    cartografa como una importante innovacin

    metodolgica en la investigacin en salud.

    El mtodo, descrito originalmente por los

    lsofos franceses Gilles Deleuze y Flix

    Guattari en nales de la dcada de 1960, y cuyo

    enfoque se considera relativamente nuevo en

    cuanto a su uso en la investigacin cualitativa

    en Brasil, en los ltimos aos aparece como

    una propuesta metodolgica adoptada por los

    investigadores brasileos. En la cartografa,

    la construccin de mapas permite la captacin

    de la complejidad de este campo de estudio

    y en los datos producidos, que hablan de los

    encuentros entre profesionales, gestores,

    pacientes y familiares. En esta perspectiva, lacartografa es una forma de realizar mapas

    de la realidad, de acompaar los procesos de

    produccin, de posibilitar el acompaamiento

    de los movimientos y las intensidades de los

    sujetos que componen la compleja produccin

    de los cuidados en salud.

    Palabras Clave: Cartografa; InvestigacinCualitativa; Prestacin de Atencin de Salud.

    INTRODUO

    Cartograa, cartografar. Do que estamos

    falando ?

    A cartograa tradicional volta-se como arte,

    tcnica e cincia, elaborao de mapas, cartase outras formas de expresso ou representao

    de objetos, fenmenos e ambientes fsicos

    e socioeconmicos, em uma tentativa do

    homem conhecer o mundo que habita1. Mas

    a construo de mapas pode tambm permitir

    a visualizao da distribuio espacial e

    temporal de uma doena em uma populao

    especca, no que diz respeito ao processo de

    vigilncia epidemiolgica, onde necessria

    a implementao de medidas de preveno

    e controle de casos, por exemplo, de evento

    infecto-contagioso na tuberculose2.

    Por sua vez, o procedimento de cartografar

    aqui proposto, baseado nos princpios da

    esquizoanlise3

    , possibilita o mapeamentode paisagens psicossociais, o mergulho na

    geograa dos afetos, dos movimentos, das

    intensidades.

    Considerada como uma abordagem

    relativamente nova quanto a seu uso na

    pesquisa qualitativa no Brasil, a cartograa

    vem sendo usada como proposta metodolgica

    por pesquisadores brasileiros. Na rea da

    sade, especicamente, temos importantes

    trabalhos produzidos por pesquisadoras da rea

    da Enfermagem4-9.

    Nos ltimos 6 anos, o mtodo da

    cartograa tanto vem norteando trabalhos de

    iniciao cientca, mestrado e doutorado

    conduzidos pelas autoras deste manuscrito,quanto subsidiando discusses (e produes

    acadmicas) de grupos de estudo e pesquisa

    relacionados produo de cuidados em sade,

    como o Grupo de Pesquisas da Subjetividade

    em Sade da Escola de Enfermagem da

    Universidade de So Paulo, que se reune

    mensalmente. Ao longo deste perodo

    portanto, a pesquisa bibliogrca permanente

    pela busca de obras e autores que pudessem

    aprimorar a compreenso e o uso prtico deste

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    3/9

    Rev Tempus Actas Sade Col //205

    mtodo na pesquisa qualitativa e a riqueza

    dos materiais tericos, das experincias em

    campo e da participao em congressos de

    pesquisa qualitativa, motivaram-nos a reunir e

    divulgar, neste trabalho, a cartograa e a gama

    de possibilidades que ela traz, enquanto uma

    inovao para a produo de conhecimento na

    rea da sade.

    A ORIGEM DO MTODO

    Criada por Gilles Deleuze e Flix Guattari

    ao nal da dcada de 1960, a cartograa nasce

    com a esquizoanlise, tambm denominada de

    losoa da diferena, clnica da diferena10.

    Alimenta-se de teorias loscas e imagens da

    literatura, pintura, cinema e msica. Nela, as

    noes de inconsciente e de subjetividade so

    reconstrudas. O inconsciente, afastando-se da

    teoria psicanaltica, compreendido como uma

    mquina de produo que opera no social, no

    presente (composies atuais), atravessando

    os sujeitos, seus territrios e suas relaes.

