carlos andré cavalcanti afrânio jácome

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RAZÃO INTOLERANTE EM UMA FÉ ILUMINADA: IMAGINÁRIO PROMETEICO NA INQUISIÇÃO MODERNA Carlos André Macêdo Cavalcanti 1 Afrânio Carneiro Jácome 2 Para a rica história do imaginário ocidental, os mitos gregos exercem uma influência fundadora. Numa aproximação, dois deuses gregos são apontados como hegemônicos para o mundo pós-moderno: Prometeu, que trouxe o fogo do conhecimento para os homens, disputa com Dionísio, divindade da festa. Na regulamentação racionalizadora do ato inquisitorial, a marca do conhecimento aponta para uma apropriação, pelos inquisidores, deste mitologema prometeico tão recorrente no Ocidente Cristão. Neste texto, desenvolvido na Graduação em História da UFPB, apresentamos um olhar histórico sobre esta tendência da mentalidade inquisitorial. Os regimentos inquisitoriais portugueses de 1640 e 1774 são documentos que nascem em meio a experiências distintas vivenciadas pelo Estado português. Portugal apresenta uma série de grandes transformações econômicas, sociais, nas relações internacionais, comerciais e administrativas no período que marca o aparecimento do regimento de 1640 até o surgimento do seu sucessor, o regimento de 1774. Esses regimentos surgem em períodos de reformas da máquina administrativa lusitana e transformações nas relações de poder entre Estado e Igreja. No caso analisado por este trabalho, focaremos as mudanças na atuação da instituição inquisitorial e suas relações com o Estado português. Analisaremos como a inquisição se reformou durante o século XVII na Península Ibérica, especificadamente em Portugal, e como, neste mesmo país, ela foi novamente alvo de remodelações por parte do despotismo ilustrado pombalino. Para isto, examinaremos minuciosamente os regimentos de 1640 e 1774 como documentos-chave para interpretar esses períodos distintos da inquisição lusitana. O regimento de 1640 pode ser considerado um dos mais importantes documentos jurídicos do século XVII. Foi elaborado em meio às conturbações do fim 1 Historiador da UFPB. Doutor em História pela UFPE. 2 Licenciado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais – Salvador, agosto 2011

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Afrânio Jácome

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  • RAZO INTOLERANTE EM UMA F ILUMINADA: IMAGINRIO PROMETEICO NA INQUISIO

    MODERNACarlos Andr Macdo Cavalcanti1

    Afrnio Carneiro Jcome2

    Para a rica histria do imaginrio ocidental, os mitos gregos exercem uma

    influncia fundadora. Numa aproximao, dois deuses gregos so apontados como

    hegemnicos para o mundo ps-moderno: Prometeu, que trouxe o fogo do

    conhecimento para os homens, disputa com Dionsio, divindade da festa. Na

    regulamentao racionalizadora do ato inquisitorial, a marca do conhecimento aponta

    para uma apropriao, pelos inquisidores, deste mitologema prometeico to recorrente

    no Ocidente Cristo. Neste texto, desenvolvido na Graduao em Histria da UFPB,

    apresentamos um olhar histrico sobre esta tendncia da mentalidade inquisitorial.

    Os regimentos inquisitoriais portugueses de 1640 e 1774 so documentos que

    nascem em meio a experincias distintas vivenciadas pelo Estado portugus. Portugal

    apresenta uma srie de grandes transformaes econmicas, sociais, nas relaes

    internacionais, comerciais e administrativas no perodo que marca o aparecimento do

    regimento de 1640 at o surgimento do seu sucessor, o regimento de 1774. Esses

    regimentos surgem em perodos de reformas da mquina administrativa lusitana e

    transformaes nas relaes de poder entre Estado e Igreja. No caso analisado por este

    trabalho, focaremos as mudanas na atuao da instituio inquisitorial e suas relaes

    com o Estado portugus. Analisaremos como a inquisio se reformou durante o sculo

    XVII na Pennsula Ibrica, especificadamente em Portugal, e como, neste mesmo pas,

    ela foi novamente alvo de remodelaes por parte do despotismo ilustrado pombalino.

    Para isto, examinaremos minuciosamente os regimentos de 1640 e 1774 como

    documentos-chave para interpretar esses perodos distintos da inquisio lusitana.

    O regimento de 1640 pode ser considerado um dos mais importantes

    documentos jurdicos do sculo XVII. Foi elaborado em meio s conturbaes do fim

    1

    1

    Historiador da UFPB. Doutor em Histria pela UFPE.

