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1 ZENIR RODRIGUES DOS ANJOS FILHO CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO MÍTICA E HISTÓRIA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA U.F.U. 2004 ZENIR RODRIGUES DOS ANJOS FILHO

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1

ZENIR RODRIGUES DOS ANJOS FILHO

CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO MÍTICA E HISTÓRIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA U.F.U. 2004

ZENIR RODRIGUES DOS ANJOS FILHO

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CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO MÍTICA E HISTÓRIA Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em História como requisito parcial

para a obtenção do título de mestre em História.

Área de concentração: História Social.

Linha de Pesquisa: História Política e Imaginário. Orientadora: Prof.a Dra. Jacy Alves de Seixas (UFU)

UBERLÂNDIA 2003

Zenir Rodrigues dos Anjos Filho

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CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO MÍTICA E HISTÓRIA

___________________________________ Prof.a. Dra. Jacy Alves de Seixas ( Orientadora/UFU )

___________________________________ Prof. Dr. Noé Freire Sandes ( UFG )

___________________________________ Prof.a. Dra. Christina da Silva Roquette Lopreato (UFU )

Uberlândia, 29 de abril de 2004. Resultado: ___________________________

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Dedicatória

Dedico esse trabalho à minha mãe, Carmen (in memorian), a meu pai Zenir, as minhas irmãs Kátia, Raquel e Beatriz, as minhas sobrinhas Carmen, Larissa, Renata e Talita. E a pessoa que tornou esse projeto possível, Jacy Alves de Seixas.

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AGRADECIMENTOS

À professora Jacy Alves de Seixas pelos anos de generosidade, amizade,

carinho e pela oportunidade de realizar esse projeto.

À minha família, pela paciência e compreensão durante todos estes anos.

À Ana Paula Aguiar da Silva Perdomo, Antônio Almeida, Christina da Silva

Roquette Lopreato, Denise de Oliveira Gonçalves, Eduardo de Melo Peixoto, Dorian Erich,

Gonçalo Oliveira Luz, Jamir dos Reis, Karla Adriana Martins Bessa, Lady Vieira Gomes,

Maria Clara Tomaz Machado, Maria de Fátima, Maria Helena, Paulo Almeida, Rafael,

Elmiro, Sandrinha, a todas as pessoas do Nephispo, a toda a IV turma do curso de Mestrado

em História (Edmar, Maria Clara, Cristiane, Jô, Nádia, Kátia, Marileuza...) pela generosa

amizade e cooperação.

Ao ex-deputado federal e secretário dos Direitos Humanos do Governo Luís

Inácio Lula da Silva, Nilmário Miranda, pela cessão do Processo da Comissão Especial de

Mortos e Desaparecidos no Regime Militar.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização este

projeto.

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RESUMO

Este trabalho é uma incursão ao imaginário político brasileiro destacando a

imagem de Carlos Lamarca, filho de sapateiro, capitão do Exército, que optou pela luta

armada contra a ditadura militar nas décadas de 60 e 70, como um mito político brasileiro. A

partir da deserção, em janeiro de 1969, analisa a construção da imagem mítica tanto do

conspirador maléfico quanto do homem providencial. Lamarca desertou do Exército ingressou

na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) organização de oposição armada ao governo,

passando posteriormente a VAR-PALMARES (Vanguarda Armada Revolucionária) e ao MR-

8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro) ao qual estava vinculado quando foi morto em

17 de setembro de 1971. Perito em armas e com fama de excelente atirador, tornou-se o mais

procurado “subversivo” do país e a representar a imagem do movimento de luta contra a

ditadura. Para além da construção da imagem mítica, o trabalho buscou identificar ocasiões

em que houve a intervenção do mito Lamarca na história, destaque para o momento da luta

pela anistia e do reconhecimento da responsabilidade pelo Estado da morte dos militantes de

mortos ou “desaparecidos”. À partir de fontes como jornais, revistas, livros sobre a guerrilha

no Brasil e em Cuba (devido à influência da revolução cubana em todo o continente latino

americano e ao apelo a imagem mítica do guerrilheiro na figura de Che Guevara), do relatório

“Operação Pajussara” do Exército e do processo na Comissão Especial de Mortos e

Desaparecidos, buscou revelar as tramas da construção da imagem mítica e seu poder de

intervenção ainda presente na vida política brasileira. Devido à extensa dedicação que a

pesquisa exigiria, a questão da memória não foi explorada. O grande número de livros

contando a trajetória e a saga individual em momentos distintos de disputa, como da anistia e

outros de reflexão sobre os acontecimentos do período, justifica a investigação sobre a relação

entre mito e memória.

Palavras Chave: Imaginário Político, Mitos Políticos, Ditadura Militar, Rebeldes

Brasileiros.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA...................................................................................... I AGRADECIMENTOS............................................................................ II RESUMO................................................................................................ III LISTA DE FIGURAS............................................................................. IV

INTRODUÇÃO........................................................................................................ 001 CAPÍTULO I - LAMARCA E A CONSTRUÇÃO DO MITO ......................... 012

1.1 - Santo e/ou demônio?.............................................................................. 023 1.2 - A imagem da onipresença...................................................................... 030

CAPÍTULO II – CHE E LAMARCA: ESTRELAS AVESSAS DO A VESSO

DA AMÉRICA LATINA........................................................ 058

2.1 - “As entranhas do monstro” .................................................................. 059 2.2 - Espelhos identitários............................................................................. 063 2.3 - Analogias históricas... a rebeldia e a tragédia....................................... 068 2.4 - Símbolos de vida e morte...................................................................... 081

CAPÍTULO III – O MITO LAMARCA E A CONSOLIDAÇÃO

DEMOCRÁTICA.................................................................... 091

3.1 - A anistia e o tema da traição................................................................ 092 3.2 - O reconhecimento do mito no reconhecimento das responsabilidades civis........................................................................ 104

IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 111 V – FONTES DOCUMENTAIS ........................................................................... 115 VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 120 VII – ANEXOS ...................................................................................................... 124

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LISTA DE FIGURAS

1 – Foto – Aman Cadete 198............................................................................... 001

2 – Cartazes da Repressão................................................................................... 004

3 – Foto – Treinamento Laudo Natel................................................................... 030

4 – Foto – Treinamento funcionárias Bradesco I................................................. 031

5 – Foto – Treinamento funcionárias Bradesco II................................................ 032

6 – Capa Revista Veja 03/06/1970....................................................................... 038

7 – Fotos – Cadáveres de Lamarca e Zequinha.................................................... 045

8 – Foto – Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre................................. 068

9 – Foto – Iara na casa de Rodolfo Nani.............................................................. 076

10 – Foto – Che e família..................................................................................... 077

11 – Foto – Lavrador aponta o local da morte de Lamarca.................................. 081

12 – Foto – Pinheiro milagroso............................................................................ 082

13 – Foto – Menino aponta o local da morte de Lamarca.................................... 083

14 – Foto – Che, Lamarca e gravura de Elifas Andreatto.................................... 085

15 – Foto – Che, Lamarca e Rembrandt............................................................... 086

16 – Revista Veja: Operação Condor..................................................................... 089

17 – Laudo Cadavérico de Lamarca...................................................................... 129

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INTRODUÇÃO

Álbum de formatura da AMAN. Cadete 198 - Lamarca 1960

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A revista AGULHAS NEGRAS, uma espécie de álbum de formatura da

Academia Militar de Agulhas Negras, na edição de 1961, traz as fotografias dos formandos do

curso de Infantaria turma I-3, entre elas a do cadete nº 198, Carlos Lamarca, com os seguintes

dizeres: “nascido na cidade do Rio de Janeiro no dia 27 de outubro de 1937, ingressou na

Escola Preparatória de Pôrto Alegre, onde concluiu o curso em 1957. Cursou a AMAN nos

anos de 58 – 59 – 60 e foi declarado Aspirante da Arma Infantaria no dia 4 de dezembro de

1960”1. Na seção das fotos do Comando da Academia, aparece como Comandante o General

de Brigada Adalberto Pereira dos Santos e como Sub-comandante o então coronel Emílio

Garrastazú Médici. Ambos, no período mais violento da repressão militar, chegaram aos mais

importantes postos de comando, o primeiro sendo vice-presidente da república no governo de

Ernesto Geisel e o segundo, presidente da república no período mais negro da repressão

política do regime militar e da morte de Carlos Lamarca.

Dez anos depois, em um relatório datado de 30 de setembro de 1971, um documento

reservado do Exército sobre a Operação Pajussara anunciava os objetivos alcançados. O

primeiro da lista era assim formulado: “Foi destruído o mito terrorista representado por

LAMARCA”2. (o grifo é meu)

Entre estes dois momentos, o da revista de formatura da Academia, quando

inicia sua carreira militar, e do relatório dando como destruído o mito terrorista representado

por LAMARCA; a trajetória do filho de sapateiro que chega a capitão do Exército e sua luta

contra o regime imposto ao país por seus pares, estão os acontecimentos selecionados capazes

de transformá-lo em um personagem ao mesmo tempo histórico e mítico.

Ao lado do personagem histórico Lamarca habita o Lamarca imaginário, que

se tornou o maior mito da esquerda armada no Brasil3. Desde as primeiras reportagens sobre o

capitão desertor - oficial do Exército Brasileiro, carreira brilhante à frente, que,

inconformado, rasga sua farda, aposta noutro futuro – sonha com a humanidade livre, mete o

peito resoluto em busca da liberdade e leva as últimas conseqüências o que julgava acertado4

- foi transformado em uma imagem representativa de todo o período da luta entre os

“subversivos” ou “terroristas” e a ditadura militar implantada no país em abril de 1964.

1 ACADEMIA MILITAR DE AGULHAS NEGRAS. AGULHAS NEGRAS: ÓRGÃO OFICIAL DO CORPO DE CADETES DA ACADEMIA MILITAR DAS AGULHAS N EGRAS.[S.l.]. 1960. 2 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO BRASILEIRO, IV EXÉRCITO, 6ª REGIÃO MILITAR. RELATÓRIO RESERVADO OPERAÇÃO PAJUSSARA, [S.l]. 1971. p. 37. 3 OLTRAMARI. A. O cérebro do roubo do cofre REVISTA VEJA . São Paulo: Abril.. ano 36. n. 2 15/01/2003, p. 36/37. 4 JOSÉ, E.; MIRANDA O. LAMARCA, O CAPITÃO DA GUERRILHA ., 15ºed. rev. e ampl.; São Paulo: Global, 2000. p. 16.

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Parece-me equivocado pensar que a construção dessa imagem se deve

unicamente ao esforço das organizações de esquerda em criar um herói, ao contrário, muito

foi feito pelos próprios militares ao tentarem criar um rosto que representasse o “mal” na

figura dos “subversivos”.

Após a deserção, a ditadura traça ao público seu perfil como sendo o de um

rebelde com sérios problemas mentais, sonhos megalomaníacos e que significava um perigo

real, pois era um militar treinado:

“Na imprensa, a habilidade de atirador e uma série de operações espetaculosas (certa vez comandou um assalto simultâneo a dois bancos, numa rua movimentada de São Paulo, e parou o transito com rajadas de metralhadora depois de atingir mortalmente um policial com um tiro de pistola de mais de 30 metros) levaram o nome de Lamarca às manchetes e daí ao posto de principal líder do terrorismo no Brasil.”5

A matéria é sobre a notícia de sua morte ocorrida em 17/09/1971, ela induz que

a partir das manchetes, da fama e de sua qualificação técnica como soldado capaz de realizar

“operações espetaculosas”, Lamarca chegou a condição de líder da “subversão”. Para Jacob

Gorender, militante do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, a notoriedade

foi prejudicial:

“Desenharam sua imagem pública como a de traidor, bandido inescrupuloso e assassino perverso. A fama de campeão de tiro reforçou imagem tão negativa”6

A partir de sua saída do Exército e da constante presença de seu nome nos

noticiários, o capitão passou a ser responsabilizado, como veremos adiante, por grande parte

das ações armadas contra a ditadura. A aptidão para o tiro associada à qualificação

profissional e ao “arsenal” que levou consigo na fuga do Quartel de Quitaúna foram imagens

bastante exploradas na criação do temor em relação aos chamados “subversivos”.

5 A cena final de um terrorista. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. n. 159 22/09/1971, p. 23/26. 6 GORENDER, J.; COMBATE NAS TREVAS A ESQUERDA BRASILEIRA: DAS ILUSÕ ES PERDIDAS À LUTA ARMADA. São Paulo: Ática. 1987. p. 188

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Iconographia. Cartazes. Extraído do livro Combate nas Trevas – Jacob Gorender 1987.

Nos cartazes espalhados pelas ruas das cidades brasileiras, os escritos traziam

mensagens como: “Terroristas procurados – Assaltaram – Roubaram – Mataram pais de

família” 7 ou “Ajude a proteger a sua vida e a de seus familiares” 8. Nelas a ênfase é dada ao

perigo de uma ação contra o homem comum e contra valores importantes a esse homem.

A propaganda em relação aos subversivos evitava admiti-los como um

problema político de grande relevância. Suas ações deveriam parecer incapazes de atingir o

7 Os rachas do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. p. 23/25 de 04/02/1970. 8 GORENDER, J. op. cit. anexos. Formatado

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governo que, mesmo assim, surge como o sempre atento guardião do bem estar da população

vulnerável à sanha dos “terroristas” identificados principalmente na figura de Carlos Lamarca.

Não são, portanto, os acontecimentos em si, mas as imagens e as

representações que tornam a saga de Carlos Lamarca uma “história exemplar”. Nesse sentido,

é notável, nestas narrativas sobre o ex-capitão, os apelos a imagens mitológicas,

transformando-o no “maior mito”9 da esquerda armada brasileira.

Carlos Lamarca participou de poucas ações armadas. Foram três, segundo

Marcelo Rubens Paiva: um assalto a banco, o roubo da “caixinha do Adhemar” e o seqüestro

do embaixador suíço, que poderiam ser somadas a pelo menos mais três: a fuga do Quartel de

Quitaúna, levando consigo armas para a revolução; a fuga do Vale do Ribeira, escapando do

cerco da polícia militar e do Exército; a fuga no sertão que terminou com sua morte. Uma

biografia pobre em relação a outros nomes da esquerda como por exemplo Carlos Marighella,

porém ultrapassando os limites da trajetória pessoal capaz de , como a de nenhum outro,

sintetizar a tragédia do seu tempo.

Os biógrafos Oldack Miranda e Emiliano José, em uma nota no início do seu

livro, apontam a dificuldade dessa compreensão:

“...Lamarca não foi o ‘assassino frio e sangüinário’, mostrado na imprensa por pressão do Exército, muito menos um ‘Messias sem Deus’ ou joguete da esquerda armada. Nem o herói imaculado apresentado por admiradores fantasiosos no exterior. O capitão Lamarca absorveu a tragédia de seu tempo e viveu o drama, todo, de um período em que a tortura e o assassinato político eram métodos considerados normais pelo Estado brasileiro. Os anos somados vão tornando possível uma análise política fria. Duro é sacar o lance do oficial do Exército brasileiro, carreira brilhante à frente, que, inconformado, rasga sua farda e aposta noutro futuro: sonha com a humanidade livre, mete o peito resoluto em busca da liberdade e leva às últimas conseqüências o que julgava acertado.”10

É provável que se buscarmos a compreensão através do acontecimento em si

não consigamos mesmo “sacar o lance do oficial do Exército brasileiro” os seus motivos

para abandonar tudo e apostar noutro futuro ou para explicar como transformou-se no rosto e

na imagem dos militantes que aderiram à luta armada, pois o ex-capitão torna-se um

personagem importante para a recente história política do Brasil ao ultrapassar os contornos

individuais. Sua importância histórica está na compreensão das representações de seus atos

muito mais que nos atos em si.

9 OLTRAMARI. A. O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 15/01/2003, p. 36/37. 10 JOSE E.; MIRANDA O. op. cit. p.16. Formatado

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Os acontecimentos são, no entanto, fundamentais para os mitos pois estes não

surgem da natureza das coisas. Não foi a deserção de Lamarca que o transformou em mito e

sim a possibilidade de, a partir dessa deserção, ter sua trajetória na luta armada selecionada e

transformada numa “história exemplar” estabelecendo um diálogo com uma sociedade que

reconhece o seu significado.

O uso do termo mito para se referir a coisas distintas e distantes no tempo e no

espaço, como os mitos gregos, os mitos das sociedades tradicionais e os mitos políticos, não é

um problema, pois não há grandes diferenças nas funções desses mitos. O sentido pedagógico

de cada mitologia equivale-se. Carlo Ginsburg, em Olhos de Madeira, comenta que para

Platão existiam bons e maus mitos, os bons deveriam ser adotados e os ruins repelidos e,

também, haveria a necessidade de vigiar os que compuseram os mitos11, isto devido à

educação que ele pensava a mais indicada aos guardiões do Estado. Para Mircea Eliade, os

mitos das sociedades tradicionais contam uma história de um tempo primordial, ou seja,

narrativas sagradas sobre um tempo imemorial que ordena um espaço social através da

repetição de acontecimentos primordiais12. Nota-se que a noção de cada sociedade sobre mito

ou a compreensão de sua mitologia não elimina, portanto, a sua função de ordenação social.

Nas mitologias grega e das sociedades tradicionais o exemplo vem de seres

divinos ou divinizados interagindo na esfera humana ou de homens postos a prova pelos

deuses ou ancestrais sagrados. A sociedade do homem moderno, que se quer histórico,

dessacraliza acontecimentos tentando racionalizá-los, mas não consegue libertar-se dos

exemplos de imagens oníricas. Para o historiador marxista Jacob Gorender isto é um

problema:

“A história do movimento comunista internacional está repleta da construção de mitos. Por enquanto, a racionalidade marxista tem sido impotente para refrear essa tendência ideológica milenar, cuja força espontânea impregna a consciência das massas trabalhadoras” 13 A dessacralização dos seres divinos cedeu lugar à sacralização do homem. Não

são mais os deuses do Olimpo os protagonistas da mitologia das sociedades modernas nem

imagens de uma religiosidade cívica como a grega, na qual a relação religiosa entre o

indivíduo e uma divindade se dava através de uma mediação social14 ou de sociedades em

11 GINSBURG. C. OLHOS DE MADEIRA: NOVE REFLEXÕES SOBRE A DISTÂNCIA São Paulo: Companhia das Letras. 2001. p. 43. 12 ELIADE. M. O MITO DO ETERNO RETORNO Lisboa: Edições 70: Rio de Janeiro: Edições 70 Brasil. 13 GORENDER. J. op. cit. p. 27. 14 VERNANT, Jean-Pierre, ENTRE MITO E POLÍTICA. trad. Cristina Murachco. São Paulo: EDUSP. 2000 p. 202 et. seq.

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comunhão com a natureza, como as chamadas tradicionais. As histórias sagradas da sociedade

moderna são de imagens divinizadas neste mundo. Assim, podemos considerar a existência de

mitos no cinema, no esporte, no teatro, e, igualmente, a existência de mitos políticos.

O entendimento sobre mito político é que se trata de uma narrativa exemplar,

na qual se encontra explicação, justificativa e sentido para um passado e motivação para a

ação presente. Explicação também de motivos pessoais, capaz de sintetizar em sua tragédia a

de outros indivíduos, de motivar e explicar a adesão pessoal e completa que ultrapassa a idéia

de vínculo com uma determinada corrente de pensamento político, assumido diante do

balanço racional de argumentos, avaliações ou interesses.

Assim, O mito político é ficção, síntese explicativa e mensagem

mobilizadora15; como ficção é capaz de fornecer certo número de chaves para a compreensão

do presente, constituindo uma criptografia através da qual pode parecer ordenar-se o caos

desconcertante dos fatos e acontecimentos16.

O diálogo das sociedades com o mito, através das imagens e formas, para

poder ser estabelecido pressupõe que haja compreensão da sociedade sobre os significados

contidos nestas narrativas, imagens e formas. Assim, o diálogo deve fazer sentido, deve ser

possível e coerente. Não é uma construção arbitrária. O Mito como relatos aceitos entendidos

e sentidos compõe a compreensão de Jean-Pierre Vernant sobre a mitologia grega:

“Os mitos são outra coisa: são relatos – aceitos, entendidos, sentidos como tais desde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem, uma dimensão de ‘fictício’, demonstrada pela evolução semântica do termo mythos, que acabou por designar, em oposição ao que é do domínio da ficção pura: a fábula. Esse aspecto de narração (e de narração livre o bastante para que sobre um mesmo deus ou um mesmo episódio de sua gesta, versões múltiplas possam coexistir e ser contraditórias sem escândalo) relaciona o mito grego ao que chamamos de religião, assim como ao que é hoje para nós a literatura” 17

Os mitos possuem, independentes de sua natureza, núcleos temáticos sobre os

quais as narrativas míticas são construídas. Assim, segundo Mircea Eliade, o mito:

“conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no tempo imemorial, o tempo fabuloso dos começos. Em outras palavras, o mito conta como uma realidade chegou à existência, quer seja a realidade total, o cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição...” 27

15 GIRARDET, Raoul; MITOS E MITOLOGIAS POLÍTICAS. trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia. das Letras. 1987. p. 98. 16 Ibid. p. 13 17 VERNANT. J. op. cit. p. 230.

Formatado

Excluído: Idem, idem,

Excluído: Raoul Girardet, Mitos e Mitologias Políticas,

Excluído: ,

Excluído: ean-Pierre;

Excluído: Entre Mito e Política; tradução de Cristina Murachco – 2 ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. P. 230

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16

O mito do sagrado possui, portanto, dois grandes grupos ou núcleos centrais,

que são os cosmogônicos e os de origem relacionados com a criação e complementação do

cosmos; enquanto que os de origem política possuem, segundo Girardet, quatro grandes

núcleos: A Conspiração, O Salvador, A Idade de Ouro, e a Unidade. Estes núcleos míticos

não são herméticos, ao contrário, eles se entrelaçam, o que de certa forma elimina a precisão

de seus contornos, mas possuem características que possibilitam análise a partir de

comparações entre manifestações míticas que possuam narrativas, motivações, explicações e

poder de mobilização similares, ou seja, que possuam estruturas próximas.

Esses quatro núcleos temáticos denominados de Constelações mitológicas

foram discutidos pelo autor em dois séculos da história francesa, ou seja, podem não possuir

um sentido universal e nem abarcar todas as manifestações míticas de natureza política,

porém, penso que são úteis para a compreensão do personagem mítico Lamarca.

A constelação d’A conspiração utiliza, segundo este autor, a imagem do

complô possuidor de um poder que se move nas sombras, determina o desenrolar de

acontecimentos e justifica o antídoto contra ele, isto é, a existência de outro complô para

combater o “mal”, sempre encarnado na imagem do antagonista. O único meio de combatê-lo

é voltar contra ele as suas próprias armas através de uma réplica consagrada a serviço do

“bem”. Porém, antes de tudo, necessita-se identificá-lo, não somente no sentido de saber

quem é ou de que lado está, dotando o antagonista do sentido pleno do termo Estrangeiro18.

Identifica-se também o modo de agir e assimila-o. Uma identificação completa para poder

enfim enfrentá-lo, desmascará-lo, afrontá-lo.

A constelação do Salvador tem como núcleo central os perfis de personagens

capazes de surgir em momentos de extrema crise e, graças a sua ação, realizar a “salvação”

de seu grupo ou sociedade. Apresenta quatro arquétipos que demonstram diferentes formas

desta manifestação. São os arquétipos de Cincinnatus, Alexandre, Sólon e Moisés.

O arquétipo de Cincinnatus retorna a um cenário ao qual já pertencia, abre mão de sua forma

privada de viver para atender a um pedido da sociedade pela qual já havia feito muito. O de

Alexandre está centrado na figura do conquistador que rompe com a mediocridade e chama

para a aventura. Aquele que liberta da monotonia segura de uma vida insossa e oferece o risco

e a glória de uma existência na qual se cria o destino escrevendo seu nome em vermelho sobre

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a terra19 e deixa como herança para as próximas gerações um modo de vida a seguir ou a ser

resgatado.

Sólon – o Legislador - aparece ligado a construção de um modo de vida (deixado ou não

como herança por alguma figura do arquétipo de Alexandre). Sua função é ditar as normas ou

reavivá-las seguindo o exemplo dos “grandes ancestrais”.

Por último, o arquétipo de Moisés – o Profeta - que lidera e conduz o seu povo a um futuro

que somente ele consegue ver através da História.

A terceira constelação que Girardet apresenta é a Idade de Ouro. Este conjunto

consiste, segundo o autor, no mais completo conjunto de características do mito político, pois

apresenta ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora20.

Seu núcleo principal é centrado na:

“Restauração evidentemente incompleta, fragmentária, deformada, mas onde um refrão de canção, um certo vocabulário, os elementos de uma estética decorativa, as lembranças esparsas de usos abolidos vêm no entanto, recolocar na expressão do presente do gosto e da sensibilidade a imagem enobrecida de um passado mitificado.”21

Nesta constelação o tempo não mais está ligado a cronologia, é não datado,

pode ser resgatado e é carregado de gosto e de sensibilidade.

A quarta e última constelação apresentada refere-se a Unidade. Uma vontade

una e regular na qual habitam o profano e o sagrado, o poder civil e o religioso, o bem e o

mal, aquilo que está separado e deve ser unificado e o esforço para se conquistar a unificação.

Através desse método comparativo separando e organizando as manifestações

em núcleos temáticos utilizado por Raoul Girardet22, trata-se, segundo ele mesmo, de uma

proposta retirada do trabalho de Gilbert Durant Structures anthropologiques de

l’imaginaire23, e que consiste em procurar definir, dentro do que é possível, os contornos ou

“conjuntos de construções míticas sob o domínio de um mesmo tema, reunidas em torno de

um núcleo central”24 que analisamos o personagem Carlos Lamarca utilizando a figura mítica

de Che Guevara, pois compreendemos que elas possuem similaridades em suas construções.

As principais questões que norteiam este trabalho são; a própria compreensão

do que é mito; compreendê-lo como algo histórico, que ocorre e intervém na história;

19 Ibid. p. 77 20 Ibid. p. 97 et. seq.- 21 Ibid. p. 99 22 Ibid. p. 19 et. seq. 23 Ibid. 24 Ibid.

Excluído: Raoul Girardet, MITOS E MITOLOGIAS POLÍTICAS pp.

Excluído: 140

Excluído: dem,

Excluído: Mitos e Mitologias Políticas, Raoul Girardet, p

Excluído: -20

Excluído: dem, idem

Excluído: dem, idem.

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18

demonstrar os elementos que possibilitem afirmar a figura do ex-capitão como um mito

político brasileiro.

Compreender o Mito como algo histórico é reconhecer que é na história que

encontraremos elementos capazes de serem selecionados para comporem uma narrativa

exemplar. Por sua vez, esta precisa ser compreendida e aceita, assim os valores e desejos

atribuídos a Lamarca (e não há porquê pensar que ele não os tivesse, é por tê-los que foi

selecionado) são também próprios do homem comum, possibilitando que este se reconheça.

Quanto a intervenção na história é preciso notar que além de síntese explicativa há também a

força mobilizadora do mito. Essa força mostra-se nos momentos em que esta imagem

potencializa valores e desejos de quem com ela estabelece diálogo definindo assim

posicionamentos e identidade dos antagonistas.

No caso de Lamarca destacamos três momentos quando, para além da sua ação,

sua imagem intervém na história: o primeiro é o período da luta contra o regime militar que

fornece elementos para a construção do personagem, quando o apelo a sua imagem é feito

tanto no sentido da identificação do complô maléfico quanto da possibilidade de servir como

figura mobilizadora para a adesão aos movimentos armados.

O segundo é o momento da anistia que traz no bojo o apelo à legitimidade de

ações passadas e a determinação, característica bastante destacada na figura do ex-capitão,

para novos confrontos.

O terceiro momento é a disputa no julgamento na “Comissão de Mortos e

Desaparecidos” sobre a responsabilidade pela sua morte.Não estão separados

cronologicamente mas de acordo com os apelos e as imagens invocadas a cada episódio ou

circunstância.

A fabulação, a forma das narrativas, os momentos em que são invocadas, suas

imagens, a aproximação com outras figuras, a força exemplar, a ordem que estabelece para os

acontecimentos, são partes ativas da construção mítica, e não será separando-as que se

apreenderá o mito. Este está no emaranhado e nas ligações que se elevam ao infinito.

No período em que esteve vivo e foi perseguido pela repressão, Lamarca

transformou-se na imagem da “subversão” e da revolução no país. A propaganda da ditadura e

a imprensa é que tornaram pública a figura do ex-capitão. Não é, portanto, na exatidão de sua

participação nos acontecimentos e sim nas descrições de suas façanhas como guerrilheiro e

rebelde que surge como mito.

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O trabalho de estudar o mito não deve partir da premissa de desconstrução. A

tentativa de desfazer equívocos de narrativas conhecidas e transmitidas sobre personagens

míticos faz com que se perca exatamente a noção de mito.

A proximidade com os acontecimentos, as várias pessoas envolvidas na luta

armada e ainda ativas na política, até no governo Luís Inácio Lula da Silva, como a militante

da VAR-PALMARES – Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares - Dilma Rousseff,

ministra de Minas e Energia, e o ministro da Casa Civil, José Dirceu, nos dão a possibilidade

de avaliar, a cada reportagem, livros, investigações para descoberta de novos indícios sobre as

mortes (como no caso da operação de ajuda mutua entre os órgãos de repressão política

conhecida como Operação Condor), o quanto a imagem mítica do ex-capitão está presente,

despertando debates, opiniões e mobilizando setores politizados e intervindo na vida e na

história política.

Essa possibilidade, como ocorreu no caso do processo de reconhecimento da

responsabilidade do Estado na morte do ex-capitão Carlos Lamarca realizado pela Comissão

de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar, deixa-nos atento para o alerta de Raoul

Girardet sobre o devido cuidado do historiador que aceitar o desafio de trabalhar com mitos

políticos:

“É uma esperança sem dúvida bem ilusória pretender definitivamente transcender a oposição do racional e do imaginário. Encontramo-nos em um domínio onde o único verdadeiro conhecimento seria da ordem do existencial: apenas aqueles que vivem o mito na adesão de sua fé, no impulso de seu coração e no empenho de sua sensibilidade se encontrariam em condição de exprimir sua realidade profunda. Visto do exterior, examinado com o exclusivo olhar da observação objetiva, o mito corre o risco de não mais oferecer senão uma imagem fossilizada, seca, prancha de anatomia despojada de todos os mistérios da vida, cinzas esfriadas de uma fogueira incandescente.”25

25 GIRARDET. R. Op. cit. p. 23.

Excluído: GIRARDET

Excluído: Raoul, Mitos e Mitologias Políticas, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 23

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20

CAPÍTULO I - LAMARCA E A CONSTRUÇÃO DO MITO

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21

Os movimentos políticos que optaram pela oposição armada ao regime militar

tornaram-se conhecidos muito em função de obras literárias, cinematográficas, e matérias

jornalísticas. Carlos Lamarca é um ícone desses movimentos. Ex-capitão do Exército,

desertou em 24 de janeiro de 1969 para ingressar na luta armada contra o regime militar e foi

morto em 17 de setembro de 1971, próximo ao povoado de Pintada no sertão baiano26 após

dois anos, oito meses e 25 dias de clandestinidade, sendo lembrado e citado em várias

abordagens sobre o tema.

Aparece, entre outros, nos seguintes livros de memórias de ex-guerrilheiros e

estudiosos do período:

• Lamarca: o capitão da Guerrilha, biografia escrita por Oldack Miranda e Emiliano

José, lançada em 1980 e que chegou a oito edições no período de um ano, tendo,

posteriormente, na 15ª edição recebido uma versão revista e atualizada devido a novas

descobertas fruto das investigações para o processo da “Comissão de Mortos e

Desaparecidos no Regime Militar”, entre elas a do laudo cadavérico desaparecido há

25 anos;

• Os Carbonários: Memórias da Guerrilha Perdida de Alfredo Syrkis; cuja primeira

edição é de agosto de 1980;

• Brasil: Nunca Mais, o dossiê sobre torturas de presos políticos organizado pela

Arquidiocese de São Paulo, de 1985;

• Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada,

livro do historiador Jacob Gorender, de 1987;

• Iara, Reportagem Biográfica, de Judith Lieblich Patarra, biografia de sua grande

paixão e companheira na guerrilha Iara Yavelberg, livro que tem como data da

primeira edição o ano de 1992, alcançando no período de um ano quatro edições;

• Mulheres Que Foram à Luta Armada, livro de jornalismo investigativo baseado em

depoimentos, de Luiz Maklouf Carvalho, de 1998;

• Dos Filhos Deste Solo – Mortos e Desaparecidos políticos durante a ditadura militar:

a responsabilidade do Estado, dossiê dos processos da “Comissão de Mortos e

Desaparecidos do Regime Militar”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, de agosto

de 1999;

• Ousar Lutar – Memórias da Guerrilha Que Vivi de José Roberto Rezende,

depoimento a Mouzar Benedito, de setembro de 2000;

26 O atestado de óbito da como local da morte o município de Brotas de Macaúbas, porém o povoado de Pintada

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22

• Almanaque Abril: Quem é Quem na História do Brasil, de 2000, que apontava as

“500 personalidades que fizeram a diferença na formação do país”27;

• Na narrativa jornalística de Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada, de 2002.