    Segundo Diniz (2008), a subjetividade no

    se remete a um eu, polifnica, mltipla.

    Assim, identidades e trajetrias entregam-

    se ao movimento permanente de (des)

    territorializao e (re)territorializao,

    utilizando-se da noo de devir como uma

    abertura ao inacabado11.

    Embora o mtodo da cartograa tenha sido

    descrito como um dos princpios do rizoma, que

    por denio : o que est enraizado12, os autores

    o concebem como um sistema mais complexo,

    diferenciado, comformas muito diversas, desde

    sua extenso supercial ramicada em todos

    os sentidos at suas concrees em bulbos e

    tubrculos... H o melhor e o pior no rizoma:

    a batata e a grama, que a erva daninha. E

    para melhor compreender esta noo vamos

    destacar algumas caracteristicas da estrutura

    rizomtica por eles descritas10:

    1 e 2 ) princpio de conexo e

    heterogeneidade: qualquer ponto do rizoma

    liga-se a outro, em tramas, em conectividade,

    sem uma ordem estabelecida de comeo e m,

    entre elementos heterogneos; 3) princpio da

    multiplicidade: inexiste a condio de unidade

    (o sujeito no uno, o objeto no uno). Com

    a ausncia de pontos ou posies hierrquicas,

    como em uma rvore ou raiz, h somente

    linhas, situadas num plano; 4) princpio da

    ruptura a-signicante: orizoma pode serrompido em qualquer lugar e tambm se

    reconstitui em qualquer lugar, em suas linhas.

    Possui linhas de segmentaridade, com alguma

    espcie de organizao e territorializao, mas

    tambm as linhas de desterritorializao, de

    fuga. As linhas de fuga fazem parte do rizoma.

    Por isso, afasta-se desta ideia a dicotomia

    bom-mau. 5 e 6) princpio da cartograa e de

    decalcomania: o rizoma no segue um modelo

    estrutural ou gerativo. Ele afasta a existncia

    de eixo gentico ou estrutura profunda, como

    no decalque, que segue a ordem da reproduo,

    daquilo que j est dado por uma estrutura ou

    eixo.

    Diferentemente do rizoma, os sistemas

    arborescentes, que so sistemas hierrquicos nosquais residem centros de signicncia, poder,

    subjetivao, memrias organizadas e centros

    de comando; inuenciaram muito o pensamento

    ocidental em vrias reas do conhecimento.

    Entretanto, preciso compreender que rizomas

    e sistemas arborescentes no vivem isolados

    um do outro, existem ns de arborescncia nos

    rizomas, empuxos rizomticos nas razes10

    .

    Armam tambm sobre a provisoriedade do

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    4/9

    206 // Rev Tempus Actas Sade Col

    mapa: o rizoma se refere a um mapa que deve

    ser produzido, construdo, sempre desmontvel,

    conectvel, reversvel, modicvel, com

    mltiplas entradas e sadas, com suas linhas de

    fuga... todo tipo de devires...10Sobreposio de

    heterogneos, desmanchamento e surgimento

    de intensidades. Provisoriedades. O cartgrafo

    ento, ao esboar o mapa, procura prestar

    ateno s mltiplas entradas e sadas que as

    expresses dos sujeitos desenham em seus

    gestos e narrativas. Conectividades. Devires.

    No h dvidas de que a produo de cuidados

    em sade (consequentemente, a pesquisa emsade) esteja em contato permanente com tais

    fenmenos, em decorrncia da caracterstica

    complexa que a constitui. Assim, mapas

    igualmente complexos, podem ser esboados

    para retratar a realidade, onde trabalhadores,

    gestores, pacientes e familiares transitam com

    suas aes, intenes e necessidades.

