cartilha cartografia social

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Cartografia Social e Populações Vulneráveis Oficina do Eixo Erradicação da Miséria Facilitadora: Adryane Gorayeb, professora e pesquisadora do Laboratório de Geoprocessamento (Labocart) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Apoio: Fundação Banco do Brasil Fevereiro de 2014

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Manual de cartografia social

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  • Cartografia Social e Populaes Vulnerveis

    Oficina do Eixo Erradicao da Misria

    Facilitadora: Adryane Gorayeb, professora e pesquisadora do Laboratrio de Geoprocessamento (Labocart) da Universidade

    Federal do Cear (UFC).

    Apoio: Fundao Banco do Brasil

    Fevereiro de 2014

  • Sumrio

    Apresentao

    1 O que cartografia social?

    2 - Como so feitos os mapas sociais?

    3 O uso dos mapas na defesa dos interesses de populaes tradicionais

    4 - Exemplos de cartografia social

    5 - Fontes

  • Apresentao

    Num mundo cada vez mais conectado, com GPS (Sistema de Posicionamento Global)[1], Google Maps e outras ferramentas que facilitam a localizao espacial, as comunidades querem estar no mapa. Um exemplo disso aconteceu na ndia. Crianas moradoras de Rishi Aurobindo Colony, uma favela de Calcut que no aparecia no Google Maps, se uniram, coletaram dados sobre os moradores, as pequenas cabanas de tijolos, as ruas movimentadas, os templos espalhados, as rvores e as bombas de gua que formavam o bairro, e criaram um mapa colorido, desenhado mo, de sua comunidade.

    Porm, mais do aparecer no Google Maps, o que tem motivado diversas comunidades a mapear seus territrios fato de perceberem ser esse mais um instrumento para defender seus direitos; assegurar seu territrio; proteger seu patrimnio socioeconmico e cultural; reivindicar melhorias na qualidade de vida.

    Depois de mapear sua comunidade, as crianas de Calcut resolveram usar o mapa que criaram para organizar uma campanha de vacinao contra a poliomielite. Com a ajuda de um projeto da Universidade de Columbia, conseguiram aumentar em 80% o nmero de crianas vacinadas.

    No Brasil, a utilizao da cartografia social j bastante significativa na Amaznia e tem se expandido para outras regies, como estratgia para firmar direitos territoriais. H diversos exemplos de transformao de demandas sociais em polticas pblicas, por meio da utilizao de diferentes processos de mapeamento participativo, garantindo o reconhecimento de demandas de diversos tipos de comunidades, como quilombolas, pesqueiras, extrativistas, e de periferias.

    Os professores Adryane Gorayeb e Jeovah Meireles, do Laboratrio de Geoprocessamento (Labocart), da Universidade Federal do Cear (UFC), explicam que um grupo no pode ser compreendido sem o seu territrio, no sentido de que a identidade sociocultural das pessoas est, invariavelmente, ligada aos atributos da paisagem. Da, a importncia da demarcao e caracterizao espacial de territrios, especialmente daqueles em disputa, de grande interesse socioambiental, econmico e cultural, ou com vnculos ancestrais e simblicos.

    Esta cartilha visa apenas introduzir o assunto, apresentando alguns conceitos bsicos sobre o tema. Sugerimos que leiam a bibliografia bsica da oficina e consultem a bibliografia indicada para aprofundar seu conhecimento.

    Boa leitura!

    --------------

    [1] O GPS um sistema de posicionamento que utiliza satlites para indicar ao usurio sua posio exata usando um sistema de coordenadas conhecidas, tal como latitude e longitude.

  • 1 O que cartografia social

    O professor Henri Acselrad, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ), explica que, na modernidade, os mapas foram elaborados originalmente para facilitar e legitimar as conquistas territoriais, definir o Estado como uma entidade espacial e construir nacionalismos ps-coloniais. A sociedade nunca teve a oportunidade de construir seus mapas, suas cartografias. As bases cartogrficas e os mapas geralmente so produzidos por tcnicos especializados, sob o interesse de instituies pblicas e privadas (ASCERALD, 2011).

    No entanto, diversas iniciativas de mapeamento que se propem a incluir populaes locais nos processos de produo de mapas disseminaram-se, em todo o mundo, especialmente a partir dos anos 1990. Assim, moradores de comunidades tradicionais ou que ocupam territrios onde existem conflitos tm produzido seus prprios mapas, retratando seu cotidiano, suas referncias, numa base cartogrfica (UFPA, s.d.).