Lamarca está também presente nos registros bibliográficos dos militares. É

citado e comentado em:

• nas memórias do ex-chefe do Doi/Codi de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra,

Rompendo o Silêncio, publicado em 1987;

• no dossiê Brasil: Sempre, de Marco Pollo Giordani, de 1986 (uma tentativa de

resposta ao Brasil: Nunca Mais);

• Os Anos de Chumbo – Memória Militar sobre a Repressão, organizado por Maria

Celina D’Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro, de 1994;

• nas memórias do chamado Anjo da Morte – o Cabo Anselmo: Eu, cabo Anselmo

depoimento a Percival de Souza, de 1999.

Na literatura de ficção recebeu a dedicatória do livro de poesias do ex-militante

Alex Polari de Alverga “Inventário de Cicatrizes”, cujo valor aferido na venda destinava-se

ao Comitê Brasileiro Pela Anistia, em 1978; e no romance Não és tu, Brasil, de Marcelo

Rubens Paiva, em 1996, tendo como pano de fundo a passagem de Carlos Lamarca pela

região do Vale do Ribeira.

Pelas datas das publicações percebe-se o quanto a literatura sobre o período do

regime militar, tendo em Lamarca uma de suas mais destacadas figuras, é volumosa e

contínua. Também pelas datas pode-se imaginar ter havido, após o fim da censura, um boom

editorial, e de fato houve, sobre livros que trazem a público o conflito entre os “subversivos”

e os militares tendo o interesse de explicar e legitimar cada um dos lados e suas ações.

Lamarca é conhecido pela sociedade sobretudo através destas obras e pelo

papel desempenhado pela imprensa durante e depois do período de luta armada. Estas são as

fontes privilegiadas na análise da construção do personagem mítico.

Em 1996, no dia 30 de julho, durante o julgamento dos processos de

reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de militantes das organizações de

esquerda e opositores da ditadura na Comissão de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar,

o Jornal Folha de S. Paulo promoveu um debate entre o escritor Marcelo Rubens Paiva,

autor do livro Não és tu, Brasil, filho do deputado Rubens Beirodt Paiva, desaparecido

está localizado no município de Ipupiara 27 ALMANAQUE ABRIL QUEM É QUEM NA HISTÓRIA DO BRASIL . São Paulo: Abril Multimídia. 2000. p. 7

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23

político e primeiro a ter sua morte reconhecida através de anexo da Lei 9.140/95 que

instrumentalizou os trabalhos da Comissão; o historiador Jacob Gorender, autor do livro

Combate nas Trevas – Das Ilusões Perdidas à Luta Armada; Antônio Paim diretor do

Instituto Brasileiro de Filosofia antigo membro do Partido Comunista Brasileiro com o qual

rompeu em 1958 e defensor do regime militar e Jarbas Passarinho, coronel da reserva, um dos

articuladores do movimento de 1964, em Belém do Pará e ministro em três pastas de

governos do regime que ajudou a implantar: do Trabalho (governo Costa e Silva), da

Educação (Médici) e da Previdência Social (Figueiredo), foi também ministro de um governo

diretamente eleito na pasta da Justiça (Collor), que lançava um livro de memória Um Híbrido

Fértil28.

O debate foi publicado pelo jornal em 25 de agosto de 1996, e na capa do

caderno “Mais” uma frase de Jarbas Passarinho chamava atenção:

“Nosso lado ganhou a luta armada e perdeu a batalha da comunicação, não teve a menor capacidade de justificar de explicar de convencer”29

A afirmação do ex-ministro é correta no sentido de, a posteriori, os militares

prescindirem de uma imagem capaz de justificar, explicar e convencer as ações da ditadura, a

diferença proporcional entre as forças, a militarização do Estado ao dotar, através do Ato

Institucional n.º 5, o Executivo de poderes excepcionais e, ao mesmo tempo, liberar os

agentes da repressão para um combate fora das formas convencionais de luta, mas plenamente

de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional30. Faltou, enfim, a capacidade de criar uma

imagem de legitimidade às suas ações.

Esta guerra de comunicação não foi travada apenas após o fim da censura,

quando os combates armados já haviam sido finalizados. A batalha da comunicação começou

durante o conflito.

Antes do AI-5 os militares já se preocupavam com a importância estratégica da

imprensa no intuito de “explicar, justificar e convencer”, de maneira unívoca o momento,

para isso os manuais utilizados pelos censores em São Paulo no dia da decretação do Ato

continham as seguintes instruções:

28 Jarbas Passarinho encontra Marcelo Paiva JORNAL FOLHA DE S. PAULO Caderno 5 “Mais”. 25/08/1996 p. 5. 29 Jarbas Passarinho encontra Marcelo Paiva JORNAL FOLHA DE S. PAULO Caderno 5 “Mais”. 25/08/1996 p. 1. 30 GASPARI, Elio Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras. 2002 p. 39 et. seq.

Excluído: Jornal Folha de São Paulo

Excluído: Jornal Folha de São Paulo

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24

“[...] as notícias devem ser precisas, versando apenas sobre fatos consumados [...]. Não publicar notícias sobre atos terroristas, explosão de bombas, assaltos a bancos, roubos de dinamite em qualquer ponto do território nacional, ou sobre movimentos subversivos, mesmo quando se trate de fato consumado e provado.”31

A proibição de publicações contrárias aos interesses da ditadura não significou

o completo silêncio em relação ao movimento armado contra o governo, uma vez que a

imprensa foi utilizada para tornar público o “mal” na imagem dos guerrilheiros, um perigo

constante, sorrateiro e ameaçador que justificava as ações da ditadura:

“O inimigo opera subterraneamente, clandestinamente, versátil, inapreensível, capaz de infiltrar-se em todos os meios, sua habilidade suprema é a da manipulação, suas tropas invisíveis mas presentes em toda parte, são submetidas a uma obediência sem protestos .”32

É dessa forma que a imprensa identifica as organizações subversivas e constrói,

na imagem de Lamarca, a identificação desse “mal”.

Estrategicamente uma das maneiras de como a imprensa era utilizada foi no

atraso das informações para que os “subversivos” não soubessem quem havia sido preso e

pudessem se reorganizar para absorverem o golpe da “queda”, como explicou o próprio I

Exército no Rio de Janeiro:

“A divulgação da notícia no mesmo dia alerta todo o sistema subversivo. Os encontros que estão marcados para dentro de seis, doze ou 24 horas são todos desfeitos. Isso tem ocorrido na realidade e as tropas legas têm caído em verdadeiros vazios, prejudicando enormemente o desenrolar das operações”33 Não se trata de censura, mas de utilização estratégica, pois, em outros casos, a

imprensa foi utilizada para encobrir assassinatos a serem ainda cometidos pelos agentes de

repressão. No livro Dos filhos deste solo, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, (um dossiê

dos processos de reconhecimento de responsabilidade do Estado pela morte de militantes

durante a ditadura da Comissão de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar vinculada ao

Ministério da Justiça) são reveladas informações sobre a fuga e, posteriormente, a morte de

Bacuri (Eduardo Collen Leite - um dos mais destemidos entre os guerrilheiros); elas dão bem

a dimensão desse uso:

31 Idem. 2002 ; p. 212. 32 GIRARDET. R. op. cit. p. 59. 33 Sinais de guerra. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 28/01/1970 p. 25/26 - transcrição nota do 1º Exército

Excluído: Elio Gspari

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25

“Vinte e quatro de outubro de 1970, solitária do fundão do Deops/SP: o tenente Chiari da PM informa a Eduardo Collen Leite, o Bacuri, mineiro de Campo Belo, que o jornal daquele Sábado estava noticiando a sua fuga, ocorrida no dia anterior. Outros presos políticos, como Vinícius Caldeira Brant e Viriato Xavier, também ouviram o comunicado” 34

A manobra da publicidade da fuga serviu para encobrir sua retirada do DEOPS

e seu encaminhamento para o sítio particular do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DEOPS

Paulista e do Esquadrão da Morte, onde foi supliciado. O nome de Bacuri era dado como

certo na lista de presos a serem libertados em troca da liberdade do embaixador suíço Enrico

Bucher, seqüestrado por um comando da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, liderado

por Carlos Lamarca: A repressão não poderia apresentá-lo: além da farsa da fuga, ele estava

dilacerado pelas torturas35.

Seu corpo foi encontrado no dia 08 de dezembro de 1970 e, segundo Nilmário

Miranda e Carlos Tibúrcio, foi encontrado apresentando hematomas, escoriações, cortes

profundos, queimaduras, dentes arrancados e os olhos vazados.36 Mas a versão oficial,

reproduzida no laudo cadavérico, era de morte em tiroteio ... que teria ocorrido às 22 horas

do dia 8 de dezembro de 1970, em Boracéia, ligação entre Bertioga e São Sebastião. O laudo

registra quatro disparos e responde não ao item que pergunta se houve tortura.37 Esta versão

foi desmontada pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, quando foi aprovada a

indenização por unanimidade, contando até com o voto do representante das Forças Armadas,

o general Oswaldo Gomes.

Foi através desta imprensa e da propaganda utilizada pela ditadura que

Lamarca tornou-se conhecido e através das reportagens veiculadas no período de luta armada

a sociedade soube de sua existência, ou como a representação do complô maléfico ou, como

veremos, como o homem providencial.

A força de sua figura surge nas reportagens em que aparece como o

“subversivo” capaz de realizar proezas como tiros certeiros, fugas espetaculares, assaltos

mirabolantes; muitas dessas façanhas ligadas a sua formação profissional, afinal era um

soldado. Dessa forma, pode ser identificado como um perigo ou o homem providencial, figura

34 MIRANDA. N.: TIBÚRCIO C. DOS FILHOS DESTE SOLO - MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS DURANTE A DITADUARA MILITAR: A RESPONSABI LIDADE DO ESTADO . São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo: Boitempo Editorial. 1999. p. 57. 35 Ibid. p. 58. 36 Ibid. 37 Ibid.

Excluído: ,

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redentora capaz de redimir sentimentos de impotência diante de uma realidade não mais

acolhedora e segura.

Como militante de organizações de luta armada (VPR – Vanguarda Popular

Revolucionária, VAR-PALMARES – Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares, MR-8

– Movimento Revolucionário 8 de Outubro), o ex-capitão passa a representar o perigo de toda

“subversão”. Sua presença torna-se constante na imprensa e praticamente todas as ações dos

grupos guerrilheiros são noticiadas ou como sendo de sua responsabilidade, ou para anunciar

a possibilidade de sua prisão, ou ainda para demonstrar a periculosidade e a importância de

algum “terrorista” preso ou morto (quanto mais próximo de Lamarca, maior o perigo que

representava). O Lamarca que participou, segundo Marcelo Rubens Paiva, de apenas três

ações: Um assalto a banco, o roubo do cofre de Ana Capriglione e o seqüestro do embaixador

suíço, não era conhecido no momento da Luta Armada. Nesse período, ele é quase

onipresente em relação ao “terror”. No inquérito do DEOPS enviado à segunda auditoria, foi

acusado de 18 ações38 e, invariavelmente, as matérias sobre a “subversão” faziam alguma

referência a seu nome.

A prisão de Lamarca era sempre, segundo as reportagens, uma questão de dias

ou não havia sido ainda realizada por um simples acaso:

“E, segundo o Centro de informações do Exército, também a imagem de organização eficiente poderá sofrer um golpe a qualquer momento, com a prisão do ex-capitão Carlos Lamarca, o mais conhecido dos executores do Terror. Há informações de que ele já foi localizado, no Rio, e dificilmente escapará ao cerco que se fecha em sua volta”39

Na reportagem sobre a morte do guerrilheiro Antônio Raimundo Lucena, a

prisão do ex-capitão só não teria ocorrido porque uma rádio noticiou o tiroteio:

“A mulher de Lucena, presa na ocasião confessou que Lamarca freqüentava a casa habitualmente. E a polícia afirma que só não conseguiu pegá-lo (Lucena o esperava, Sábado, dia 21 um dia após sua morte) porque uma rádio de São Paulo noticiou o tiroteio.”40 Havia sempre um motivo para que esta prisão não se realizasse. Lamarca

escapava graças a casualidade de pequenos detalhes, o que demonstrava tanto a sua

capacidade quanto a eficiência dos órgãos de repressão, pois estes sempre o “localizavam”,

mesmo que fosse em função de erros à ventura cometidos pelo ex-capitão, mas não contavam

com a sorte:

38 VER ANEXO 1. 39 O terror fala e escreve. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 11/06/1969. p. 18.

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27

“As autoridades acreditam que Lamarca está numa posição bastante difícil, praticamente acuado. Mesmo não sendo considerado um dos ‘cérebros’ do terror (na sua organização, VAR-Palmares, ele era tido mais como homem de ação) localizar Lamarca, para a polícia, será a etapa final da escalada contra o terror. Ele é hoje o único homem em condições de reunir o que resta dos vários grupos esfacelados. Essa seria a última batalha do terror.” (os grifos são meus)41

Prender ou matar o ex-capitão é considerada a última etapa da luta contra o

“terror”, ou seja, já não é um indivíduo mas a representação de toda a “subversão”, mesmo

que ela esteja bastante desarticulada. Para justificá-lo como o “rosto” da subversão e a

imagem do “mal” a ser combatido e extirpado, era necessário que sua condição de liderança

fosse aceita e facilmente identificada nas matérias. As façanhas e a disposição para a ação o

credenciaram como líder, mesmo desqualificando-o como político, afinal, não era “um dos

cérebros do terror” e mantinha a idéia da necessidade da existência do aparato repressivo da

ditadura.

A instrumentalização da imprensa através do aparato da censura, também foi

explicada com a necessidade de conter o poder de sedução da imagem de Lamarca, pois para

os militares, a possibilidade de pontos de vista divergentes atribuírem diferentes significações

às noticias serviram como justificativa para a existência desse controle. O general Carlos

Alberto da Fontoura comentou esse perigo ao ser perguntado sobre a censura total em relação

a guerrilha:

“Ah! Em relação à guerrilha, era. Porque a notícia desperta. Se deixássemos publicar, e sobretudo mentir, que a guerrilha venceu ali, que o Lamarca fez isso, fez aquilo, os estudantes começariam a se assanhar. Porque os estudantes universitários, a UNE, todos eram inocentes úteis.”42 O General está correto quanto a possibilidade de Lamarca transformar-se,

devido às “mentiras” da imprensa, em um exemplo a ser seguido, porém ao tentar dotar-lhe

de um perfil maléfico, foi a ditadura quem mais buscou divulgar suas façanhas, “mentiu”,

como disse o general, buscando imputar-lhe todos os “males” e “perigos” dos grupos

“subversivos”, tornando-o presente em ações, mesmo quando estava ausente, aumentando

seus feitos e tornando-os espetaculares ela fez de quem era para ser temido, uma imagem

40 A última batalha. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 04/03/1970. p. 29. 41 A última batalha. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 04/03/1970. p. 29. 42 D’ ARAÚJO Maria Celina; SOARES Gláucio Ary Dillon; CASTRO Celso OS ANOS DE CHUMBO: A MEMÓRIA MILITAR SOBRE A REPRESSÃO , Rio de Janeiro; Relume-Dumará; 1994; p. 98.

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28

capaz dar respostas às expectativas sobre a chegada de um homem providencial apto a romper

com a situação social vigente.

Lamarca, já em março em 1971, segundo seus biógrafos Oldack Miranda e

Emiliano José, também tinha conhecimento da importância que sua figura adquiriu:

“Admite que numa ação armada, no sul, militantes haviam gritado ‘Viva Lamarca’, o que considerava errado – por não aceitar a criação de um mito – mas não a ponto de combater isso publicamente; seria uma política burguesa”43

Admitiu, segundo os mesmos biógrafos, em uma carta para a esposa Maria

Pavan Lamarca, que estava em Cuba, a esperança da população em seu nome. Em um

esquema de clandestinidade podemos concluir que tal notícia só poderia chegar até ele através

de órgãos de comunicação, mesmo que tenha havido erro na sua avaliação, foi nos noticiários

e periódicos que, a princípio, Carlos Lamarca, o personagem mítico, surge diante do homem

Lamarca:

“Falam no meu nome com extraordinária esperança. O nosso povo já foi traído por seus falsos líderes e embora eu não tenha esta pretensão sou uma esperança para o povo”44

A publicidade em torno do nome de Carlos Lamarca trouxe alguns problemas

na sua relação com os companheiros de luta. Segundo Judith Lieblich Patarra, biógrafa da

companheira de Lamarca, Iara Yavelberg, quando surgiu, na imprensa, a notícia de que o

Exército estava treinando as funcionárias de um Banco para defenderem-se dos assaltos

impetrados por “terroristas”, o militante Espinoza, desconhecendo a identidade do militar

preparou um plano para “justiçá-lo”.

Outro caso conhecido e noticiado pela imprensa foram as explicações que o

militante “Otavio”, codnome de Bajara Muniz, exigiu através do documento interno da VPR:

“Quem é Carlos Lamarca”. O esclarecimento era: “Por que o companheiro Carlos Lamarca

recebe tanta publicidade pelos canais de divulgação do Brasil” e a justificativa “...a não ser

o companheiro Carlos Lamarca, só o falecido companheiro Carlos Marighella conseguiu

tanta publicidade em seus quase 40 anos de militância.” 45

43 JOSÉ. E.: MIRANDA. Op. cit. p. 111. 44 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 48. 45 As acusações e as suspeitas dos seus companheiros de terror. JORNAL DA TARDE, O ESTADO DE SÃO PAULO , p. 14 de 21/09/71.

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Portanto o comportamento da imprensa não passou despercebido, nem mesmo

no momento da luta, e a publicidade negativa em torno do nome do ex-capitão também não.

Essa relação servil da imprensa com a ditadura foi motivo de indignação para o ex-capitão:

“A imprensa é dominada pelo capital americano: o que ficava da dignidade foi varrido pela pressão econômica. O regime de semi-escravidão do Nordeste brasileiro está sendo institucionalizado pelo governo e a imprensa aplaude, mostrando o grau desolador da indignidade moral a que chegou46

O julgamento de Lamarca sobre a imprensa é, segundo Raimundo Rodrigues

Pereira47, exagerado, mas não se pode omitir os serviços prestados pela imprensa à ditadura.

Podem ter ocorrido não por iniciativa dos jornalistas (aliás, segundo o projeto Brasil Nunca

Mais, esta categoria foi uma das mais perseguidas pelo regime militar)48 ou então sob pressão

econômica e imposições, como acusa o ex-capitão, mas foram fundamentais na dissimulação

de notícias e até ajudando a acobertar casos de morte.

A propaganda e a imprensa foram armas poderosas da ditadura contra a

guerrilha urbana. Sem noticiar as atrocidades de seus porões, a ditadura não deixou de

alimentar, através dos meios de comunicação, a imagem do perigo e nem negou a existência

do terror ou dos chamados “subversivos”, chegando mesmo a levar à televisão aqueles que

“renegavam” (sinceramente ou não) seus dias de militância. Reconhecendo haver um conflito,

uma guerra e não apenas um surto terrorista.

No entanto, mesmo diante da seleção de elementos utilizados na tentativa de

construção da imagem de Carlos Lamarca como sendo a expressão do complô maléfico das

organizações “subversivas” houve possibilidade da construção de uma imagem voltada para a

disposição para a luta.

O apelo a constelação da Conspiração tem conotação negativa, pois em geral

se dá graças aos militares que, diante a existência de um perigo buscam justificar a existência

e sua forma agir na repressão política. Nos livros e reportagens não há uma organização que

possa ser citada como a representação da “subversão”, nem durante a luta nem em outros

momentos. Não houve na luta armada uma organização capaz tornar-se conhecida como

condutora da luta, até mesmo a guerrilha do PC do B é reconhecida como a “Guerrilha do

Araguaia” ou “Guerrilha de Xambioá”. As representações desses grupos recaiu sobre suas

lideranças, os dois Carlos revolucionários, e tornando-os então a representação desse “mal”.

46 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 95. 47 Autor do prefácio do livro de Oldack Miranda e Emiliano José. Excluído: , op.cit

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Em relação a “Guerrilha do Araguaia” não houve na imprensa durante o

momento da luta apelo a imagem mítica alguma, pois, neste caso, não havia necessidade da

identificar o complô. Tratava-se de uma força organizada e localizada em uma área limitada.

Após o fim da censura, no entanto, novamente é o perfil individual que ultrapassa seus

contornos e assume a imagem do movimento guerrilheiro: Osvaldo Orlando da Costa.

A imprensa é utilizada e veicula a imagem de Lamarca de acordo com os

interesses dos militares na luta contra o “terror”. Desde o momento que se noticia sua saída do

Quartel de Quitaúna levando armas e o ingresso na luta armada, houve, em torno de seu

nome, a construção da imagem da “subversão”, se não de toda ela pelo menos como o mais

concreto perigo oferecido por essas organizações.

48 Arquediocese de São Paulo, BRASIL NUNCA MAIS . 20 º. Petrópolis: Ed. Vozes. p. 143. Formatado

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• 1.1 - SANTO E/OU DEMÔNIO?

A Luta Armada foi uma guerra declarada, pelo menos este foi o discurso do

porta voz dos militares na Comissão de Mortos e Desaparecidos, o general Oswaldo Pereira

Gomes:

“Mas para satisfazer os juristas, devo dizer que a Carta de 1967 e sobretudo a Emenda de 17 de outubro de 1969, absorvendo a doutrina de Segurança Nacional, duas ordens jurídicas paralelas, no Estado Brasileiro, a ordem constitucional e a ordem institucional, esta pela vigência do Ato Institucional e os que lhe sucederam, a justificativa para isso, era combater a Guerra Revolucionária no país”49

Guerra que os militares vitoriosos não conseguiram transformar em imagem de

êxito do regime contra uma ameaça interna, mas a serviço de nações estrangeiras. Tão pouco

a idéia de grande nação conseguiu, após o período de notável desenvolvimento do chamado

“Milagre Brasileiro”, elevar o país ao primeiro mundo, nem a rígida disciplina dos quartéis

foi capaz de deixar sua marca na política e tornar-se seu legado.

Na opinião do ex-capitão Carlos Lamarca, a edição do AI-5 – Ato Institucional

n.º 5 - foi a declaração dessa guerra, o que precipitou, segundo a biógrafa de Iara Yavelberg

(companheira de Lamarca), Judith Lieblich Patarra, sua saída imediata do Exército e o

ingresso por completo na clandestinidade e na guerra: “O governo se declarou em guerra

contra todos que contestam o regime. Ou vocês participam ou saio sozinho com meu 38”50 .

Não foi um conflito travado nos moldes tradicionais nos quais avança-se sobre

um território inimigo conquistando terreno e posições, fazendo prisioneiros e, por fim

depondo um governo ou uma liderança. Nesta guerra havia a necessidade de se adaptar para

uma nova forma de luta. Na busca de um inimigo interno a tortura tornou-se uma prática

comum. O romancista Marcelo Rubens Paiva narra o suicídio do capitão Ênio e a participação

do Coronel Erasmo Dias da Polícia Militar de São Paulo no episódio da “Guerrilha do

Ribeira” ( quando Lamarca e outros oito guerrilheiros, entre 21 de abril a 31 de maio de 1970,

escaparam do cerco do Exército e da Polícia Militar de São Paulo na região do Vale do

49 Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar – Ministério da Justiça – PROCESSO 038/96 p. 317. 50 PATARRA, Judith Lieblich. IARA, REPORTAGEM BIOGRÁFICA , 4 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos. 1993. p. 277. Segundo esta autora esta afirmação foi feita na última reunião da VPR para avaliarem a pertinência da saída de Lamarca naquele momento. Teria ocorrido após o dia 17 e antes do dia 24 de janeiro, sem precisar a data certa.

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Ribeira ) como um momento de total descompasso a ponto de tirá-lo da ativa e transformá-lo

em político de carreira:

“Ficou de mãos abanando o coronel Erasmo51. Bem que tentou, seguindo os manuais do bom soldado, simulando uns fuzilamentos. Ficou deprimido ao descobrir que pelas vias normais, missão-terreno-inimigo-meios, o combate à subversão não surtia efeito. É, Erasmo, deixe para os outros, para os profissionais. Erasmo viu o DOI-Codi52 se fortalecer. Teve que ceder, como todos os outros comandantes militares, homens para a tarefa suja; como um pacto. Viu seu melhor homem, capitão Ênio, entrar na onda e ir para o DOI-Codi da rua Tutóia53, o centro da tortura paulista. Acompanhou o estado em que seu capitão ficou quando teve contato com a verdade das prisões. Viu capitão Ênio vomitar depois de descrever os horrores dos bastidores. Viu seu melhor homem definhar. Tentou alertá-lo: Sai disso, homem, isso não é pra você! Mas Ênio sabia: uma vez dentro, ninguém saía. Erasmo não viu mais nada. Seu melhor homem, capitão Ênio, se matou. O resto você sabe, coronel Erasmo pediu desligamento do Exército, entrou para a vida pública, virou secretário de Estado e depois deputado.”54

Para o autor de Não és tu, Brasil a partir dos acontecimentos do Vale do

Ribeira houve uma mudança fundamental para a vitória dos militares:

“Repensaram a tática antiguerrilheira e fortaleceram os grupos paramilitares, dando carta branca aos esquadrões e torturadores do DOPS, do DOI-Codi e dos centros de informação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que, em vez de partirem diretamente para o confronto, priorizavam os informantes, delatores, agentes infiltrados e contra-inteligência. Tortura. Profissionalizaram o combate à subversão e, você sabe, funcionou. Extermínio. O Jogo virou. O que um ano antes eram só vitorias esmagadoras da guerrilha, assaltos a bancos a torto e a direito, roubos de armas, bombas em quartéis, justiçamentos, seqüestros de diplomatas, com quedas, sim, e mortes, agora, só derrotas. A revolução com os dias contados.”55

Elio Gaspari também considera a figura de Lamarca central na mudança da

forma de combater a “subversão”:

“Apesar dos sucessos conseguidos pela repressão, o governo se assustara com a fuga de Lamarca, sobretudo pelo toque romanesco do capitão do Exército que deixa a fortaleza e se junta aos guerrilheiros. O general Jayme Portella ,na qualidade de secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, escreveu a Costa e Silva que ‘a persistir tal situação é de prever-se: a eclosão de guerrilhas urbanas e rurais; a atuação mais violenta em atos de terrorismo; a criação de ‘bases’ e ‘zonas liberadas’”56

51 Erasmo Dias – Na época coronel da Polícia Militar de São Paulo posteriormente seguiu carreira política. 52 DOI-Codi – Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna. 53 Centro de tortura denunciado com bastante freqüência por militantes que estiveram presos. 54 PAIVA, Marcelo Rubens, NÃO ÉS TU, BRASIL São Paulo: Mandarim. 1996 p. 195 55 PAIVA, Marcelo Rubens. Op. cit. 197 56 GASPARI, É. . Op. cit. 59

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Em outras citações, a figura de Lamarca continua a aparecer como responsável

direto de um novo modo de agir por parte dos militares. Em depoimentos de militares como

o general Carlos Alberto da Fontoura, encontramos novamente o personagem como

justificativa para esse novo comportamento:

“No meu tempo de chefe de Estado-Maior em Porto Alegre, foi preso um oficial comunista da Aeronáutica. Não me lembro o nome; era um comunista, daqueles de arma na mão. Foi preso na própria Aeronáutica e mandado para o 7º Batalhão de Caçadores. Fugiu. ‘Mas, como fugiu? Estava numa sala fechada com sentinelas!’ ‘Fugiu pelo teto’ – as coisas são engraçadas. Então mandei um oficial falar com o comandante e fazer uma pesquisa: o oficial de dia no dia da fuga era o tenente Lamarca. Está aí a explicação. Ele já era comunista quando tenente em Porto Alegre, em 1966. Transferiu-se para um batalhão em São Paulo, e ninguém sabia que era comunista. Só quando fugiu. Não havia um serviço de informações. Por isso, um dia eu fui ao Médici e disse ‘O SNI esgotou os seus conhecimentos. Somos todos amadores. O senhor também foi amador como chefe do SNI, o Golberi era amador, eu sou amador, e os que vierem serão amadores.’ Diz ele: ‘Mas qual é a solução?’ ‘É fundar uma Escola Nacional de Informações.’ Disse que ia pensar um pouco. Daí uns dois dias ... ‘Pode fundar.’” 57

A caçada a Lamarca aparece, nestes depoimentos, distinta de todas as outras da

repressão. A perseguição a Marighella tem também elementos trágicos como pessoas não

resistindo a tortura, a morte de Frei Tito que, com problemas mentais, suicidou na França

após as torturas sofridas. Segundo os relatos, foi na busca ao ex-capitão que a ditadura

modificou seu modo de agir contra o “terror”. Não bastou encontrá-lo e matá-lo foi preciso

mudar a maneira de enfrentar a “subversão” com ações de informação e contra-informação,

nas quais o avanço é mensurado pelo número de inimigos colocados fora de combate, ou

presos ou mortos. Os partidários da ditadura deixam com isso, de habitar um mundo de luz

para habitar um mundo de trevas onde regras da normalidade social não são reconhecidas.

O núcleo da Conspiração possui essa caraterística de explicação do quadro

social quando não há mais uma identificação com o momento de aceleração e quebra dos

laços de solidariedade social. Poder de explicação que não se limita à realidade social, mas

desdobra-se na justificativa de um conflito para além das regras da normalidade social.

A narrativa de Marcelo Rubens Paiva demonstra o quanto a “nova” forma de

luta teria causado estranheza a antigos agentes policiais. Um impotente para retirar-se prefere

a morte; outro busca na política convencional, a identificação e a legitimidade de suas

posições. No entanto há na ação do Coronel Erasmo Dias total conhecimento da

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institucionalização da força como método e nenhum repúdio, a não ser quanto ao

envolvimento pessoal de um subordinado e amigo.

Além da tortura outra característica desse conflito, regra de uma normalidade

moral quebrada, é a traição. A descrição das infiltrações de algumas atividades demonstram

que o principal feito não era colocar um agente dentro das organizações “subversivas”, mas

“virar” alguém dentro dos grupos:

“Porque o Chou à la créme, quer dizer o máximo de todo serviço de informações é ‘virar’ um camarada, não é infiltrar. Infiltrar é muito bom. Mas o máximo do máximo é ‘virar’, é pegar um camarada importante do outro lado, ‘ganha-lo’ e fazer com que ele trabalhe para você”58

A “virada” de alguns membros das organizações subversivas é considerada o

grande feito dos serviços de informação. Eles eram chamados na gíria dos porões da ditadura

como cachorros. Os mais conhecido são José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo que

militou na VPR, era membro de confiança do dirigente Onofre Pinto, contudo trabalhava para

a repressão e Jover Teles, militante histórico do PC do B também notório delator.

A traição é o grande feito dos serviços de informação ao “virar” alguém, mas é

também a afronta sofrida. Lamarca não pode ser perdoado pelos militares por se tratar, para

eles, de um traidor.

Para o coronel da reserva Uzemir Ramos Camargo59, contemporâneo de

Lamarca na Academia Militar de Agulhas Negras, não há como negar a traição ou mesmo

reconhecê-la e perdoá-la.

Ao entrar na luta, Lamarca era um militar descontente e rebelde. Não havia

sido um militante do Partido Comunista nem se notabilizado em círculos teóricos ou

acadêmicos, suas atividades políticas se resumiam em participar da campanha nacionalista O

Petróleo é Nosso e facilitar a fuga de um preso político, o capitão da Aeronáutica Alfredo

Ribeiro Daudt, em Porto Alegre em 1964, algo de pouca expressão que lhe valeu um inquérito

que resultou em nada. Sua indignação não é fruto de orientação recebida através de alguma

dogmática militância partidária ou da sedução por teorias acadêmicas.

Essa deficiência teórica é uma das suas características mais evidenciadas tanto

nos livros publicados posteriormente, quanto pelos artigos de jornais e revistas do momento

57 D’ ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO Celso. Op. cit. p. 94 Depoimento do general-de-divisão Carlos Alberto da Fontoura a O trecho citado trata-se da resposta à pergunta “Como se deu a decisão de criar a Escola?” ( Escola Nacional de Informações ) 58 Ibid. p. 40. 59 Depoimento ao autor.