    A CARTOGRAFIA COMO PROPOSTA

    METODOLGICA NO PROCESSO DE

    PRODUO DA SUBJETIVIDADE

    Partindo da reexo sobre a produo

    de cincia, observamos a necessidade de

    formalizao, mesmo diante de fenmenos

    volteis que tratam da ordem da emoo e do

    sentimento, que se inscrevem em movimentoscontinuamente dinmicos de recriao e

    variao13. Se por um lado, as simplicaes

    metodolgicas e a superestruturao podem

    eventualmente, empobrecer a captao da

    realidade; por outro, o mtodo na pesquisa

    qualitativa, no pode ser banalizado. Ele deve

    existir de forma a atender s exigncias em

    funo do objetivo denido. A abordagem

    qualitativa portanto, permite a identicao

    de nuanas de intensidade e essncia ao longo

    da extenso do fenmeno. Lembrando-se

    sobretudo, que cartografar a tarefa de dar

    lngua para afetos que pedem passagem, de

    mergulhar nas intensidades3.

    Ao problematizar o uso de mtodo,

    referencial terico e procedimentos tcnicos

    na perspectiva cartogrca3, torna-se claro

    que no possvel deni-los, uma vez que

    os procedimentos devem ser captados pelo

    cartgrafo em funo do contexto. Para aliviar

    a possvel sensao de susto do leitor diante de

    tal ideia, preciso dizer que no h o desejo

    de suprimi-los. Deve haver um planejamentopr-organizado e a inteno de revisar os

    procedimentos, sempre que necessrio, no

    decorrer da progresso da pesquisa, em razo

    do perodo de permanncia do pesquisador

    em campo. Tempo este atravessado

    continuamente por descobertas, impedimentos,

    novas percepes e, consequentemente,

    redirecionamentos.

    A cartograa surge como um modo de

    acompanhar percursos, de implicar processos

    de produo, de perceber as conexes de redes

    ou rizomas, de possibilitar o acompanhamento

    de movimentos e a construo de mapas. As

    entradas de uma cartograa so mltiplas, pois

    o rizoma no tem um centro de organizao,

    um sistema acntrico. Assim, a realidade concebida como um mapa mvel e nele nada se

    decalca14, nada se copia, se imita ou se plagia12.

    No entanto, preciso diferenciar o mapa do

    decalque10: um mapa tem mltiplas entradas,

    contrariamente ao decalque que volta sempre

    ao mesmo. Um mapa uma questo de

    performance, enquanto que o decalque remete

    sempre a uma presumida competncia. Esta

    performance depende (e muito) da qualidade

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    5/9

    Rev Tempus Actas Sade Col //207

    atencional do cartgrafo, como tambm da

    qualidade perceptiva e cognitiva, elementos

    que dizem respeito a um tipo de sensibilidade

    que possui - ou passa a possuir - diante da

    tarefa de olhar, discriminar e registrar.

    tambm preciso deixar a sensibilidade ligada

    para perceber as pistas!

    A cartograa portanto, prope uma

    reverso metodolgica no sentido de afastar-

    se de um conjunto de regras previamente

    estabelecidas, que so substitudas por pistas,

    na inteno de compor mapas. Implicado

    com o acompanhamento de processos emovimentos, o cartgrafo no se afasta

    do rigor do mtodo, mas abre-se para sua

    ressignicao. A preciso est relacionada

    ao interesse, compromisso e implicao14. A

    cartograa no intenciona isolar o objeto ou o

    fenmeno estudado, pelo contrrio, valoriza a

    rede de foras ao qual ele est conectado, no

    que diz respeito s suas articulaes histricas

    e conexes com o mundo, em um movimento

    dinmico e permanente15.

    As pistas, por sua vez, servem como

    referncia, como oportunidade de calibragem,

    durante o percurso da investigao14, o que

    sustenta o processo em uma condio de

    plasticidade, uma vez que o carter inventivo

    coloca a cincia em constante movimento detransformao, no apenas refazendo seus

    enunciados, mas criando novos problemas e

    exigindo prticas originais de investigao.

    nesse contexto que surge a proposta do

    mtodo da cartograa, que tem como desao

    desenvolver prticas de acompanhamento

    de processos inventivos e de produo de

    subjetividades15

    .