    2

    2

    Licenciado em Histria pela Universidade Federal da Paraba.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • da Unio Ibrica e demonstrou a autonomia e fora da inquisio portuguesa em relao

    inquisio espanhola, conseguindo manter sua influncia e estrutura independente por

    todo territrio portugus mesmo no auge da unificao das coroas ibricas. A inquisio

    moderna surge quando o Papa Sisto IV assina a bula Exigit sincerae devotionis affectus,

    em primeiro de novembro de 1478. Essa bula veio atender s peties dos Reis

    Catlicos que ansiavam maior controle e fiscalizao dos judeus e cristos novos

    habitantes dos reinos de Castela e Arago. A bula permitia aos Reis Catlicos nomear,

    destituir e revogar do cargo os trs inquisidores de um tribunal inquisitorial. Esse poder

    concedido aos prncipes era um acontecimento indito: at ento, a nomeao dos

    inquisidores, cuja jurisdio se sobrepunha jurisdio tradicional dos bispos em

    matria de perseguio de heresias, estava reservada ao papa.3 Para preenchimento do

    cargo de inquisidor, a indicao dos prncipes deveria obedecer a algumas exigncias:

    ser bacharel ou mestre em teologia; ser clrigo ou religioso de ordem secular; ser

    licenciado ou doutor em direito cannico, alm de ter a idade mnima especificada pelo

    regimento inquisitorial. A bula representa uma ruptura com a organizao inquisitorial

    medieval restrita jurisdio eclesistica; a partir de ento, esta jurisdio eclesistica

    iria imiscuir-se jurisdio civil alterando, deste modo, as relaes de fidelidade desses

    personagens histricos.

    A experincia inquisitorial da era moderna rompe com o controle exclusivo da

    Igreja sobre a inquisio. Na inquisio medieval, o Papa centralizava as decises

    acerca dos procedimentos e diretrizes dos tribunais, alm de nortear os funcionrios e

    suas prticas fiscalizadoras. Os regulamentos no apresentavam um carter geral,

    variando de local para local, e os tribunais no procediam de acordo com uma

    jurisprudncia ou legislao geral, que servisse como exemplo para avaliao de casos

    smiles. Apesar de a inquisio medieval ter sido, essencialmente, uma instituio

    idealizada e dominada pelo papa, isto , dirigida por uma entidade supranacional,

    contava, em todos os pases onde atuou, com o auxlio e a aprovao dos soberanos.4

    Quando, na Idade Moderna, os estados ibricos decidem estreitar os laos com a

    3

    3

    BETHENCOURT, Francisco. Histria das inquisies: Portugal, Espanha e Itlia, sculos XV-XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17.

    4

    4

    NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisio. So Paulo: Brasiliense, 1982. p. 15-16.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • instituio inquisitorial, todo o funcionamento dessa nova prtica se modifica e passa a

    responder, tambm, aos anseios dos prncipes e de seus projetos polticos, de modo mais

    direto. Os regulamentos e regimentos passam a ser mais completos e abrangentes, as

    leis civis a se confundir com a legislao eclesistica. Convm lembrar que o tribunal

    inquisitorial moderno flagrante apenas em poucas reas da Europa: na Espanha, em

    Portugal, na Pennsula Itlica, alm da atuao em territrios coloniais, como o Brasil.

    As prticas dos tribunais tornaram-se mais complexas e os regimentos passaram a exigir

    uma maior obedincia aos rituais jurdicos. Um exemplo disso o Regimento do Santo

    Ofcio da Inquisio dos Reinos de Portugal de 1640. Segundo Francisco Bethencourt,

    tratava-se de um monumento jurdico.5 Os regimentos que surgiam de tempos em

    tempos eram criados por autoridades eclesisticas para resolver novos conflitos e

    interesses. Cada nova regulamentao tornava-se cada vez mais especfica, meticulosa e

    detalhista. Os regimentos passavam a regular horrios dos funcionrios, seus

    vencimentos, o procedimento jurdico e a etiqueta interna, descreviam de maneira muito

    cuidadosa como deviam transcorrer as fiscalizaes e as visitaes aos rus, mesmo os

    familiares dos funcionrios eram alvo de regulamentao especfica.

    A administrao inquisitorial moderna era complexa e hierarquizada,

    apresentando uma vasta rede de funcionrios e uma burocracia monumental. Os

    regimentos ordenavam a estrutura do tribunal e seu proceder; os funcionrios, as

    documentaes, a etiqueta e o comportamento dos representantes e familiares da

    inquisio (familiares de funcionrios); o tratamento dos processos, dos rus e dos

    autos da f estas so algumas das reas de ordenamento dos regimentos inquisitoriais

    modernos. Cada novo regimento que surgia tentava atualizar-se para suprir as

    necessidades que as novas situaes exigiam e compensar as falhas do anterior. Os

    redatores da Inquisio reuniam o pensamento jurdico inquisitorial de uma poca,

    compilando-o no novo texto. Os tribunais inquisitoriais modernos no funcionavam de

    maneira equnime e sincronizada e novas prticas e regulamentos surgiam em

    diferentes perodos e em cada nao em que o tribunal atuou. Os primeiros

    regulamentos da Inquisio moderna aparecem na Espanha, em 1484. Os cristos novos

    adquirem papel relevante nas finanas dos Estados ibricos durante os sculos XVI e

    5

    5

    BETHENCOURT, op. cit., p. 47.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • XVII, inclusive no comrcio de ultramar. Passam a ter participao intensa para no