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da luta armada, mas não diminui sua importância para o movimento guerrilheiro, ao

contrário, evidencia sua dedicação, entrega e capacidade:

“Lia sofregamente, na ânsia de superar esta deficiência, que o inferiorizava diante dos intelectuais de formação universitária. Contudo, não lhe faltavam inteligência e senso comum da sua origem popular, que lhe permitiram acertar quando os intelectuais erravam.”60 A determinação com a qual se dedicou a luta é uma das justificativas para o

destaque que recebe. A revista Caros Amigos ao lançar uma série especial denominada

Rebeldes Brasileiros: homens e mulheres que desafiaram o poder, dedica-lhe o fascículo nº 6

ao lado de Gervásio Pires e identifica-o pela sua disposição para o combate:

“Não se destacou como um teórico da guerrilha, mas foi reconhecido pela disposição com que combateu a ditadura e por ter transformado sua indignação em prática, o que se valorizava acima de tudo naqueles anos”61

A construção de sua imagem como uma das representações desse combate

através da avaliação de suas ações e atitudes ultrapassa os contornos individuais. Perseguido e

caçado, torna-se um dos principais elementos da luta contra a ditadura e a principal imagem

deste movimento e perfil ideal para os rebeldes “subversivos”. A disposição com que

combateu é, portanto, um fundamento histórico essencial na mitificação do ex-capitão,

segundo Girardet:

“O mito político jamais deixa, nós sabemos, de enraizar-se em uma certa forma de realidade histórica”62

Essa “certa forma de realidade histórica” é selecionada, seja

intencionalmente, destacando aspectos comprobatórios da argumentação, seja

espontaneamente com o reconhecimento de uma proximidade redentora ou afetiva, para em

ambos os casos buscarmos uma resposta à intenção persuasiva da narrativa mítica. O poder do

mito não está, portanto, apenas nas excelências da narrativa e dos elementos selecionados.

Devem haver condições, ou mesmo uma disponibilidade, para sua compreensão e sua

aceitação.63

60 GORENDER. J. op. cit. p. 188 61 REBELDES BRASILEIROS: HOMENS E MULHERES QUE DESAFIA RAM O PODER. São Paulo: Coleção Caros Amigos Editora Casa Amarela. fascículo 6, vol.. 2, p. 547/ 575. 62GIRARDET. R. op. cit. p. 81. 63GIRARDET. R. op. cit p. 51.

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Desde o momento em que optou pela participação na luta contra a ditadura

militar, Lamarca tornou-se um personagem constante nos jornais e revistas, desde então data

são atribuídos valores a sua figura. Sua hierofânia, isto é, o momento em que é sacralizado se

dá logo após sua saída do Exército e não apenas quando se tornar, entre os guerrilheiros

aquele que talvez tivesse a melhor qualificação militar, mas por revelar-se de uma maneira

completa e ao espaço que lhe cerca.

O objetivo da Operação Pajussara de destruir com sua morte, o mito do

guerrilheiro64, e a proibição do presidente da república de, após as notícias confirmando o

fato, não haver mais publicações a respeito65, evidenciam que o momento de hierofânia não é

posterior à luta armada e há consciência a disto por parte da ditadura.

Neste momento de sacralização, segundo Mircea Eliade, há uma:

“Rotura na homogeneidade do espaço como também revelação de uma realidade absoluta que se opõe a uma não-realidade absoluta de imensa extensão envolvente.”

Evidentemente Mircea Eliade refere-se a uma realidade religiosa, esta pode se

confirmar no cotidiano das sociedades arcaicas por ele estudadas. Mas esse traço destes mitos

não é descartados pelos mitos políticos de sociedades históricas ou modernas. A não-realidade

absoluta convive com a realidade absoluta, esta revela aquilo que move nas sombras, nos

subterrâneos, nos complôs e tem sua existência reconhecida sem perder o mistério que a

envolve. O mito não possui a função de esconder, mas de revelar e falar das coisas66.

A não-realidade absoluta e envolvente do país que caminha a passos largos

para um futuro brilhante com os vários setores da sociedade colaborando entre si para

harmonia geral é confrontada pela realidade absoluta da existência de organizações de

esquerda praticando assaltos, seqüestro de embaixadores, ataques a quartéis, enfim, uma outra

face desse país. Descontentamento já evidente desde as manifestações de 1968, afinal uma

passeata com 100 mil pessoas em uma cidade que até pouco tempo era a capital federal, ou

seja um palco destacado na cena política contando com a adesão e apoio de várias categorias é

algo representativo.

Segundo Raoul Girardet, o mito político, em todas as manifestações

observadas, estava ligado a um momento de crise onde se verifica:

64 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO BRASILEIRO, IV EXÉRCITO, 6ª REGIÃO MILITAR. RELATÓRIO RESERVADO OPERAÇÃO PAJUSSARA, [S.l]. 1971. p. 37. 65 GASPARI, É. op. cit. 358. 66 ROLAND Barthes O Mito, Hoje. In. O PODER DO MITO p. 117

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“aceleração brutal do processo de evolução histórica, rupturas repentinas do meio cultural ou social, desagregação dos mecanismos de solidariedade e de complementaridade que ordenam a vida coletiva” 67 A luta armada no Brasil, assim como outros conflitos ocorridos no final da

década de sessenta e início dos anos setenta em todo o mundo, evidencia estas rupturas e a

desagregação dos mecanismos de solidariedade. Seja polarizando a sociedade, seja definindo

lados e posições a serem ocupadas.

Esta forma polarizada, uma disputa entre o “bem” e o “mal”, entre heróis e

vilões, entre aqueles que queriam “entregar” o país a algum interesse estrangeiro e quem se

via como capaz de realizar a “salvação” do país, foi, como boa parte da literatura retratou o

momento e a maneira como os antagonistas se viam. O cineasta Sérgio Resende no filme

Lamarca utilizou um texto de Charles Dickens para nos despertar a emoção do período e

localizar cada lado:

“Era o melhor de todos os tempos, era o pior de todos os tempos, era a idade da sabedoria, era a idade do disparate, era a época da fé, era a época da descrença, era a estação da lua, era a estação da treva, era a primavera da esperança era o inverno do desespero, tínhamos tudo à nossa frente, não tínhamos nada à nossa frente, em suma, era uma época tão semelhante à atual, que algumas de suas mais espalhafatosas autoridades insistem em ser aceitas, para o bem ou para o mal apenas no grau superlativo: Deuses ou Demônios.”

Nesse tempo de posições polarizadas e superlativas, Lamarca é, para os

militares, o traidor, a vilania, mas era a face daqueles abdicados que podiam dizer: “perdemos

o direito de morrer até que a morte seja um de exemplo” 68.

67GIRARDET. R. op. cit. 180. 68 JOSE E.: MIRANDA O. op. cit. p. 48

Excluído: p.

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• 1.2 - A IMAGEM DA ONIPRESENÇA

Banco de Dados Jornal Folha S. Paulo. Lamarca posa junto a Laudo Natel, diretor do Banco Bradesco posteriormente indicado para assumir o cargo de governador do Estado de São Paulo. 22/01/1969.

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Banco de Dados Jornal S. Paulo. O capitão Lamarca como instrutor de tiro ao lado de funcionárias do Banco Bradesco. 22/01/1969.

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Banco de Dados Jornal Folha S. Paulo. Lamarca e funcionária do Bradesco em treinamento de tiro. 21/01/1969. Esta foto foi publicada também pela revista Veja, em 21/05/1969, com os subscritos “Ele era enérgico, mas delicado”.

A ditadura ajudou a construir e utilizou-se da imagem do complô maléfico na

figura do capitão Carlos Lamarca. E, em um caso pelo menos, pode-se afirmar utilizou sua

imagem como de um representante do Exército. Isto ocorreu antes de sua saída do Exército,

quando foram publicadas fotos suas como instrutor de tiros na Revista Manchete69 ao lado de

funcionárias do Banco Bradesco e de seu diretor Laudo Natel, depois indicado como

governador do Estado de São Paulo.

Após a deserção, este uso se dá de outra forma, ou melhor, de outras formas.

Através da imprensa, controlada pelos militares, não aparece mais o representante do Exército

e sim o assaltante de bancos que rouba em “nome do terror”70 e “subversivo”. É também o

“vil traidor” que menospreza o esforço dos pais de origem humilde para ajudá-lo nos estudos

e até o próprio Exército, que lhe possibilitou ascensão social e enfim, surge como a expressão

de um “mal”, um cancro social, o destaque para a perícia com as armas e um perfil de sua

personalidade71 vão acentuar-lhe os contornos de um perigo eminente.

69 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 45 70 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21. 71 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. P. 18/21

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A imagem de Lamarca foi construída como sendo a existência e a

identificação com algo que coloca em perigo a harmonia social. A partir de então, torna-se o

rosto desse perigo com todos os contornos que este “mal” possa possuir. Para os militares, é

símbolo de traição e de todo perigo contido na palavra “subversão”. A habilidade com as

armas e sua qualificação profissional ajudaram a criar essa figura.

Após a fuga do Quartel do 4º RI de Regimento Raposo Tavares levando armas

para a revolução, a imprensa já o apresenta com uma identificação “completa”, com

características físicas, habilidades e até um “detalhe psicológico”:

Ele é capaz de acertar numa laranja a 30 metros, com um tiro de revólver. Dirige automóvel com perícia, o pé sempre no fundo. Fuma muito. Tem 31 anos, 1,70m. de altura, olhos castanhos escuros e aquela magreza rija dos homens tensos. Ele é capaz de matar a mais de 30 metros de distância com dois tiros de sua pistola – um na testa outro no maxilar – como aconteceu há dez dias, em São Paulo, com o guarda-civil que corria para intervir no assalto a bando da Rua Piratininga72 Neste momento ainda não era o mais procurado “terrorista”, mas já é apontado

como o mais perigoso entre os que até então tiveram seus nomes ligados à subversão. Antes

havia Carlos Marighella, até então, o mais conhecido “subversivo” e apontado como o líder

de todo o “terror”, Sábado Dinotos considerado mais um fanático místico73; o ex-pracinha

Roberto Manes, que agia com a família e chamado de rocambolesco pela imprensa. Todos

foram responsabilizados por ações armadas, entretanto apenas Marighella é reconhecido

como sendo ligado a grupos organizados de esquerda.

Quando surge na imprensa, Lamarca é apresentado como um perigo para o

cidadão comum, pois é capaz de matar, como fez no assalto a banco da Rua Piratininga,

possui habilidade técnica, e por ser uma pessoa tensa pode, a qualquer momento, perder o

controle. Perigo maior ainda pelo arsenal que traz consigo:

...êle desapareceu do seu quartel, Regimento Rapôso Tavares (4º RI), situado em Quitaúna, localidade próxima a São Paulo, levando 69 fuzis, dez metralhadoras e três bazucas, arma anti-tanque. 74

72 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.– A versão dos biógrafos Oldack Miranda e Emiliano José sobre estes tiros é mais interessante: “Na esquina com a Rua Visconde de Parnaíba, de pé na calçada, ele vê o guarda-civil Orlando Pinto Soares apontar a arma em direção ao ex- sargento Darcy Rodrigues. Lamarca, a 30 metros de distância, dispara o 38 e acerta a nuca do guarda, que dá uma volta no corpo e recebe mais um tiro no rosto”72 73 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21. 74 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.

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O instrutor antes considerado seguro, enérgico, mas delicado75, não aparece

como vítima ou seduzido, ao contrário, torna-se o rosto do “mal”, algo que pode ser atacado:

“O Mal que se sofre, e mais ainda, talvez, aquele que se teme, acha-se doravante muito concretamente encarnado76” .

A polícia ao afirmar: “É o mais perigoso de todos”77 contribui para que o

“mal” fosse reconhecido na imagem do ex-capitão. A ele é imputada a identidade do outro, do

estrangeiro, um grupo de “traidores” dispostos a agir em função de uma nação estrangeira ou

em benefício próprio. Lamarca, na imagem construída pela ditadura, ao juntar-se às

organizações “subversivas” passou a representar esse “mal”, sendo lhe imputado os contornos

da representação do complô “subversivo”.

A disputa entre o “bem” e o “mal” junta-se ao cenário onde a guerrilha urbana

se desenvolveu. A clandestinidade dos militantes das organizações e os porões da ditadura são

uma realidade histórica, como também representações de forças ocultas defrontando-se.

A idéia de complôs movendo-se nas sombras e exercendo um poder misterioso,

porém detectável, não é uma novidade na história da república brasileira. Getúlio Vargas

utilizou o eminente perigo da conspiração quando lançou mão, em 1937, do falso plano

Cohen para justificar a implantação do estado de sítio e da ditadura do Estado Novo.

Carlos Lacerda tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek sob a acusação

de que os comunistas, então membros de um partido prescrito, ou seja, fora de uma certa

normalidade social, teriam apoiado sua candidatura, o que justificava a diferença de votos a

favor do ex-governador mineiro. E o golpe de 31 de março, também fruto de uma conspiração

entre civis e militares. Enfim, a população brasileira convivia com este movimento intenso

realizado às sombras.

O ex-capitão ao se colocar fora do Exército é também colocado fora do mundo

da “Luz”. O tema da “Conspiração”, aponta Raoul Girardet, apresenta um local onde ira

travar-se um combate, este lugar é o Império das Trevas78. É onde “começa o domínio do

não-conhecível, do não-identificável, aquele onde as palavras familiares perderam todo o

poder para designar uma realidade que se furta à sua captura”79. Um local, portanto,

distante de uma normalidade social.

75 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21. 76 GIRARDET. R. op. cit. p. 55. 77 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21. 78 GIRARDET. R. op. cit. p. 42. 79 Ibid p. 42 et. seq.

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Neste Império das Trevas os complôs identificam nos antagonistas a imagem

do Estrangeiro. No caso da luta armada a influência estrangeira é demonstrada nos desígnios

apontados, pois ambos os lados se querem brasileiros e identificam o opositor como aquele

que está a serviço de governos estrangeiros. Lamarca mesmo refere-se a esta direta

participação estrangeira;

“Atualmente, os EUA mantém no Brasil um corpo permanente de ‘assessores’, e o aumento dos agentes da CIA e dos ‘Peace Corps’ é significativo. No interior das Forças Armadas brasileiras há uma propaganda entre os oficiais para que seja aceita a intervenção.” 80 Militares também identificam os interesses internacionais como sendo os que

conduzem à subversão. Para Marco Pollo Giordani;

“Logo após a conquista do poder, em Cuba, pelos comunistas, passou o PCUS – (Partido Comunista da União Soviética) a se utilizar daquele país como pólo irradiador de movimentos revolucionários de cunho violento (guerrilha), subversão e terrorismo.”81

Esses dois depoimentos apresentam diferenças. O de Lamarca é feito no calor

da luta, enquanto o de Marco Pollo Giordani, posterior ao de Lamarca, tenta explicar a luta.

Mas percebe-se em ambos uma identidade ciosamente dada ao antagonista. Ele é o corpo

estranho à unidade nacional. Defendê-la de tal afronta é a justificativa que legitima as ações.

Portanto ultrapassar os limites de uma normalidade é algo necessário

Os homens das trevas são vistos como pertencentes a uma nova sociedade, ou

melhor separados do mundo da “luz”. O Império das Trevas, local onde o complô maléfico

será confrontado com sua réplica benigna, é a representação de onde se travou a luta armada

presente nos relatos envolvendo o tema. Um dos mais respeitados livros sobre esse período,

traz no título esta imagem, “Combate nas Trevas” de Jacob Gorender.

Para habitar este Império das Trevas as organizações de “subversivas” além de

suas necessidades orgânicas e funcionais têm suas características destacadas favorecendo o

culto ao mistério. Algumas reportagens são apresentadas literalmente com características que

Girardet aponta ao descrever a estrutura da hierarquia dos complôs maléficos da constelação

da Conspiração:

80 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 92. 81 GIORDANI. M. P. BRASIL: SEMPRE . São Paulo: Tche. 1986. p. 160.

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“Protegida dos olhares externos pela lei do segredo, a Organização impõe-se, por outro lado, pelo rigor de sua compartimentação interna e de sua estrutura hierárquica. A forma pela qual se apresenta, o mais das vezes, é a de uma pirâmide com escalões sucessivos e estritamente compartimentados: a cada escalão recentemente galgado corresponde, para o homem do complô, um grau suplementar de conhecimento de autoridade e de responsabilidade. No topo, para onde confluem os fios de todas as intrigas e de onde partem todas as palavras de ordem, assenta-se uma autoridade soberana, definida ao mesmo tempo como implacável e invisível”82

O fascínio do mistério deve-se a um jogo que oculta e mostra. A reportagem da

Revista Veja de 21 de maio de 1969 descreve a VPR – Vanguarda Popular Revolucionária,

organização onde Lamarca militou logo após sua deserção, da seguinte forma:

“ Por dentro da Vanguarda – Estruturada nos mesmos moldes dos tupamaros uruguaios, a Vanguarda Popular Revolucionária é uma organização paramilitar de esquerda cujos integrantes se conhecem apenas por nomes de guerra e são divididos em compartimentos quase estanques: só um de cada célula tem contato com o quadro superior – e assim por diante, numa rôsca que termina num insuspeito comando.”83

A partir de setembro de 1970 uma estrutura de repressão é montada para agir

melhor neste Império das Trevas, melhor dizendo, para buscar ordenar sob comando do

Exército ações que já ocorriam. Em cada área de Comando de Exército, hoje Comando militar

havia:

“- um Conselho de Defesa Interna (CONDI);

- um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI);

- um Destacamento de Operações de Informações (DOI)

Todos sob a coordenação do comandante de cada Exército” 84

A parcela mais conhecida dessa estrutura foi a dupla DOI/CODI, sendo o

CODI – Centro de Operação de Defesa Interna - o responsável por garantir a coordenação e a

execução do planejamento das medidas de Defesa Interna, e o DOI – Destacamento de

Operações de Informações - o que na prática era a centralização de agentes de várias áreas,

Marinha, Aeronáutica, SNI (Serviço Nacional de Informações), Departamento de Polícia

Federal, Secretaria de Segurança Pública (Polícia Civil e Polícia Militar) na atividade de

combate a “subversão”. Algo que não constava até então das atribuições de quaisquer destas

82 GIRARDET. R. op. cit. p. 35. 83 Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21. 84 USTRA. C. A. B. ROMPENDO O SILÊNCIO . Brasília: Editerra Editorial. 1987. p. 125.

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instituições, mas que já vinha sendo exercida através de seus centros de informações, CIE –

Centro de Informações do Exército, CENIMAR - Centro de Informações da Marinha, CISA –

Centro de Informações da Aeronáutica, e outras exatamente com essas atribuições como a

OBAN – Operação Bandeirante (que recebia apoio financeiro de empresários), e o DEOPS -

Departamento Estadual de Ordem Política e Social.

Os órgãos de repressão tornaram-se muito mais conhecidos por suas siglas que

por suas atribuições, pois, na prática, essa linha divisória pouco pode ser percebida, causando

inclusive alguns problemas operacionais na coordenação em algumas operações, como as

buscas a Lamarca:

“A dificuldade de coordenação das equipes de diferentes origens, no emprêgo tático, foi motivada por falta de uma doutrina única, já que pertenciam ao EXÉRCITO MARINHA DE GUERRA (Armada e Fz. Nv.) AERONAUTICA, POLÍCIA FEDERAL, POLÍCIA MILITAR e SSP/GB (GOEsp), POLÍCIA MILITAR DA BAHIA e SSP/SP. “85

Já as organizações “subversivas” deveriam ser identificadas pela imprensa para

poderem ser atacadas e demonizadas. Na matéria de capa da revista Veja de 03 de junho de

1970, aparece uma máscara e ao lado os dizeres “Segredos do Terror”. Trata-se de uma foto

de ex-capitão recortada, sem os olhos, sem cabelos, apenas a face aparece. Abaixo parte de

um manuscrito do ex-capitão criticando asperamente uma militante.

Com o título de “A nova face do terror”, a matéria traz o vínculo entre as

imagens de Lamarca e o “terror” já consolidado. Não há quem represente melhor o “perigo” e

o poder maléfico que o ex-capitão. A máscara não esconde, ela o revela. Faz alusão aos

caminhos por onde o terror age tornando necessário a vigilância constante para identificar as

novas formas que assume, mas mantém o temor diante do desconhecido evidenciando-o. O

rosto conhecido não é mais o mesmo, mas mantém reforça o perigo da face anterior.

O roteiro desta matéria é o mesmo de outras reportagens sobre o “terror”.

Qualquer ação terrorista é noticiada com a presença de Lamarca. Neste caso, de fato eram

notícias a seu respeito. Os temas são: os detalhes da operação plástica e as atividades militares

na região do vale do Ribeira. A matéria é composta de análises do “desespero” das ações das

organizações “subversivas”, dos possíveis locais onde Lamarca foi reconhecido e de avaliação

de erros militares cometidos.

85 MINISTÉRIO DO EXERCITO VI REGIÃO RELATÓRIO PAJUSSARA , [S.l] p. 19 et. seq.

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Revista Veja. Capa. 03/06/1970. – A máscara foi feita a partir de uma foto de Lamarca.

A cada abordagem um julgamento do ex-capitão desqualificando suas ações,

mas sem diminuir o perigo que representa. A operação plástica realizada pelo médico Afrânio

Azevedo, na época ainda não identificado para a imprensa, é considerada uma audácia tão

grande que mostra não coragem e sim um gesto desesperado. A cirurgia foi noticiada como

um bem guardado segredo da repressão, sigilo necessário para o andamento das investigações,

ou seja, desespero de um lado e eficiência e competência de outro.

A censura é outro assunto abordado. Além da falta de capacidade para o

exercício da liderança sobre todo o “terror”, a forma como a exerce é comentada através de

sua reação a questões orgânicas da guerrilha. A censura desejada por Lamarca para

documentos internos é mostrada na figura do líder das “várias organizações guerrilheiras”

como exemplo de autoritarismo dessa liderança.

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“Censura subversiva- Julgando um documento redigido por um elemento do grupo (queixas amargas feitas por uma militante na época em que a VPR começava a se estruturar, onde classifica a organização como ‘alienada e alienante’), Carlos Lamarca redigiu uma espécie de circular para outros membros do grupo (veja a reprodução ao lado) onde condena a companheira e levanta o problema da censura interna na organização.” 86

Parte dessa circular foi utilizada na composição da capa. Tratava-se de uma

repreensão à militante Odete devido a um documento interno da VPR que esta fizera circular,

nele constava uma crítica a postura alienante da organização:

“Trecho de cartas de Lamarca: Sobre o documento da ‘Organização Alienada, Organização Alienante’, afirma a companheira Odete: - Elabora a maneira de nos isolarmos – Os militantes não podem manter contato entre si. – Cada um de nós está um pouco distante de si mesmo, um pouco frustrado e um pouco indeciso. Que os militantes (não todos) são mais alienados do que qualquer indivíduo mais ou menos intelectualizado, que lê jornais, revistas e livros e assiste a filmes, peças de teatro, que discute sobre as coisas novas. E continua lamentando a falta de vínculo com a sociedade, etc... Ora, é incrível que tal documento tenha de circular pela organização por falta, ainda, de uma censura. O revolucionário tem mesmo que romper com a sociedade que quer transformar, abomina a sua cultura alienante. Como poderemos fazer revolução se citamos como exemplo o trabalho de um vietcong que passava todo o dia num buraco escondido e à noite saía para fazer trabalho político e ao mesmo tempo nos ressentimos de cinema, teatro, etc...? Não importa como vivemos: nenhuma dificuldade pode nos deixar ‘um pouco frustrado ou um pouco indeciso’. Denuncio a companheira como vacilante ideologicamente.” 87 Um destaque: a sensata observação da militante fora repudiada por Lamarca

utilizando a mesma imagem das sombras de onde saem os vietcongs protegidos para alcançar

seus objetivos.

A censura que Lamarca pedia era um novo item na construção de seu contorno

demonizado. É a expressão de autoritarismo diante de uma observação facilmente identificada

como de bom senso. É a condenação de uma das atribuições da Polícia Federal. Condena-se

na conduta do outro a própria ação que pratica.

Curiosamente, Lamarca não recebe, no momento em que está ocorrendo, um

destaque literal nas notícias sobre as atividades no Vale do Ribeira. Aponta-se erros militares,

como impossibilidades técnicas da localização (porém o Exército realizava ali manobras de

treinamento antiguerrilha, segundo seus biógrafos, Lamarca conheceu a área em um destes

86 A nova face do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 03/06/1970. p. 20/23 87 A nova face do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 03/06/1970. n. 91 p. 20/23. Transcrição do quadro referido na reportagem.

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exercícios) e a escassez, no Brasil, de áreas ideais para atividades guerrilheiras. Ao escapar do

cerco, no entanto, alimenta, ainda mais, o perfil do homem das façanhas espetaculares. Líder

rebelde e respostas para as expectativas.

A chamada “Guerrilha do Ribeira” aconteceu com a descoberta de um campo

de treinamento da VPR instalado na região de Registro em São Paulo. Com parte do dinheiro

do assalto à mansão Benchimol de onde levaram o cofre de Ana Capriglione, veremos adiante

esta ação, compraram um sítio no Vale do Jacupiranguinha, na altura do Km 510 da rodovia

Régis Bittencourt ao sul do Vale do Ribeira. Instalaram, no sítio, duas bases: a base “Eremias

Delizoikov”, nome dado em homenagem a um militante morto em fins de 1969, contava com

oito militantes, e a 400 metros dali a outra batizada de “Carlos Roberto Zanirato”, com dez

militantes, onde Lamarca passava a maior parte do tempo. Havia ainda um rancho onde os

militantes Tercina Dias, com seus “três filhos” e José Lavechia compunham a “fachada”

passando por uma família de lavradores da região. O conjunto formava o núcleo “Carlos

Marighela”, morto em 4 de novembro de 1969.

A área era utilizada para treinamento e Lamarca era rigoroso. Nem mesmo sua

“companheira” Iara Yavelberg, psicóloga e militante da POLOP (Política Operária) e

posteriormente da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) desde a época da faculdade, que

havia chegado lá em janeiro de 1970 era poupada e acabou abandonando a área por conta de

problemas de saúde.

O treinamento seguia normalmente até ocorrer um acidente de carro e a prisão

do militante Shizuo Ozawa – Mário Japa -, que levava consigo munição e documentos da

VPR mais o agravante de saber sobre a área de treinamento no Vale do Ribeira, sua

localização, em quantas bases estava montado o campo de treinamento e quantas pessoas se

encontravam dentro da área.

Sua libertação era caso de urgência para que nada revelasse sob tortura.

Decide-se então desmobilizar parte da área retirando Tercina Dias e as crianças. Lavechia se

juntaria aos companheiros das bases.

Lamarca vai, nessa época, a São Paulo juntamente com Yoshitane Fujimore

para uma reunião do comando. O motivo da viagem, de acordo com Marcelo Rubens Paiva88,

era apressar a realização do seqüestro do cônsul-geral do Japão Nobuo Okuchi para poderem

negociar a libertação de Mário Japa. No entanto, ainda segundo o autor, logo ao chegarem a

cidade encontram as entradas cheias de soldados. A ação já havia sido realizada.

88PAIVA, Marcelo Rubens. Op. cit. p. 110

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Foi uma ação conjunta entre a VPR, a REDE (Resistência Democrática)

liderada por Eduardo Collen Leite – o Bacuri - e o MRT (Movimento Revolucionário

Tiradentes) liderado por Devanir José de Carvalho. Mário Japa, incluído na lista dos presos

políticos exigidos em troca da libertação do diplomata, é libertado, nada havia revelado.

Mário Japa não falou, mas dois outros militantes também presos foram

acusados de “delatar” a área, Massafumi Yoshinaga e Celso Lungaretti. Os dois foram depois

utilizados como terroristas arrependidos e levados à televisão, deram entrevistas a jornais e

revistas repudiando as ações e tecendo comentários. Sobre Lamarca, veremos adiante algumas

dessas citações.

Lamarca retorna à base do Vale da Ribeira em 18 de abril e no dia 19 já sabia

que a base havia sido delatada. Resolve desmobilizar a área. Um primeiro grupo de 8

militantes deveria sair o mais rapidamente possível. Depois um outro grupo de 4 militantes

também tentaria sair. Cinco militantes deveriam ficar na área e tentar “defender o

patrimônio”.

O primeiro grupo consegue sair sem problemas, mas o segundo é obrigado a

permanecer na área porque o cerco da repressão já estava instalado, juntando-se então aos

cinco que deveriam ficar.

A tentativa de fuga desses nove guerrilheiros ficou conhecida como a

“Guerrilha do Ribeira”. Nela foram presos os seguintes guerrilheiros: José Araújo Nóbrega,

Edmauro Gopfert, Darcy Rodrigues e José Lavechia.

Uma das passagens mais conhecidas e polêmicas da “Guerrilha do Ribeira” é a

morte do tenente Paulo Mendes Júnior.

Esse tenente foi feito prisioneiro em combate e, ao se render, havia concordado

em facilitar a saída dos guerrilheiros do cerco dando passagem em uma das barreiras das

estradas. Em troca poderia prestar ajuda aos seus comandados que estavam feridos. Após

levar os feridos para receberem o socorro necessário retorna ao local combinado com os

guerrilheiros, mas ao contrário leva-os para uma emboscada que havia sido preparada.

Conseguem escapar, entretanto José Araújo Nóbrega e Edmauro Gopfert perdem-se do grupo

e são presos. Cansados, sem alimento e precisando revezarem-se para vigiar o tenente, os

guerrilheiros resolvem executá-lo. Sua morte é feita a coronhadas.

Em 31 de maio de 1970 o sargento Koji Kondo e os soldados Paulo Roberto

Motta, José Carlos Donattini, Manuel Carrera e Hélio da Silva saíram em um caminhão

Mercedes Benz para buscar água. Por ser uma tarefa de rotina, não havia necessidade de irem

armados, então apenas o sargento levava uma pistola. Ao pararem para oferecer carona a um

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homem na beira da estrada, este apontou uma arma em direção ao sargento, enquanto outros

surgiam do meio do mato e dominavam os soldados. Com o caminhão e as fardas dos

soldados, os guerrilheiros conseguem romper o cerco.

O cuidado em identificar determinados elementos nas reportagens é claro. As

organizações de esquerda são relacionadas a movimentos internacionais, o Estrangeiro:

...Documentos como êsse, mostrando as ligações dos subversivos e dos seus vários grupos ou facções com movimentos internacionais, são considerados de grande importância para as autoridades militares. Embora para boa parte da população essas ligações sejam evidentes, as autoridades consideram que as justificativas usadas pelos subversivos, classificando seus atos como ‘luta contra a ditadura’ ou ‘contra a Revolução’ podem soar como argumentos capazes de iludir certas áreas.89 A questão da Identidade, seja esta de um grupo pequeno ou de um país, é um

tema o qual não podemos negligenciar ao tratarmos seja com a constelação da Conspiração

seja com a constelação do Salvador. No caso da luta armada, a busca da legitimidade de uma

identidade nacional é fácil de ser notada como a forma pela qual os participantes se definem.

Ambos os lados se querem brasileiros. Os antagonistas estão a serviço de governos

estrangeiros e assim são identificados.

Dar à guerrilha uma identidade estrangeira a torna diferente da população e

julgando que esta, mesmo tendo entendimento desse fato, não está de todo protegida da

propaganda subversiva, alguns setores podem se iludir, ou seja, existe a preocupação de que

as façanhas dos guerrilheiros possam motivar outras pessoas a se rebelarem contra o regime

dos generais. A ditadura busca proteger-se do poder de mobilização contido na imagem dos

“subversivos”.

Os mesmos acontecimentos, na época da guerrilha urbana, que identificam, na

figura de Lamarca, o “mal”, expressam esperança e alento para “um grupo de estudantes”

militantes, pois um militante com tantas qualificações militares era alguém realmente

considerável. Carlos Eugênio refere-se a esse contingente de estudantes que aderiu à luta

armada como garotos secundaristas e universitários com muita disposição, mas sem

conhecimento técnico de armamentos90. Uma liderança militar era um grande “ganho” para a

revolução, um “ganho” talvez maior no jogo da imaginação mítica que no campo

efetivamente militar.

89 A nova face do terror. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 03/06/1970. p. 20/22 90 Carlos Eugênio Sarmento Coelho é o “Clemente” da Luta Armada, militante com trajetória singular, nunca foi preso e é o único líder da ALN, Aliança Libertadora Nacional, ainda vivo. REVISTA VEJA , 31/07/1996 pp. 7/8

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Uma das características dos mitos políticos, segundo Girardet, é a sua

imprecisão de contornos e, fundamentalmente, ser polimorfo com contornos que se

interpenetram, sendo também essencial o entendimento de que um mesmo mito possa oferecer

numerosas significações complementares ou muito freqüentemente opostas91.

Na nota oficial, quando foi divulgada sua morte, Lamarca sofre uma

desqualificação completa:

“O ex-terrorista Lamarca era um homem frustrado e visivelmente recalcado. Megalomaníaco por temperamento, prevalecendo seu traço predominante de depressão acentuada e profunda introspecção. Obstinado, fanático, reacionário e agressivo, incapaz de dialogar ou aceitar sugestões de mudanças no que planejava(...)Esses traços de sua personalidade foram marcantes para caracterizar o traidor nato, sempre burlando e trapaceando seus mais íntimos amigos,(...) Filho de família honesta, bem constituída e humilde, recebeu o fruto do sacrifício de seus pais para educá-lo até ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, onde, em 1960, tornou-se oficial do Exército, orgulho de sua família e parentes mais chegados. Antes mesmo de retribuir de qualquer forma esse sacrifício, demonstrava insensibilidade e arrogância, resolvendo contrair matrimônio para iniciar uma nova forma de vida.(...) Traiu seus pais, aos quais abandonou, alheio aos sacrifícios realizados. Traiu sua esposa e seus filhos, enganando-os com promessas de futura reconciliação em Cuba, passando depois a viver com várias amantes terroristas, fixando-se numa paixão em Iara Yavelberg. Traiu o Exército, que lhe educou e formou sua personalidade cívica, dispendendo com ele valores e recursos, dando-lhe condição social nobre e compatível. Traiu sua pátria, quando desfrutando da sua cidadania como oficial do Exército, roubou e utilizou as armas confiadas a sua responsabilidade pelo povo, para matar e destruir. O último perfil de Lamarca apresentado mostra-o como um homem

desequilibrado psicologicamente, em busca de glória e poder pessoal, um falso líder. Não é

mais todo o “mal”, sua desqualificação é pessoal, do contrário chegaria ao fim a necessidade

da repressão política.