    O processo possui dois sentidos: o de

    processamento, e o de processualidade15.

    Processamento no qual o conhecimento

    baseado na teoria da informao. A pesquisa

    vista como o ato de coletar e analisar

    informaes: so colocados entre parnteses os

    fatores extracognitivos, ou seja, a relao que

    o fenmeno tem com a histria, o socius e o

    plano dos afetos. A processualidade nos coloca,

    segundo as autoras, no corao da cartograa.

    Ana-se com a investigao de processos de

    produo da subjetividade, de processos em

    curso, nos quais o cartgrafo comea pelo

    meio, entre pulsaes.

    O caminho da pesquisa cartogrca

    pressupe que os momentos de produo,

    anlise e discusso de dados aconteam

    simultaneamente, como o ato de caminhar,

    que constitudo por passos que se sucedem

    sem se separar, em um movimento contnuo,

    desenhado pelo anterior e pelo que vem

    em seguida. A tnica da processualidade

    est igualmente presente no momento da

    escrita15. Neste sentido, o leitor (da pesquisa)

    convidado a partilhar preocupaes, desejos

    e variaes de velocidade. Ritmos que se

    alternam, sobretudo, nos rituais de avano

    e recuo. Uma viagem com roteiro mais ou

    menos denido, mas, que inuenciada pelos

    elementos do entorno: instituies, pessoas,

    acontecimentos, contextos, possibilidades e

    interdies. Prprios de um cotidiano vivo,

    pulsante.

    A etapa de produo de dados procura

    escapar da ideia de coleta, de extrativismo.

    Ela acontece desde o incio, no contato com

    o territrio a ser cartografado, em conjunto

    com sujeitos, foras e ritmos. Isso signicaque no um processo vivido solitariamente

    pelo pesquisador, tomando-se por base que o

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    6/9

    208 // Rev Tempus Actas Sade Col

    conhecimento que se produz no resulta da

    representao de uma realidade pr-existente.

    Informaes, saberes e expectativas precisam

    ser deixados na porta de entrada, e o cartgrafo

    deve pautar-se sobretudo numa ateno

    sensvel, para que possa, enm, encontrar

    o que no conhecia, embora j estivesse ali,

    como virtualidade16.

    imprescindvel enfatizar que no o

    ponto de vista do cartgrafo que estabelece

    composies. A inveno se d atravs do

    cartgrafo, mas no por ele, pois no h agente

    da inveno, portanto, sua ateno sensvel instrumento, que deve servir construo

    processual. Alm disso, adotando uma

    poltica construtivista, a ateno do cartgrafo

    acessa elementos processuais do territrio

    matrias uidas, foras tendenciais, linhas em

    movimento bem como fragmentos dispersos

    nos circuitos folheados da memria. Tudo isto

    entra na composio de cartograas. Nesta

    perspectiva, a produo de dados percorre

    toda a pesquisa de campo e continua alm, nas

    etapas que se sucedem: a anlise dos dados, a

    escrita do texto, a publicao dos resultados,

    incluindo a circulao do material escrito

    e a leitura dos interessados, sem falar na

    contribuio dos participantes da pesquisa na

    produo coletiva do conhecimento16.

    Sugere-se que o cartgrafo leve no bolso um

    critrio, um princpio, uma regra e um breve

    roteiro de preocupaes. Nesta concepo, o

    critrio seria o grau de abertura para a vida,

    que cada um se permite a cada momento.

    O princpio, a adoo de uma postura de

    extramoralidade, que permita a expanso da

    vida, para que esta encontre canais de efetuao. possvel que haja necessidade de mudanas

    de princpios, sempre que as pulsaes da vida

    mostrarem-se cercadas, impedidas. Quanto

    regra, deve dar elasticidade a seu critrio e

    a seu princpio, um limite de tolerncia para

    a desorientao e a reorientao dos afetos,

    um limiar de desterritorializao. O roteiro de

    preocupaes deve ser criado tendo por base a

    ao em nome da vida. Desse modo, a prtica

    do cartgrafo est relacionada s estratgias

    das formaes do desejo no campo social,

    ou seja, como o social se expressa, como se

    inventa, como se espalha em intensidades e

    compe novos mundos. A prtica do cartgrafo

    poltica, da esfera da micropoltica, quando

    das estratgias de produo de subjetividade3.