    falar em monoplio no trfico de escravos, no comrcio do acar, de especiarias e

    outros produtos coloniais, alm da facilidade que tinham de comercializar ao redor do

    mundo, devido s vastas ligaes familiares que facilitavam os contatos e transaes

    financeiras. Com a inteno de confiscar os bens desses grupos e barrar sua ascenso na

    sociedade, a nobreza e o clero destes estados passam a criar instrumentos para coibir a

    livre atuao dos indivduos nos setores produtivos do pas. As perseguies e

    condenaes, muitas vezes, era uma forma do Santo Ofcio e das coroas espanhola e

    portuguesa levantarem grandes somas de riqueza em forma de terras, produtos e

    dinheiro. Limitao dos direitos dos descendentes de convertidos e aplicao dos

    estatutos de pureza de sangue foram artifcios usados para interromper o progresso dos

    cristos novos na sociedade ibrica. Apenas na administrao pombalina, j no sculo

    XVIII, que Portugal haveria de dar um fim distino de tratamento jurdico entre

    cristos novos e cristos velhos.6

    O Regimento do Santo Ofcio da Inquisio dos Reinos de Portugal data de

    1640. Foi ordenado por mandado de Dom Francisco de Castro, o Inquisidor Geral do

    Conselho de Estado do rei de Portugal. Este documento da maior importncia para se

    entender o funcionamento interno e externo dos tribunais do Santo Ofcio daquele pas,

    no sculo XVII.

    Os regimentos tiveram papel fundamental na consolidao e no estabelecimento

    da Inquisio portuguesa. Esses documentos mostram uma notvel prtica jurdica e

    administrativa por parte dos funcionrios do Santo Ofcio e revelam o elevado nvel de

    centralizao e burocracia dos tribunais. As primeiras instrues datam de 1541,

    quando da criao de novos tribunais em Coimbra, Lamego, Porto e Tomar.7 As

    normas inquisitoriais em Portugal mantiveram a prtica de se renovar ao longo do

    tempo. Aps as instrues de 1541, houve os regimentos de 1552, 1570 e 1613, antes de

    chegarmos ao regimento de 1640.

    6

    6

    Cf. MAXWELL, Kenneth. O Marqus de Pombal: paradoxo do iluminismo. Traduo de Antnio de Pdua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 99.

    7

    7

    BETHENCOURT, Francisco. Histria..., p.44.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • O regimento de 1640 fruto de intensos debates e do trabalho de comisses que

    averiguavam questes como judasmo e reformas de servios nos tribunais, durante as

    dcadas de 1620 e 1630, alm da publicao, em 1624, do volumoso catlogo de livros

    proibidos.

    O regimento um monumento jurdico em que so includas

    numerosas regras e deveres de conduta para funcionrios, a par

    de uma definio pormenorizada do processo penal, bem como

    de uma caracterizao da tipologia de casos possveis e das

    respectivas penas.8

    A obra cinco vezes maior que o seu precedente, apresenta uma descrio

    minuciosa da organizao administrativa, da sistematizao dos ritos (autos da f,

    investidura, ditos, visitas e abjurao) e da etiqueta interna. a primeira vez que um

    regimento vai se preocupar em abordar questes como etiqueta dos funcionrios e exigir

    explicitamente a condio de nobre para inquisidor. Alm disso, sero reforados os

    cuidados com o segredo do tribunal, com a qualidade da origem social dos

    funcionrios e o alargamento de atribuies dos inquisidores e do Conselho Geral,

    aumentando seus poderes e tarefas. Esse regimento complexo e soube resistir ao

    tempo, orientando as funes inquisitoriais portuguesas at ser substitudo em 1774 pelo

    ltimo regimento inquisitorial portugus, no perodo final do governo pombalino.

    Sobre a estrutura do regimento de 1640, observa-se uma diviso em trs livros: o

    primeiro livro trata dos ministros, oficiais e demais funcionrios do Santo Ofcio e suas

    respectivas funes; o segundo livro discorre sobre as ordens judiciais e das prticas

    processuais, e o terceiro, das penas que recebiam os culpados nos crimes conhecidos

    pelo Santo Ofcio. Cada livro dividido em ttulos que apresentam o tema a ser

    explicitado; esse tema, por sua vez, pode ser subdividido em pargrafos. O primeiro

    livro possui vinte e dois ttulos, em setenta e trs pginas; o segundo apresenta vinte e

    trs ttulos, em sessenta e nove pginas, e o terceiro livro vem com vinte e sete ttulos,

    em cinquenta e trs pginas. Esses nmeros do idia do tamanho do documento.