Nesta condição, qualquer teor político de seus atos é negligenciado, uma vez

que tudo era em função de uma realização pessoal. “Traidor nato” não se restringe a questões

políticas, transgride valores morais em busca da satisfação de seu temperamento

megalomaníaco, ou seja, sacia uma necessidade patológica.

A instituição familiar, ele a teria agredido duas vezes: a primeira ao casar-se e

constituir uma nova família antes de retribuir aos pais os esforços para realizar seu sonho de

91 GIRARDET. R. op. cit. p. 15.

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garoto de tornar-se militar, a segunda ao mandar a esposa doente e os filhos para Cuba e

envolver-se com amantes no Brasil.

Na relação com os amigos, é mostrado como sendo capaz de qualquer ato que

resultasse em vantagem pessoal, seja para conseguir dinheiro, seja para saudar suas dívidas

alegando problemas de saúde da esposa ou convencendo-os a segui-lo na aventura da

deserção.

Do militar, solícito, atencioso que treinava bancárias, restara um farrapo

humano, degradado física e moralmente. Ao lado de Zequinha, seu último companheiro que

negou-se a abandoná-lo e fugir sozinho, a imagem é literalmente de restos de um corpo

vencido, esgotado, desprovido de vida, do poder sobrenatural que lhe dava condições de

realizar as mais espetaculares ações.

Um jogo de traição e lealdade aparece ao confrontar a nota oficial do Exército

sobre a morte de Carlos Lamarca e a forma narrada na biografia Lamarca – O capitão da

Guerrilha. O mesmo homem que desertou, traiu a família, o Exército, os amigos tem na

relação com José Campos Barreto e nos relatos de Olderico aos jornalistas Oldack Miranda e

Emiliano José, destacados valores como a amizade e a lealdade:

“É o depoimento de um homem carregado de convicção: ‘a morte não é nada quando vem pela lealdade, amizade, cumprimento de um trato ou fidelidade a uma causa. Sempre é melhor morrer do que trair um amigo’ assim é Olderico”92 Não é uma biografia de Olderico, os valores destacados são compartilhados

pelos que estavam a seu lado. As pessoas que morreram venceram a morte pela forma como

esta lhes alcançou. Um sentido inequívoco de certo e errado no qual o discurso não pretende,

de forma alguma, buscar qualquer forma de neutralidade ou análise. Os acontecimentos são a

prova inconteste da explicação, da narrativa mítica. Lamarca, Zequinha, Santa Bárbara, Iara,

Nilda e Otoniel superaram a morte.

92 JOSÉ E.; MIRANDA O. op. cit. p. 15.

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Polícia Federal. Zequinha e Lamarca mortos; Lamarca no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues em Salvador. 1971. Extraído do livro Lamarca – O capitão da guerrilha Emiliano José e Oldack Miranda.

A origem humilde, a revolta, a indignação, a capacidade de realizar tarefas

militares, oferecerem outras leituras, afinal não ficou alheio as agruras da população

submetida a ditadura de seus pares, reagiu e sacrificou todas as suas conquistas pessoais em

função de ideais. Portanto, as ações as quais partidários da ditadura evidenciam sua vilania

são as mesmas que demonstram sua dignidade, coragem, desprendimento pessoal. Até a

deserção, apresentada como traição pelas Forças Armadas, também significa não compactuar

com o que julga errado.

Identificar o complô maléfico ajuda a definir os lados do conflito. Para

combatê-lo somente uma réplica voltada para o bem. Seu poder, exercido em um mundo de

sombras de onde busca determinar o desenrolar dos acontecimentos, justifica o antídoto

contra ele lançado.

O “mal” está sempre encarnado na imagem do outro e é dotado de tudo o que

me é estranho. A imagem do estrangeiro, aquele que não sou eu, está presente no antagonista.

Ela ordena o conflito onde o único meio de combater uma organização maléfica é através de

uma réplica consagrada a serviço do “Bem”. Antes, necessita de uma identificação não

somente, no sentido de saber quem é ou de que lado está, mas para assimilar o modo de agir.

Uma identificação completa para poder enfim enfrentá-lo, desmascará-lo, afrontá-lo:

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Apenas uma organização que corresponda às mesmas características, secreta, disciplinada, hierarquizada, treinada para manobrar na sombra, é capaz, portanto, de lhe ser vitoriosamente oposta93.

Ao poder identificar, na figura do ex-capitão, um modo profissional, poderio

bélico, capacidade e determinação para levar a cabo as ações das esquerdas, o regime militar

buscou distanciar a imagem dos opositores ao regime militar da imagem dos estudantes. A

ação da repressão não é mais a dispersão de assembléias e passeatas, é a guerra. A

"subversão” envolta em mistério passou a possuir um novo rosto que sofre o processo de

demonização e representa as organizações de esquerda através de um poder maléfico. Os

líderes estudantis tão presentes nas manchetes em 1968, eram muito simpáticos a classe

média, aliás, eram a sua própria carne, e mesmo sendo bastante ativos no período de guerra,

não são mais o rosto da rebeldia. Este agora aparece na forma de um profissional treinado e a

serviço de interesses estrangeiros. Lamarca era um militar com fama de bom atirador, capaz

de cometer “loucuras” como largar uma carreira promissora, “abandonar” a família em nome

de uma aventura, para isso possuía um poderoso arsenal. Enfim, uma figura capaz de causar

temor e encarnar a face do terror.

A imagem individual de Lamarca, como militar treinado, capaz de realizar

façanhas, estimular a imaginação e tornar a existência bucólica de um oficial de infantaria em

uma aventura repleta de ingredientes de heroísmo, fornece modelos para o perfil do

combatente. Estas façanhas foram veiculadas pela imprensa mesmo quando não ocorreram,

como a extraordinária fuga que sido teria realizada no Rio Grande do Sul:

Apertando o cêrco – Com as informações da mulher de Lucena, a polícia acredita que nunca esteve tão perto de Lamarca. Na verdade, desde que participou do assalto ao cofre de Ana Capriglione (VEJA n.º 74 de 14/2/70), Lamarca teria estado em São Paulo, na Guanabara, no Rio Grande do Sul ou mesmo no Uruguai. Entre as informações, a mais curiosa dizia que Lamarca fugira para o Paraguai, atravessando o rio Paraná a nado. Mas essas indicações limitavam-se a hipóteses. As autoridades acreditam que Lamarca está numa posição bastante difícil, praticamente acuado. Mesmo não sendo considerado um dos ‘cérebros’ do terror (na sua organização, VAR-Palmares, ele era tido mais como homem de ação) localizar Lamarca, para a polícia, será a etapa final da escalada contra o terror. Ele é hoje o único homem em condições de reunir o que resta dos vários grupos esfacelados. Essa seria a última batalha do terror.94

93 GIRARDET. R. op. cit. p. 59. 94 A última batalha. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 04/03/1970. p. 29.

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A fuga espetacular atravessando o rio Paraná, sua capacidade de realizar

grandes ações como o assalto ao cofre de Ana Capriglione (a origem do dinheiro nunca foi

explicada, mas todos os relatos dizem tratar-se de dinheiro de corrupção e negociatas, uma

“caixinha” do ex governador de São Paulo Adhemar de Barros), organizar os grupos de

esquerda, que estariam então esfacelados, mesmo não sendo um dos “cérebros do terror”,

dão a sua figura um perfil que pode ser admirado pela capacidade, mesmo que em potência,

de realizá-las. E, devido à importância da instrumentalização da imprensa pela ditadura

militar no combate aos “subversivos”, consegue atingir a população.

Uma das ações, que durante muito tempo foi considerada como tendo a

participação in loco de Lamarca, foi este assalto à mansão de Aarão Burlamaqui Benchimol.

Trata-se do roubo do cofre do “Dr. Rui”, codnome de Ana Gimol Capriglione identificada, na

imprensa, como secretária e “eminência parda” de Adhemar de Barros95. No Livro de Oldack

Miranda e Emiliano José, além desses atributos, era também amante do ex-governador.

De acordo com as notícias da época, o assalto teria rendido dois milhões e

quatrocentos mil dólares, na versão atualizada da biografia escrita por Oldack Miranda e

Emiliano José a cifra é de dois milhões, quinhentos e noventa e seis mil dólares.

A descrição do assalto pela imprensa fala de dois garotos, João Carlos,

quatorze anos, e seu primo Lumerci, onze anos, que, ao chegarem a casa dos tios, viram o

portão aberto e entraram. João Carlos à frente, de repente uma mão tenta agarrá-lo. Com um

chute, consegue libertar-se e corre, mas lembra-se de Lumerci, pára e tenta avisá-lo, então vê

o estranho agarrando o primo e guardando uma faca. Quando tenta fugir, é impedido por um

descendente de japonês (na reportagem é chamado de “japonês”) armado de uma pistola. Na

delegacia, os garotos reconhecem Lamarca e Yoshitame Fujimori como o homem da faca e o

“japonês” com a pistola. Esta versão, segundo os biógrafos, consta do IPM (Inquérito Policial

Militar). Nenhum deles esteve de fato presente na chamada “Ação Grande”. A participação de

Lamarca foi planejar e indicar cinco dos treze militantes96 que a realizaram.

O Lamarca da cena do assalto foi incompetente, afinal não evitou a fuga de um

garoto de 14 anos mesmo estando armado de uma faca, arma aliás bastante imprópria para

quem tinha fama de perito em armas e grande atirador. A fuga do adolescente seria um

desastre e a ação não poderia ser realizada, pois, como carregar rapidamente um cofre de mais

95 Dez bilhões em meia hora. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 04/02/1970 p. 18/22 96 Os militantes que participaram do assalto foram: “Leo” - Darcy Rodrigues, “Justino” - Wellington Moreira Diniz, “Alberto” - José de Araújo Nóbrega, “Juvenal” – Juarez Guimarães de Brito, “Mário” – Jesus Paredes Soto, “Jeremias” – João Marques de Aguiar, “Elias” – João Domingues da Silva, “Felipe” – Fernando Borges de

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de duzentos quilos que estava no segundo andar da casa? Mas o que impediu a fuga? Uma

ameaça de morte de um “estrangeiro” frio e capaz de cumprir a ameaça.

O “mal” não invadiu apenas a casa dos Benchimol, invadiu também a família,

sua estrutura e todos os valores tradicionais a ela atribuídos, pois quem informou a existência

do cofre foi um sobrinho de Ana Capriglione envolvido na luta armada, ou na “subversão”,

Gustavo Buarque Schiller.

Gustavo era um sobrinho do qual Ana Capriglione não lembrava da existência,

mas em seguida é considerado como o mais inteligente dos sobrinhos. Outra divergência em

relação a Gustavo é quanto a idade, na revista tem 22 anos, no livro de Oldack Miranda e

Emiliano José tem 17 anos.

Um detalhe chama a atenção, o comentário do detetive Nélson Duarte sobre as

investigações a respeito do conteúdo do cofre, a quem pertencia o dinheiro e qual sua origem:

“É melhor não mexer nesse caso; tem muita gente grossa metida nisso”. O poder das

sombras parece evidente, cotidiano e imediatamente reconhecido.

O reconhecimento feito pelos garotos demonstra não merecer muita

credibilidade. A matéria trazia, sete meses após o assalto ( a ação foi realizada em 18 de julho

de 1969 e a matéria é de 04 de fevereiro de 1969), uma lista de doze nomes: “Leo” - Darcy

Rodrigues, “Justino” - Wellington Moreira Diniz, “Alberto” - José de Araújo Nóbrega,

“Mário” – Jesus Paredes Soto, “Jeremias” – João Marques de Aguiar, “Elias” – João

Domingues da Silva, “Felipe” – Fernando Borges de Paula Ferreira, “Orlando” - Carlos Minc,

“Maurício” - Reinaldo José de Melo, “Mariana” - Sônia Lafoz, “Simone” - Dilma Vana

Roussef Linhares e “Ronaldo”. Excetuando Juarez Guimarães de Brito e incluindo os nomes

Lamarca e Yoshitame Fujimori.

Os seis “reconhecidos” pelos garotos eram: Joaquim Câmara Ferreira, o

“Velho” ou “Toledo”, um dos mais procurados e considerado um dos grandes líderes da luta

armada após a morte de Carlos Marighella; Carlos Roberto Zanirato, que não participou, mas

tem seu nome ligado diretamente ao de Lamarca pois era um dos que fugiram do quartel de

Quitaúna, Marise Farhi, de origem egípcia segundo a revista, ou seja, uma estrangeira; José

Araújo Nóbrega, chamado de braço direito de Lamarca e o único que efetivamente, entre os

“reconhecidos”, esteve no local da ação, Lamarca e Yoshitame Fujimori.

Lamarca, de fato, passou a maior parte de seu tempo de militância em

aparelhos (casas, apartamentos, sítios utilizados pelos chamados subversivos), contudo

Paula Ferreira, “Orlando” - Carlos Minc, “Maurício” - Reinaldo José de Melo, “Mariana” - Sônia Lafoz, “Simone” - Dilma Vana Rousseff Linhares e Ronaldo que não foi identificado em nenhum livro ou depoimento.

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através dos relatos sobre sua atuação, a caçada que sofreu, a guerrilha e seus desdobramentos

na guerra de comunicação, transformou-se exatamente em uma figura na qual se expressa não

o teórico político, intérprete e herdeiro privilegiado de doutrinas ou correntes de pensamento.

Tornou-se um dos principais símbolos da luta contra a ditadura militar e, segundo parte da

imprensa, “o maior mito da esquerda armada brasileira”97. Em sua figura está sintetizada a

tragédia de quem abandonou a família, projetos profissionais, uma existência relativamente

cômoda e envolveu-se em uma luta de tão desproporcional relação de forças.

Para José Roberto Resende, militante da VPR – Vanguarda Popular

Revolucionária, organização da qual Lamarca foi um dos principais dirigentes, a luta era:

“...simplesmente a conseqüência do ideal de liberdade, justiça e dignidade do povo brasileiro. Não há razão para romancear aquele período. Tínhamos um objetivo definido a alcançar: a derrubada da ditadura militar, a reconquista da democracia e a construção de uma sociedade socialista” 98

A VPR – Vanguarda Popular Revolucionária era uma organização onde duas

tendências disputavam a direção da luta. Uma parte de estudantes e intelectuais vindos da

POLOP – Política Operária e outra parte de militares cassados. O líder era o ex-sargento

Onofre Pinto e, para os biógrafos de Lamarca, o grande número de ex-militares na

organização foi importante na escolha de qual iria ingressar, já que dava como certa a

necessidade da luta armada como o único caminho para derrubar a ditadura e fazer a

revolução. Apesar do grande número de militares participando das ações da esquerda armada,

nenhum, até então, tornou-se um referencial, pois a maioria vinha de momentos anteriores,

quando o alto grau de politização das Forças Armadas atingiu até as camadas mais

subalternas, eram politizados e combatentes, eram rebeldes, mas poucos possuíam um rosto

para ser identificado.

No momento da Luta Armada, as principais imagens são vinculadas ao perigo

da “subversão”, pois o poder de contar, de narrar, estava nas mãos da ditadura que controlava

e utilizava a grande imprensa. A luta das organizações de esquerda é narrada a partir da

imagem do complô maléfico capaz de destruir a imagem pacifica de ordem e de “segurança

nacional” que a ditadura dizia implantar e defender. Mesmo ingressando na guerrilha urbana

após seu início, Lamarca acabou por ser utilizado.

97 O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 15/01/2003. p. 36/37. 98 RESENDE, José Roberto; BENEDITO Mouzar – OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER. São Paulo: Viramundo. 2000. p. 21.

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Para enfrentar este inimigo poderoso, a repressão utilizou das mesmas armas

que as organizações de esquerda, ou seja, liberou-se dos entraves da burocracia legal, passou a

operar no mesmo mundo de sombras dos “subversivos”.

As notícias sobre a luta armada revelam a Conspiração de forma ambígua. No

sentido forte é justificadora de toda ação e constituição de um novo aparelho repressor para

contê-la, ao mesmo tempo, por ter sido descoberto e identificado o “mal” a que serve, perde

sua força e tem banalizada a sua existência.

A narrativa apresentada cumpre então um papel explicativo, à medida que toda

a situação do confronto e em especial as condições das Forças Armadas e o regime militar

para combater a guerrilha se justificam no perigo representado por Lamarca. Este ultrapassa

as ações armadas que realizou, a deserção, o roubo das armas, a fuga do Vale do Ribeira, o

seqüestro do embaixador suíço Enrico Bucher, ou melhor, o sentido individual dessas ações e

assume um perfil completo de todo o “terror”, assim como serve para delimitar a posição de

cada participante da luta naquele momento e posteriormente.

O poder de explicação da constelação da Conspiração foi bastante explorado

durante o período da luta armada, pois apela para uma:

Explicação tanto mais convincente quanto se pretende total e de exemplar clareza: todos os fatos, qualquer que seja a ordem a que pertençam, acham-se reduzidos, por uma lógica aparentemente inflexível, a uma mesma e única causalidade, a uma só vez elementar e todo-poderosa99

No entanto o mito habita o imaginário e não é fruto apenas do desejo de

manipulação de eventuais usuários:

...porque nenhum empreendimento manipulador pode esperar atingir seus objetivos ali onde não existe, nos setores da opinião que ele se esforça para conquistar uma certa situação de disponibilidade.100

A certeza que havia certa disponibilidade para ler as façanhas de Lamarca, não

como atos de banditismo ameaçador e sim como ações libertadoras do homem providencial, o

mítico Salvador, justificam a necessidade de tentar acabar com o mito.

A nota oficial dos órgãos de segurança do Governo sobre a morte do ex-capitão

falava sobre uma capacidade sedutora da sua imagem, que seria a de um falso líder:

99 GIRARDET. R. op. cit. p. 55. 100 Ibid p. 51.

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“A morte de Lamarca interrompeu definitivamente uma carreira inexorável de crimes e traições, cujos reflexos negativos incidiram em diversos setores do país além dos condicionamentos espúrios impostos a vários jovens que se viram atraídos pelos acenos quixotescos desse falso líder”. 101

O Salvador, outro núcleo temático de mitologias políticas identificado por

Girardet, traz a figura do homem providencial com o poder de surgir em momentos de

extrema crise e, graças a sua ação, realizar a “salvação” de seu grupo ou sociedade. Este

momento de crise está ligado a sua hierofânia. Não quer dizer que intervém apenas nestes

momentos, mas que ali fora sacralizado.

O perigo representado por Lamarca e demonstrado nas narrativas de

espetaculares ações e a sempre eminente prisão que nunca se efetivava tornam simpática a

figura do rebelde e maior o perigo de admiradores descontentes com a situação política

sentirem-se tentados a imitá-lo.

No período em que foi caçado os apelos à imagem de Lamarca foram através

dos contornos da Conspiração e Salvador, mesmo que isto tenha ocorrido na forma de

denúncia do complô maléfico e do “traidor”.

Assim como os apelos a sua imagem para a denúncia de um complô maléfico e

as referências ao Salvador não ocorrem após o fim da censura, do AI-5, em alguns

depoimentos vemos que a expectativa em torno de seu nome era muito grande entre os

militantes.

Muitos desses depoimentos, porém, só foram possíveis com o processo de

abertura e a volta dos militantes de esquerda, quando puderam falar sobre o ex-capitão para

um grande público e de maneira mais direta. Portanto um momento de lembrança sujeito aos

jogos seletivos de quem recorda.

A grande imprensa, no momento de sua presença viva, quando realizava ações

e a guerrilha era ativa, mostrava seu perfil individual contendo apenas valores pejorativos. As

opiniões de militantes eram as dos chamados “arrependidos”, militantes presos que aceitavam

ir à televisão para renegar a luta armada e demonstrar arrependimento. Depoimentos de

credibilidade duvidosa serviram a este propósito. Para Massafumi Yoshinaga, um dos

renegados acusado de delatar a áreas de treinamento do Vale do Ribeira, Lamarca era:

...um tipo temperamental inculto, pouco mais que um bom atirador102

101 A Bahia ainda procura Terror JORNAL DA TARDE – O ESTADO DE SÃO PAULO. 21/09/1971. p. 16. 102 A cena final de um terrorista. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 22/06/1971. p. 22/26.

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Evidentemente era um depoimento veiculado dentro de um esquema de censura

e controle da imprensa. Mas um momento este, que havia a disponibilidade para a leitura dos

feitos como respostas às expectativas de uma luta heróica e gloriosa contra um regime

opressor cuja força muito superior era desafiada com destemor e coragem.

Uma das caraterísticas da constelação do Salvador, aponta Girardet, é em

relação a crises de identidade e crises de legitimidade, quando:

“silenciosa ou violentamente, se desfazem ou se rompem os liames da confiança e da adesão(...) deixa de reconhecer-se no sistema institucional com o qual se havia até então mais ou menos tacitamente identificado”103

Em relação ao líder, as relações de fidelidade, ainda de acordo com Girardet,

substituem a de filiação. Exerce um poder cativante, fascina através de palavras e gestos.

Portanto o Salvador não cumpre sua tarefa através da prestação de um socorro do qual

guarda-se apenas gratidão. Chama para a ação, compartilha a aventura gloriosa e cumpre

sozinho a sua sina trágica na derrota. Depois, em momentos de lembrança, retoma seu

esplendor e força de acordo com quem recorda.

O livro de Luiz Maklouf Carvalho, Mulheres Que Foram a Luta Armada, é

bastante rico em depoimentos desta natureza sobre a figura de Lamarca.

Uma das entrevistadas, Idalina Maria Pinto, viúva de Onofre Pinto, ex-sargento

e dirigente da VPR quando Lamarca fugiu do quartel em Quitaúna, relembra assim a

capacidade de entrega do marido em prol da causa revolucionária e a sua coragem diante do

perigo:

“A prioridade era fazer a revolução, derrubar os militares. Foi ele que organizou a saída de Lamarca do quartel de Quitaúna. A mulher e as filhas do Lamarca ficaram hospedadas comigo, na casa do Carandiru. Era um perigo danado”104

A dimensão do perigo e da coragem é dada a partir da presença física de

Lamarca ou de pessoas próximas a ele. Assim, quanto mais a imagem do ex-capitão

representa perigo, maior será a coragem e a importância de quem recorda ou é recordado.

Não são apenas as pessoas, quando relembram. que utilizam a imagem de

Lamarca para dimensionar sua participação. O autor também o faz para poder dar a devida

importância aos entrevistados.

103 GIRARDET. R. op. cit. p. 88. 104 CARVALHO. L. M. MULHERES QUE FORAM A LUTA ARMADA. São Paulo: Globo. 1998. p. 30.

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Ao trazer à tona a trajetória de Renata Guerra de Andrade, uma das mais ativas

entre as mulheres envolvidas com a guerrilha urbana, tendo participado entre outras das ações

do roubo de armas no Hospital do Cambuci e da explosão do carro-bomba no Quartel-General

do II Exército, no Ibirapuera, o autor apresenta-a da seguinte forma:

“Renata mudou-se para a capital em 66. Entrou no cursinho de vestibular para Psicologia, onde foi aluna de Iara Iavelberg, a bela militante que logo encantaria o capitão do Exército Carlos Lamarca.” 105

Renata ainda não é, uma destacada guerrilheira, mas seu espaço já começa a

ser delineado. O destino parece estar ligado a uma aproximação com Lamarca. Existe até uma

certa hierarquia de figuras que pode ser detectada partindo da aluna de cursinho, passando por

Iara, cujo primeiro grande feito parece ter sido o de ser bela e encantar Lamarca, até chegar a

Lamarca propriamente.

Renata parece obedecer a mesma trama ao comentar sua participação:

“Renata: Onofre me destacou para dar assistência teórica ao grupo de Lamarca e de seus companheiros em Quitaúna. Ajudei a recrutá-lo para a VPR. Ele era um simpatizante descontente com o Partido Comunista Brasileiro. No primeiro encontro que tivemos já falou na possibilidade de desertar, saindo com um enorme arsenal. Eu achei que era cutucar a onça com vara curta. Achei que podíamos esperar o momento mais adequado. Mas a idéia foi crescendo. (...) Eu defendia a idéia que Lamarca deveria sair quando tivéssemos pelo menos gente para empunhar tantas armas. Nem isso havia. Éramos um grupo de gatos-pingados.” 106

A saída de Lamarca do Exército é motivo para apresentar algumas façanhas de

outra destemida guerrilheira, Dulce Maia de Souza – a Judith:

“Viria, então, como uma ação conjunta, o plano de maior envergadura até ali: a retirada do capitão Carlos Lamarca do 4º Regimento de Infantaria do Quartel de Quitaúna, em Osasco (SP). O capitão sairia com outros militares e com uma grande quantidade de armas às 8 da manhã de 26 de janeiro de 1969. Dia em que São Paulo viveria, com explosões e blecaute, a comemoração antecipada do apocalipse revolucionário. A ALN acha-o demais e não participa. Parte da VPR assume a responsabilidade e toca o plano em frente. Entre idas e vindas a Quitaúna, para organizar as coisas com o capitão e sua esposa Maria, Dulce Maia aproveita para treinar tiro, dentro do quartel,

105 CARVALHO. L. M. op. cit. p. 32. 106 Ibid. p. 45 et. seq.

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misturada às bancárias que Lamarca ensinava a atirar, um serviço gratuito que o Exército prestava aos bancos temerosos de ataque terroristas.”107

O plano para a saída de Lamarca de Quitaúna era algo de grande proporção

para as organizações, chamado de “Noite de São Bartolomeu” consistia em um ataque ao

Palácio Bandeirantes, sede do governo de São Paulo que arderia em chamas após o

bombardeio de lança chamas, simultaneamente outro golpe seria desfechado contra o Quartel-

General do II Exército. do Planalto. A Academia Militar de Polícia viria a baixo com a

explosão de cem quilos de dinamite. O Campo de Marte seria dominado e o sistema aéreo da

cidade ficaria em total confusão. Um dia antes, Lamarca deveria sair do Quartel de Quitaúna

levando sessenta fuzis FAL ( Fuzil Automático Leve) mais algumas armas em sua Kombi e

quantas armas pudessem ser carregadas em um caminhão que estava sendo preparado. No

entanto dois tapas foram suficientes para impedir a ação.

Um garoto aproximou-se de um sítio em Itapecerica da Serra onde estava

sendo preparado o caminhão. Um dos militantes deu-lhe dois tapas e mandou-o embora. A

mãe do garoto apresentou queixa e o soldado que foi até o local pensando intimidar alguns

rapazes agressores, algo de pouca monta, percebeu a movimentação e a pintura do veículo nas

cores do Exército. Pedro Lobo, Ismael Antônio de Souza, Oswaldo Antônio dos Santos e

Hermes Camargo foram presos. Torturados, eles seguram o quanto podem, mas acabam

falando. Dulce é presa em função destas confissões arrancadas a pancadas.

Além da participação nesse plano, que merece ser lembrada com todo

destaque possível, Dulce também esteve presente no atentado ao QG do II Exército em

26/06/68, no assalto ao Banco Mercantil da Rua Joaquim Floriano, no Itaim, em 01/08/68, na

ocasião da morte do Capitão Chandler, militar americano morto em 12/10/68, no primeiro

assalto a agência do Banco do Estado de São Paulo, em 15/10/68, e no segundo assalto a esta

mesma agência bancária, em 06/12/68. Mas recebe uma tarefa especial que o autor Luiz

Maklouf Carvalho acredita ser de altíssimo risco:

“Incansável, adrenalina a mil, Dulce/Judith estará às voltas com tarefas de altíssimo risco – entre elas a de recolher a mulher (Maria) e os filhos do capitão (César e Cláudia)”108

107 Ibid. p. 39 et. seq. 108 Idid. p. 52.

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Damáris Lucena, a esposa de Antônio Raimundo de Lucena, mecânico e

militante conhecido por “Doutor” e mãe de Ariston Lucena que esteve no Vale do Ribeira

junto com Lamarca, também recorda esta passagem julgando-a:

“A reunião que decidiu a saída do Lamarca do quartel foi lá em casa. Ele esteve lá duas vezes – com o nome de João. Na primeira, a reunião entrou pela noite. Se tivesse tomado parte da reunião, eu teria dito pra ele não sair. Eu achava que lá dentro ele produziria muito mais. Ficava como infiltrado e teria uma participação mais produtiva. Esse talvez tenha sido um erro muito grave. Muito mais grave do que a gente pensou naquela época.” 109 Um outro relato no qual Lamarca é citado é de Sônia Lafoz ao comentar os

preparativos para a operação plástica de Lamarca:

“Sônia Lafoz: - Precisavam de uma mulher para fazer o papel da irmã. No início eu não sabia que era ele. Só soube no aparelho da Barra da Tijuca, uma casa antiga. Ele foi pra lá – e aí eu tive que fazer aquele papel de atriz, de irmã, dar a entender que ele seria meio efeminado, que precisaria arrumar o nariz - A fachada foi disfarçar o Lamarca de gay? - Foi. O médico sabia, mas a clínica não. A equipe de enfermagem, o anestesista, ninguém sabia. Então você tinha que entrar com a conversa de que era um paciente que queria melhorar a cara, o nariz, a arcada dentária, porque se achava feio e precisava se arrumar. Então, que justificativa que eu tinha que dar? Que era um homossexual! Hoje é comum, mas naquela época homem não fazia cirurgia plástica. Então a gente foi por aí. Na casa a gente ficou treinando com ele. Ele ficava puto.”110 Este é mais um depoimento no qual a figura física de Lamarca tem um papel

bem determinado. A aproximação com alguém tão importante de maneira tão íntima não é

uma pequena e deliciosa indiscrição. Representa a importância pessoal em participar de algo

grandioso com naturalidade, ter intimidade com um ser que está além do alcance da

normalidade, sentindo-se importante por estar próximo de alguém que julgamos superior

tecendo novas relações de solidariedade e fidelidade.

Entre outros relatos em que Lamarca aparece mais um pode ser citado. É o de

Kito, filho de Damáris e Antônio Lucena:

“O que fizeram com as crianças depois que ela foi presa? Com a palavra Kito, que então tinha 9 anos: Eles circularam com a gente por vários lugares de São Paulo. Ninguém nos queria porque circulava a história de que Lamarca ia nos tirar das mãos da

109 Ibid. p. 47. 110 Ibid. p. 377.

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polícia. Tentaram em São João Clímaco, no Catarina Labouré. Ninguém queria. Era como se fôssemos filhos de Judas. Acabamos ficando na Febem do Tatuapé, mas volta e meia saindo com o capitão Maurício. Queriam que a gente encontrasse pessoas e apontasse. Um dia nos levara à Oban. Nós almoçamos lá.”111 Colocado hierarquicamente acima destes militantes, sua figura acaba por se

alimentar da própria coragem deles, uma vez que mesmo o mais audaz guerrilheiro se

posiciona aquém de sua figura. É esta a imagem construída nos relatos de Dulce Maia, Sônia

Lafoz, Damáris e Idalina.

A proximidade demonstra na fidelidade ao líder admiração e afetividade, ao

mesmo tempo que retrata as virtudes de quem recorda, a coragem, a sabedoria, o bom senso

que não pôde ser ouvido, a ousadia. A imagem funciona como ponto de partida para

autocrítica de erros militares.

Lamarca tem no imaginário das militantes um lugar definitivo. É um pólo para

onde convergem a coragem, a ousadia e a doação destas pessoas. Explica as suas ações e

motiva lembranças e julgamentos, ao mesmo tempo, tem a sua imagem alimentada pela ação

destas, pois sempre se encontra mais além. Toda a vida clandestina, toda a ação, todo o poder

que se acreditava possuir, o orgulho de ter participado de algo importante caminha em sua

direção. É o complô se vendo por seus próprios olhos.

No caso do boato do resgate de Kito, outra imagem é literalmente mostrada, a

de um salvador, aquele que virá e resgatará das mãos dos militares uma criança, a ser melhor

analisada no próximo capítulo.

Neste capítulo, vimos que muitos dos elementos utilizados na construção do

personagem mítico Lamarca foram no sentido de buscar justificar a repressão política da

ditadura. A existência do perigo servia de justificativa para o “momento de exceção” e para as

ações. Porém havia uma certa receptividade capaz de aceitar a leitura desses elementos como

justa indignação, afinal não foi apenas através da luta armada que a sociedade manifestou-se

contra o regime militar. Manifestou-se em 1968 nas passeatas organizadas pelos estudantes,

nas derrotas nas eleições para governadores em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Ao desertar

revela a si e esse estado de descontentamento. A ditadura, tornando-o praticamente

onipresente nas ações “subversivas”, ampliou a expectativa e os desejos da chegada do

homem providencial.