    Por meio do mapeamento social, busca-se dar voz e visibilidade s diversas categorias sociais, como s mulheres quebradeiras de coco, ribeirinhos, homossexuais, quilombolas, indgenas, faxinalenses, artesos, extratores, pescadores, seringueiros, castanheiros, carvoeiros, etc. Esses grupos populacionais veem na cartografia uma maneira de expor seus processos de territorializao e sua identidade (UFPA,s.d.). Com o

    apoio de sindicatos, associaes, movimentos, cooperativas, esses grupos tm utilizado o mapa social como forma de afirmar direitos territoriais em diferentes contextos (ASCERALD, 2011).

    Mapa social X mapa tradicional

    Em vez de informaes tcnicas, o mapa social apresenta o cotidiano de uma comunidade. No mapa so colocados localidades, rios, lagos, cemitrios, casas, igaraps, grotas independentemente de seu tamanho ou condio. Mapea-se tambm mobilizaes sociais, descrevendo-as e georreferenciando-as com base no que considerado relevante pelas prprias comunidades estudadas (UFPA, s.d.; ASCERALD, 2008).

    A professora Rosa Acevedo Amorim, do Ncleo de Altos Estudos Amaznicos da Universidade Federal do Par (NAEA/ UFPA), explica que as populaes tradicionais dificilmente conseguem visualizar na cartografia oficial seu territrio e suas demandas, pois h um vazio de informao sobre estes grupos, suas histrias, suas experincias, suas formas de trabalho, seus modos de existncia coletiva. A cartografia social prope-se apresentar esses elementos, fazendo emergir a autoconscincia do grupo e a construo e o desenvolvimento de identidades prprias, explica (UFPA, s.d.).

  • Territrio gerador de identidade

    Os professores Adryane Gorayeb e Jeovah Meireles, do Laboratrio de Geoprocessamento da Universidade Federal do Cear (Labocart/ UFC), explicam que a Cartografia Social constitui-se como um ramo da cincia cartogrfica que trabalha, de forma crtica e participativa, com a demarcao e a caracterizao espacial de territrios em disputa, de grande interesse socioambiental, econmico e cultural, com vnculos ancestrais e simblicos (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Segundo eles, a ocupao do territrio vista como algo gerador de razes e identidade: um grupo no pode ser compreendido sem o seu territrio, no sentido de que a identidade sociocultural das pessoas est, invariavelmente, ligada aos atributos da paisagem. Nessa perspectiva, os territrios das comunidades tradicionais se caracterizam por serem, mais fortemente, ligados ao campo simblico, e no simplesmente s relaes de poder, propriedade ou controle poltico da hegemonia econmica circundante. Ou seja, o sentimento de pertencimento terra, histria, s lutas, identidade, s prticas, s vivncias, aos rituais, entre outros, se aglutinam formando uma conjuntura legitimadora dos territrios vividos (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Surgimento do conceito no Brasil

    No Brasil, o conceito de cartografia social surge, no incio da dcada de 1990, com o Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia, coordenado pelo professor Alfredo Wagner, atualmente na Universidade do Estado do Amazonas. Este projeto obteve experincias de mapeamento social realizadas na rea do Programa Grande Carajs, projeto de explorao mineral iniciado em 1980 pela Empresa Vale S.A., na Amaznia Legal, numa rea correspondente a um dcimo do territrio brasileiro (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Esse territrio amaznico que antes era ocupado por atividades extrativistas (borracha e castanha), pesca, coleta de frutos e agricultura de subsistncia, seria demarcado pelo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), a partir de uma viso capitalista segmentada, cartesiana e individualista, por meio da consolidao de assentamentos rurais. Nesse contexto, a elaborao de mapas que representassem o conhecimento espacial tradicional e coletivo da terra, demonstrando que os usos diversos do territrio no estavam associados aos limites exatos e geomtricos de determinado terreno e sim a um uso coletivo e multifacetrio, foi fundamental para a elaborao de polticas fundirias e ambientais nacionais, com a discusso de legislaes, a elaborao de planos de uso, de manejo e de gesto territorial, e a criao de Reservas Extrativistas (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Os mapeamentos, na maior parte das vezes, acontecem em contextos de conflito, como lutas territoriais e ambientais, nas quais as comunidades, se sentindo ameaadas, comeam a construir a sua representao do territrio, que, em geral, entra em conflito com a territorialidade privada, dos grandes projetos do agronegcio, das grandes mineradoras, dos projetos de hidreltricas, etc. (ACSELRAD, 2014a).