    O sculo XVII uma poca curiosa da histria portuguesa e a inquisio de

    Portugal afetada pelos acontecimentos e mudanas ocorridas nesse perodo. no

    8

    8

    BETHENCOURT, Francisco. Histria..., p.47.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • sculo XVII, por exemplo, que se verifica o fim da Unio Ibrica, iniciada em 1580,

    com o desaparecimento de Dom Sebastio na batalha de Alccer-Quibir e finalizada, em

    1640, com a chegada de Dom Joo IV ao poder.9 A inquisio portuguesa lana seu

    terceiro regimento no ano que marca o fim da Unio Ibrica, para que o Santo Ofcio se

    adequasse as novas realidades socioeconmicas que estavam sendo configuradas

    durante esses processos de mudanas nas estruturas de poder. Apesar desse momento de

    sobrepujana de Castela sobre Portugal, durante o perodo de controle da dinastia

    filipina, a inquisio lusitana conseguiu agir com certa autonomia em relao

    inquisio espanhola, o regimento de 1640, escrito nos fins do perodo da unio das

    coroas ibricas, demonstrava essa autonomia em alguns dos seus artigos, como, por

    exemplo, nesse trecho do artigo trinta e um do ttulo trs do primeiro livro em que o

    Conselho da inquisio portuguesa ordena que as correspondncias para as inquisies

    na Espanha passem primeiro por seu crivo:

    Os Inquisidores tero boa correspondncia nos negcios que

    tocarem a outras Inquisies, procurando com toda a diligncia

    dar fcil expedio s cousas que lhe forem pedidas; e quando

    houver nelas dilao, o faro saber aos Inquisidores por carta

    sua, declarando a razo que h pra se dilatarem; e esta mesma

    correspondncia guardaro com as Inquisies de Castela,

    advertindo porm, que se delas lhe mandarem pedir culpas de

    pessoas que estejam delatas em alguma das Inquisies deste

    Reino, lhas no remetero sem primeiro darem conta ao

    Conselho, e no havendo culpas, mandaro passar certido, que

    lhe enviaro com resposta da mesa.10

    O regimento de 1640 apresenta uma preocupao clara em distinguir os cristos

    novos dos cristos velhos e de incluir, com exclusividade, a nobreza do reino na

    administrao da inquisio, do seu conselho e dos tribunais. Em Portugal do sculo

    9

    9

    Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. As estruturas... p. 139 - 147

    10

    1

    Regimento do Santo Officio da Inquisio dos reynos de Portugal. Ordenado por mandado do illustrissimo e reverendssimo senhor bispo dom Francisco de Castro, inquisidor geral do Conselho de estado de Sua Magestade. Lisboa-Estaos, Manoel da Sylva, 1640. Livro I, Ttulo III, art. 31, p.18.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • XVII, o poder do Estado estava intimamente relacionado com as aes da Igreja, e a

    instituio inquisitorial era uma ala forte da igreja nesse papel com o Estado. Vrios

    clrigos que exerciam funo na inquisio, frequentemente, exerciam algum cargo

    poltico de grande relevncia. Como foi o caso do cardeal Dom Henrique, que se tornou

    rei de Portugal, sucedendo Dom Sebastio no trono portugus; o arquiduque Alberto,

    que foi vice-rei e inquisidor-mor de Portugal; Dom Jorge de Almeida, arcebispo de

    Lisboa e inquisidor-mor, foi um dos cinco governadores do reino portugus aps a

    morte de Dom Henrique; Dom Pedro de Castilho, inquisidor-mor que ordenou o

    regimento de 1613, foi duas vezes nomeado vice-rei; o cardeal Nuno da Cunha,

    inquisidor-geral por quarenta e trs anos e membro do Conselho do Estado, funes

    idnticas foram acumuladas por Dom Incio de So Caetano. Outro caso curioso a do

    bispo Francisco de Castro, inquisidor-geral que ordenou o regimento de 1640. Este

    bispo era originrio da primeira nobreza portuguesa, foi bispo da Guarda, nomeado

    inquisidor em 1630, era neto do vice-rei da ndia, Dom Joo de Castro. Chama ateno

    o seu poder durante a Restaurao da independncia do Reino, em 1640, quando foi

    detido, em 1641, junto com outros nobres e clrigos de alta hierarquia, acusado de

    conspirao. No somente escapou da execuo, como lhe foram restitudos todos os

    ttulos e dignidades em 1643, aps presso do Conselho Geral da inquisio e

    convencimento do tribunal rgio de seu esprito de obedincia. Em seus ltimos dez

    anos de vida, manteve srios atritos com o rei, pelo modo como este utilizava o tribunal

    inquisitorial para perseguir cristos novos e angariar recursos para seus projetos e

    conflitos blicos. O rei nunca conseguiu demiti-lo do cargo. Francisco de Castro chefiou

    o tribunal de 1630 at a sua morte, em 1653. Francisco Bethencourt analisa a

    independncia dos inquisidores portugueses nas decises polticas do reino, neste

    trecho:

    O envolvimento poltico dos inquisidores-gerais portugueses

    ainda maior do que o de seus colegas espanhis: num total de

    vinte dignitrios, catorze exerceram funes polticas e

    administrativas na Monarquia, enquanto Espanha a relao de

    dezessete em um universo de trinta inquisidores-gerais

    nomeados entre 1483 e 1717.11

    11

    1

    BETHENCOURT, Francisco. Histria..., p.116.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • Em Portugal, o clero era ativo em todos os estamentos sociais. Os nobres e os

    religiosos recebiam privilgios e tratamentos especiais da inquisio em relao s

    camadas populares, pessoas de outras crenas e estrangeiros. O regimento de 1640

    legisla de forma clara sobre esses privilgios e tratamentos especiais. Iniciando na

    contratao de funcionrios, no qual o regimento ordena que os ministros e oficiais do