O papel da imprensa foi fundamental na seleção dos elementos que fizeram

Lamarca habitar o imaginário político sendo temido ou admirado. A censura não deve ser

111 Ibid. p. 83.

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confundida com sigilo e sim com a manipulação dos órgãos de informação do país que

vendiam a mensagem otimista do milagre brasileiro e noticiavam os “desajustados

subversivos”. O complô das organizações de esquerda, do qual Lamarca tornou-se o rosto,

esteve nos noticiários diariamente. As façanhas do guerrilheiro puderam ser acompanhadas,

mesmo quando não aconteciam, criando expectativa sobre a próxima notícia a seu respeito.

Quando os exilados retornaram e começaram a escrever sobre a luta armada, a

figura de Lamarca já habitava o imaginário político brasileiro. As histórias contadas nestes

livros são novas versões de acontecimentos já conhecidos, como seqüestros de embaixadores,

assaltos lendários, guerra de guerrilhas no interior do país. O momento político traz, nestas

novas abordagens, justificativas para lutar pelo fim da ditadura, pela abertura política.

Os apelos à imagem de quem lutou contra a ditadura fazem da tragédia pessoal

de Lamarca novamente a representação dos complôs, não mais como o “mal” a ser destruído,

mas a unidade a ser restabelecida. Com isto “ex-subversivos” e militares lutam para serem a

expressão da legítima identidade nacional, ou seja, a identificação do estrangeiro, figura do

outro, continua a existir.

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CAPÍTULO II – CHE E LAMARCA: ESTRELAS AVESSAS DO

AVESSO DA AMÉRICA LATINA

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2.1 - “AS ENTRANHAS DO MONSTRO”

Uma das formas de análise, segundo Girardet, é a comparação das figuras

selecionando-as em núcleos temáticos denominados como Constelações Míticas. O apelo à

constelação da Conspiração pode vir acompanhado pela figura de um líder, um Salvador, pois

o mito é polimorfo, multifacetado e não possui contornos precisos e herméticos. Lamarca

aparece, como vimos, sendo o rosto de todo o “terror” e, ao mesmo tempo, o líder, o oficial do

Exército que “rasga a farda” e parte resoluto para a guerra conquistando vitórias e

admiradores.

Porém, ainda segundo Girardet:

“O poder de renovação da criatividade mítica é, de fato, muito mais restrito do que as aparências poderia fazer crer.”112 Isto é, podemos perceber facilmente que as narrativas míticas giram em torno

de um círculo estreito de repetição e de associação. No caso de Lamarca a comparação mais

imediata é sem dúvida de Ernesto CheGuevara, uma vez que suas figuras assemelham-se na

combinação de imagens utilizadas na construção de seus personagens míticos. Em ambos

guerrilheiros estas imagens:

“inserem-se em um sistema, inscrevem-se em uma ‘sintaxe, para retomar a expressão de Claude Lévi-Strauss: em outros termos, é agrupados em séries idênticas, estruturados em associações permanentes que se apresem os elementos construtivos da narrativa que elas compõem.”113

A história política da América Latina com suas lutas pela independência, com

seus caudilhos, governos populistas parece sempre estar a espera da chegada de um homem

providencial capaz de conduzir o continente a uma “segunda independência” ainda não

alcançada.

O termo “segunda independência” foi utilizado por José Martí, pensador, poeta

e guerrilheiro cubano que lutou e foi morto na primeira guerra pela independência de Cuba.

Referia-se à influência de uma nação que, no final do século XIX, já se tornava o maior

empecilho para uma autonomia concreta da América Latina114.

112 GIRARDET. R. op. cit. p. 17. 113 Ibid. 114 RETAMAR, Roberto F. Nossa América e outros ensaios in: CALIBAN E OUTROS ENSAIOS . SãoPaulo Ed. Busca Vida 1988, p. 99.

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A primeira independência ocorreu através da luta contra o colonizador

espanhol. A exceção brasileira é por se tratar de um processo evolutivo iniciado com a

chegada da família real portuguesa em 1807 culminando com a proclamação de 1822.

Martí, que havia vivido nos Estados Unidos, pensava ser necessária a luta pela

independência cubana para conter o avanço norte americano sobre as antilhas:

“Vivi no interior do monstro, e conheço-lhe as entranhas, minha funda é a de

Davi” 115

Nem a disposição em combater nem os alertas de José Martí foram capazes de

evitar que o caminho para o domínio ianque sobre o continente ocorresse justamente através

da intervenção na segunda guerra de independência de Cuba em 1898.

O apelo à ação está presente no pensamento de José Martí. Assume, em certo

sentido, a condição de herdeiro de Davi. O destemor e fidelidade a ideais (crença religiosa, no

caso de Davi) o conduzem. O personagem bíblico rompe com a inércia e a covardia de seu

povo diante as afrontas sofridas, com a letargia e conclama para a luta. Não encontrando

ressonância para seus apelos, enfrenta, em luta desigual, o oponente, o outro, o estrangeiro.

O rompimento de Davi é também com a rede de solidariedade social na qual a

acomodação de pais, tios, familiares que mesmo dizendo-se seguidores de uma doutrina não a

tem como condutora de sua ação, portanto, para além de uma abstrata identificação de povo, é

preciso compreender esta fidelidade rompida e a crença em outro pai no qual encontramos os

princípios para uma nova realidade social.

Nos escritos do pensador cubano, morto em 1895, encontramos então o apelo

literal a figura do Salvador. Sessenta e um anos depois de sua morte, um grupo de rebeldes

desembarcou em Cuba e nas montanhas de Sierra Maestra lançaram-se em busca dessa

“segunda independência”, a revolução cubana, cujo líder, Fidel, apontou Martí como patrono

intelectual.

Os guerrilheiros de Sierra Maestra, assim com José Martí, dispuseram-se a dar

uma resposta à expectativa de controle sobre o destino dos países latino-americanos. A

revolução cubana trouxe a idéia da possibilidade de realização deste desejo através da ação de

líderes predestinados, ousados, capazes de uma travessia entre o continente e a ilha com 82

homens em um barco construído para no máximo doze pessoas e iniciar uma guerra ao lado

115 Idem, p. 100

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de um líder completamente inexperiente e após um desembarque desastroso, quando quase

toda a força rebelde fora dizimada.

Apesar dos vários aspectos dos mitos políticos e da fluidez de suas imagens

que se interpenetram, as angustias, a situação que motiva os apelos, parecem limitadas. O

rompimento com uma situação de constrangimento e dominação é em vários momentos,

relacionado com a tomada de posição de uma pessoa que, através de seu gesto, realizará a

redentora tarefa de libertação.

A definição simplista da teoria do foquismo, elaborada após a revolução

cubana, que um pequeno motor de arranque coloca em funcionamento um grande motor em

movimento, ou seja, um reduzido grupo armado e disciplinado desperta as massas para a luta

e a revolução, é a teorização do apelo ao Salvador, do messias que virá para redimir,

reorganizar o espaço social, romper com uma não-realidade absoluta na qual o “grande

motor” não se reconhece, mas contra a qual é incapaz de reagir segundo a sua própria

iniciativa.

Além da admiração despertada pelos guerrilheiros de Sierra Maestra capaz de

seduzir rebeldes da América Latina, a revolução cubana tinha, nesta estratégia de luta, um

modelo a oferecer a todo o continente. A teoria do foquismo, ao lado do terrorismo, foi uma

das formas de luta que os grupos “subversivos” do continente tentaram implantar em seus

países.

O foquismo, segundo Jacob Gorender, singularizou “a idéia do fator militar

sobre o fator político, da prioridade do foco guerrilheiro sobre o partido”116. Dessa forma a

determinação e disposição para a luta receberam aval teórico. Chebuscou repetir, na Bolívia, o

sucesso de Sierra Maestra aplicando esta teoria:

“Em 1967, foi a vez do próprio Guevará aplicar sua teoria na Bolívia. Nem mesmo o malogro desta tentativa heróica conduziu a um exame despreconceituoso da teoria, ao mesmo em grandes setores da esquerda radical brasileira.”117

A vitória do movimento cubano e a projeção internacional de seus líderes

trouxeram a baila, e com uma força mobilizadora que se alastrou por todo o continente, o

apelo a esta figura mítica.

A busca (ou espera?) pelo homem providencial é algo tão presente no

imaginário político da América Latina que até uma teoria de revolução surge atribuindo a um

116 GORENDER, J. op. cit. p. 80 117 Ibid. op. cit. p. 81

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grupo de messias (note que, apesar do pequeno motor não ser uma ação individual o apelo é o

mesmo, pois recorre à ação de alguns “escolhidos” abnegados para romper com um estado de

coisas) a tarefa da libertação.

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• 2.2 – ESPELHOS IDENTITÁRIOS

Entre os poucos sobreviventes do desastroso desembarque dos rebeldes

cubanos nas praias da província de Oriente, no extremo leste da ilha de Cuba, estava Ernesto

Guevara, o médico argentino que tornou-se um dos mais destacados comandantes

guerrilheiros ao lado do próprio Fidel Castro e Camilo Cienfuegos. A revolução e seus

personagens serviram de inspiração para os ativistas que, nas décadas de mil novecentos e

sessenta e mil novecentos e setenta, acreditavam no poder da guerrilha na luta contra o

imperialismo norte americano.

A imagem de Chesobreviveu ao desgaste da revolução cubana e ainda possui

uma força extraordinária. A descoberta de seus restos mortais, em 1997 (ano em que se

comemorava o trigésimo aniversário de sua morte), enterrados sob a pista de um aeroporto em

Vallegrande na Bolívia trouxe uma série de publicações a seu respeito, o mesmo acontecendo

em 1999 nos quarenta anos da revolução cubana.

A imprensa referiu-se, nestes momentos, sempre ao “mitológico guerrilheiro”,

reconhecendo-o como mito político. Em 04 de janeiro de 1999, a Revista Época apresentou

uma reportagem onde destacou os líderes da revolução Cubana da seguinte forma:

“OS HERÓIS DA ESQUERDA GUERRILHEIROS SE TORNARAM MITOS Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto Che Guevara foram os três principais comandantes militares da Revolução Cubana e marcaram o imaginário da esquerda das décadas de 60 e 70. Morto em 1967 pelo Exército na Bolívia, para onde o levara seu ímpeto revolucionário, Che Guevara ficou preservado do desgaste do poder e sua imagem é associada à rebeldia até hoje.”

A Revista Veja, em 9 de julho de 1997, numa matéria que foi capa com a

seguinte chamada: A ressurreição de Che Guevara, utilizou também o termo mitológico na

manchete:

“TRIUNFO FINAL DE CHE; COM A BUSCA DE SEUS OSSOS, RESSURGEM AS IDÉIAS E AS AVENTURAS DO GUERRILHEIRO MITOLÓGICO”.

Ainda em junho de 1997, a mesma revista em sua edição do dia 11, trazia, na

sua seção de livros, uma matéria onde comentava o lançamento de uma biografia sob o

seguinte título:

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“DURO DE MATAR; SAI A MELHOR BIOGRAFIA DE GUEVARA, O MITO DE ESQUERDA QUE SOBREVIVEU AO FIM DO COMUNISMO”

A figura de Che Guevara é reverenciada como a de um mito político.

Dificilmente encontra-se, trinta anos depois de sua morte, uma matéria na imprensa que não

se refira dessa forma a sua imagem.

De maneira bem mais discreta a imprensa brasileira tem se referido a Carlos

Lamarca também como um mito. Uma das vezes foi numa matéria sobre a morte do general

Emílio Garrastazu Médice, quando o jornalista comenta o combate ao “terrorismo”:

“O terrorismo brasileiro foi derrotado menos de um ano depois de ter aparecido. Carlos Marighela, seu primeiro líder, foi morto em 1969 e Carlos Lamarca, sua Segunda figura mitológica, foi fuzilado no meio da caatinga baiana em 1971, quando, esquálido e faminto, fugia em andrajos sem rumo nem seguidores.”118

A matéria apresenta erros como induzir que o “terrorismo” teria sido um surto

ocorrido em um período menor que um ano, mas cita mortes cujas datas ultrapassam este

intervalo de tempo, Marighela (04/11/1969) e Lamarca (17/09/1971), intervalo de um ano e

dez meses, mesmo assim, estas não são datas limites nem do início nem do fim da luta armada

contra a ditadura.

Outro momento em que Lamarca é reconhecido como mito foi em 2003

quando a Revista Veja trazia uma matéria sobre o perfil de Dilma Rousseff, ex-militante da

VAR-Palmares – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, escolhida como ministra das

Minas e Energia com quem o ex-capitão teve uma divergência que culminou num racha

dentro da organização, sendo então reorganizada a VPR – Vanguarda Popular Revolucionária:

“O capitão Carlos Lamarca, o maior mito da esquerda armada no Brasil, e Iara Iavelberg, com quem o capitão manteve um tórrido e tumultuado romance. Com Lamarca, Dilma Rousseff polemizou sobre os rumos da guerrilha, numa famosa reunião realizada em Teresópolis.119 As comparações entre Lamarca e Guevara ocorrem na imprensa quando em

geral percebem a similaridade de algum detalhe. No momento da descoberta do paradeiro dos

118 A mote de um símbolo. REVISTA VEJA . 16/10/1985. p. 36/41. 119 O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. p. 36/37. 15/01/2003.

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restos mortais de Che, o local onde ele foi morto lembrou, ao jornalista Dorrit Harazim da

Revista Veja, o cenário da morte do guerrilheiro brasileiro:

“Foi caçado como um bicho numa caatinga boliviana que lembra mais o cenário da morte do brasileiro Carlos Lamarca, na mata rala do sertão baiano, do que a do libertador cubano José Martí, apanhado por uma bala perdida durante uma batalha”120

Mas semelhanças podem ser encontradas em momentos anteriores, nos quais

destaques e seleções de imagens e trajetórias apresentam sincronias.

O argentino Ernesto Guevara saiu de seu país deixando para traz a carreira de

médico e a possibilidade de uma existência tranqüila e acomodada. Teve a infância marcada

pela asma, doença que levou a família a mudar-se de Rosário, onde nasceu, para Alta Gracia

em busca de melhor clima para o pequeno Ernesto; e pela disposição em alcançar objetivos,

enfrentava fortes crises de asma sem reclamar, e a determinação de, após a morte da avó,

formar-se em medicina com o intuito de ajudar as pessoas.

Nas biografias de Che, este espírito determinado e de superação, que não se

rendeu aos percalços causados pela doença, é sempre destacado, assim como seu gosto pela

aventura, suas viagens pela América Latina e o curso de medicina.

Depois de um encontro com Fidel, em 1956, no México, rumou para Cuba e,

ao lado do líder cubano, tornou-se um dos rostos da revolução cubana. A imagem dessa

vitória alastrou-se pela América Latina transformando-os em alvo de admiração e exemplo a

ser seguido por outros revolucionários do continente.

Após a vitória em Cuba e de um rápido período envolvido em trabalhos

administrativos e diplomáticos, Che retorna à guerra. Antes de sua morte nas selvas bolivianas

já havia tornado-se símbolo de guerrilheiro capaz de abrir mão de usufruir de uma existência

segura e partir em busca da realização de seus ideais.

Entre os admiradores de Ernesto Guevara estava o capitão Carlos Lamarca.

Segundo os biógrafos Oldack Miranda e Emiliano José, no dia em que foi anunciada a morte

de Che, Carlos chegou em casa mais cedo e chorou copiosamente. Mas anunciava:

“Marina 121, perdemos um dos maiores líderes internacionalistas, mas a vida é assim, ou se morre ou se vence. Che Guevara morreu, mas deixa sua semente, raízes que não morrerão.”122

120 O triunfo final de Che. REVISTA VEJA. 09/07/1997. p. 88/97. 121 O nome correto é Maria Pavan, mas Lamarca a apelidou de Marina devido a música de Dorival Caymme “Marina” 122 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 42.

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Lamarca acreditava na tomada do poder através da ação militar de um

pequeno, disciplinado e determinado grupo de homens servindo de vanguarda das massas na

condução da revolução. Quando retornou ao Quartel de Quitaúna, onde serviu pela primeira

vez e pediu para retornar após uma passagem pela PE – Polícia do Exército em Porto Alegre

em 1964, onde respondeu um inquérito pela fuga de um preso político, o oficial da

aeronáutica Alfredo Ribeiro Daudt, o capitão reencontrou o sargento Darcy Rodrigues. Já

eram amigos desde 1962, quando serviram juntos ali mesmo. Lamarca vinha da Academia

Militar de Agulhas Negras e Darcy da Escola de Sargentos, fizeram parte de um círculo de

estudos políticos ao lado de oficiais e suboficiais do regimento. Para Oldack e Emiliano, já

nesta época, 1962, acreditavam na inviabilidade de tomar o poder pela via pacífica.

Quando reencontraram-se em Quitaúna, Darcy estaria arregimentando

cautelosamente os recrutas de sua unidade através de um “clube de amigos”, meio encontrado

para discutir política dentro do quartel. Darcy, o cabo José Mariane, o soldado Zanirato e

Lamarca estavam convictos, conforme seus biógrafos, da necessidade de estruturar um foco

guerrilheiro, seguindo a teoria do foquismo de Che Guevara um pequeno grupo de homens

armados, disciplinados e bem treinados formam uma coluna guerrilheira numa área rural

servindo, assim, de catalisador das lutas populares até que se deflagre a guerra

revolucionária.

A crença na tomada do poder através das armas, a simpatia e admiração pelo

rebelde argentino dão à imagem de Lamarca condição de assumir o legado de Che, ou pelo

menos seguir seus passos.

Na constelação do Salvador, Girardet apresenta quatro arquétipos, entre eles

Sólon - o Legislador - ligado à construção de um modo de vida (deixado ou não como herança

por alguma figura do arquétipo de Alexandre, outro arquétipo). Sua função é ditar as normas

ou reavivá-las seguindo o exemplo dos “grandes ancestrais”. Lamarca, segundo seus

biógrafos, sugere, neste episódio, claramente uma herança, um legado que não poderia se

perder. Sua conduta segue os passos já dados por Guevara mesmo depois do fracasso de sua

tentativa na Bolívia.

As sementes plantadas por Che não podem morrer. Essa herança, mesmo não

sendo assumida como sua, colocam em relação direta as duas figuras. Lamarca, o militar

rebelde insatisfeito com a conquista do poder pelos militares em defesa de uma ordem com a

qual não concorda, mesmo não sendo um legislador, é colocado em uma situação que o

credencia a receber o legado, pois é capaz de reavivá-lo. Guevara já rompera com a inércia e

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mostrava ser possível partir em busca da aventura, de realizar anseios, de transformar a

realidade social, mais ainda, chamava para esta aventura. Indicava os caminhos, trazia a

estratégia a ser usada.

Lamarca, já convicto da necessidade de derrubada violenta do governo e da

transformação radical da sociedade, apresenta-se de arma em punho para escrever, com

sangue, seu nome na história.

O gesto de romper com o Exército não é suficiente para qualificar Lamarca

como herdeiro de CheGuevara. Além da disposição para a aventura de fazer a revolução,

outras semelhanças são destacadas, relacionadas, lembradas e comparadas. Algumas

comparações são aproximações através de simbologias, outras usadas para mensurar e julgar

as ações, ora glorificando, ora repudiando suas imagens.

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• 2.3 – ANALOGIAS HISTÓRICAS... A REBELDIA E A TRAGÉD IA

Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre. Cadete Carlos Lamarca – 17 anos. 1957.

Buscando semelhanças em momentos anteriores, a hierofânia de cada, é

possível encontrar sugestivas aproximações.

O problema de saúde, no caso do brasileiro uma pneumonia dupla

diagnosticada como tuberculose, quando os médicos deram por desenganado o pequeno

Carlos e no caso do argentino uma asma que o acompanhou por toda a vida.

A família de Guevara foi bastante dedicada aos cuidados com o filho, de modo

que passaram a procurar, no país, cidades onde o clima fosse favorável ao garoto:

“A família mudava muito de cidade, em busca de um clima melhor para o garoto, até parar em Alta García, na região serrana de Córdoba, onde ele vai crescer.”123

Dedicação que ocupa grande parte do tempo dos pais:

“À noite, muitas vezes Guevara Lynch124 dormia sentado na cama do filho, com a cabeça do menino pousada em seu peito para ajudá-lo a suportar os ataques de asma. Ernesto tinha quatro irmãos e uma amistosa vida familiar ‘Nós vivíamos uma boa vida. Eu passava meu tempo com o menino. Ensinei-o a atirar, a nadar e o levei para jogar futebol e rugby. Cuidava para que no

123 Os primeiros passos. CAROS AMIGOS ESPECIAL – CHE GUEVARA . São Paulo: Casa Amarela. 1997. Numero Especial 1. p. 4. 124 Ernesto Guevara Lynch, arquiteto e engenheiro civil, pai de Ernesto Guevara de La Serna, o CheGuevara.

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verão passasse três horas por dia na piscina, para relaxar seus músculos do peito e permitir que respirasse melhor’, recordou o pai, anos mais tarde”125

Na biografia de Oldack Miranda e Emiliano José, este assunto é abordado sem

detalhar a dedicação, mas afirmando o favoritismo em torno do filho doente da seguinte

forma:

“Nascido no Estácio, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, a 27 de outubro de 1937, o menino Carlos Lamarca agitou a família com apenas dois anos de idade: foi desenganado pelos médicos que o deram como tuberculoso. Sobreviveu. Tratava-se de uma pneumonia dupla, mas a comoção tornou-o favorito entre os seis filhos.”126

O garoto Ernesto Guevara de La Serna também enfrentou a doença com galhardia:

“Nós escutávamos como ele ofegava, víamos como se deitava no chão para facilitar a respiração. Mas jamais se queixava. Para ele, tratava-se de um desafio.

Uma tia de Che.” 127

Graças a determinação e disciplina, Lamarca superou seus problemas de saúde

e começou a demonstrar outras características de sua personalidade, diferenciando-se dos

demais irmãos:

“Seu irmão Walter Lamarca guardou dele a imagem de um garoto decidido. Não gostava de perder e sempre conquistava a liderança nas brincadeiras de rua” 128

Ao contrário de Che, um filho de classe média aristocrata e decadente, não era

um aventureiro, Lamarca era um rapaz pobre, filho de sapateiro responsável, disciplinado e

determinado o que o levou a ser o único dos filhos a concluir um curso superior. Se o cubano-

argentino abre mão da cidadania cubana, dos cargos de ministro e presidente do Banco

Central de Cuba, o brasileiro abriu mão de uma ascensão social significativa para um filho de

sapateiro do bairro do Estácio e da carreira que tanto desejou.

125 KELLNER, Douglas. OS GRANDES LÍDERES – CHE CUEVARA. São Paulo: Nova Cultural 1989. p. 15 et seq. 126 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 33. 127 KELLNER, Douglas. Op. cit. p. 16.

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As primeiras dificuldades enfrentadas pelos dois guerrilheiros mostram-os

como pessoas comuns. Suas doenças não eram moléstias raras mas servem para demonstrar a

determinação dos personagens em superar adversidades desde a infância. Os males os tornam

iguais, a superação os diferenciam.

Além do perfil individual de pessoas capazes de ultrapassar limites impostos

pelas enfermidades, este quadro revela uma realidade social: a incidência de doenças contra as

quais a população se vê obrigada a lutar cotidianamente, pois não são raras, ao contrário são

relativamente comuns e no caso da pneumonia de Lamarca capaz de levá-lo à morte.

Esta é a realidade com a qual deve-se romper e buscar não mais reconhecer-se

na carência de condições básicas de saúde, indignidade imposta à condição humana devido a

defesa de interesses econômicos e políticos. É um fundamento histórico que impele a ação, à

rebeldia. O conhecimento e a compreensão das dificuldades cotidianas justificam a rebeldia.

Como o mito não surge da natureza das coisas e tem a necessidade de possuir

elementos que possibilitem a apreensão dos significados das narrativas, percebemos a

primeira face das manifestações míticas deste núcleo: a igualdade. A mais famosa narrativa

de núcleo temático do Salvador é exemplar. Jesus Cristo se fez homem e nasceu em um local

pobre, ou seja, tornou-se um igual, capaz de sentir e viver da mesma forma que o mais

simples dos homens, não basta saber sobre as agruras sofridas. Diante o apelo da mãe para

transformar água em vinho respondeu que ainda não havia chegado sua hora, ou seja, sua

hierofânia, o momento de sua sacralização, do mito, de sua revelação, e isto se dá após o

batismo e uma viagem ao deserto quando torna-se o Messias. Após cumprir sua missão, vence

a tragédia e deixa um legado.

Os Salvadores a principio nada possuem de diferente até realizar-se a sua

hierofânia, mas são um solo fértil. Ou seja, tanto Che como Lamarca são pessoas de

existências comuns, entretanto possuem características que, em um dado momento, irão

diferencia-los.

O desejo de ajudar as pessoas aparece na construção da imagem de Lamarca na

escolha de sua profissão. É no Exército, segundo Oldack Miranda e Emiliano José, que

procura realizar esse desejo, mas, decepcionado, queixa-se a Maria Pavan:

“Eu vim servir ao Exército pensando que o Exército estava servido ao povo, mas quando o povo grita por seus direitos é reprimido. Aqui, o Exército

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defende os monopólios, os latifundiários, a burguesia. O povo é sempre reprimido. Esse Exército é podre e eu não agüento mais...”129 A biógrafa de Iara Yavelberg, Judith Lieblich Patarra, também relata o que o

filho de sapateiro do morro do Estácio no Rio de Janeiro buscava na carreira militar:

“Lamarca sacrificaria qualquer coisa pelo Brasil e encorajava os amigos queridos a imitá-lo, desde a parcimônianos gastos e consumo de material bélico, à convicção de serem seus guardiões. Tudo, ali, era a Pátria. Ao abandonar o Exército, resgatava o que da Nação haviam usurpado, inclusive a própria fé”130 O tema da traição está presente nestas duas passagens de sua biografia. Não

traiu, ao contrário, rebela-se contra os traidores. Portanto podem unir-se a ele quem por

ventura compartilhar de sua opinião.

Para Che a opção foi motivada por um acontecimento familiar que despertou-

lhe o desejo de servir, no seu caso este servir é literalmente salvar vidas:

“Pensava em estudar engenharia, mas a morte da avó, à qual era muito ligado e de quem assiste à morte, leva-o a decidir-se pela medicina.”131

O momento quando começam a tornarem-se conscientes da necessidade de sua

ação ainda não é o momento de sua hierofânia. Essa conscientização aparece nas narrativas

biográficas como sendo momentos, uma transformação íntima, anterior e necessária. Che, no

seu retorno da viagem pela América Latina ao lado de seu companheiro Alberto Granado,

grafou em seu diário:

“A pessoa que tomou estas notas morreu no dia em que pisou novamente o solo argentino. A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou mesmo que era antes. Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que me dei conta.”132

A politização de Che se dá através de uma experiência pessoal no contato com

as vicissitudes da vida na América. Nos relatos sobre Carlos Lamarca há também uma

viagem.

129 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 34. 130 PATARRA, Judith Lieblich, IARA – REPORTAGEM BIOGRAFICA . p. 304 131 Os primeiros passos. CAROS AMIGOS ESPECIAL – CHE GUEVARA . São Paulo: Casa Amarela. 1997. Numero Especial 1. p. 4. 132 GUEVARA, Ernesto Che, DE MOTO PELA AMÉRICA DO SUL, p. 14

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Lamarca, então segundo-tenente, teve em sua viagem ao canal de Suez, na

cidade de Rabah, em 1962, com as tropas da ONU, a mesma experiência transformadora. No

livro de Oldack Miranda e Emiliano José, o motivo desta viagem foi a necessidade de

aumentar o soldo, entre outras coisas porque Maria estava grávida pela segunda vez. Para

Judith Lieblich Patarra os problemas financeiros eram em decorrência de uma misteriosa

doença de Maria Pavan, algo nos rins. Por duas vezes, antes da viagem, alguns amigos teriam

enfiado um pouco do soldo no envelope do pagamento de Carlos e emprestavam-lhe calças e

camisas, porque seus trajes eram muito surrados. Segundo os autores de Lamarca – O

Capitão da Guerrilha, ele comentava a viagem em seu círculo de amigos da seguinte forma:

“Foi ali – disse um dia – ‘que tomei maior consciência da pobreza’” 133

No filme de Sérgio Rezende, esta viagem é mencionada por duas vezes: a

primeira em uma reunião de agentes da repressão onde afirmam ter sido uma experiência

marcante, e outra quando, conversando com o pai, conta a miséria que presenciou explicando

a imagem recorrente utilizada pelo cineasta: aparece uma mulher árabe carregando uma

criança no colo e acompanhada por outra caminhando pelo deserto.

Ao tomar consciência da miséria, rebela-se também com a sua existência de

classe média com perspectiva de ascensão social ao construir uma carreira estável no Exército

e omitindo-se ante a injustiça que presencia. O mesmo poderia ocorrer ao jovem médico

argentino, filho de aristocratas decadentes, cuja profissão poderia garantir algum prestígio

social e comodidade financeira.

Não se reconhecem neste estado de coisas, suas rebeldias não são apenas em

relação a situação política, com a qual evidentemente não concordam, para além dessas

divergências o que os motiva é o contato direto com a miséria da população. Não é o fato de

serem adeptos de uma teoria política que os mostra capazes de realizar a salvação e sim a ação

direta.

O prenúncio messiânico de uma sociedade igualitária evidentemente compõe o

poder de sedução de suas figuras míticas, mas sem a ação, a tragédia, o gesto exemplar, ou

seja, o fundamento histórico do mito, podemos garantir realmente o destaque que ambos

possuem na história política do continente? Dificilmente.

Veremos adiante, na seleção de momentos biográficos, algumas semelhanças

que são destacadas além da posição política de embasamento teórico ou vínculo partidário.

133 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 36.

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Tanto Lamarca quanto Che casaram duas vezes cada. A primeira esposa de

Che foi Hilda Gadea Costa com quem teve uma filha, Hildita, posteriormente casou-se com

Aleida March, militante da facção Llano, a mais detestada por Ernesto entre todas no âmbito

da revolução cubana.

Lamarca casou-se com Maria Pavan, depois, já durante a clandestinidade, teve,

dentro das possibilidades do momento, um relacionamento estável com Iara Yavelberg,

psicóloga e professora universitária, militante da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária –

da qual o ex-capitão tornou-se dirigente.

Hilda esteve com Che na Guatemala e o teria colocado em contato com os

cubanos que pretendiam derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista após uma noite inteira

conversando com o jovem advogado chefe do grupo, Guevara era seu médico na expedição.

Entretanto, apesar desse papel fundamental, a pequena militante peruana, mãe de Hildita, não

é destacada como a mulher providencial. Este papel está destinado a Aleida March, uma

mulher voluntariosa e corajosa, também vaidosa e muito atraente que conquistou o amor do

lendário guerrilheiro expondo-se durante os combates em Sierra Maestra e demonstrando sua

valentia. Após a vitória, tornou-se a mãe dedicada, mas cúmplice nos “sonhos” do marido.

Lamarca casou-se com a amiga de infância, Maria Pavan, que o ajudou a seguir

a carreira militar. Segundo seus biógrafos, o casamento foi em sigilo, pois era proibido aos

cadetes da Academia Militar de Agulhas Negras, porém devido a gravidez da namorada foi

realizado. Maria Pavan negou ao cineasta Sérgio Rezende que estivesse grávida, ao contrário

disse haver permanecido virgem durante seis meses para não prejudicar a carreira do marido

com uma gravidez indesejada.

Grávida ou não, o papel de Maria Pavan, na biografia de Lamarca, é muito

parecido com o de Hilda Gadea na de Che, ambas foram arrimo dos primeiros sonhos, mas

limitadas ao papel da companheira de um casamento sacerdotal. Maria afirma que foi educada

para ser “mãe de família e não heroína”134

A imprensa explorou, à época de sua morte, a ligação entre Lamarca e Iara

como sendo uma traição a Maria de quem, segundo a imprensa controlada pela ditadura, o ex-

capitão reclamava dizendo ter se casado com uma mulher e vivido com uma enferma.

Iara, assim Aleida, era uma mulher vaidosa e muito atraente. Ingressou na luta

armada, foi orientadora do grupo de Quitaúna composto por Lamarca, sargento Darci

Rodrigues, cabo José Mariane e o soldado Zanirato. Militante da VPR, do MR-8, tornou-se

134 LEITE, Paulo Moreira. Do fundo das trevas REVISTA VEJA , 04/05/1994. P. 118/119.

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uma das mulheres mais conhecidas entre as mulheres que pegaram em armas contra a

ditadura, morreu em Salvador, no dia 20 de agosto de 1971, a versão oficial fala em suicídio.