    De acordo com Acselrad (2013), os atores da cartografia social tentam afirmar identidades e territorialidades que julgam estarem ameaadas pelo projeto desenvolvimentista hegemnico. Segundo ele, no perodo de 1992 a 2012, h o registro de 284 experincias denominadas por seus promotores de cartografia social ou de mapeamento participativo,

  • no Brasil. A maior parte deles ligados luta por reconhecimento territorial (42%) e a projetos etno-ecolgicos ou de manejo ambiental (38%).

    Quem mapeia quem

    Um aspecto importante sobre a elaborao dos mapas, segundo Acselrad (2013), saber quem mapeia quem. Muitas vezes so atores externos como ONGs, entidades ambientalistas, antroplogos que convidam os ocupantes de um determinado territrio para participar da elaborao de seus mapas, mas os prprios sujeitos tm questionado se devem participar de mapeamentos conduzidos por terceiros, em processos nos quais no tm autonomia. As atores, cada vez mais, entendem que elas prprios devem conduzir o processo de mapeamento de seus territrios.

    Participao

    Sob uma perspectiva dos direitos humanos, a participao poderia ser entendida como o direito de participar na tomada de decises e o direito liberdade de expresso, o acesso informao e a liberdade de associao. Visto desta perspectiva, a participao implica ir alm e acima do nvel local de processo de consulta para garantir a participao dos agentes sociais nos mais amplos sistemas de tomada de deciso formais e informais. Isso inclui ampliar e representar as vozes, interesses e necessidades e fortalec-los para que reivindiquem seus direitos e mantenham suas instituies responsveis nas decises que afetam seus modos de vida (PLESSMAN, 2013).

  • 2 - Como so feitos os mapas sociais?

    Os mapas sociais so representaes do espao, feitos pelas pessoas que ocupam um territrio, nos quais apresentam a forma como vivem e trabalham, os espaos simblicos, afetivos (ACSELRAD, 2014 a). No mapeamento social, as comunidades representam o seu mundo a seu modo. E um mapa no algo fechado, mas um processo permanente de construo.

    Assim, o mapa social s existe a partir da participao efetiva e incondicional da populao envolvida. Nesse aspecto, importante ressaltar que as metodologias utilizadas durante os trabalhos de cartografia social devem conter mtodos participativos de transferncia de tecnologia e do conhecimento cientfico (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Mas importante observar que as diferentes comunidades possuem relaes de poder desiguais. Estas relaes podero ser reforadas ou alteradas atravs de processos nos quais o mapeamento est inserido. Dessa forma, importante compreender o contexto das relaes sociais que j existem ou se estabelecem no processo de mapeamento, e identificar e analisar as dinmicas de poder que poderiam excluir alguns grupos integrantes da comunidade (PLESSMAN, 2013).

    A participao na construo do mapa uma forma de fortalecer a mobilizao de grupos, que se apropriam de uma ferramenta, a cartografia, para uso de seus interesses. E a participao dos grupos mobilizados no se restringe a confeco dos mapas, pois a partir do processo de construo de mapas, demandas so fortalecidas e h o reconhecimento de direitos, o que pode direcionar estratgias de atuao coletiva (PLESSMAN, 2013).

    Cada situao de mapeamento tem seus prprios objetivos. Uma classificao possvel, entre tantas outras, dos objetivos presentes nos processos de mapeamento participativo realizados no Brasil, pode ser a seguinte: i) busca por legitimidade; ii) busca por informaes mais precisas; iii) busca pelo fortalecimento da mobilizao dos grupos (PLESSMAN, 2013).

    O mapeamento bem-sucedido deveria: contribuir para a expresso e visibilidade dos interesses das comunidades; propiciar a participao de todos os membros das comunidades; criar e apoiar iniciativas de maior autonomia das comunidades.

    alcanar os resultados concretos definidos no processo (por exemplo, criao de mapas relevantes). (RAMBALDI; MCCALL, 2013).