    Santo Ofcio sero naturais do Reino, cristos velhos de limpo sangue, sem raa de

    Mouro, Judeu, ou gente novamente convertida nossa Santa F, e sem fama em

    contrrio, que no tenha incorrido em nenhuma infmia pblica de feito, ou de direito,

    nem fossem presos, ou penitenciados pela Inquisio, nem sejam descendentes de

    pessoas que tiverem algum dos defeitos sobreditos, sero de boa vida e costumes,

    capazes para se lhe encarregar, qualquer negcio de importncia, e de segredo. 12

    Alm dos altos funcionrios a fidalguia poderia contar com privilgios em audincias,

    confisses e outras matrias processuais. No artigo treze do primeiro livro, ttulo trs, o

    regimento ordena sobre a audincia dos inquisidores nas mesas dos tribunais. Segundo

    este artigo, as pessoas comuns no poderiam depor seno na mesa inquisitorial, no

    sendo permitido, a inquisidor nenhum, recolher depoimentos e confisses fora da mesa

    do tribunal, salvo nos casos em que se tratar de bispos, mulheres que residam em

    mosteiros ou clausura, mulheres fidalgas ou casadas com homem de qualidade e

    fidalgos que estejam doentes em casa, nestes casos um deputado e um notrio do

    tribunal seriam encarregados de cumprir a diligncia nas residncias de tais pessoas. No

    caso de pessoas ordinrias doentes, o regimento ordena que a diligncia seja feita por

    apenas dois notrios do tribunal, quando o caso for de grande importncia para o

    processo. O artigo quarenta do primeiro livro do ttulo trs legisla sobre a alimentao

    dos presos. Neste artigo, dito que era responsabilidade dos inquisidores cuidarem das

    cobranas de todas as receitas do tribunal, para que o mesmo cumprisse com suas

    dvidas e exerccios da casa, essas cobranas eram efetuadas pelo tesoureiro do tribunal

    quando se tratava dos presos pobres e se tratando dos presos ricos a cobrana era feita

    com o passar de precatrios para ao Juiz do Fisco.

    O documento inquisitorial descreve como as relaes da sociedade crist com

    estrangeiros e pessoas de outra f devem se efetuar como, por exemplo, no artigo trinta

    12

    1

    Regimento do Santo..., Livro I, Ttulo I, art. 2, p. 1-2.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • e oito do primeiro livro, ttulo trs: Vindo a este Reino algum Judeu de sinal, os

    Inquisidores o mandaro chamar mesa, e lhe ordenaro com graves penas, que traga

    sempre chapu amarelo, e no se comunique em segredo com a gente da nao, e s fale

    com aquelas pessoas com que tiver negcios, e tanto quando for noite se recolha sua

    casa, e ordenaro a um familiar de confiana que acompanhe, e faa cumprir o

    sobredito, e por este trabalho lhe assinaro o salrio que parecer, que o mesmo Judeu lhe

    pagar.13 Alm disso, o documento tambm controlava a vida privada dos funcionrios,

    como no caso do artigo cinquenta e um do primeiro livro, ttulo trs. Este artigo ordena

    o que um funcionrio do tribunal (oficial ou familiar de funcionrio) deve fazer caso

    resolva casar-se. Segundo o regimento, essa pessoa deve informar mesa inquisitorial a

    sua inteno de contrair matrimnio, fornecer informaes sobre a pessoa com quem se

    casar, incluindo informaes sobre os pais e avs da mesma. Recolhiam-se detalhes de

    onde a famlia da futura possvel esposa natural, investigavam-se moradores do local e

    fazia-se o levantamento das informaes de pureza de sangue desta pessoa. Aps todo

    este processo o funcionrio era autorizado a casar-se. Caso o pedido fosse negado e,

    mesmo assim, se casasse, era exonerado do seu posto no Santo Ofcio. No caso de

    contrair matrimnio sem informar mesa, o funcionrio era suspenso do cargo, at o

    fim da investigao. No havendo provas contra o matrimnio, a suspenso era anulada.

    E, no sendo o matrimnio aprovado pela mesa inquisitorial, o funcionrio era privado

    do seu cargo.