É uma das poucas mulheres que lutaram contra a ditadura a tiveram uma

biografia. Escrita por Judith Lieblich Patarra, Iara – Reportagem Biográfica, conta a trajetória

da judia do bairro da consolação, o prematuro casamento, os primeiros motivos que a levaram

a participar de atividades políticas, o interesse pelo teatro, o desejo de ser mãe, os namoros,

enfim, toda sua singularidade. No entanto seu nome é reconhecido em função de sua ligação

com Carlos Lamarca.

Durante os trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos, não foi possível

exumar seu corpo devido a motivos religiosos, afinal sendo judia, significaria a profanação do

corpo, considerado sagrado pelos judeus. A família afirma que, exatamente por motivos

religiosos, continua tentando provar que não houve suicídio e sim assassinato para poder

retirar sua sepultura da ala destinada aos suicidas, próxima ao muro do cemitério.

Samuel Yavelberg, irmão de Iara, falou a imprensa que a família brigou na

justiça, em outros processos, durante 13 anos, para conseguir exumar o corpo, ao

conseguirem, a manchete do Jornal Folha de S. Paulo do dia 23 de setembro de 2003 era a

seguinte:

“CORPO DA MULHER DE LAMARCA É EXUMADO”

Mesmo possuindo uma trajetória própria dentro do movimento armado e até

posteriormente tendo uma situação singular pelas dificuldades encontradas pela família para

reconhecer as condições em que ocorreu sua morte, Iara tem sido reconhecida através de sua

ligação com Lamarca.

Em alguns casos, na época do processo de demonização de Lamarca, Iara era

apontada pela imprensa como o cérebro por trás da imagem de grande líder. Até outro

personagem lendário, o famigerado Cabo Anselmo, afirmou que, no encontro com o casal saiu

com a seguinte impressão:

“...A Iara era muito amorosa, maternal. Do Lamarca com a Iara, o que eu percebi é que a Iara era dominante naquela relação. Politicamente, era a pessoa que estava dando força para o Lamarca de uma maneira carinhosa. Era um tipo de mãezona, companheira. Líder daquela dupla política.”135

135 SOUZA, Percival de. EU, CABO ANSELMO . São Paulo: Globo. 1999. p. 159.

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A afirmação do notório delator em 1999, mesmo tendo a intenção de

desqualificar o político Lamarca reduzindo-o a um homem de ação, assim como as

reportagens do momento da luta evidenciam a importância da imagem da ligação entre

Lamarca e Iara. Um casal sacerdotal.

A imagem de casais sacerdotais cujos filhos são toda a humanidade renovada, é

apresentada por Girardet na constelação da Unidade. É a imagem:

“Da condenação do casamento burguês à visão redentora do casal sacerdote, guia espiritual de uma humanidade renovada”136

Para compor o casal sacerdotal, a mulher deve apresentar os mesmos atributos

do homem, ou seja, a versão feminina de um messias. Iara, politizada, militante, apresenta o

perfil ideal para isto.

A condenação do casamento burguês não foi explorada de maneira abrupta

pelos biógrafos de Lamarca. Maria é conformada, como vimos, com o papel de mãe de

família, foi a mulher que possibilitou os estudos e a carreira militar de Carlos, mas por ela, o

ex-capitão nutria um amor fraternal e não a paixão capaz de servir de guia espiritual.

Maria, mesmo não sendo o perfil da mulher-messias, ajuda na construção do

personagem mítico Lamarca, pois, é na sua companhia que aparece o chefe de família,

atencioso e preocupado com a educação dos filhos, cuidadoso com a esposa. No livro de

Oldack Miranda e Emiliano José, a relação com Iara é assumida em junho de 1969 com uma

frase que mistura desabafo e respeito: “não queria trair Maria, amava Iara”.

Aos olhos de quem busca uma identidade através da fidelidade a uma imagem,

cujos gestos apresentam-se exemplares, a relação entre o capitão e a psicóloga é legitimada

pelo sentimento da paixão e pela doação à causa da revolução. Lamarca escreve a Iara, no seu

“diário”, consolando-a por não ter sido confirmada a gravidez que esperavam:

“O nosso amor não está isolado na realização de nós dois nem nos milhares de filhos que teremos, ele nasceu e estava umbilicalmente ligado à revolução e construção do socialismo”137 Uma contradição acompanha as narrativas sobre o início dessa união. Oldack

Miranda e Emiliano José, autores de Lamarca: O capitão da guerrilha, não fazem nenhuma

referência a participação de Iara Yavelberg no grupo de estudos, dizem que eles só se

conheceram em abril de 1969. No livro de Judith Lieblich Patarra, Iara: Reportagem

136 GIRARDET. R. op. cit. p. 173.

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Biográfica, a bela psicóloga aparece como designada, em outubro de 1968, pela organização

armada VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) para prestar assistência teórica ao grupo

em substituição a Renata Guerra de Andrade que acompanhava o grupo desde os primeiros

meses de 1968.

Judith Lieblich Patarra, no entanto, aponta que, antes deste encontro no grupo

de estudos, Lamarca e Iara já se conheciam. Este primeiro contato teria sido em um final de

semana quente de 1962, quando Iara, ainda estudante, foi ao quartel acompanhada de Antônio

José Figueiredo – o Tom Figueiredo irmão do capitão do 4º RI de Quitaúna Afonso

Figueiredo - e alguns amigos para utilizar a piscina. Tom relata que após a piscina formaram

uma roda de conversa da qual participou o oficial-de-dia, um jovem tenente muito amigo de

seu irmão e que teria sido ele Tom quem os apresentara. O jovem tenente era Carlos Lamarca.

NANI, Rodolfo. Iara na casa de Rodolfo Nani. 1968.

Luiz Maklouf Carvalho em Mulheres Que Foram a Luta Armada, dá ao militante Espinosa o

mérito de ter apresentado Lamarca a Iara, na casa da professora universitária e diretora de

teatro Heleni Telles Ferreira Guariba (que constava na lista dos desaparecidos políticos e teve

a responsabilidade de sua morte reconhecida em anexo da lei 9140/95), sem precisar a data

137 Diário de Carlos Lamarca. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Folhetim. São Paulo. n. 543. 10/07/1987. P.

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em que isto teria ocorrido. Enfim, trata-se de uma união celebrada nos jogos de seleção de

quem recorda

Departamento de Assuntos Históricos, Conselho de Estado de Cuba. Última foto oficial. 1965. Che, com o filho Ernesto, Camilo, Aliuska e Aleida com a filha Célia.

Além de toda a humanidade renovada, os filhos de Che e Lamarca também são

herdeiros do legado e fazem parte de seus projeto. O destaque para o convívio entre pais e

filhos mostra-nos a educação dada a eles, uma relação entre o pessoal e o universal, entre os

filhos biológicos e aqueles renovados através da adesão e da fidelidade.

Algumas cartas de Lamarca e Che foram selecionadas para demonstrar o afeto

desses pais com seus filhos. Não é algo ilógico um pai escrever aos filhos, principalmente

quando está em uma situação de extrema pressão psicológica, com os sentimentos à flor da

pele, o que chama a atenção é que estas que vieram a público contém traços e preocupações

comuns138.

O início da carta de Lamarca traz uma explicação sobre o que é ser um

revolucionário:

“O que é um revolucionário? É toda pessoa que ama todos os povos, ama a Humanidade, tem uma imensa capacidade de amar, ama a Justiça, a Igualdade. Mas ele tem de odiar também, odiar aos que impedem que o revolucionário ame, porque é uma necessidade amar.”

B-3. 138 As cartas de Lamarca foram publicadas na biografia escrita por Oldack Miranda e Emiliano José. As de Che foram extraídas da coleção Pensamento Vivo de. CHE GUEVARA. São Paulo: Martin Claret, p.17 et. seq.

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Na carta de despedida aos filhos, Che comenta sobre qual julga ser a qualidade

mais linda do revolucionário:

“Sobretudo, sejam sempre capazes de sentir, no mais profundo, qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a qualidade mais linda de um revolucionário.”

O amor revolucionário é abordado diretamente neste trecho. É um amor que

age, que exige uma atuação. É o “amar ao próximo como a si mesmo”.

No segundo parágrafo da carta de Lamarca, duas passagens são marcantes.

Primeiro:

“O revolucionário ama a Paz, faz a guerra como instrumento para ter a Paz, a Paz Justa, sem exploração do homem pelo homem.”

Neste trecho, é notável que um chavão para se referir ao capitalismo foi

utilizado “exploração do homem pelo homem”. Na carta a Hildita, a mesma mensagem é

utilizada por Che, temos a seguinte passagem:

“Eu não era assim quando tinha a tua idade, mas vivia numa sociedade diferente, onde o homem era inimigo do homem”.

A segunda passagem é quando Lamarca comenta sua adesão à luta

revolucionária;

“Quando sentirem saudades de mim, lembrem-se que aqui no Brasil existem muitas crianças que passam fome, que andam descalças, sem escolas, que sofrem e vêem seus pais sofrerem. Lembram-se quando conversei com vocês no quarto e pedi a vocês que deixassem eu lutar para acabar com isso. Eu me lembro bem que a Claudinha bateu palmas e o Cesar disse: ‘Muito bem, papai’.”

Che também cita sua atuação aos filhos e aponta sobre a atitude que devem ter

em relação a isto na carta a Hildita:

“Deves saber que estou e estarei durante muito tempo longe de ti, fazendo o que posso para lutar contra nossos inimigos. Não que seja muita coisa, mas alguma coisa estou fazendo e creio que poderás sempre te orgulhar de teu pai, assim como eu me orgulho de ti.”

No terceiro parágrafo, Lamarca diz aos filhos o que espera deles:

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“Vocês são felizes porque a mãe e o pai são revolucionários e vocês têm que ser também. Amem muito a mamãe, eu não posso beijá-la, todos os dias de manhã beijem duas vezes a ela, uma vez por mim.”

Na carta a seus filhos, Che é mais incisivo:

“Cresçam como bons revolucionários.”

E na carta a Hildita:

“Enquanto isso, tens que preparar-te, ser muito revolucionária, o que na sua idade significa aprender muito, o mais que for possível e estar sempre pronta para apoiar as causas justas.”

No quarto parágrafo, Lamarca chama a atenção dos filhos para os estudos e

para a justiça:

“então estudem mais, perguntem tudo o que não entenderem, perguntem sempre o porquê das coisas – perguntar e pensar – ver se é certo, se não for, falem, discutam – ver se é justo, se não for lutem para mudar.”

Após alguns comentários sobre particularidades de cada filho, Lamarca dá um

conselho que está diretamente ligado à doutrina pela qual optou:

“Não chamem ninguém de senhor porque ninguém é senhor de ninguém. Mas ouçam os mais velhos e procurem fazer as coisas melhores que eles, porque tudo que é novo é superior ao velho.”

O novo superior ao que é velho é uma alusão a evolução da sociedade tal qual é

vista no marxismo. Somado ao conselho anterior sobre os estudos, Lamarca refere-se

literalmente à análise de modificação da natureza pelo homem.

Che novamente é mais direto, quando dá o mesmo conselho:

“Estudem muito para poder dominar a técnica que permite dominar a natureza.”

Após comentar algumas particularidades dos filhos, Lamarca encerra a carta

com um último conselho em forma de pedido aos filhos;

“A maior alegria que vocês podem me dar é aproveitar muito o estudo, preparando-se para fazer a revolução em qualquer país.”

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Esta revolução mundial é abordada por Che no mesmo parágrafo em que fala

a Hildita sobre o amor revolucionário.

As cartas podem ser lidas não apenas pelos filhos biológicos, são didáticas,

servem também aos herdeiros de uma ligação sacerdotal. O sentimento revolucionário, a

definição do que vem a ser revolucionário, a teoria pela qual pensavam chegar a uma nova

sociedade, a educação a ser dada à renovada humanidade.

A mensagem das cartas não se limita a relação afetiva entre pais e filhos. Esta

relação revela um amor “maior”, revolucionário, sem limites ou ligações diretas, um amor que

se quer universal.

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2.4- SÍMBOLOS DE VIDA E MORTE.

Há outros detalhes que se assemelham nas biografias de Lamarca e Che.

Alguns apenas curiosos como a preferência por jogar futebol na posição de goleiro, outros

com um sentido mais simbólico como o local da morte.

Lamarca foi morto na caatinga do sertão baiano, num lugarejo chamado

Pintada, no município de Oliveira dos Brejinhos. Estava deitado sob a sombra de uma

baraúna, ao lado de José Campos Barreto. Vegetação seca, lugar isolado e miserável. A

baraúna destaca-se na paisagem.

Bancos de Dados Jornal Folha S. Paulo. Lavrador aponta o local da morte de Lamarca. 1971.

Che, após sua execução, foi levado para a lavanderia de um hospital, em

Vallegrande, para ser exposto à população. Devido à sujeira, foi lavado no chão, em um

terreno nos fundos. Dizem que um pinheiro teria nascido de sementes que ele trazia no bolso e

caíram ao solo.

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HAZARIM, D. Pinheiro Milagroso. 1997 Pinheiro nascido no local onde foi lavado o Corpo de Che.

A simbologia da árvore como fonte de vida é destacado por Girardet , as raízes

que buscam, no fundo da terra, a essência da vida que se vê nos galhos frondosos:

“A raiz que aspira dirigir ao céu o sumo da terra, mas que cresce no reino subterrâneo dos mortos, é percebida simultaneamente como força de vida e força tenebrosa”139 As árvores, nos casos de Lamarca e Che, demonstram a continuidade da vida

que deveria ter cessado naquele local.

No caso de Ernesto Che Guevara a frondosa árvore é, como a pequena

lavanderia, visitada por pessoas de vários países. Um projeto turístico denominado “La Ruta

del Che”140 acredita que encontrará interessados na “geração de 68” que “...se achavam

idealistas quando jovens e hoje estão casados com filhos já crescidos. Profissionais liberais

em boa situação financeira em busca de alguma causa esquecida”141 ou sem a determinação

para romper com a própria existência bucólica.

A baraúna, sob a qual Lamarca descansava, não foi transformada em ponto

turístico, contudo bastante lembrada na Comissão de Mortos e Desaparecidos. João Queiroz,

policial, em 1971 em Brotas de Macaúbas e delegado, em 1996, declarou a imprensa que

139 GIRARDET. R. op. cit. p. 16. 140 HARAZIM D. O triunfo final de Che REVISTA VEJA . São Paulo: abril. p. 88/97. 141 HARAZIM D. O triunfo final de Che REVISTA VEJA . São Paulo: abril. p. 88/97.

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havia muitas marcas de balas na baraúna142. Este depoimento mais o do ex-carcereiro Genésio

Nunes Araújo, de que foram apenas duas rajadas rápidas, portanto, sem tempo para haver o

diálogo entre o major Nilton Cerqueira e o “terrorista caçado” que aparece no relatório oficial

da “Operação Pajussara”.

LIMA, Agliberto C. Menino aponta o local onde Lamarca foi assassinado. 1979 Oldack Miranda e Emiliano José visitaram o local da morte de Lamarca e

mostram, no livro, a foto de um garoto que, oito anos após, aponta com exatidão o local do

tiroteio.

A árvore, no caso do brasileiro, está ligada à tragédia. Não houve a

sacralização do local, sua lembrança é a presença no local da morte. Ela não marca o local, ela

estava presente no local, testemunha o fim físico e simboliza a continuidade.

Algumas semelhanças são resultado de aproximações, como no caso dos

diários. Che tinha o hábito de escrever diários, os mais famosos são: o diário da campanha na

Bolívia e o da viagem de moto pela América do Sul. Lamarca não escreveu diários, mas uma

coleção de cartas diárias, endereçadas a Iara Yavelberg foram “transformadas” no “diário de

Lamarca” pela imprensa143:

Para o jornalista Élio Gaspari estas cartas são um documento único:

“Documento único na historiografia brasileira, essas cartas contam o estado de ânimo de um revolucionário derrotado que corre em direção ao nada, cavalgando sua utopia sem recriminações que mascarassem fracassos nem dúvidas que amortecessem perigos. Pela aparência macerada e pela marcha

142 Carcereiro e Policial contestam Exército JORNAL FOLHA DE S. PAULO. São Paulo. 15/16/1996. P. 1-11. Brasil. 143 Diário de Carlos Lamarca. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Folhetim. São Paulo. n. 543. 10/07/1987. P. B1/B12

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sem rumo, o Cirillo do sertão baiano move-se como um desesperado, mas aquele que se mostrou nas cartas é um homem feliz, desempenhando o papel de herói que se impusera e cultivara.”144

O comentário do jornalista afirma que a fama de Lamarca fora cultivada pelo

próprio quando a ditadura controlava a imprensa. Nem mesmo estas cartas são documento

único sobre o cotidiano de organizações de esquerda. O Partido Comunista sofreu com o

chamado processo das cadernetas, pois o ex-secretário geral, Luís Carlos Prestes, tinha o

hábito de anotar nomes, codinomes, episódios, observações. O diário, no entanto, serve para

colocar o leitor muito próximo da figura admirada ou desprezada, porém possibilita uma

reorganizações oníricas das imagens.

A famosa foto de Alberto Korda e a capa do livro de Emiliano José e Oldack

Miranda também foram aproximadas.

A foto de Che foi feita em um ato público pela morte de 136 pessoas quando

explodiu um artefato em um navio francês que descarregava armas em Cuba. Como o

pensador francês Sartre estava em Cuba, construíram uma tribuna. Nela estavam todas as

figuras do governo, Che estava um pouco atrás, em segundo plano, de repente, quem estava

na sua frente saiu, ele vem a frente, olha a multidão e retira-se novamente para o fundo do

palanque. Neste momento, o atento fotógrafo dispara o obturador da câmara e tira dois

retratos145, um deles tornou-se a mais conhecida fotografia do mundo.

A capa do livro de Emiliano e Oldack é uma gravura feita por Elifas Andreatto

a partir de uma foto para documento. Essa fotografia é a imagem mais conhecida de Lamarca,

juntamente com as fotos dos treinamentos de tiro para funcionários do Bradesco. Na

fotografia, ele está vestido com um surrado terno e um ar cansado.

144 GASPARI. E. op. cit. p. 351. 145 Caros Amigos Especial – Vida e Morte de Um Mito CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela 10/1997.

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Banco de Dados do Jornal Folha S. Paulo. Lamarca. Korda, A. – Che ANDREATO, Elifas. - gravura capa do livro Lamarca – O Capitão da Guerrilha de Emiliano José e Oldack Miranda. 1980.

A gravura de Elifas traz Lamarca vestido com uma camisa vermelha, os

cabelos mais desgrenhados e o ar de cansaço desaparece. A cor vermelha é uma referência à

bandeira comunista. Também o retrato de Che exposto em ginásios, na parede do Ministério

do Interior em Cuba, recebe um tom avermelhado, ao fundo. Ambas as imagens sofrem,

portanto, um processo de reconstrução no qual o discurso faz claras referências ao

comunismo, opção política dos movimentos armados.

Outra imagem foi muito divulgada nos processos na Comissão de Mortos e

Desaparecidos no Regime Militar. Os cadáveres de Che e Lamarca. As fotos relembram ainda

o quadro Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, sec. XVII, de Rembrandt.

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Revista Veja “O terrorista esfomeado, no IML: cena que lembra Rembrandt (acima à dir.) e Che Guevara

A semelhança da cena é evidente. Os corpos sobre uma mesa ou maca

mortuária são examinados por algumas pessoas. A comprovação e a exposição da morte, o

corpo chegou ao fim de sua missão. Apresentados em um momento de disputa da legitimidade

das ações de cada um dos lados, estes cadáveres possuem vida. Lamarca, o centro das

discussões sobre as indenizações e a legitimidade do Estado democrático em oposição ao

Estado de Exceção; Che vive nos ideais; no quadro, uma aula de vida através da morte; o

mesmo contraste.

As pessoas que viram os cadáveres se impressionaram com um detalhe, ambos

tinham os olhos abertos. Mesmo que isto seja algo comum, o fato é que este detalhe passou a

ter uma significação para estas pessoas. Detalhe percebido pelo boliviano de Vallegrande Juan

Escalante ao visitar o corpo de Che exposto na lavanderia do hospital: “Pode soar absurdo,

mas ele tinha algo de vivo - parecia nos olhar de frente”146, nem aos jornalistas Percival de

Souza, Inajar de Souza e José Roberto que cobriram o episódio da morte de Lamarca no

sertão baiano: “De olhos abertos, morto”147 . O contraste entre o corpo morto e os olhos

abertos é expressivo.

Aproximando as imagens de Che e Lamarca compartilham-se as virtudes, ou os

vícios, que se possam atribuir tanto a um quanto a outro:

A categoria de representação figurada não é um dado imediato do espírito humano, um fato da natureza, constante e universal. Trata-se de um quadro mental que, em sua construção, supõe que já se tenham singularizado e delineado nitidamente, em suas relações mútuas e em sua oposição comum ao

146 HARAZIM, D. O triunfo final de Che. REVISTA VEJA São Paulo: Abril 09/07/1997, p. 88/97. 147 Xerox de jornal no processo da Comissão de Mortos e Desaparecidos, p. 155.

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real, ao ser, as noções de aparência, de imitação, de semelhança, de imagem, de simulacro.148

O mito político é polimorfo e significações opostas são comuns e também parte

da construção da imagem mítica:

“As referências temáticas são as mesmas, mas suas tonalidades afetivas e morais acham-se subitamente invertidas” 149

Os personagens míticos de Lamarca e Che nem sempre sofrem uma

aproximação de reconhecimento da similaridade de suas ações. Por vezes, são colocados

confrontando-se.

Caso ocorrido no momento do processo para o reconhecimento da

responsabilidade do Estado na morte do ex-capitão quando a articulista do Jornal Folha de S.

Paulo, Marilena Filinto, ao comparar as figuras dos cadáveres de Lamarca e Marighella, diz

ser impossível retirar de seus corpos contorcidos heróis, como foram para ela, na juventude,

os barbudos de Sierra Maestra:

“Fatos antigos, que não se renovam, que não causam perturbação nos espíritos das gerações seguintes: como transformar em heróis os corpos crivados de bala, as caras contorcidas e torturadas de Carlos Lamarca e Carlos Marighella?(...)Nossa paixão por Castro e Guevara era romântica e ideológica. Desejávamos fisicamente aqueles homens barbados, armados e amoitados no escuro da Sierra Maestra. .” Admirávamos a luta ousada contra os ianques. Líamos em voz alta as palavras de Fidel Castro: ‘A justiça continuará a ser feita, até que todos os criminosos do regime de Batista tenham sido julgados... Se os norte-americanos não estiverem gostando do que está acontecendo em Cuba, eles poderão desembarcar os ‘marines’ e, então, haverá 200 mil gringos mortos.’ 150

Para a autora, os rebeldes brasileiros e a “história falsificada do Brasil” foram

incapazes de despertar sonhos, fantasias e até paixões, como os rebeldes da revolução cubana

despertaram. Como transformar em heróis os corpos crivados de bala, as caras contorcidas e

torturadas de Carlos Lamarca e Carlos Marighella?

Mesmo não estando presente no passado afetivo da autora como imagem na

qual se tem uma intimidade protetora, este papel é reservado aos cubanos, é em dialogo com

148 VERNANT Jean-Pierre ENTRE MITO & POLÍTICA ; 2 ed. São Paulo; Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p. 310. 149 GIRARDET. R. op. cit. p. 16 et. seq. 150 FELINTO, Marilene. Lamarca, Marighella e meus homens de Cuba JORNAL FOLHA DE S. PAULO 09/07/96 cad. 2 pag. 3.

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a imagem dos corpos contorcidos que se mobiliza a escrever sobre o “seu” passado,

“enobrecido” pela presença dos vitoriosos Che e Fidel, afinal esse artigo foi publicado dois

dias após a descoberta do laudo cadavérico do ex-capitão em um momento de grande

evidência de sua figura durante o julgamento da responsabilidade do Estado pela morte de

desaparecidos políticos na Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça

Para a jornalista, os rostos dos cubanos são mais cativantes, trazem estampadas

imagens belas e vitoriosas tão próximas de um sonho adolescente. Nos contorcidos rostos de

Lamarca e Marighella vê a imagem da tragédia e a falsidade de uma história incapaz de

despertar sonhos e paixões, como as românticas imagens dos cubanos.

Outra comparação entre os dois guerrilheiros foi feita por Élio Gaspari

criticando a morte do tenente Mendes no Vale do Ribeira. Para o jornalista, levá-lo junto e

transformá-lo de prisioneiro de guerra em refém foi ultrapassar o limite entre o guerrilheiro e

o bandido comum. Invoca a figura de Che para condenar a ação do rebelde brasileiro:

“(...) Para ficar dentro da historiografia dos rebeldes, um exemplo é a captura pela guerrilha do Che Guevara, em duas ocasiões diferentes, de um total de trinta militares bolivianos. O Che interrogou dois oficiais que ‘falaram como papagaios’ e deixou todos os prisioneiros no mato. Seis meses depois, feito prisioneiro, foi assassinado. Disso derivou em boa parte sua lenda heróica”151

Diferente do depoimento da articulista (argumentos afetivos justificam sua

preferência) que encontra, nas imagens dos guerrilheiros de Sierra Maestra, motivos para

uma paixão juvenil e espontânea.

Élio Gaspari julga as ações buscando em uma construção empírica a

legitimidade de seu julgamento. Omite detalhes da ação de Lamarca, por exemplo que estava

num cerco, situação na qual Che nunca esteve, nem em Cuba, nem na Bolívia. Guevara

sempre esteve em um front, ou seja uma frente de combate onde o recuo e a fuga eram

possíveis. Também a tentativa de emboscada preparada pelo tenente quando retornou ao

encontro dos guerrilheiros e de seus soldados que foram feitos prisioneiros em um primeiro

confronto, sendo todos liberados.

Lamarca, ao sair da área, levou consigo outros prisioneiros deixados

desarmados e amarrados na Marginal do Tietê, fato discretamente lembrado duas páginas a

diante, da mesma forma que Che em relação aos dois oficiais.

Guevara, quando foi cercado, acabou assassinado, como o próprio jornalista

narra. A proposta então é deixar-se matar para alimentar uma lenda heróica intencionalmente?

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Na análise de Élio Gaspari há uma cobrança da imagem de Lamarca como herói imaculado,

pois o jornalista julga essa uma construção deliberada, como vimos, feita pelo próprio ex-

capitão em torno de si.

Segundo Girardet:

“Lenda dourada ou lenda sombria, a veneração ou a execração alimentam-se dos mesmo fatos, desenvolvem-se a partir da mesma trama. Entre as duas versões, entre Napoleão, o Grande, e Ogro da Córsega, não há mais que uma oposição de ponto de vista:..”152

Lamarca e Che não são sempre vistos da mesma forma. O rebelde argentino

conheceu a vitória em um acontecimento que tornou-se referência para o continente. Ao abrir

mão de cargos e poder aumentou a aura de romântico aventureiro.

Lamarca realmente não aparece como a figura de um vencedor político. Sua

imagem está relacionada com a tragédia de vários movimentos guerrilheiros, alguns

inspirados no sucesso da revolução cubana, que foram derrotados pelas ditaduras instaladas na

América Latina.

Na denúncia da Operação Condor, ação de cooperação entre os órgãos de

repressão política das ditaduras da América Latina, Lamarca aparece ao lado de Augusto

Pinochet e Fenando Henrique Cardoso.

DIEGUEZ, C.; SOARES, L.. Revista Veja. 24/05/2000.

151 GASPARI, É. Op. cit. p. 198 152 GIRARDET. R. op. cit. p. 16.

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A imagem da tragédia de quem lutou e foi derrotado pela repressão das

ditaduras da América Latina não é representada por Che e sim por Lamarca. Apesar da

derrota do guerrilheiro argentino, sua imagem está mais relacionada com a vitória em Cuba e

a rebeldia que de sua trágica derrota.

O mitológico guerrilheiro cubano não serviu para retratar a tragédia de tantos

perseguidos políticos pelas ditaduras instaladas na América do Sul. Este papel cabe ao

brasileiro. Lamarca ultrapassou, ao menos na imprensa brasileira, os contornos de uma

representação interna, relativa apenas aos movimentos nacionais.

Apesar das similaridades, Che é a rebeldia, Lamarca a tragédia.

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CAPÍTULO III - O MITO LAMARCA E A CONSOLIDAÇÃO

DEMOCRÁTICA

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• 3.1 – A ANISTIA E O TEMA DA TRAIÇÃO

O mito ocorre e intervém na História. Seu poder explicativo desdobra-se em

uma força mobilizadora e, enquanto sua imagem possuir significados capazes de estabelecer

algum diálogo com a sociedade, ele tem condições de intervir. Por isso o mito não pode ser

desconstruído a partir somente de um exercício cognitivo. Assim, demonstrar, por exemplo, a

participação de Lamarca em apenas três ações armadas ou que a chamada Guerrilha do

Ribeira foi uma fuga e não um confronto entre forças não são suficientes para retirar da figura

do ex-capitão seu significado, pois sua importância histórica e sua força mítica está na mais

compreensão das representações de seus atos que nos atos em si.

Lamarca tornou-se conhecido em um momento de radicalização política.

Muitos daqueles que viveram o período, civis e militares, ainda estão ativos na política

nacional. Além disso não houve uma mudança radical nas Forças Armadas Brasileiras, elas

ainda são as mesmas instituições que instalaram no país o regime ditatorial. A passagem para

um regime democrático não foi uma ruptura drástica e sim passagem feita com cautela,

preservando as instituições militares e seus agentes de repressão política.

O período de marcante radicalização da política brasileira não foi, no entanto,

esgotado e parece haver sempre algo a ser retomado. Após o fim dos conflitos armados lutou-

se pela abertura política, fim do AI-5, “anistia ampla, geral e irrestrita”, eleições diretas, pelo

reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de militantes

políticos. A imagem do regime implantando em 31 de março de 1964 é utilizada para uma

luta constante: a que não aconteça novamente uma ditadura no Brasil.

Quando temas relativos à Luta Armada vêm a baila, Lamarca ressurge como

imagem daqueles que optaram pelas armas, dessa forma, cumprindo o papel de simbolizar a

tragédia de sua época, ou como ponto limite em torno do qual as partes se reorganizam para

um novo combate. Nestes momentos, sua imagem, ao ser invocada, retoma sua força

inserindo-se no presente.

As Forças Armadas, desde a Guerra do Paraguai, deixou de ser uma instituição

estritamente militar, para ocupar um espaço ativo na política nacional. Durante a ditadura as

atividades políticas e as funções militares confundem-se aos olhos dos militares. O general

Emilio Garrastazu Médici sobre o seu mandato declarou que:

“Minha intenção é pacificar o país e, ao final do meu governo, devolver o poder ao civis. Se isso não for possível, se, ao final de meu mandato, o país ainda estiver no estado de ebulição em que o encontrei ao assumir, só me restará devolver o bastão ao Alto Comando que, seguramente, indicará um

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general da ativa para me substituir. Se, no entanto, conseguir pacificar, vou trabalhar para fazer um civil meu sucessor. E se as coisas estiverem a meio caminho, vou indicar um general da reserva para fazer a transição a um governo civil”153 Médici nesta declaração demonstra que a presidência era uma tarefa militar

para a qual sentia-se designado pelo Alto Comando e dessa forma a exerceu. Sentia-se à

vontade na utilização do AI-5 ou de qualquer outra fórmula para vencer o inimigo.

Seu sucessor, Ernesto Geisel, iniciou o processo de abertura política. Referia-se

a ele como uma distensão lenta e gradual. Período bastante ativo na política, quando a

resistência armada contra o regime militar ainda era um problema. O movimento guerrilheiro

do Araguaia agonizava. Em relação ao movimento armado nas cidades, episódios como a

“Chacina da Lapa”, (militantes do PC do B foram assassinados após uma reunião) e as mortes

de Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog determinaram o afastamento do general

Ednardo D’Ávila de Melo do comando do II Exército e apontavam ora para uma maior

abertura, ora para um grande revés.

Outro caso de exoneração de cargo bastante turbulento e definitivo para a

consolidação de processo de distensão política do governo foi a demissão do general Sílvio

Frota do cargo de ministro do Exército o que demonstrou uma fissura na hermética cúpula do

Alto Comando, pois, neste momento, o exercício da presidência pareceu não poder ser

delegado pelas Forças Armadas. Geisel demitiu seu ministro do Exército, que claramente se

colocava como virtual futuro presidente, e ainda abriu caminho para a indicação de João

Batista de Oliveira Figueiredo como sucessor.

A disposição no exercício da presidência, não significa um rompimento com o

regime autoritário implantado a partir de 1964. Geisel sentia-se muito à vontade para utilizar

dos poderes excepcionais que lhe eram conferidos. Foi assim que, baseado no Ato

Institucional nº 5, fechou o Congresso Nacional para implantar o pacote de abril que consistia

em um projeto de reforma do Judiciário, mudanças na legislação trabalhista, na lei do

inquilinato, nas normas de concursos para ingresso no funcionalismo público, aumento do

mandato do presidente de cinco para seis anos, eliminava as eleições diretas para

governadores previstas para 1978 e criava a figura do senador biônico.