    O que colocado no mapa

    Os dados contidos em um mapa social so definidos conforme a demanda das populaes envolvidas. So os moradores que participam das reunies de cartografia social que decidem sobre as temticas que sero espacializadas no mapa e como estes temas devem se cristalizar na legenda. Em geral, so assuntos relacionados infraestrutura comunitria, delimitao das terras,

  • denominao dos usos diversos (conservao, caa, pesca, agricultura etc.), aspectos culturais, religiosos e mticos, e conflitos com terceiros (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Os projetos ditos de mapeamento comunitrio envolvem diretamente os membros da comunidade no levantamento do uso da terra e das fronteiras de seus domnios. As tecnologias empregadas variam muito. Em sua verso mais simples, como observado na Tailndia, por exemplo, os mapas podem ser tridimensionais feitos mo, tendo por base os contornos de mapas oficiais ampliados numa escala de 1:15.000. Nesses modelos, os membros das comunidades locais podem pintar reas com vegetao, estradas, dados sobre uso da terra, lugares povoados e as fronteiras das terras reivindicadas (COLCHESTER 2002 apud ASCERALD, 2011).

    Outros exerccios de mapeamento utilizam tcnicas geomticas (principalmente o GPS) ou tradicionais de levantamento para registrar dados nos mapas. Embora essas tcnicas permitam aos membros das comunidades decidir o que vai ser colocado dentro dos mapas, elas dependem, porm, em certa medida, de que pessoal treinado externo, em geral vinculado a ONGs, prepare os mapas bsicos, registre os dados de campo diretamente nos mapas, ou no computador, e imprima os resultados finais. As tecnologias mais avanadas, como os sofisticados Sistemas de Informao Geogrfica (SIG), embora permitam um uso bem mais sutil das cores, camadas e grupos de dados, aumentam a distncia entre as pessoas das comunidades, detentoras do conhecimento local, e aquelas que produzem os mapas (ASCERALD, 2011).

    Dessa forma, o mapeamento dos grupos sociais e de suas formas organizativas, em geral, feito por meio da realizao de oficinas, nas quais h um envolvimento direito dos prprios sujeitos na produo de sua cartografia social. Eles debatem abertamente sobre suas condies de vida e, para que possam expressar suas percepes em mapas, fazem cursos introdutrios linguagem cartogrfica formal e aprendem orientao e localizao geogrfica pelo uso de equipamentos como GPS, noes bsicas de legislao ambiental e da utilizao do ArcGIS (programa de computador utilizado para produo de mapas) (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

    Assim, so os prprios movimentos organizados que elaboram os croquis, narram e explicam os conflitos sociais e ambientais e contam suas histrias. O papel do pesquisador colaborar para que essa dimenso da escrita e da representao fique materializada (UFPA). Os mapas dessa nova cartografia refletem o entendimento das pessoas sobre o prprio territrio e a relao de sua cultura com esse espao (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

    Durante o processo de mapeamento, muitas vezes os comunitrios produzem tambm fotos e vdeos. Depois de elaborados, os mapas so aprovados pelas comunidades, que tambm escolhem as coloraes e os cones personalizados que melhor representem sua viso do territrio (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

  • No caso do Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia, o mapeamento parte sempre de um convite da comunidade para entender melhor questes locais, nunca imposto. O antroplogo Alfredo Wagner de Almeida, da Universidade do Estado do Amazonas, explica que a elaborao desses mapas uma valorizao indita do conhecimento e da cultura desses grupos e uma prova de que possvel formar bons pesquisadores fora dos grandes centros. E conclui: isso poder contribuir para modificar a prpria comunidade cientfica nacional e representa uma aplicao do saber tradicional como ferramenta para superar a pobreza (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