    Na estrutura do tribunal, se verifica o cuidado do regimento em deixar claro o

    privilgio nobilirquico, mesmo quando se trata dos mveis do lugar. As cadeiras onde

    assentavam os fidalgos deveriam possuir espaldas, j as pessoas de baixo status social

    deveriam sentar-se em bancos ou cadeiras rasas. O quinto artigo, do segundo livro,

    ttulo quatro ordena:

    Os Inquisidores no mandaro prender Clrigo, ou Religioso

    algum, nem pessoa secular, a que conforme a este Regimento na

    mesa se deve dar cadeira de espaldas, ou mercador de grande

    cabedal, nem pessoa alguma pelo crime de sodomia, sem

    primeiro enviaram as culpas ao Conselho; e mesmo faro

    13

    1

    Regimento do Santo..., Livro I, Ttulo III, art. 38, p. 20.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • quando houver dvida, se o culpado mercado de grande

    cabedal, ou de qualidade, que na mesa se lhe houver de dar

    cadeira de espaldas; contudo se houver temor de fuga, fazendo-

    se dela informao judicial, quem se ajuntar s culpas, se

    poder proceder a prises nos sobreditos casos sem ordem do

    Conselho.14

    Na rea das sentenas penais o regimento elenca uma srie de heresias e crimes

    contra a Santa F. Nesta parte do regimento, aparecem ordenamentos sobre quando se

    efetivar a tortura dos rus, relaxamentos e procedimentos finais dos autos da f. A

    tortura deveria ser sempre acompanhada por um mdico, para avaliar a condio do

    preso e se aguentaria os tormentos. Os mdicos e cirurgies do Santo Ofcio eram

    chamados sempre que havia um preso doente. Deviam sempre passar informaes sobre

    a situao clnica dos presos para a mesa inquisitorial. Alm dos presos esses

    profissionais zelavam pela sade dos oficiais, ministros e familiares do tribunal

    inquisitorial e prestavam assistncia no fim dos autos da f. A cada visita feita aos

    presos ricos, o artigo trs do primeiro livro no ttulo vinte e um, define que, os mdicos

    e cirurgies tinham direito a um ordenado extra, pago pelo tesoureiro do tribunal. No

    caso das visitas aos presos pobres ou visita aos presos ricos que tiveram seu patrimnio

    confiscado, no receberiam nenhuma proviso extra quela que j recebia mensalmente

    do tribunal. O documento bastante rgido no caso dos herticos confessos. Para os rus

    clrigos o exerccio da ordem suspenso para sempre, perdendo todos os benefcios e

    honras do cargo, alm de sofrerem degredo. No caso de pertencer a ordens regulares,

    eram reclusos nos crceres dos mosteiros. Os rus comuns, herticos confessos,

    deveriam comparecer aos autos da f e declararem publicamente os seus pecados, usar o

    sanbenito perpetuamente, no poderiam exercer ofcios pblicos, era proibido andar a

    cavalo, usar jias ou peas de metais preciosos, vestidos de seda e portar armas sem

    autorizao dos inquisidores. Os filhos e netos dos condenados eram proibidos de

    exercerem cargos pblicos definidos pelo regimento e receberem qualquer honra real ou

    eclesistica. Estas medidas esto definidas pelos artigos onze, doze e treze do terceiro

    14

    1

    Regimento do Santo..., Livro II, Ttulo IV, art. 5, p. 89.

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • livro, ttulo trs. Nos casos de blasfmia, o regimento ordena aoites e degredo, alm

    das penas espirituais. Em caso de pessoa plebia blasfema, alm de abjurao pblica

    no auto da f, o mesmo ser aoitado em pblico e condenado ao exlio nas gals, no

    caso dos homens, ou degredada a Ilha do Prncipe, So Tom ou Angola, no caso das

    mulheres. As pessoas nobres, por sua vez, ao praticarem o ato da blasfmia, eram

    condenadas a abjurar em local pblico, escolhido pelos inquisidores, e deviam pagar

    uma multa pecuniria. Aos eclesisticos, o crime de blasfmia incorre em abjurao leve

    e recluso em local escolhido pelos inquisidores. Todas as pessoas presas por blasfemar,

    que negavam sua culpa, eram colocadas em tortura. Esses dados esto definidos no

    terceiro livro, ttulo doze, artigos de um a seis. Todas as prticas herticas ordenadas no

    regimento de 1640 apresentam ressalvas nas penas para pessoas fidalgas e clrigos.

    O cenrio histrico durante o sculo XVII em Portugal, marcado por diversas

    crises e conturbaes no campo internacional. Durante 1640 at 1668, Portugal trava

    uma longa batalha para desvencilhar-se da Espanha, so as guerras da Restaurao. O

    tratado de Tordesilhas questionado por potncias emergentes, como: Inglaterra, Frana

    e Holanda. Portugal perde o monoplio comercial em alguns mercados importantes,

    como nos continentes asitico e africano, por exemplo. Chegando mesmo a perder

    alguns territrios na sia e na frica. um perodo turbulento, marcado por agitaes

    sociais e aumentos exagerados nas despesas do Estado. Apesar da crise do sculo XVII,

    o Estado portugus ainda figurava entre as principais potncias da poca e a inquisio

    portuguesa continuou forte e presente na sociedade lusitana.