    A leitura do material obtido, a anlise dos

    achados e a composio da discusso podem

    ser guiadas por aquilo que denominado

    de gestos atencionais, uma das pistas que a

    cartograa lana.

    O carter inventivo do mtodo cartogrco

    necessita que a ateno do cartgrafo seja

    ativada, como uma ateno espreita

    utuante, concentrada e aberta. A ateno

    no um simples dispositivo para a seleo de

    informaes: tomar o mundo como fornecendo

    informaes prontas para serem apreendidas

    uma poltica cognitiva realista; tom-

    lo como uma inveno, como engendrado

    conjuntamente com o agente do conhecimento, um outro tipo de poltica, que denominamos

    construtivista. Consequentemente h que se

    desativar ou inibir a ateno seletiva, que,

    em geral, domina o funcionamento cognitivo

    do pesquisador. Compreende-se por seletiva

    aquela ateno que funciona pela via do

    interesse e est aplicada na ao16.

    Seguindo um vis construtivista, busca-se

    uma ateno concentrada sem focalizao. Que

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    7/9

    Rev Tempus Actas Sade Col //209

    esteja aberta captao do inesperado. Podem

    surgir fragmentos de experincias, em um

    primeiro momento sem sentido imediato, mas,

    que indicam que h uma processualidade em

    curso16, pois h acontecimentos em um uxo,

    ou vrios uxos: a ateno se desdobra na

    qualidade de encontro, de acolhimento... signos

    so acolhidos numa atitude atencional de ativa

    receptividade com as experincias... com o

    inesperado... com o elemento problemtico.

    Tomando-se por eixo prtico a concentrao

    sem focalizao, assumida como uma sintonia

    na com o problema, onde se procura evitaras interferncias relacionadas a saberes,

    representaes e experincias anteriores;

    podemos encontrar quatro variedades ou gestos

    atencionais do cartgrafo: o rastreio, o toque, o

    pouso e o reconhecimento atento16.

    O rastreio a varredura na direo de

    uma meta ou alvo mvel: para o cartgrafo

    importante a localizao de pistas, de

    signos, de processualidade. Rastrear

    tambm acompanhar mudanas de posio, de

    velocidade, de acelerao, de ritmo, atingindo

    uma espcie de ateno movente, imediata e

    rente ao objeto-processo16.

    O toque, renado por meio de uma

    percepo hptica, que segundo Deleuze deveser diferenciada da percepo tica. A tica

    organiza o campo em gura e fundo, enquanto

    a hptica coloca estes dois componentes lado a

    lado, em um mesmo plano. Olhos, ouvidos ou

    outros rgos so chamados a funcionar para

    tatear, explorar e rastrear aquilo que ainda no

    se sabe ao certo o que . O toque pode ocorrer

    em vrios graus de intensidade, pode demandar

    tempo e, sobretudo, pode seguir as mltiplas

    entradas que um mesmo plano pode sugerir.

    Ele vem ajudar a explorar assistematicamente

    o terreno, at que a ateno seja tocada por

    algo16.

    O pouso o gesto que indica a possibilidade

    de uma parada para se proceder a uma espcie de

    zoom, na perspectiva de certo enquadramento

    no campo perceptivo que no deve ser

    confundido com um gesto de focalizao, mas,

    que indica um trabalho mais no e preciso por

    meio da magnitude e da intensidade16.

    O reconhecimento atento, referencial

    emprestado de Bergson, caracterizado

    por ser capaz de nos reconduzir ao objeto

    para destacar seus contornos singulares.