  • 3 O uso dos mapas na defesa dos interesses de populaes tradicionais

    A cartografia social usada para objetivos bem diversos tais como: legalizao de terras pblicas, posse legal da terra, melhorias habitacionais, publicizao de fenmenos e/ou situaes de vida, divulgao de servios, infraestrutura e/ou cultura de um determinado lugar/ povoao, etc (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Considerados, essencialmente, como uma linguagem do poder, palavras de Brian Harley em artigo publicado no Anthropos/Economica em 1995, as representaes espaciais de parte de territrios em um plano revelam a identidade dos lugares, a sntese social e natural das diversidades paisagsticas, os limites e fronteiras fsico-territoriais, polticos, emocionais, psicolgicos, individuais e coletivos de um grupo (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Os mapas so representaes concretas do espao vivido e pensado e, como tal, so o retrato de uma comunidade, de um povo, dos moradores de uma determinada localidade. Essas realidades podem ser reproduzidas a partir da viso de grupos distintos, como crianas, idosos, mes, pescadores, agricultores, artesos, professores, agentes de sade. Para cada grupo, ter-se- uma viso diferenciada do territrio e, por consequncia, um mapa distinto e nico (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Assim, os mapas so relevantes para a identidade de um grupo, medida que exigem reflexo, generalizao e seleo das informaes de um determinado territrio e essa produo de conhecimento, que vem bem antes da preparao do produto final, o que verdadeiramente empodera uma determinada populao, pois viabiliza as aes de pensar, refletir, sentir, sonhar, criar e, finalmente, agir (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Para o antroplogo Alfredo Wagner de Almeida, a cartografia social um recurso que deve auxiliar e dar mais preciso ao discurso da etnografia e da antropologia, contribuindo para a compreenso do patrimnio cultural dos povos e permitindo o autoconhecimento de cada um. uma valorizao indita do conhecimento e da cultura desses grupos (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

    Almeida ressalta, ainda, que preciso entender o critrio que liga as pessoas, como so estabelecidos os laos das prprias comunidades. Segundo ele, a questo da territorialidade aguda em todo o pas e envolve mais do que o espao fsico, mas os

  • modos de viver e entender territrio inerentes a diversas culturas (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

    Ele d um exemplo: recentemente, as comunidades de ribeirinhos do rio Japeri, na regio Amaznica, perderam sua classificao como pescadores artesanais por tambm se dedicarem caa e ao extrativismo. S os pescadores comerciais mantiveram sua autorizao para pesca. E explica: trata-se de uma clara confuso entre identidade e atividade econmica, que descredenciou aqueles que detinham o conhecimento local e afetou a biodiversidade da regio (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

    A questo torna-se ainda mais complexa pela dificuldade de se estabelecer uma definio para a identidade desses grupos tradicionais. Os povos faxinais, por exemplo, que ocupam o Sul do Brasil, so uma mistura de ucranianos, poloneses, italianos, ndios e quilombolas que no compartilham a mesma lngua e no tm as mesmas crenas, mas enxergam a si mesmos como um povo nico (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

    A formao das identidades dos grupos tradicionais e seus aspectos territoriais so questes complexas e sujeitas a mudanas, reafirma Alfredo de Almeida . Por isso, um mapeamento como esse rico e pode ajudar, inclusive, no estabelecimento de polticas pblicas em estados como o Maranho, por exemplo, que tem o pior ndice de Desenvolvimento Humano do pas, concluiu (INSTITUTO CINCIA HOJE, 2012).

  • 4 - Exemplos de cartografia social:

    Os primeiros trabalhos de cartografia social no Brasil foram desenvolvidos em territrios da Amaznia Legal, e continuam sendo fortemente atuantes em estados como Par, Tocantins, Maranho, Acre e Amazonas, envolvendo populaes tradicionais extrativistas, ribeirinhos, agricultores familiares e indgenas, devido aos grandes projetos de usinas hidreltricas, problemas relacionados grilagem de terras e ao no cumprimento das normatizaes referentes s delimitaes de terras indgenas e reas de preservao/ proteo ambiental (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Pode-se citar tambm diversos estudos que so desenvolvidos com comunidades da regio Nordeste, com foco nas comunidades pesqueiras e indgenas litorneas, devido ao avano dos empreendimentos de energia elica, carcinicultura [criao de camares em viveiros] e os resorts que atendem, em especial, demanda internacional, alm de territrios comunitrios de agricultores familiares, quebradeiras de coco babau, cipozeiros, ndios e quilombolas atingidos por grandes empreendimentos econmicos, como minerao, obras hdricas, dentre outros. Na regio Sul existem relatos tcnico-cientficos referentes ao mapeamento social com comunidades quilombolas e na regio Sudeste com os caiaras (pescadores tradionais da regio) (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    H cerca de trs ou quatro anos, tem-se desenvolvido tcnicas e mtodos relacionados ao mapeamento social de comunidades urbanas, muitas vezes com a utilizao de mdias sociais e dispositivos tecnolgicos diversos (mveis, de rede local e outros). Nesse contexto, podem-se citar dezenas de estudos em reas de risco urbanas (por exemplo, no Rio de Janeiro, a Mar [complexo de favelas]; em Fortaleza, a favea Poo da Draga), comunidades e associaes indgenas na cidade de Manaus e em Belm (GORAYEB; MEIRELES, 2014).

    Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia

    O Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia (PNCSA) incentiva povos e comunidades tradicionais da regio a produzirem sua auto-cartografia. Com o material produzido, tem-se no apenas um maior conhecimento sobre o processo de ocupao dessa regio, mas, sobretudo, uma maior nfase e um novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Regularmente, o projeto publica fascculos onde materializa a manifestao da auto-cartografia dos povos e comunidades com que atua (PNCSA,s.d.).

    Cada fascculo resultado de uma relao social especfica entre um povo ou comunidade tradicional e a equipe de pesquisadores. o movimento social que busca o PNSCA para realizar a cartografia. A partir desse interesse manifesto, realizada uma oficina de mapas com a participao de cerca de 30 agentes sociais e os pesquisadores membros do projeto. Nela, os pesquisadores ensinam tcnicas de GPS e de mapeamento, alm de conversar com os agentes e coletar depoimentos sobre a histria social e problemas da comunidade (PNCSA,s.d.).

    Os agentes sociais produzem croquis, mapeando sua regio e indicando quais os elementos relevantes para a sua composio. Em um segundo momento, sem a presena dos pesquisadores, os agentes sociais marcam, com GPS, os pontos do que consideram significativo de seu territrio. Na sequncia, o PNSCA recolhe as informaes das marcaes de ponto e as georeferncias na base cartogrfica, inserindo as ilustraes

  • produzidas nos croquis. Essas ilustraes compreendem desenhos, esboos e reprodues de smbolos e objetos (remos, casas, embarcaes, instrumentos de trabalho, animais, plantas, etc.) que so transformados, a partir do trabalho da equipe de pesquisadores, em cones para compor as legendas dos mapas. Simultaneamente, transcreve-se excertos de depoimentos e seleciona-se os que comporo o fascculo (PNCSA,s.d.).

    Com o mapa concludo e os depoimentos selecionados, monta-se um prottipo de fascculo, que remetido comunidade. Ela ento faz as correes que deseja, procede leitura do mapa-piloto e envia-o de volta ao PNCSA para publicao. O PNCSA guarda alguns exemplares e distribui os demais a pesquisadores, ncleos de pesquisa, universidades e rgos estatais tais como Ministrio Pblico Federal e Procuradoria da Repblica. Mas a maior parte dos exemplares fica com o movimento social (PNCSA,s.d.).

    Os fascculos so organizados em seis sries. Em 2005, foram publicados os seis primeiros fascculos da srie 1, chamada Movimentos Sociais, Identidades Coletivas e Conflitos, com a proeminncia das Quebradeiras de Coco Babau dos estados do Piau, Maranho e Par. No final de 2005, as oficinas de mapas das Comunidades Quilombolas dos estados do Par, Maranho, e Amazonas passam a integrar a mesma srie, com seus fascculos publicados entre 2006 e 2007. Ainda na srie 1 consta os trabalhos relativos a artesos e artess, ribeirinhos, ribeirinhas, piaabeiros e peconheiros dos estados do Amazonas e Par (PNCSA,s.d.)..

    Em 2006, o projeto expandiu os trabalhos de mapeamento social para fora da Amaznia com a srie 2, intitulada Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. A srie 3, Conflitos nas Cidades da Amaznia, comeou no ano de 2006, e conta com dez trabalhos realizados na cidade de Belm (Indgenas, Homossexuais, Afro-religiosos, Negras e Negros, Catadores, Pessoas com deficincias, Feirantes e Ribeirinhos) e nove na cidade de Manaus (Bairro Campo Sales, Jesus Me Deu, Comunidade Parque Riachuelo I, Parque Riachuelo II, Parque So Pedro, So Benedito da Praa 14 de Janeiro, Mulheres Indgenas e Artess do Alto Rio Negro, Comunidade Indgena Sater-Maw, Beco dos Pretos Morro da Liberdade). H ainda fascculos produzidos nas cidades de Salinas (PA), Rio Preto da Eva (AM), Manacapuru (AM) e Marab (PA) (PNCSA,s.d.).