    O sculo XVIII no animador para as pretenses lusitanas. A segunda metade

    do sculo das luzes sofre pela desorganizao das contas pblicas, uma administrao

    necessitada de reformas urgentes, uma burocracia lerda e ineficiente, uma queda

    significativa nas riquezas oriundas das colnias, como no caso da minerao de metais

    preciosos em Minas Gerais que passa a produzir muito menos a partir desse perodo,

    uma desvalorizao vertiginosa do preo do acar nordestino, um afastamento de

    Portugal dos avanos polticos e tecnolgicos que comeavam a despontar em alguns

    pases concorrentes e a nova ameaa ao absolutismo lusitano, que influenciava de foram

    latente a classe intelectual portuguesa: o iluminismo.

    No sculo XVIII, a idia do "bom governo" ganhou fora e se instituiu como pr-

    requisito para o julgamento a ser feito sobre um governante. Bem diferente dos valores

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  • absolutistas, o "bom governo" surge ligado ao Despotismo Esclarecido (Bobbio, 1983, p. 345).

    Como se sabe, o Despotismo Esclarecido o regime que caracteriza a fase final do

    funcionamento de sociedades baseadas na hierarquia e governadas por um monarca absoluto

    que tem na nobreza de nascimento a sua base de sustentao. Este quadro foi se tornando

    incompatvel com as necessidades de crescimento e de criao de oportunidades de

    enriquecimento e acumulao para pessoas que no tinham privilgios de nascimento.

    nesta incompatibilidade que surge como indispensvel para a continuidade do Poder Real um

    princpio que permitiria manter o convvio entre instituies da velha ordem absoluta e as

    novas determinantes polticas e econmicas. No caso especfico de Portugal, do qual falaremos

    mais adiante, o Despotismo permitiu enfrentar tambm um srio problema de dependncia e

    inferioridade em relao s potncias estrangeiras. Para Portugal, buscar o crescimento

    econmico seria indispensvel para fazer face, na medida possvel, ao poderio das duas

    grandes potncias da poca. Neste cenrio, coube ao Brasil um papel importante: o

    Despotismo Esclarecido portugus via nesta colnia a possibilidade para financiar as reformas

    e o crescimento de que Portugal necessitava. O iderio do Despotismo Iluminado bastante

    interessante. A palavra despotismo designa um regime autoritrio e encerrado em seus

    interesses de domnio e poder totais. "A idia do Despotismo de bom sentido um elemento

    importante da teoria e da ideologia poltica da fisiocracia" (Bobbio,1983, p. 345). Em princpio,

    parece impossvel cunhar a idia de um despotismo que seja positivo. O fundador da

    fisiocracia, Franois Quesnay, advogava a existncia de leis objetivas presentes na natureza.

    Estas leis deveriam guiar a condio da poltica e dos governos. Legisladores e governantes no

    poderiam agir segundo sua vontade ou suas convices, mas sim em funo da ordem natural

    das coisas. Adaptar as leis humanas a esta ordem maior seria a funo da poltica. Para

    justificar as reformas propugnadas pelo Despotismo Iluminado, foi preciso transformar a

    prpria justificativa do poder: ao invs da origem divina da autoridade monrquica, teremos

    a razo como base explicativa da nova forma de constituir o domnio. As leis necessrias para a

    implantao da nova ordem vem do Direito Natural e no do Divino. Para permitir esta

    transio sem provocar o questionamento da autoridade real, era preciso um monarca forte e

    de autoridade incontestvel. Do contrrio, a separao de poderes defendida por

    Montesquieu seria a nica sada. E isto em nada interessaria ao rei.

    O atraso econmico foi, sem dvida, um fator determinante para o

    Despotismo Esclarecido em Portugal. O pas afundou-se num modelo econmico retrgrado

    quando outras naes europias (que haviam ficado atrs de Portugal na corrida das grandes

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  • navegaes do sculo XVI) comearam a aflorar com suas revolues na agricultura (sculos XVII e

    XVIII) e com uma poltica de investimentos em manufaturas a partir do incentivo do Estado. O

    atraso tornou-se cada vez maior ao ponto que os portugueses mergulhavam num modelo baseado

    nos privilgios do clero e da nobreza enquanto Inglaterra e Frana tomavam o rumo de uma

    sociedade burguesa.

    As duas potncias passaram a disputar a hegemonia sobre pases que haviam ficado para trs

    na corrida da acumulao de capital. Portugal e Espanha enfrentaram srios revezes sendo

    obrigados a acordos desvantajosos com uma e com outra potncia. Os tratados assinados por

    Portugal com a Inglaterra no incio do sculo XIX so um captulo deste processo. Com estes

    acordos, ocorria uma transferncia do capital vindo das colnias para as mos das naes mais

    ricas. Enquanto os franceses garantiam sua hegemonia no continente, os ingleses tratavam de

    consolidar-se no Atlntico. A posio geogrfica favorvel, o domnio de algumas reas

    remanescentes da expanso colonial e a fragilidade de sua economia colocava os lusos como

    caa a ser disputada pelas naes mais fortes econmica e militarmente. Assediado pelos

    franceses e pelos ingleses, o pequeno reino ibrico acabaria por se decidir pelos ltimos.