Como herança, Geisel deixou, ao seu sucessor, o legado de continuar com a

distensão política, o fim do Ato Institucional nº 5, a volta do direito de greve, o habeas-

corpus, a liberdade de imprensa, a imunidade parlamentar. O general João Batista de Oliveira

153 MÉDICI, Roberto Nogueira, MÉDICI, O DEPOIMENTO . Rio de Janeiro: Mauad. 1995.

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Figueiredo estava comprometido com as idéias de seu antecessor e, pela primeira vez desde

1968, sem poderes excepcionais para fechar o congresso ou cassar políticos. Iniciou seu

governo em 15 de março de 1979, o último do regime militar.

O momento era de expectativa e também de desconfiança em relação ao futuro.

Num programa especial de natal exibido pela Rede Bandeirantes dia 25 de dezembro de 1978,

o compositor Chico Buarque de Holanda comentava o momento:

“E agora se pretende vender a idéia, a imagem de uma abertura democrática, entre aspas, evidente que vai se usar, entende, tudo que se pode. Então a publicidade vai usar a liberação de algumas músicas minhas como sinônimo dessa abertura. Isso não quer dizer nada, entende, eu já falei tem muita coisa ainda para ser liberada.”154 Havia muita coisa ainda para ser liberada e um “front” importante dessa

abertura era a guerra de informação, não bastava denunciar as atrocidades cometidas em nome

do regime, mesmo que a denúncia em si já tivesse o poder de comover e sensibilizar as

pessoas. Uma série de livros sobre trajetórias pessoais na luta armada invadiu as listas dos

mais vendidos, entre eles, Os Carbonários de Alfredo Sirkis, O Que é Isso Companheiro e

Entradas e Bandeiras de Fernando Gabeira, 1964: A Conquista do Estado de René Dreifuss,

Lamarca de Oldack Miranda e Emiliano José também esteve por mais de trinta semanas entre

os mais vendidos na lista da Revista Veja. A tragédia pessoal dos militantes chegou as

livrarias de todo o país. Gabeira chegou a ser capa do número 651 dessa revista com a

seguinte referência: “Fernando Gabeira: O Escritor da Aberbura”.

Lamarca então reaparece no cenário político nacional. Sua figura torna-se

central neste momento, já não oferece o perigo de deflagrar uma guerrilha, nem resgatará,

pelas armas, o país das mão dos militares, define lados e reforça as posições assumidas antes e

no processo de abertura. Mito Político, exerce seu poder ao justificar ações realizadas e

mobilizar para novas realizações como a luta pela abertura. Diante de sua imagem apenas

duas posições são possíveis: a favor ou contra a anistia para aqueles que participaram de

movimentos armados. A primeira lei de anistia de nº 6683/79 não contemplava quem havia

cometido crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal, ou seja, excluía o ex-

capitão e todos aqueles que participaram da luta armada.

Em livros sobre a luta armada, os autores assumem explicitamente suas

posições neste novo momento, como, por exemplo, o ex-militante da VPR – Vanguarda

Popular Revolucionária - Alex Polari de Alverga, que lançou o livro de poesias Inventário de

Cicatrizes, cujo produto da venda era destinado ao Comitê Brasileiro Pela Anistia. O próprio

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autor encontrava-se preso cumprindo uma pena de 74 anos por sua participação na Luta

Armada e na expectativa de ser contemplado pela anistia. Os temas dos poemas são os

momentos da luta, o cotidiano da clandestinidade, a tortura. Em outro livro, Não és tu, Brasil

de Marcelo Rubens Paiva, há o recorte de duas reportagens, uma de 29 de maio de 1971 do

Jornal Folha de S. Paulo e outra da revista Manchete de 12 de julho de 1971 texto creditado a

Murilo Melo Filho em que Alex duvidava da legitimidade de Lamarca como militante.

No entanto, em 1978, na dedicatória de Inventário de Cicatrizes o nome Carlos

Lamarca está na lista dos homenageados:

“A todos os companheiros, livres, na clandestinidade, nas prisões e no exílio. Especialmente em homenagem de: Stuart Edgar Angel Jones, assassinado na tortura. Eduardo Leite, assassinado na tortura. Juarez Guimarães de Brito, por suicídio depois de ferido Carlos Lamarca, fuzilado depois de preso. Yara Iavelberg, morta? Assassinada? Suicídio? A TODOS OS NOSSOS MORTOS, A MORTE A MEU FILHO THIAGO À VIDA (Entre esses dois extremos e compromissos eu vou seguindo)”155

A morte de Lamarca é citada como assassinato, diferentemente da versão

divulgada pela ditadura (morte em combate). Para o poeta houve um assassinato. Confronta a

versão oficial, portanto, coloca-se novamente em posição de conflito em relação a ditadura,

não basta então lutar por liberdade física ou por perdão, mas pela sua verdade e

posicionamento.

O SNI – Serviço Nacional de Informação ainda tentava, nesta época, continuar

com o processo de demonização buscando vincular Lamarca à imagem de um “mal”.

Em setembro de 1979, em São Luís do Maranhão, uma greve de motoristas

provocou distúrbios e tinha o apoio da população. Pichações agressivas, no entanto,

assustaram a população, fizeram com que retirassem seu apoio ao movimento. Diziam: “Viva

154ESPECIAL DE NATAL – CHICO BUARQUE . Rede Bandeirantes de Televisão. 25/12/1978. 155 ALVERGA. Alex Polari de - INVENTÁRIO DE CICATRIZES . 3 ed. São Paulo: Editora Parma. 1978. p. 7

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Lamarca”, “CNBB-Greve-PCB” e “PC, estamos com você” foram feitas por sugestão do

SNI156.

A retirada de apoio à greve, pela possível ligação com o Partido Comunista, a

CNBB e possíveis herdeiros dos ideais de Lamarca, não significou repudio a eles, mas receio

de um novo momento de radicalização, uma vez que novamente a sociedade sofria um novo

surto de politização com a campanha pela redemocratização do país.

O medo, provocado por estas pichações, era em função de uma possível

retomada aos anos de terror, pois a abertura não havia sido concretizada. Se há o perigo da

volta da “subversão”, de um “mal” que pensava-se extirpado, há também o temor do retorno à

repressão violenta dos anos mais agudos da ditadura durante o governo Médici.

Sobre Lamarca, no período da discussão sobre a abertura, há um episódio

interessante. Em 1980, o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria regional, foi concedido ao

semanário gaúcho Coojornal pela publicação de documentos militares reservados sobre a

“Operação Registro” da campanha dos militares no combate a Carlos Lamarca e aos

guerrilheiros do Vale do Ribeira.

A ousadia custou aos jornalistas Osmar Trindade, Elmar Bones da Costa,

Carlos Rafael Guimarães e Rosvita Saueressing uma condenação a cinco meses de

detenção157 sem que houvesse sido desmentida a autenticidade dos documentos. Premiados

por um lado, condenados por outro, literalmente.

Neste momento de lembrança, o mito, ao ser recordado, vai sendo reorganizado

em uma seqüência de imagens e assumindo contornos de mecanismos seletivos de quem o

recorda.

O Lamarca recordado por Alfredo Syrkis em Carbonários: Memórias da

Guerrilha Perdida é ainda o perito militar e sua presença dá a dimensão da importância da

organização a qual o autor vinculou-se. Mas é recordado com um humor muito diferente de

todos os outros livros. Em uma passagem, um encontro entre o ex-capitão e agentes da

repressão chamados de “os homi” no hall de um edifício tem um desfecho inusitado quando

estes recuam para a rua pouco dispostos ao confronto, enquanto Lamarca saía pelo terraço.

Outro momento bem humorado é o da compra de um veículo pela organização,

um fusquinha bem disfarçado, documentos legais, porém com um pequeno furo de segurança,

o nome do dono anterior era Lamarca. Compraram o carro de Antônio Alberto, primo distante

do ex-capitão. Até a pontaria, talvez a maior virtude militar do ex-capitão é utilizada para

156 O SNI informa e contra-informa. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 05/12/1979 p. 37 157 Fatos na cadeia REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 08/07/1981. p. 32.

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comentar a bravata do militante Carlos Minc enaltecendo as qualidades de uma namorada

capaz de:

“...acertar o olho esquerdo dum mosquito, com uma 44...

- Pô, não vem me contando lorotas. Essa nem o tal Lamarca”158

Das imagens utilizadas para a recordação, Syrkis lembra a dificuldade do

militante Daniel e a esperança com a qual jovens militantes viam Lamarca:

“Primeiros tempos terríveis, sobretudo para ele, com pouco preparo físico. Mas lá pelas tantas o sujeito se acostuma e começa a entrar em forma. Começa a curtir os treinamentos. As táticas militares, sobretudo com um instrutor feito o Lamarca, um Deus grego da Guerrilha. Aprende a fazer minas, armadilhas vietcongs”159

O militar, sempre presente, não tem o perfil de nervoso das reportagens de

momentos anteriores, suas virtudes são divinas, líder nato aos olhos de quem o recebeu cheio

de esperanças:

“Lamarca era outro nível. Como combatente era adestradíssimo. Além disso, tinha sentido tático e uma intuição extraordinária, imaginação e reflexos trabalhados, por anos de formação aplicada e entusiástica. Um feixe de nervos que, na hora do perigo, funcionavam com a precisão de um cronometro, calma olímpica, frieza absoluta”160

A imprensa, antes instrumento na luta contra a “subversão” e agora livre do

controle da censura, passa a denunciar as atrocidades da ditadura, Lamarca, a imagem de um

“mal” que utilizava das sombras para tentar destruir a ordem, passou a ser a revelação de que

o “mal” devia ser visto no outro, na figura do seu antagonista. Os elementos agora

selecionados serão de denúncia e vigilância. A irritação dos militares com a nova postura

também virou notícia:

“É ponto pacífico para a cúpula militar do governo que a imprensa está infiltrada por esquerdistas que escapa ao controle dos proprietários das empresas. Dividindo a imprensa em dois tipos, a chamada ‘grande’ e a ‘alternativa’, os militares queixam-se do que seria a parcialidade da grande e a ‘irresponsabilidade’ da alternativa.”161

158 SYRKIS, Alfredo. OS CARBONÁRIOS: MEMÓRIAS DA GUERRILHA PERDIDA . 6 ed. São Paulo: Global. 1981. P. 111 159 SYRKIS, Alfredo. Op. cit. p. 161. 160 SYRKIS, Alfredo. Op. cit. p. 257 et. seq. 161 O que irrita os militares no quadro político. REVISTA VEJA . São Paulo. 18/02/1981 p. 17.

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106

O clima de descontentamento do militares piorou, quando, em 1981 uma ex-

presa política e ex-dirigente da VPR, Inês Etienne Romeu reconheceu a casa onde foi

torturada e tornou pública a descoberta. A notícia fez os ministros do Exército, da Marinha e

da Aeronáutica soltarem notas contra a denúncia de atividades ilegais de autoridades policiais

e militares, consideradas atos de revanchismo. O ministro do Exército Walter Pires empenhou

sua solidariedade declarando:

“O Exército repele energicamente as malévolas insinuações (... que procuram agora lançar a execração pública aqueles que se bateram, em verdadeiras operações de guerra, pela preservação da paz e da tranqüilidade da família brasileira” 162

Para o almirante Maximiano Fonseca:

“Foram ações legítimas contra elementos subversivos” 163

A nota do brigadeiro Délio Jardim de Mattos, Ministro da Aeronáutica, é mais

incisiva ao afirmar haver revanchismo nas denúncias:

“Se terroristas anistiados podem hoje, com a tranqüilidade de homens livres, reescrever a história dos vencidos, é porque aos vencedores mais importa o reencontro histórico que hoje vivemos que a vingança estéril e sem futuro (...) Fomos violentos, injustiças existiram e erros não negamos (...) Mas a quem pode interessar o julgamento de uma fase ultrapassada?”164

Às denúncias de Inês, somaram-se as de que o psicanalista Amílcar Lobo

assessorou torturadores, e que (segundo a imprensa “serviu de senha para a reação

militar” 165) o então coronel Nilton Cerqueira, comandante da “Operação Pajussara”, o

assassino de Lamarca, teria torturado, em 1971, o preso político César Queiroz Benjamim.

Denúncias como esta incomodavam os militares que começaram a reagir sem,

contudo, conseguirem convencer ou explicar seus métodos. Se o homem que caçou e matou o

mais procurado dos “subversivos” podia ser denunciado, outros de menor destaque sentiram-

se ameaçados o que fez alguns chefes militares lembrarem ao ministro do Exército sua

promessa ao assumir o ministério:

162 Com o pé o freio. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19. 163 Com o pé o freio. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19. 164 Com o pé o freio. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19. 165 Com o pé o freio. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19.

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“Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade, cumpriram o duro dever de se oporem a agitadores e terroristas, de armas na mão, para que a nação não fosse levada à anarquia” 166

Nilton Cerqueira continuou a ter o nome ligado diretamente a Lamarca.

Quando foi promovido a general-de-brigada, o ex-comandante do DOI de Salvador virou

notícia ao ser o primeiro comandante famoso do órgão a chegar a general, na manchete da

Revista Veja os dizeres: “Glorificado por matar Lamarca e acusado de mandar torturar

presos na Bahia, Cerqueira vai a general”167. O nome de Nilton Cerqueira ficou marcado

pelo do ex- capitão e, de certa forma, cultivou este vínculo guardando, como troféu de guerra,

o revolver Smith & Wesson, calibre 38, presente de seu Antônio Lamarca para o filho.

Neste período, em agosto de 1980 foi lançada a biografia escrita por Oldack

Miranda e Emiliano José, que conseguiu chegar a sete edições no espaço de um ano. A

segunda edição é do mesmo mês do lançamento, a terceira e a quarta edição são de outubro de

1980, a quinta janeiro de 1981, a sexta de abril de 1981 e a sétima de agosto de 1981.

O número de edições deste livro, em um período tão curto, expressa o quanto o

tema despertou interesse, posteriormente, no ano 2000 na 15ª edição, foi atualizado e

ampliado devido a revelação de novos dados e acontecimentos que vieram a público com a

descoberta do laudo cadavérico em julho de 1996 e as novas perícias realizadas.

É desse período a biografia escrita pelos jornalistas Emiliano José e Oldack

Miranda Lamarca – O capitão da guerrilha, que tornou-se praticamente a fonte central de

qualquer abordagem sobre Carlos Lamarca; o filme de Sérgio Resende foi uma livre

adaptação deste livro, a Comissão de Mortos e Desaparecidos recorreu às suas páginas para

compor um resumo biográfico anexado ao processo de reconhecimento da morte do ex-

capitão. Os autores não querem mostrar o ex-capitão nem como um traidor nem o guerrilheiro

de várias façanhas. Mesmo anunciando uma possível isenção, não consegue escapar da

singularidade do momento em que foi escrita e lançada.

O livro inicia-se com o depoimento de Olderico Campos Barreto, irmão de

José Campos Barreto, o Zequinha, morto junto com Lamarca, e narra os últimos momentos de

sua participação no episódio derradeiro da vida do ex-capitão. O final é conhecido, o herói

morre, mas sobrevive à medida que, na figura do narrador/personagem, os ideais, a fidelidade,

as relações de solidariedade sobrevivem.

166 Com o pé o freio. REVISTA VEJA . São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19. 167 Porão de Estrelas. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 01/04/1987. P. 30/31.

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O discurso mítico não se quer isento, o narrador não busca demonstrar

neutralidade, nem razões que justifiquem outra posição:

“O fato de que a exigência unitária constitui o próprio eixo da narrativa, o núcleo central em torno do qual ela se articula, explica o caráter obrigatoriamente unívoco, para não dizer maniqueísta do discurso.”168

Mesmo anunciando que não querem falar nem sobre o herói, para seus

admiradores, nem sobre o joquete nas mãos da esquerda nem sobre o bandido, segundo

detratores, o próprio momento é caracterizado pela retomada de posições em um espaço de

disputa política.

Raimundo Rodrigues Pereira, o prefaciador, tem a clara percepção deste

momento e reconhece mais que uma intenção, a necessidade política presente que é

compreender a luta pela anistia. A figura de Lamarca é utilizada para explicar e justificar essa

luta definindo o lado que cada um ocupa antes e agora:

“O livro de Emiliano e Oldack realiza ainda um mergulho no poço negro do horror fascista e ajuda a compreender por que a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, pela punição dos torturadores e desmantelamento dos órgãos repressivos não pode ser interrompida: no livro estão os nomes de muitos dos responsáveis pelos crimes e que hoje circulam com liberdade em postos oficiais.”

Neste sentido, o prefácio169 é interessante, pois há nele uma “receita” a ser

utilizada na leitura, não apenas deste livro, mas de todo o período170, cujo objetivo é perceber

a importância de contar os acontecimentos do período, principalmente naquele momento, para

isso a figura de Lamarca, segundo o prefaciador:

“revela também a intensa emoção, o amor e a tragédia da vida de alguns revolucionários desse período; e inclui também uma narrativa precisa e dramática do horror desses anos de repressão sangüinária.”

As façanhas de Lamarca não são esquecidas, contudo a motivação é a de um

homem comum, capaz de se apaixonar por uma causa, preocupado com os filhos, mas que

ante a sua indignação reage colocando sua vida em risco:

168 GIRARDET. R. op. cit. p. 162. 169 JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 11 et. seq. 170 Ver na integra anexo 2

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O livro mostra um Lamarca de que poucos têm notícias: pai dedicado e amoroso; o homem apaixonado; o revolucionário em busca de uma saída para seu povo; o justiceiro de sangue frio que expropriou a fortuna que Adhemar de Barros passou para o cofre da amante; o capitão competente e corajoso que enfrenta e vence o cerco de 20 mil soldados no Vale do Ribeira; e o político angustiado que morreu no sertão isolado, mas que vibrava de alegria com as vitórias de qualquer povo, elogiava Fidel, Lênin e Trotsky, dava vivas à Albânia e desejava ‘longa vida’ à Mao Tse-Tung.

O enredo de sua morte é trágico:

“A seqüência que leva à descoberta do refúgio do Capitão Lamarca no sertão talvez não tenha paralelo na história da crueldade policial brasileira: mulheres enlouquecem, outras morrem, outras se suicidam; homens são trespassados por torturas que lhes arrancam as almas e os obrigam à traição. Apesar da tragédia, da dor, Lamarca não morre, afinal já não se possui:

Ao mesmo tempo, lemos a história de Olderico, o amigo de Lamarca que resiste e se mantém de pé; pessoalmente vitorioso, com o rosto varado por uma bala, a mão mutilada. O corpo dilacerado por pancadas e eletricidade; mas com a alma alegre e vitoriosa de quem não traiu. Com a história de Olderico, os dois jornalistas baianos abrem o livro. Foi ela que Emiliano ouviu fascinado numa noite de prisão na Bahia. E é o seu significado profundo, o otimismo, que transparece na narrativa”

Eis a receita sobre a leitura do livro e do período. Pessoas comuns, tais quais o

leitor que está diante do livro, foram perseguidas por suas convicções políticas. Não são

bandidos, mas seres humano comuns, capazes de amar os filhos e as esposas. Indignaram-se

diante daquilo que julgaram injusto e buscaram a vitória da justiça.

Antes de mais nada, precisamos notar que, segundo o prefaciador, este livro

não busca ser apenas a construção do perfil político do personagem Lamarca, mas sintetizar

tanto as ações quanto as emoções de um grupo que participou daquele período e, Vemos,

assim, a possibilidade que esta imagem oferece-nos ao sintetizar um período de guerra, de

tortura, de censura, também, de motivar trabalhos árduos de várias pessoas para que este

período não seja esquecido. Em outras palavras, uma narrativa que explique e perpetue, na

história, as emoções que cercaram a luta armada. É interessante percebermos que ao deixar

de ser a construção de um perfil político de Lamarca, é o contar sobre sua trajetória que é

capaz de cumprir tal papel.

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Apesar de sua importância na luta pela anistia, Lamarca não foi anistiado. A

primeira lei de Anistia nº 6683/79, regulamentada pelo decreto 8.143 de 31/10/79 anistiava a

todos que entre 02/09/1961 a 15/08/1979 tivessem cometido crimes ou políticos ou praticados

por motivação política, exceto crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

Assim, não apenas ele, mas todos os exilados que haviam sido banidos ou condenados pela

participação ativa na luta armada foram excluídos do processo.

Com a Emenda Constitucional nº 26 veio a “anistia ampla, geral e irrestrita”.

Argumentando-se que Lamarca não cometeu crime político e sim disciplinar, ou seja, era um

desertor, a União não lhe concedeu anistia. Posteriormente, um parecer favoreceu-o com os

benefícios da anistia, mas mesmo tendo recebido ganho de causa através da sentença da juíza

federal Marisa Ferreira dos Santos, a viúva Maria Pavan não conseguiu ter os direitos do

marido reconhecidos, o que daria a ela direito a uma pensão levando-se em conta as possíveis

promoções que Carlos receberia durante sua carreira.

A intervenção de Lamarca, neste momento foi devido à luta pela anistia de

pessoas que, literalmente, fizeram oposição armada à ditadura militar. Tendo a figura do ex-

capitão no centro desse embate, Forças Armadas e opositores continuam em busca da

legitimidade tanto das ações quanto de sua identidade, afinal quem é o brasileiro e quem é o

estrangeiro?

O tema da traição fica em evidência. A deserção de Lamarca constitui a traição

a pátria ou, ao contrário, revela quem a traiu. Uma polêmica que está longe de terminar,

entretanto de posições e lados bastante convictos, como demonstra o depoimento do

brigadeiro João Paulo Moreira Burnier a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro em dezembro

de 1993:

“É um absurdo! É inacreditável saber que tem gente com a mentalidade de achar bonito dizer que o combate ao regime militar elevou a herói esse Lamarca. Herói que nada, era um assassino! 171

Para as Forças Armadas não se trata de um valor a ser pago pela União. Estar

ao lado de Lamarca significa estar contra a ditadura. Reconhecê-lo ou reabilitá-lo é impingir a

quem esteve contra ele o repúdio. Não há, em relação ao discurso mítico, nenhuma intenção

“de mencionar as razões suscetíveis de ser invocadas de uma parte e de outra”172, mas há

uma necessidade de polarização, porque a manifestação mítica tem mensagem mobilizadora

171 D’ARAÚJO. M. C. ; SOARES. G. A. D.; CASTRO. C. op. cit. p. 201. 172 JOSÉ E.; MIRANDA O. op. cit. p. 162

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na qual questões de identidade, legitimidade, solidariedade, enfim uma certa realidade social é

questionada havendo rupturas, divergências e reorganizações.

É, portanto, papel das Forças Armadas rechaçar a imagem que possa questionar

a legitimidade que acredita possuir. O mito não vive apenas de apelos positivos vive também

dos negativos, pois, antes de mais nada, é uma narrativa com a qual a sociedade estabelece

diálogo reconstruindo-o a cada abordagem.

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112

• 3.2 - O RECONHECIMENTO DO MITO NO RECONHECIMENTO DA S RESPONSABILIDADES CIVIS

Em outro momento, quando a luta armada foi mais uma vez revista, o mito de

Lamarca esteve presente e intervindo na recente História política brasileira. Dessa vez sua

figura foi central em uma polêmica na qual as Forças Armadas sentiram-se julgadas e

afrontadas. Isto ocorreu durante o julgamento de reconhecimento da responsabilidade pela

morte de militantes na Comissão de Mortos e Desaparecidos subordinada ao Ministério da

Justiça.

Esta Comissão Especial era composta por sete membros, de livre escolha e

designação do Presidente da República. Quatro foram escolhidos dentre os membros da

Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, pessoas vinculadas aos 136

desaparecidos reconhecidos oficialmente como mortos em uma lista do Anexo I da lei

9140/95, membros do Ministério Público Federal e integrantes das Forças Armadas.

A lei 9140/95 que instrumentalizava os trabalhos da comissão foi elaborada de

forma que os casos de Lamarca e Marighella não pudessem ser contemplados, isso graças ao

conceito de “dependência assemelhada”173 e o reconhecimento, em anexo das mortes

ocorridas na Guerrilha do Araguaia:

“Sempre se suspeitou que esses termos foram introduzidos para cumprir uma função precisa: excluir do reconhecimento da responsabilidade do Estado principalmente as mortes dos dois Carlos revolucionários, Marighella e Lamarca.” 174 As condições das mortes de Lamarca e Marighella, em campo aberto os

excluíam dos benefícios da lei. O relator do caso de Lamarca, o procurador federal Paulo

Gonet Branco optou pelo não reconhecimento da responsabilidade do Estado, mas acabou

sendo voto vencido.

A polêmica sobre este reconhecimento iniciou-se devido a uma questão

técnica: por “dependência assemelhada” deveria se considerar apenas espaços físicos ou uma

situação de controle por parte do representante do Estado também poderia ser considerada?

Não houve uma solução para esta pendenga jurídica. Ao final do julgamento do processo, os

173 A lei 9140/95 previa o reconhecimento de mortes ocorridas em dependências polícias e assemelhadas. 174 MIRANDA. N.:TIBÚRCIO. C. op. cit. p. 16

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votos obedeceram à convicção de cada um, sendo que, para o relator do caso de Carlos

Lamarca, Paulo Gonet Branco, a expressão deveria ser literal.

Destacamos que a simples possibilidade de reconhecimento foi suficiente para

que as atenções se voltassem para o caso Lamarca. Um romance, Não és tu, Brasil de Marcelo

Rubens Paiva, foi lançado no momento em que se discutiam estes processos, inclusive a

expedição do Atestado de Óbito de seu pai, Rubens Beirodt Paiva, beneficiado, em anexo,

pela lei 9140/95.

Houve também dificuldades com a identificação dos restos mortais de Carlos

Lamarca. O corpo foi exumado em 18 de junho de 1996 pelo IML de Brasília a pedido da

família. A imprensa noticiou que a ossada poderia não pertencer a Lamarca, porque a

mandíbula não se encaixava no crânio, e havia dentes na arcada contrariando a informação de

que o ex-capitão havia extraído todos a fim de modificar sua fisionomia.

A acolhida do pedido caso de Lamarca abriu espaço para o pedido de um

deputado do PT-MG – Partido dos Trabalhadores - Minas Gerais – de investigação das mortes

de Iara Yavelberg, Nilda Cunha, Luís Antônio Santa Bárbara, Otoniel Campos Barreto e José

Campos Barreto, o Zequinha, que acompanhava Lamarca quando foram mortos.

O caso de Iara, como já vimos, esbarrou na questão religiosa e foi indeferido

pelo placar 4 x 3. Luís Antônio Santa Barbara teve seu pedido indeferido prevalecendo a

versão de suicídio, 4 x 2. No caso Otoniel, irmão de Zequinha, foi reconhecida a

responsabilidade do Estado, 4 x 2. O caso Nilda também foi porque a família deu entrada no

processo fora do prazo legal.

Apesar do reconhecimento de alguns casos e do indeferimento de outros, a

polêmica maior era em função dos casos de Carlos Lamarca e Carlos Marighella. A disputa

interna na Comissão atingiu seu clímax quando foi descoberto o laudo cadavérico de

Lamarca. A descoberta foi noticiada como furo de reportagem do Jornal O Globo.

A reportagem do Jornal O Globo trazia algumas afirmações do legista Nelson

Massini. Mesmo advertindo que precisaria de pelo menos uma semana para uma análise mais

conclusiva, adiantou que Lamarca estaria parado, sem oferecer qualquer risco para seus

perseguidores. Essa conclusão se deve à concentração de tiros no tórax, algo muito difícil em

um alvo móvel.

O corpo apresentava também escoriações que “não poderiam ser resultado de

uma corrida no meio do mato”175, neste caso, haveria arranhões nos braços e na lateral do

175 FURTADO, Bernardino Laudo Cadavérico indica que Lamarca foi executado JORNAL O GLOBO cad. 1 – O país. 07/07/1996. P. 12.

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corpo. Segundo o legista, os ferimentos são típicos de quem, antes de morrer, foi arrastado ou

levou pontapés

Depois da descoberta do laudo e de uma nova perícia o fiel da balança da

Comissão começou a pender para o lado do reconhecimento e da tese de ampliação da Lei na

interpretação do conceito de “dependências assemelhadas”. Antes a tendência era de que

prevaleceria a versão do Estado de morte em combate.

O comportamento do representante das Forças Armadas, general Oswaldo

Gomes antes de relativamente discreto passou a ser de velada ameaça. Enquanto o general

Cardoso, da Casa Militar, dizia não haver risco de desobediência, o general Oswaldo Gomes

ameaçava deixar a comissão.

A reação do representante das Forças Armadas, general Oswaldo Gomes

mostra que o julgamento extrapolava os acontecimentos ocorridos no sertão Baiano e

abarcava todo o caso:

“Acho essa história de laudo uma embromação. Prefiro acreditar nos testemunhos do nosso pessoal: Carlos Lamarca poderia ter emboscado o major Cerqueira e só não o fez porque foi surpreendido dormindo. Ele era um homem perigoso e matou muitos dos nossos.”176

No dia 08/07/1996, o Ministério do Exército divulgou nota oficial reagindo a

possibilidade de discutir uma nova versão para o caso. O representante dos militares na

Comissão, o general Oswaldo Pereira Gomes, também se manifestou dizendo haver

intranqüilidade por parte dos militares, que não se manifestaram porque não podiam, e que

havia “finalidade ideológica de desmoralizar as Forças Armadas” 177

O julgamento não se resumia, no entender do representante das Forças

Armadas, às condições técnicas de decisão sobre a morte de um militante dentro dos limites

impostos pela lei. A figura de Lamarca é, para os militares, o símbolo da traição, e se ele não

é reconhecido de imediato como tal, mas ao contrário, vítima da repressão política, são os

agentes que praticaram estas ações que estarão sendo julgados.

O ministro da justiça, Nelson Jobim, posicionou-se afirmando não ser o fato

de Lamarca ser um desertor que estava em julgamento, mas se houve negligência ou falha na

ação dos agentes do Estado. Argumentou que a lei não possui poderes para reabilitar

ninguém, sob o ponto de vista pessoal, nem a condenar agentes dos órgão de segurança.

176 FURTADO, Bernardino Laudo Cadavérico indica que Lamarca foi executado JORNAL O GLOBO cad. 1 – O país. 07/07/1996. P. 12. 177 Exército reage à indenização por Lamarca. JORNAL FOLHA DE S. PAULO , cad. 1 – Brasil. 09/07/1996

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115

O ministro tentou limitar a discussão dentro de critérios técnicos, entretanto o

conflito ultrapassava claramente a análise da morte de Lamarca, importava a representação

dela.

Neste conflito, nem o Presidente da República pôde ficar alheio, pois é, em

última instância, o chefe supremo das Forças Armadas, situação insólita para um ex-

autoexilado político.

No dia 10/07/1996, o ministro do Exército, Zenildo de Lucena, e o chefe da

Casa Militar do governo Fernando Henrique Cardoso, general Alberto Cardoso, anunciaram

que estimularam a divulgação do laudo, mesmo tendo lançado nota oficial dois dias antes,

onde não era aceita sequer a possibilidade de discutir uma nova versão para a morte. O

documento estava num cofre da Polícia Federal de Salvador havia 25 anos e fora trancado em

1971 pelo coronel Luiz Arthur, dirigente da Polícia Federal, que teria, segundo a imprensa,

comentado: “Este é um documento Histórico”.

O descontentamento foi anunciado pela imprensa. Segundo o Jornal Folha de

S. Paulo de 30/07/1996, os militares pressionaram o presidente Fernando Henrique Cardoso

para não assinar o decreto reconhecendo a responsabilidade pela morte de Lamarca. De

acordo com a legislação, o reconhecimento somente se tornaria oficial depois de publicado no

“Diário Oficial”, o que ocorreu no dia 05 de setembro de 1997, decreto nº 2.318, devido a um

acordo firmado estabelecendo que os decretos presidenciais seguiriam rigorosamente o que

fora definido pela Comissão.

Em dado momento, o presidente da república fez um acordo com o ministro

Nelson Jobim para que o veredicto do caso Lamarca fosse adiado. Isso porque até no dia 07

de agosto deveria decidir se sancionava ou não o projeto que transferia para a Justiça comum

o poder de julgar militares acusados de cometerem crimes dolosos contra civis. Não seria

conveniente um desgaste duplo junto aos militares. O adiamento foi conseguido com os

pedidos de vistas aos processos de Lamarca e Marighella.

O representante das Forças Armadas pediu vistas ao processo de Marighella

com o intuito de encaminhar em dias diferentes as votações e acenava claramente o voto

aprovando o reconhecimento no caso do deputado baiano. A representante das famílias

Suzana Lisboa pediu vistas ao processo de Carlos Lamarca avaliando que os casos deveriam

ser julgados juntos, o que ocorreu em 11 de setembro de 1996 com o resultado de 5 x 2 em

favor do reconhecimento.

Como o resultado foi favorável ao reconhecimento da responsabilidade, o

general Oswaldo Gomes ameaçou abandonar a Comissão e buscou apoio no CECOMSEX –

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Centro de Comunicação Social do Exército – para organizar uma entrevista na qual diria ter

havido orientação para aprovação de indenização. Por isso foi chamado ao gabinete da

presidência e desafiado a provar as acusações.