    Em 2008 foram criadas trs novas sries, as de nmero 4, 5 e 6. A srie 4 se chama Crianas e Adolescentes em Comunidades Tradicionais da Amaznia. A srie 5, intitulada Faxinalenses no sul do Brasil possui cinco publicaes. A sexta e ltima srie se chama Quilombolas do Sul do Brasil, possui trs publicaes (PNCSA,s.d.).

    Para saber mais sobre o projeto, consulte: http://novacartografiasocial.com/

    A seguir apresentamos um breve relato de algumas experincias conduzidas pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia:

    Descendentes de escravos no Maranho Cada vez mais conscientes de seus direitos, descendentes de escravos no Maranho utilizam o critrio de autodefinio para lutar pelas reas que ocupam, historicamente ameaadas por invases as mais diversas. Eles disputam o territrio rural com fazendeiros, que no hesitam em utilizar a violncia para intimid-los. No mapa que criaram para sua comunidade, as legendas identificam os locais onde h conflitos como ameaa de morte, presso de grileiros, venda ilegal de terra, fechamento arbitrrio de

  • estrada, entre outros. Mas registram tambm manifestaes culturais, como o bumba-meu-boi, as festas de santo e os terreiros afrobrasileiros (ALMEIDA, 2009).

    Comunidades deslocadas em Alcntara (MA) Em Alcntara, tambm no Maranho, conhecida a mobilizao das comunidades deslocadas por causa da construo de uma Base Espacial para o lanamento de foguetes. Em 1986 e 1987, 312 famlias de 23 povoados foram removidas das terras de preto pela Aeronutica e instaladas em sete agrovilas, onde desde ento enfrentam fome e privaes de toda ordem. Longe do mar, perderam o acesso aos recursos da pesca. Distribudas em lotes individuais, deixaram de exercer o tradicional uso comum que faziam da terra. O excesso de moradores perto dos igaraps ameaa os estoques de mariscos, peixes e caranguejos. Em resumo: a mudana para as agrovilas foi um desastre socioeconmico, alm de uma tragdia ecolgica. Organizados, desde 1999, no Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcntara (Mabe), os moradores resistem com atos de desobedincia civil no dia a dia. Como o da moradora de Pepital que entra escondida na rea de onde foi deslocada fora para colher caju nos cajuais plantados por seus avs. Ou as quebradeiras de coco babau, que, durante a safra, utilizam-se dos babauais arbitrariamente interditados (ALMEIDA, 2009).

    Coletores de aa do Par O processo incentiva os denominados povos e comunidades tradicionais a valorizar sua prpria histria e a lutar por sua preservao. Foi o que aconteceu com um grupo de coletores de aa no nordeste do Par. Dos tempos em que a cana-de-acar se espalhava pela regio, resta na ilha de Itacozinho, municpio de Acar, uma antiga calha de engenho. Ao constatar que essa relquia arqueolgica do sculo XVIII vem sendo ameaada por uma obra, 120 famlias locais assinaram um manifesto pedindo ao Iphan que garanta sua proteo. Afinal, a pea tem valor histrico para quem vive ali. Eles a chamam de runas dos escravos, o que diz muito sobre o passado na regio. Nossos avs e bisavs eram escravizados, trocando a seringa por alimentos e outros produtos. Eles no recebiam dinheiro. Na fazenda tinha marcas de sangue que os escravos apanhavam at morrer e serem jogados no sumidouro que tinha na fazenda de grandes extenses de terra: o engenho de cana, contou Maria Sueli das Mercs, do Igarap Caixo. No mapa produzido pela comunidade, descobre-se que a economia local tem como base o aa, mas nos perodos de entressafra (de novembro a maio) precisa recorrer a outras extraes, como o palmito pupunha, o cupuau, a andiroba, a castanha, o cacau e o camaro (ALMEIDA, 2009).

    Ribeirinhos de Belm do Par Os ribeirinhos das mais de 40 ilhas da capital do Par vivem os contrastes de trabalhar com a natureza (extrativismo de aa, pesca e produo de alimentos) e sofrer com os males da cidade grande: em seu mapa, indicam pontos onde h mais ataques de piratas, que roubam seus barcos. Reivindicam do governo melhores servios de coleta de lixo, saneamento e segurana (ALMEIDA, 2009).