    Este gesto atencional ocorre sob a forma de

    circuitos, com expanso da percepo e da

    cognio, possibilitando a desconstruo da

    noo tradicional de reconhecimento, como

    aquela que produz reencontros com imagens

    ou esquemas anteriormente conhecidos, num

    processo marcado pela adio, pela linearidade

    nos encadeamentos. Neste caso, a percepo

    no segue um caminho associativo operando

    por adies sucessivas e lineares. Atravs

    da ateno, ela aciona circuitos, afastando-

    se do presente em busca de imagens e sendo

    novamente relanada imagem atual, que

    progressivamente se transforma. O tecido da

    memria comporta um folheado, assim como odo objeto, que se refaz a cada instante16.

    A dinmica atencional nos ajuda a pensar que

    o conhecimento produzido por meio do mtodo

    cartogrco no resulta da representao

    de uma realidade preexistente. Ao contrrio,

    surge como composio, como um trabalho

    de inveno, lembrando mais uma vez que a

    inveno se d atravs do cartgrafo, mas no

    por ele, pois no h agente da inveno, no

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    8/9

    210 // Rev Tempus Actas Sade Col

    h decalque16.

    CONSIDERAES FINAIS

    O intuito principal deste trabalho contribuir

    para a disseminao do mtodo cartogrcocomo importante recurso voltado produo

    de pesquisas e consequente produo de

    conhecimento, complexicando o olhar e o

    pensar sobre os fenmenos bio-psico-sociais,

    os sujeitos, as instituies e as polticas de

    sade vigentes.

    Assim, procuramos ao longo desta reexo,

    explorar o carter inovador da cartograa

    como uma via de passagem para intensidades,

    afetos e experincias presentes na produo

    de cuidados em sade. Produo esta que

    construda, frequentemente, sob a perspectiva

    do rizoma, dos pontos de conectividade entre

    sujeitos, quer sejam prossionais, usurios,

    familiares ou demais personagens que ocupam

    o vasto territrio do cuidar.

    preciso registrar que o olhar do pesquisador,

    ainda que munido de recursos poderosos e

    atentos, est longe de ser completo, preciso,

    acabado. O pensar cartogrco estimula esta

    premissa.

    preciso enfatizar tambm que o mapa,

    contrariamente ao decalque, deve ter mltiplas

    entradas e sadas, possibilitando uma certa

    liberdade em agregar contedos e optar pelo

    aprofundamento de algumas discusses

    especcas. Uma vez que o mapa mvel

    um sistema acntrico, conexes das mais

    heterogneas podem ser feitas de acordo com

    contextos e descobertas aqui e acol, em ato.

    Reforamos ainda a idia do sentido de

    processualidade na cartograa, na qual o

    cartgrafo est em contato permanente com as

    pulsaes do campo de pesquisa. Ele chega,

    permanece e sai daquele territrio em constante

    movimento, o que faz do mapa um recorte

    provisrio vivo, sujeito transformaes

    contnuas.

    Aproximando-se a pesquisa cartogrca

    condio de rizoma, no cabem aqui

    concluses denitivas, da mesma forma que

    um rizoma no se conclui. Conserva-se ento

    sua condio de provisoriedade. O mapa est

    sujeito a elementos que podem agir sobreele, modicando-o, redesenhando-o em sua

    aparncia e essncia.

    REFERNCIAS

    1. Instituto Brasileiro de Geograa e

    Estatstica (IBGE). Noes bsicas de

    cartograa [acessado em 13 ago 2008].

    Disponvel em: http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/manual_nocoes/

    indice.htm.

    2.Hino P, Villa TCS, Sassaki CM, Nogueira

    JA, Santos CB. Geoprocessamento aplicado

    rea da sade. Rev. Latino-Am. Enfermagem

    2006 novembro-dezembro; 14(6): 939-43

    [acessado em 03 mar 2012]. Disponvelem: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n6/pt_

    v14n6a16.pdf

    3. Rolnik S. Cartograa sentimental:

    transformaes contemporneas do desejo. 1

    ed. Porto Alegre: Editora Sulina Editora da

    UFRGS; 2007. 247 p.