Em nota oficial, no entanto, o presidente disse que a decisão teria sido técnica e

que Lamarca continuava sendo um desertor. As Forças Armadas oficialmente não se

manifestaram, mas o general da reserva Nilton Cerqueira, que matou Lamarca divulgou nota

cujo título era: Indenização para terroristas: ofensa aos militares178

No filme de Sérgio Rezende, Lamarca, o personagem de José de Abreu

denominado apenas major, segundo o cineasta, um personagem que possui características de

vários militares e não apenas de Nilton Cerqueira, comandante da Operação Pajussara que

matou o ex-capitão, faz o seguinte comentário:

“O que me deixa louco é lembrar que ele foi um dos nossos, andou no meio da gente, fez os mesmos cursos, os mesmos treinamentos, nos mesmos quartéis, sentou na nossa mesa e tramou conta nós. Ele vai ter que pagar por isso, vai ter que pagar pela traição”179

Da ficção para a realidade, o então secretário de Segurança Pública do Rio de

Janeiro, o General da Reserva Nilton Cerqueira, divulgou nota oficial sobre a decisão do

pagamento de indenização à família de Lamarca:

“Ao premiar um oficial desertor e terroristas, ladrão das armas de seu regimento, as instituições militares são atingidas duramente em suas bases essenciais: hierarquia e disciplina” 180

As Forças Armadas, no entanto, não se manifestaram devido a um acordo no

qual apenas os ministros poderiam demonstrar insatisfação em público e somente em

solenidades e momentos oportunos. Qualquer outra manifestação abaixo do ministro e não

autorizada por ele seria punida dentro dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas.

Algumas frases ditas no momento do veredicto a favor da indenização trazem

parte do clima emotivo do julgamento:

“Este é um momento histórico para o movimento de familiares. É um basta à impunidade para que nenhuma outra execução seja permitida hoje no país” Suzana Lisboa, representante das familiares na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Eu acredito que Lamarca tenha sido um desertor, nunca um traidor. Quem traiu o Brasil foram os militares. A única de reagir era a luta armada”

178 Prêmio ao terror, diz Cerqueira. JORNAL FOLHA DE S. PAULO , de 12/09/1996, p. 12 – 1. 179 LAMARCA. Direção Sérgio Rezende. Brasil: Sagres/Riofilme. 1994. 1 filme 2h.10. son. Color. 180 Prêmio ao terror, diz Cerqueira. JORNAL FOLHA DE S. PAULO , de 12/09/1996, p. 12 – 1.

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117

Claudia Pavan Lamarca da Silva, filha de Carlos Lamarca.181

Confrontando estas frases com as declarações do representante das Forças

Armadas, de haver finalidade ideológica em denegrir a imagem da instituição, e a nota do

general Nilton Cerqueira percebe-se novamente a luta pela legitimidade das posições

assumidas. E, novamente, o tema da traição. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em

nota oficial, afirmou que a aprovação havia sido técnica, contudo “Lamarca continua sendo

um desertor”182.

No caso de Lamarca, tanto em relação à anistia, quanto da responsabilidade do

Estado pela sua morte, a questão da identidade social e sua legitimidade foram motivo de

disputa legal, situações definidas e expressas em leis, nas quais nota-se a intenção seletiva das

redações delas, o que motiva reações de acordo com cada momento político, com a

possibilidade de avançar ou recuar. Essa luta revela a própria consolidação da plenitude de um

Estado democrático em oposição à ditadura.

O apelo a manifestação mítica de maneira intencional utilizando a imagem de

Lamarca no momento em que o cumprimento de leis discutidas em processos jurídicos e

políticos substitui a arbitrariedade dos atos institucionais é uma disputa pela legitimidade da

própria forma de governo.

De um lado os militares desejam reafirmar sua participação na história política

brasileira como um ato de heroísmo e dedicação e não como intrusos, enquanto que os

“subversivos”, vistos como vítimas de um regime arbitrário são a expressão das necessidades

democráticas de um Estado de direito.

Neste regime democrático os apelos ao mito Lamarca continuam. Não

cessaram com o reconhecimento e a responsabilidade do Estado pela sua morte. A eleição de

Luís Inácio Lula da Silva, um ex-operário do ABC Paulista, ex-sindicalista, condenado pela

Lei de Segurança Nacional por liderar greves, foi recebida como um momento de euforia

pelos seus partidários. A vitória, esperada no primeiro turno das eleições, não aconteceu mas

tudo indicava que viria, e veio, ao final do segundo turno.

Na noite de domingo, dia de votação em segundo turno, a TV Câmara,

emissora da Câmara dos Deputados, levava ao ar o longa metragem Lamarca de Sérgio

Resende. A vitória eleitoral de um presidente de origem popular, que no passado também

181 Frases. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. 12/09/1996. p. 12-1. 182 FRANÇA, Willian. FALCÃO, Daniela. Passa indenização a Lamarca e Marighella. JORNAL FOLHA DE S. PAULO, de 12/09/1996, p. 12 – 1.

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desafiou a ditadura organizando greves e foi preso e condenado legitimava um passado de

lutas.

Em um momento de lembrança, o apelo ao mito Lamarca serve para relacionar

a vitória de Lula com a luta contra a ditadura, posteriormente vai servir para credenciar

ministros.

A ex-militante da VAR – PALMARES, Dilma Rousseff, nomeada ministra de

Minas e Energia, foi apresentada pela imprensa como uma das mais ativas e importantes

militantes. Entre as façanhas destacadas para traçar o perfil de capacidade, firmeza e coragem

para enfrentar adversidades destacaram-se sua participação no roubo do cofre de Adhemar de

Barros considerado pelo jornalista Élio Gaspari o “maior golpe do terrorismo mundial” até

então. Sua outra grande façanha teria sido a discussão com Lamarca no congresso de

fundação da organização.

Nesse congresso, Lamarca desejava intensificar as ações de guerrilha, enquanto

Dilma tentava privilegiar o trabalho de mobilização das massas. A firmeza na discussão com

“o maior mito da esquerda armada” serviu para demonstrar o que esperar da ministra. Para

finalizar a matéria, foi utilizada a opinião do ex-sargento Darcy Rodrigues, nome mais ligado

ao capitão depois de Iara:

“É uma mulher espetacular e será uma sargentona no governo. Ela não é mulher de meio tom.” 183

Lamarca está presente intervindo em episódios determinantes para a

consolidação do Estado democrático, em alguns casos qualificando pessoas, em outros sendo

motivo de discussões e de reinterpretações de uma certa realidade social. Esta é a sua

presença na vida política brasileira. Hoje o apelo a sua imagem não é em função de se fazer a

revolução, o que pode voltar a ocorrer, mas em não deixar que se retorne a uma ditadura ou

regimes autoritários.

183 OLTRAMARI. A. O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA . P. 36/37

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IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Com a intenção de compreender a construção e significação da imagem de

Carlos Lamarca, o capitão que abandonou a farda e aderiu à luta contra a ditadura militar

tornando-se uma das figuras mais representativas da luta armada, encontramos elementos

capazes de afirmá-lo como um mito político.

É preciso reafirmar que compreendemos mito político como uma narrativa

exemplar: ficção, síntese explicativa e mensagem mobilizadora184; como ficção é capaz de

fornecer certo número de chaves para a compreensão do presente, constituindo uma

criptografia através da qual pode parecer ordenar-se o caos desconcertante dos fatos e

acontecimentos185.

A construção do mito de Lamarca, como vimos, ocorreu desde a primeira

hora, quando desertou do Quartel de Quitaúna para ingressar na luta armada. A imprensa,

manipulada pelas Forças Armadas, ao noticiar as ações armadas, manteve o mistério em torno

de sua figura e do poder que representava como o homem das trevas, de objetivos espúrios.

Lamarca passou a não possuir limites individuais e a ser a imagem da “conspiração terrorista”

que assolava o país. Esta Constelação da Conspiração segundo Raoul Girardet, possui uma

função explicativa e justificadora186.

É preciso destacar que o “terror” foi notícia constante e a censura não apenas

impediu a divulgação de notícias, ela manipulou e instrumentalizou os órgãos de comunicação

para servirem de forma estratégica na luta contra os contestadores do regime.

A deserção revela o descontentamento com o regime implantado, mesmo

dentro das fileiras das Forças Armadas. A propaganda de harmonia e paz social acompanhada

pelo desenvolvimento econômico sofreu um grande golpe com esta baixa, afinal o próprio

personagem escolhido para simbolizar publicamente, entre a sociedade civil, as Forças

Armadas rebela-se e adere à luta contra seus pares. Após a deserção, buscou-se criar a

imagem de um traidor para justificar o aparato de repressão política implantado no país após o

decreto do Ato institucional nº 5. O uso dessa imagem foi bastante intenso, a ponto de ser

capa de revista e manchetes que o nomeavam “a face do terror”.

A utilização da imprensa ajudou a transformar a figura de um capitão de

infantaria em um personagem conhecido internacionalmente (teve sua morte noticiada no

jornal francês Le Monde), criando um perigo eminente em sua figura, logo, praticamente toda

184 GIRARDET, R. op. cit. 1987; p. 98. 185 Ibid. p. 13. 186 Ibid. p. 55.

Excluído: Idem, idem,

Excluído: Raoul Girardet, Mitos e Mitologias Políticas,

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a Luta Armada era representada por este homem onipresente, capaz de organizar ações

espetaculares como o assalto ao cofre de Adhemar de Barros ou a fuga de um cerco no Vale

do Ribeira.

O “terror”, apresentado na imprensa, tinha, no discurso, a intenção de mostrar a

conspiração maléfica das organizações “subversivas” e encontrou em Lamarca o rosto que

possibilitou identificar esse “mal”.

As façanhas utilizadas para demonstrar a dimensão do perigo representado pelo

ex-capitão, graças à liberdade para interpretações contrárias dos significados presentes nas

manifestações míticas, à margem a uma leitura diferente da intenção inicial. Ante a oposição

divergente de pontos de vista, onde deveria haver execração há possibilidade de cultivar a

veneração à imagem do Salvador.

A ditadura não é, no entanto, o único aspecto capaz de justificar o apelo à

imagem do homem providencial. Mesmo já tendo conseguido sua independência política, a

América Latina parece incapaz de legitimar uma identidade soberana e a busca, ou espera,

pelo Salvador torna-se, então, um tema recorrente.

O imaginário político da América Latina é repleto de exemplos de homens

providenciais. Entre eles utilizamo-nos da figura de Che Guevara por encontrarmos sincronias

entre sua imagem mítica e a de Carlos Lamarca.

Nestas sincronias, encontramos a estrutura simbólica de episódios que se

repetem no núcleo temático do Salvador, a determinação para superar as dificuldades, o

casamento sacerdotal, o contraste entre morte e vida.

Desejo destacar que apesar da importância de se identificar as estruturas das

narrativas míticas e os elementos capazes contidos nesta construção, compreender momentos

em que o mito intervém na história foi, talvez, a maior ousadia cometida neste trabalho.

Há, no entanto, uma forte convicção da possibilidade de, através das

manifestações míticas, do imaginário político reorganizado a cada apelo e através de um

poder criativo e ativo examinarmos e apreendermos alguns momentos da realidade social de

maneira mais completa.

O personagem de Carlos Lamarca não sofreu, até o momento, um processo de

santificação, entretanto como personagem político esteve presente em dois delicados

momentos na recente vida política nacional. Durante a anistia, foi excluído da primeira lei e,

mesmo após a justiça ter dado ganho de causa a sua viúva, Maria Pavan, não teve seus direitos

reconhecidos, porém a acusação foi modificada: sua condenação era por deserção. Mesmo

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tendo essa deserção motivação política o argumento de delito disciplinar, deserção, serviu

para as Forças Armadas evitarem o perdão a Lamarca.

Como a função do mito é revelar e não omitir, perdoar Lamarca, a quem vêem

como a imagem do outro, do “mal”, do estrangeiro, é o mesmo que assumir culpas, o que os

militares não estão dispostos a fazer. Principalmente porque não possuem contornos

individuais, mas institucionais. Seria assumir a ditadura como um erro.

O episódio do reconhecimento da responsabilidade da morte de Lamarca,

apesar de grande divulgação, ainda não foi assimilado em sua dimensão. Afinal, foi um dos

poucos momentos em que membros das Forças Armadas vieram a público falar sobre o perigo

da indisciplina nos quartéis. Superar este episódio foi uma das grandes vitórias do regime

democrático ainda em consolidação desde o final da ditadura em 1985.

Lamarca, neste sentido, é hoje um personagem presente na construção de um

Estado brasileiro democrático, sua imagem tem sofrido o apelo da vigilância para que não

haja mais regimes de exceção em toda a América Latina. Sua imagem, hoje, já que a

reconstrução é feita de acordo com os elementos selecionados nos apelos ao mito, é da

tragédia do continente todo e que aos poucos vem sendo superada.

Por fim desejo reafirmar a convicção na importância e na possibilidade de

estudo da manifestação mítica através de sua intervenção na história.

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V – FONTES DOCUMENTAIS

1. Os livros de memória e depoimentos:

• Que é Isso Companheiro e Entradas e Bandeiras, de Fernando Gabeira;

• Rompendo o Silêncio de Carlos Alberto Brilhante Ustra;

• Os Carbonários, de Alfredo Sirkis;

• Batismo de Sangue e Das Catacumbas – Cartas da Prisão 1969 – 1971, de Frei Beto;

• Sinal de Contradição – Frei Beto depoimento a Afonso Borges Filho;

• Mulheres Que Foram a Luta Armada, de Luiz Maklouf Carvalho;

• Os Anos de Chumbo – A Memória Militar Sobre a Repressão, organizado por Maria

Celina D’Araújo, Glaúcio Ary Dillon Soares e Celso Castro, depoimentos.

• Ousar Lutar – Memórias da Guerrilha Que Vivi – José Roberto Rezende, depoimento a

Mouzar Benedito;

• Eu, cabo Anselmo, depoimento a Percival de Souza;

• Médici – O Depoimento – Roberto Nogueira Médici;

• Dossiê Herzog – Fernando Jordão;

• O Poder Jovem – História da Participação Política dos Estudantes Brasileiros – Arthur

José Poerner;

• 1968 – O Ano Que Não Terminou – A Aventura de Uma Geração – Zuenir Ventura;

2 . Livros biográficos:

• Iara – Reportagem Biográfica, de Judith Lieblich Patarra, biografia;

• Lamarca – O Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José, biografia;

• Coleção Os Grandes Lideres – Che Guevara, de Douglas Kellner;

• Che Guevara – Uma Biografia, de Jon Lee Anderson;

• Coleção O Pensamento Vivo – Che Guevara, org. Marcelo Wahtely Paiva;

3. Livros acadêmicos:

• A Revolução Faltou ao Encontro, de Daniel Aarão Reis Filho;

• Combate nas Trevas – A Esquerda Armada: Das Ilusões Perdidas à Luta Armada, de

Jacob Gorender;

4. Romances:

• Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva, romance;

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• Barão de Mesquita, 425 – A Fábrica do Medo, Alcir Henrique da Costa.

5 Livro de Poesias:

• Inventário de Cicatrizes de Alex Polari de Alverga, poesias.

6 Jornais:

• Folhetim, Jornal Folha de S. Paulo, O Diário de Lamarca; de 10/07/1987;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Mandíbula não é da ossada de Lamarca, conclui

novo laudo” de 25/06/96;

• Jornal Folha de S. Paulo, 4º caderno - Ilustrada, p. 1 de 13/06/1996.

• Jornal O Globo – “Descoberta do Laudo Cadavérico de Lamarca” de 07/07/1996;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Deputado quer laudos de pessoas ligadas a

Lamarca” p. 9 de 08/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Exército reage a indenização por Lamarca” p. 9 de

09/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo 4º caderno – Ilustrada, p. 3 “Gabeira muda ‘O Que é Isso

Companheiro” de 09/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Caso Lamarca será discutido em agosto” de

09/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Família de Iara não recorrerá” p. 9 de 09/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Ministro militar nega crise no caso Lamarca” de

10/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Laudo de Lamarca teve aval do Exército” p. 11 de

10/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Morte de 3 do PC do B terá indenização” p. 11 de

13/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Lamarca estava deitado ao ser atingido” p. 12 de

25/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Laudo diz que tiro de fuzil matou Lamarca” p. 8 de

26/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Lobby militar tenta barrar favorecimento a

Lamarca” p. 4 de 30/07/96;

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• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Exército espera reação no caso Lamarca” p. 10 de

31/07/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “FHC faz acordo para adiar a decisão sobre

Lamarca” p. 4 de 01/08/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Julgamentos de Lamarca e Marighella são adiados”

p. 9 de 02/08/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Reale Jr. Defende indenizar torturados” p. 12 de

04/08/96;

• Caderno Mais, Jornal Folha de S. Paulo, 5º caderno – Caderno Mais “Jarbas Passarinho

encontra Marcelo Paiva” de 25/08/1996;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Passa indenização a Lamarca e Marighella” p. 12

de 12/09/96;

• Jornal Folha de S. Paulo – Jornal de Resenhas, p. 3; de 11/10/1996;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Comissão de Desaparecidos adia caso Iara” p. 13

de 31/08/97;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Autópsia põe em dúvida suicídio de Iara” p. 6 de

02/11/97;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Caso Iara só deve ser julgado dia 4” p. 8 de

15/11/97;

• Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Comissão adia julgamento do caso Iara” p. 16 de

03/12/97;

• Jornal Correio Braziliense, Especial AI-5 de 13/12/98;

• Jornal Folha de S. Paulo 4º caderno – Ilustrada, p. 5 “Filme é criticado pela direita e

esquerda”;

• Jornal Folha de S. Paulo, 4º caderno – Ilustrada, p. 5 “‘O Que é Isso Companheiro’ terá

filha do embaixador”;

• Jornal Folha de S. Paulo, 4º caderno – Ilustrada, p. 7 “Elbrick encontra Gabeira”;

• Jornal Folha de S. Paulo, “Presidente Geisel morre aos 88 anos, vítima de câncer, caderno

1 p. 4 e seguintes;

• Jornal Folha de S. Paulo 5º caderno – Caderno Mais, p.4 e seguintes;

• Jornal Folha de S. Paulo Especial “68 O Ano Que Acabou”.

• Jornal Folha de S. Paulo 5º caderno – Caderno Mais, p.5 e seguintes “A Vida Secreta das

Guerrilheiras – Tabus das Guerrilheiras”;

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• Jornal O Popular – 2º caderno “Sérgio Rezende divulga ‘Lamarca’;

7. Revistas:

• Revista Visão – “A Igreja não diz mais amém” p. 24/25 de 26/04/68;

• Revista Veja – “Segredos do Terror – A nova Face do Terror” matéria de capa e p. 20 e

seguintes, de 03/07/70;

• Revista Veja – “Está Morto – A cena final de um terrorista” matéria de capa e p. 23 e

seguintes, de 22/09/71;

• Revista Veja – O Livro do Ano – 1971 – “O fim de um terrorista” – 1971;

• Revista Veja – “O Campus vai às urnas” p. 54 de 26/09/79;

• Revista Veja – “A volta do ‘Dr. Kimble’” pp. 30/31 de 04/04/84;

• Revista Veja – “O Porão Iluminado” p. 108 de 24/07/85;

• Revista Veja – “A morte de um símbolo” p. 36 e seguintes; de 16/10/85;

• Revista Veja – “Dor resgatada” p. 45, de 23/10/85

• Revista Veja – “Dor presente” p. 138 de 30/10/85;

• Revista Veja – “Para a planície – Tibiriça leva Ustra para a reserva” p. 23 de 26/02/86;

• Revista Veja – “A hora da verdade” p. 36 de 10/09/86;

• Revista Veja – “Porão de estrelas” p. 30 de 01/04/87;

• Revista Veja – “A bomba na abertura” p. 60 e seguintes; de 01/05/91;

• Revista Manchete – “Porque foi seqüestrado o embaixador alemão” p. 83 de 02/11/91;

• Revista IstoÉ Senhor – “Eu, Capitão Ramiro, interroguei Herzog, p. 20 e seguintes; de

25/03/92;

• Revista Veja – “Romance nos Porões” Silvio Giannini, p. 84 e seguintes, de 15/07/92;

• Revista Veja – “Um mistério por escrito” p. 68 de 19/08/92;

• Revista Veja – “A dieta do Capitão Lamarca” de 15/11/93;

• Revista Veja – “Do fundo das trevas – A vida de Lamarca, mito e mártir das esquerdas,

deu um filme envolvente mas incompleto” p. 118 de 04/05/94;

• Revista Veja – “No coração do Lobo” p. 34 e seguintes; de 01/03/95;

• Revista Veja – “Acerto póstumo” p. 38 de 18/09/96;

• Revista IstoÉ – “O anti-herói – Lamarca reconstitui a vida do capitão-guerrilheiro” p. 112

de 06/08/97;

• Revista Veja – “Traição em casa” Paulo Moreira Leite, p. 166 de 01/07/98;

• Revista Veja – “Eu torturei” p. 42 e seguintes; de 09/12/98;

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• Revista Época – “A Face da Traição” p. 92 e seguintes; de 15/03/99;

• Revista Status – “Flávio Tavares – Um relato a Marcos Faerman” p. 31 e seguintes;

8. Dossiês:

• Brasil: Sempre, de Marco Pollo Giordani;

• Brasil: Nunca Mais, organizado pela Arquediocese de São Paulo, dossiê sobre tortura;

• Dos Filhos Deste Solo – Mortos e Desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a

responsabilidade do Estado, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.

• Quem é Quem na História do Brasil – Almanaque Abril.

9. Processo:

• Processo da Comissão de Mortos e Desaparecidos – Ministério da Justiça.

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VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VII - ANEXOS

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ANEXO 1 – ACUSAÇÕES A LAMARCA NO INQUÉRITO

INQUÉRITO DO DOPS DE SÃO PAULO ENVIADO À SEGUNDA AUDITORIA Carlos Lamarca – vulgos João, César, ex-capitão do Exército, era o

melhor atirador do regimento, instrutor de tiro dos funcionários do Branco Brasileiro de Descontos. Durante as manobras de treinamento contra guerrilha realizadas pelo Exército com o sentido de treinamento, poucas vezes ficava do lado dos ‘legais’, preferindo combater com os ‘guerrilheiros’. Atual membro da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária, é acusado de participante ou responsável das seguintes ações:

1. Assalto à Pedreira Cajamar. 2. Assalto à Pedreira Fortaleza. 3. Atentado a bomba ao consulado norte-americano em São Paulo. 4. Atentado a bomba ao jornal O Estado de S. Paulo. 5. Atentado a bomba à loja Sears, na Lapa. 6. Atentado ao Quartel-General do II Exército, do que resultou a morte de um soldado. 7. Assassinato do capitão norte-americano Charles Chandler. 8. Morte de um sentinela do Quartel da Força Pública no Barro Branco. 9. Roubos de armas na Casa Diana. 10. Assalto ao Hospital Militar no bairro do Cambuci. 11. Assalto ao carro pagador da Massey-Ferguson. 12. Assalto ao trem pagador da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. 13. Assalto ao Banco Brasileiro de Descontos, agência Rudge Ramos. 14. Assalto ao Banco do Comércio e Indústria de São Paulo. 15. Assalto ao Banco do Estado de São Paulo, agência da rua Iguatemi. 16. Assalto ao Banco do Comércio e Indústria de São Paulo. 17. Outro assalto ao mesmo Banco do Estado de São Paulo da rua Iguatemi. 18. Furtos de um caminhão, um jipe, 22 automóveis e três camionetes.187

187 PAIVA Marcelo Rubens; Não És Tu, Brasil, São Paulo; Mandarim; 1996; p. 37

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ANEXO 2 – PREFÁCIO DO LIVRO DE OLDACK MIRANDA E EMI LIANO JOSÉ – LAMARCA O CAPITÃO DA GUERRILHA – ESCRITO POR RAIMUN DO JOSÉ “Os jornalistas brasileiros têm ajudado a contar a história recente do país através de vários livros. São reportagens e pesquisas que a imprensa não pôde ou não quis fazer na época: a Guerrilha do Araguaia, a Tortura, O projeto Jari, de Fernando Portela, Antônio Carlos Fon, Sérgio Buarque, Palmério Vasconcelos, Jaime Sautchuk e outros. O livro de Emiliano e Oldack, um desses documentos de nossa história, acrescenta aos esforços anteriores mais do que um perfil político do capitão Lamarca: revela também a intensa emoção, o amor e a tragédia da vida de alguns revolucionários desse período; e inclui também uma narrativa precisa e dramática do horror desses anos de repressão sangüinária.” O livro permite uma reflexão amarga sobre a imprensa de nossos dias. A certa altura, numa entrevista que nunca saiu, nem sairia na imprensa legal da época, Lamarca diz que ‘a imprensa é dominada pelo capital americano; o que ficava de dignidade foi varrido pela pressão econômica. O regime de semi-escravidão do Nordeste brasileiro está sendo institucionalizado pelo governo e a imprensa aplaude, mostrando o grau de indignidade moral a que chegou’. Lamarca exagera nesse juízo. Restava muita dignidade dentro das redações dos jornais brasileiros da época. Mas o erro não é essencial: a direção das grandes empresas jornalísticas, que dá o tom e o conteúdo geral das publicações que dominam o mercado de informações, fez o que pôde para omitir ou ocultar a vida trágica daqueles anos, exatamente por seu compromisso com o regime militar implantado para servir os monopólios e latifundiários, especialmente os estrangeiros. Mesmo os jornalistas empenhados em divulgar a verdade não tinham sequer, às vezes, como se aproximar dos fatos. Na época dos acontecimentos relatados por Oldack e Emiliano, eu fui editor de política da revista Veja. E, mesmo tendo escrito várias vezes sobre a ‘guerrilha urbana’, e mesmo tendo feito esforços para revelar as torturas junto com os companheiros da revista, ao ler hoje Lamarca, o Capitão da Guerrilha, me surpreendo com a fibra, o heroísmo, o amor à Pátria, à revolução, e mesmo os muitos acertos e descobertas políticas dos grupos armados daquele período. Mais do que o isolamento político dos revolucionários, foi o terror oficial, a intimidação, a pressão econômica, a guerra psicológica que envenenava o país a partir dos porões da tortura que nos levavam a uma admiração descrete e passiva pelos que, mesmo em seus erros, enobreceram o espírito do povo brasileiro, reafirmaram a sua disposição de dar a vida por liberdade e justiça. Emiliano e Oldack provam, com sua obra, a qualidade do jornalismo de partido. É uma história que inclui fatos centrais para a compreensão dos graves erros políticos dos guerrilheiros, mas é, ao mesmo tempo, uma história contada por quem está ao lado dos que combateram o fascismo. É o jornalismo dos que têm posição, sem ter uma seita, tão vigoroso, tão denso e tão real como jamais poderá ser o jornalismo dos escritores de aluguel, tão ao gosto dos patrões de hoje, eternamente perdidos no seu esforço de equilibrar os dois lados quando um é a morte, o rastro de sangue, a tortura, a corrupção e a mordomia e o outro é o futuro, a esperança, o sofrimento, o grito de liberdade. É um esforço jornalístico, histórico e político. Faz sentir orgulho da nossa profissão, do seu alcance e suas limitações. Ajuda na educação e na elevação do nível de consciência política do povo. Mostra como o jornalista ajuda também a escrever a história quando compreende as limitações objetivas do seu trabalho, o tempo curto e o espaço limitado que desaconselham o preconceito, o doutrinarismo, o perfeccionismo, o intelectualismo e recomendam o espírito de crítica, de pesquisa, da urgência da luta e da realidade.

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O livro mostra um Lamarca de que poucos têm notícias: pai dedicado e amoroso; o homem apaixonado; o revolucionário em busca de uma saída para seu povo; o justiceiro de sangue frio que expropriou a fortuna que Adhemar de Barros passou para o cofre da amante; o capitão competente e corajoso que enfrenta e vence o cerco de 20 mil soldados no Vale do Ribeira; e o político angustiado que morreu no sertão isolado, mas que vibrava de alegria com as vitórias de qualquer povo, elogiava Fidel, Lênin e Trotsky, dava vivas à Albânia e desejava ‘longa vida’ à Mao Tse-Tung. Suas idéias sobre a guerrilha também ficam melhor esclarecidas. O Vale do Ribeira era um bom campo de treinamento de guerrilheiros e, como tal, teve sucesso relativo. Na região de Buriti Cristalino, sertão da Bahia, ele se convenceu de que o melhor a fazer era recrutar quadros camponeses para a luta armada. As áreas mais prováveis para a guerrilha, dizia ele, estavam no eixo Goiás-Maranhão-Mato Grosso: a mesma conclusão a que, por outros caminhos, chegou o Partido Comunista do Brasil. O livro de Emiliano e Oldack realiza ainda um mergulho no poço negro do horror fascista e ajuda a compreender por que a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, pela punição dos torturadores e desmantelamento dos órgãos repressivos não pode ser interrompida: no livro estão os nomes de muitos dos responsáveis pelos crimes e que hoje circulam com liberdade em postos oficiais. A seqüência que leva à descoberta do refúgio do Capitão Lamarca no sertão talvez não tenha paralelo na história da crueldade policial brasileira: mulheres enlouquecem, outras morrem, outras se suicidam; homens são trespassados por torturas que lhes arrancam as almas e os obrigam à traição. Ao mesmo tempo, lemos a história de Olderico, o amigo de Lamarca que resiste e se mantém de pé; pessoalmente vitorioso, com o rosto varado por uma bala, a mão mutilada. O corpo dilacerado por pancadas e eletricidade; mas com a alma alegre e vitoriosa de quem não traiu. Com a história de Olderico, os dois jornalistas baianos abrem o livro. Fi ela que Emiliano ouviu fascinado numa noite de prisão na Bahia. E é o seu significado profundo, o otimismo, que transparece na narrativa”

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ANEXO 3 – ARTIGO MARILENA FILINTO “Fatos antigos, que não se renovam, que não causam perturbação nos espíritos das gerações seguintes: como transformar em heróis os corpos crivados de bala, as caras contorcidas e torturadas de Carlos Lamarca e Carlos Marighella? As ossadas dos guerrilheiros do Araguaia, desenterradas nos confins de Tocantins recentemente, confundem-se com outras exumações de cadáveres feitas ainda ontem: todo documento é suspeito, todo laudo técnico, todo passado histórico brasileiro, do mais remoto ao mais recente. Impossível tirar heróis das imagens deformadas e, em última instância, derrotadas. Mais fácil apaixonar-se por Fidel Castro e Che Guevara – como fizemos, um grupo de amigas adolescentes e eu, no início dos anos 80, lendo a biografia desses revolucionários mitos latino-americanos. Resta saber se a geração adolescente de hoje foi ao cinema assistir ao filme de Sérgio Rezende – ‘Lamarca – O Coração em Chamas’ e saiu apaixonada pelo capitão que desertou do Exército para combater o regime militar. Nossa paixão por Castro e Guevara era romântica e ideológica. Desejávamos fisicamente aqueles homens barbados, armados e amoitados no escuro da Sierra Maestra. Admirávamos a luta ousada contra os ianques. Líamos em voz alta as palavras de Fidel Castro: ‘A justiça continuará a ser feita, até que todos os criminosos do regime de Batista tenham sido julgados... Se os norte-americanos não estiverem gostando do que está acontecendo em Cuba, eles poderão desembarcar os ‘marines’ e, então, haverá 200 mil gringos mortos.’ Para a história dos guerrilheiros brasileiros, entretanto, meu olhar sempre foi de distanciamento e frieza, de desinteresse quase. Uma visão retrospectiva explica um pouco. Foram décadas ruins as de 60 e 70. Havia uma dureza no ar, uma constante ameaça de miséria na vida do lugar. Na escola, meninos muito pequenos, éramos obrigados a formar fila, fardados como soldados, e cantar todo santo dia, no pátio, sob o sol a pino da 1h. da tarde em Recife, o Hino Nacional, de cor e salteado, sem errar um único verso. Anos depois, passei a sofrer de uma espécie de aversão ao hino. Anos depois, quando tive consciência de que houve gente combatendo a dureza das fardas, gente torturada, morta e exilada, não senti qualquer emoção mais profunda. Sempre olhei com desdém a mistura de nostalgia e orgulho da geração velha, que participara da ‘luta’ e olhava a minha como alienada. Era quase impossível perdoar àqueles guerrilheiros esforçados as centenas de hinos que cantei, a gravata apertada, a rigidez, a miséria. Impossível perdoar a derrota, a frustração, as duas décadas de ditadura, a vergonha de ser brasileiro. Nos meus homens de Cuba, havia vitória nos olhos largos, no misto de força e ternura de Che Guevara, no corpo duro e grande de Fidel Castro. Na história falsificada do Brasil nunca houve com o que sonhar.”188

188 Artigo publicado no JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, de 09/07/96 cad. 2 pag. 3 sob o título Lamarca, Marighella e meus homens de Cuba, por Marilene Felinto da Equipe de Articulistas do jornal.

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LAUDO CADAVÉRICO DE LAMARCA

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