    Artess indgenas de Manaus Artess indgenas de Manaus querem criar um centro cultural para vender comidas e bebidas tpicas de suas etnias, como quinhampira, mujeca e beju. Seria uma fonte de renda mais nobre do que sua situao atual: depois de abandonar as aldeias em busca

  • de melhores condies de vida, a maioria trabalha como empregada domstica para ganhar entre 100 e 150 reais por ms (ALMEIDA, 2009).

    Quilombolas de Jambuau Os quilombolas de Jambuau (PA), que tiveram srios danos a partir da exploso de um mineroduto dentro dos povoados, valeram-se do mapa social para requerer na Justia reparos dos danos ambientais sofridos (ALMEIDA, 2009).

    Indgenas da comunidade Beija-Flor(AM) J no municpio de Rio Preto da Eva (AM), foram dcadas de conflito at que os indgenas da comunidade Beija-Flor conseguissem pressionar a Prefeitura a desapropriar a rea e destinar-lhes a terra. Na Cmara Municipal, erguiam as mos exibindo seus mapas, como a dizer que j possuam um documento evidenciador do territrio. O mapa tornava-se documento de consulta obrigatria para quem quisesse entender a dinmica do conflito (ALMEIDA, 2009).

  • 5 - Fontes:

    ACSELRAD, Henri (org.) Cartografia social, terra e territrio. Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2013.

    ___________ (org.) Cartografias Sociais e Territrio. Rio de Janeiro IPPUR/UFRJ, 2008. Disponvel em:

    ___________ Sobre os usos sociais da cartografia. Disponvel em:

    __________ Cartografias sociais. Vdeo: entrevista com Henri Acselrad do ETTERN/ IPPUR/UFRJ parte 1. Rio de Janeiro, 2014 b. Disponvel em: .

    __________Cartografias sociais. Vdeo: entrevista com Henri Acselrad do ETTERN/ IPPUR/UFRJ parte 2. Rio de Janeiro, 2014 b. Disponvel em:.

    ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Mapas com vida prpria. Dos ndios artesos de Manaus aos quilombolas do Maranho, populaes tradicionais retratam sua situao geogrfica e social com auxlio de GPS. Revista de Histria, 06 maio 2009. Disponvel em: .

    CATACRA LIVRE. Crianas indianas mapeiam comunidade esquecida pelo Google Maps, 20 ago. 2013. Disponvel em: .

    GORAYEB, Adryane; MEIRELES, Jeovah. Cartografia social vem se consolidando com instrumento de defesa de direitos. Rede Mobilizadores, 10 fev. 2014 Disponvel em: .

    INSTITUTO CINCIA HOJE. Projeto faz cartografia de comunidades tradicionais brasileiras, 27 jul. 2012. Disponvel em: .

    PLESSMAN, Franklin. Unidade M03U01, Mdulo M03: Introduo Participao; in: ETTERN/IPPUR/UFRJ, Guia Para Experincias de Mapeamento Comunitrio, verso livremente adaptada para o portugus de CTA. 2010. Training Kit on Participatory Spatial Information Management and Communication. CTA, Pases Baixos; Rio de Janeiro, 2013.

    PNCSA, Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia. Site institucional. Disponvel em: .

    RAMBALDI, Giacomo; MCCALL, M.K. Unidade M04U01, Mdulo M01: Fatores que influenciam o Mapeamento Comunitrio; in: ETTERN/IPPUR/UFRJ, Guia Para

  • Experincias de Mapeamento Comunitrio, verso livremente adaptada para o portugus de CTA. 2010. Training Kit on Participatory Spatial Information Management and Communication. CTA, Pases Baixos; Rio de Janeiro, 2013.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR. Projeto aplica a cartografia como forma de identificao social, s.d. Disponvel em: .

  • Esta cartilha foi produzida dentro do esprito colaborativo, a partir de outras tanttextos e vdeos disponveis na internet, num grande remix de materiais,

    Esta cartilha foi produzida dentro do esprito colaborativo, a partir de outras tanttextos e vdeos disponveis na internet, num grande remix de materiais, dando origem a

    material disponvel a todos.

    Pesquisa de contedo: Eliane Araujo

    Textos e adaptao: Eliane Araujo

    REALIZAO:

    APOIO:

    Fevereiro, 2014

    Esta cartilha foi produzida dentro do esprito colaborativo, a partir de outras tanto textos, apostilas, dando origem a um novo