    4. Fortuna CM. Cuidando de quem cuida notas cartogrcas de uma interveno

  • 7/25/2019 cartografia.inovaoMetodolgica

    9/9

    Rev Tempus Actas Sade Col //211

    institucional na montagem de uma equipe

    de sade como engenhocamutante para a

    produo de vida [tese de doutorado]. [Ribeiro

    Preto -SP]: Escola de Enfermagem de Ribeiro

    Preto, Universidade de So Paulo; 2003. 197p.

    5.Matumoto S. Encontros e desencontros

    entre trabalhadores e usurios na sade em

    transformao: um ensaio cartogrco do

    acolhimento [tese de doutorado]. [Ribeiro

    Preto -SP]: Escola de Enfermagem de Ribeiro

    Preto, Universidade de So Paulo; 2003. 186p.

    6.Caapava JR. A produo do cuidado em

    sade mental na Ateno Bsica Sade: um

    olhar dos trabalhadores sobre o acolhimento

    [dissertao - mestrado]. [So Paulo -SP]:

    Escola de Enfermagem, Universidade de So

    Paulo; 2008. 173p.

    7. Gonales CAV. Cotidiano de Cuidados

    pessoa com depresso na ps-modernidade:

    uma cartograa [tese de doutorado]. [So Paulo-SP]: Escola de Enfermagem, Universidade de

    So Paulo; 2009. 209p.

    8. Colvero LA. Fragmentos de uma

    rede de lugares e movimento: o cuidado

    em sade mental na ateno bsica [tese

    livre-docncia]. [So Paulo SP]: Escola de

    Enfermagem, Universidade de So Paulo;2010. 124p.

    9.Martines WRV. O cotidiano da produo

    de cuidados em sade mental e a produo de

    prazer: uma cartograa [tese de doutorado].

    [So Paulo -SP]: Escola de Enfermagem,

    Universidade de So Paulo; 2011. 212p.

    10. Deleuze G, Guattari F. Mil plats:capitalismo e esquizofrenia. Vol.1. 1 ed.

    Guerra Neto A, Costa CP, tradutores. So

    Paulo: Editora 34; 1995. 96p.

    11. Dinis NF. A esquizoanlise: um olhar

    oblquo sobre corpos, gneros e sexualidades.

    Sociedade e cultura 2008; 11(2): 355-61.

    12. Ferreira ABH. Dicionrio Aurlio da

    lngua portuguesa. 5 ed. Curitiba: Editora

    Positivo; 2010. 2272p.

    13.Demo P. Pesquisa qualitativa: busca de

    equilbrio entre forma e contedo. Rev. Latino-

    Am. Enfermagem 1998 abril; 6(2): 89-104

    [acessado em 28 mai 2008]. Disponvel em:

    http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-

    11691998000200013&script=sci_arttext

    14. Passos E, Kastrup V, Escssia L.

    Apresentao. In: Passos E, Kastrup V, Escssia

    L. Pistas do mtodo da cartograa: pesquisa-

    interveno e produo de subjetividade. 1 ed.

    Porto Alegre: Editora Sulina; 2010. p.7-16.

    15. Barros LP, Kastrup V. Cartografar

    acompanhar processos. In: Passos E,

    Kastrup V, Escssia L. Pistas do mtodo da

    cartograa: pesquisa-interveno e produo

    de subjetividade. 1 ed. Porto Alegre: Editora

    Sulina; 2010. p. 52-75.

    16.Kastrup V. O funcionamento da atenono trabalho do cartgrafo. In: Passos E,

    Kastrup V, Escssia L. Pistas do mtodo da

    cartograa: pesquisa-interveno e produo

    de subjetividade. 1 ed. Porto Alegre: Editora

    Sulina; 2010. p. 32-51.

    Artigo apresentado em: 17/04/2013Artigo aprovado em: 13/08/2013

    Artigo publicado no sistema em: 13/09/2013