    Contudo, antes disso, viveu dificuldades que chegaram a pr em dvida a sua prpria

    independncia. o Despotismo Esclarecido do reinado de D. Jos I era uma tentativa de

    recuperar o pas. D. Joo V havia deixado uma monumental crise a ser superada. O

    Despotismo deveria manter a independncia e superar o atraso. No logrou o segundo intuito

    plenamente, mas foi o caminho para recuperar a firmeza do Estado, abalada pelo poder do

    clero (principalmente os jesutas) e da nobreza.

    Para implementar as reformas que eram necessrias, o novo rei foi buscar um

    desprestigiado auxiliar do governo anterior. Sebastio Jos de Carvalho e Melo Conde de Oeiras e

    Marqus de Pombal chegou a ser considerado incompetente no governo de D. Joo V. Em 1749 foi

    demitido da diplomacia, tendo de retornar de Viena para Lisboa. Sebastio Jos era filho da pequena

    nobreza. Seu prestgio no era grande. Teve, entretanto, a sorte de se identificar com os que estavam

    descontentes com o reinado que se findava. Talvez por isso, foi convocado para participar do

    novo reinado.

    Com o tempo, na conduo das reformas, ficou claro o seu talento para o mando e

    para a poltica. Sua poltica baseou-se na reorganizao do Estado e do comrcio. Protegeu

    abertamente os grandes mercadores ligados ao governo, chegando mesmo a perseguir pequenos

    comerciantes. Como se tentasse "criar" a burguesia que Portugal no tinha, o Marqus partiu

    para uma poltica de interveno e conduo do crescimento. Para isso, tratou de diminuir o

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  • poder da nobreza (O clssico Processo dos Tvoras um exemplo disto) e do clero (com a

    expulso dos jesutas de todo o Reino).

    Alm disso, partiu Pombal para uma ampla reforma na educao. Dentro de uma poltica

    tpica do Despotismo Esclarecido, procurou incentivar o estudo das cincias exatas e da

    natureza promovendo uma ampla modificao na Universidade de Coimbra. Criou o Real

    Colgio dos Nobres, a Aula de Comrcio e a Real Mesa Censria. Esta ltima deveria tratar de

    administrar e direcionar todas as escolas do Reino, inclusive o Real Colgio, mas

    principalmente as escolas bsicas. Retirou os jesutas do ensino (o que ocorreu antes da

    expulso propriamente dita) atravs do "Subsdio Literrio" e criou um imposto para financiar

    a educao.

    Na economia, implementou-se a criao de diversas companhias de comrcio que

    protegiam o comrcio colonial das leis do livre mercado. Estas organizaes eram monopolistas,

    mantidas por aes, abertas a participaes de estrangeiros. Estas companhias recebiam monoplios

    para determinados produtos em certas regies do Imprio. A liberdade de comrcio se tornou

    restrita a poucos produtos. Com isso, Pombal procurava garantir a renda do Estado e criava, em

    teoria, as condies para o florescimento de uma burguesia slida. Os cristos-novos que

    participavam das companhias tiveram

    o capital participante isento do confisco inquisitorial. Portugal tinha pressa em recuperar

    o tempo perdido. Foram criadas as seguintes Companhias: Companhia da sia

    (1753), Companhia do Gro-Par e Maranho (1755), Companhia da Agricultura

    dos Vinhos do Alto Douro e Companhia da Pesca da Baleia (ambas em 1756) e Companhia de

    Pernambuco e Paraba (1759).

    Enquanto, por um lado, incrementava ou tentava o crescimento econmico, por

    outro se garantia a presena do Estado nas alfndegas e na cobrana de impostos. A poltica

    pombalina tinha uma lgica interna bastante evidente, mas suas ambigidades eram as

    ambigidades inerentes ao Despotismo Esclarecido e, ainda mais, as contradies da realidade

    portuguesa. Por isso, as reformas enfrentaram muitas dificuldades. Aps 1760, a conjuntura

    foi se degenerando para os interesses portugueses. Os diversos problemas que enfrentava o

    comrcio portugus colonial e o despencar da produo de ouro do Brasil levaram Pombal a

    uma poltica de incentivo indstria. Com isso, tentava fazer face s importaes,

    promovendo sua substituio. No houve tempo para tanto. A concorrncia, a falta de capital

    e a debilidade do Estado lusitano impediram a concretizao plena das mudanas. Se, por um

    lado, a poltica pombalina permitiu alguma estabilidade e impediu que a crise se aprofundasse,

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  • o seu objetivo maior de colocar Portugal na rota de alcanar as naes mais ricas no pde ser

    alcanado. Com a morte de D. Jos I, Pombal foi afastado e parte das reformas, esquecida.

    Quando, em 1591, o visitador Furtado de Mendona aportou na Bahia para

    inquisitoriar a colnia, representava um Tribunal forte e poderoso nas suas cinco dcadas de

    existncia. Era "um Estado dentro do Estado", como diz Antnio Jos Saraiva (Saraiva, 1969,

    p. 159). Seu poderio era tanto que "em certas ocasies se pretendeu, mesmo, acima do

    Estado" (Saraiva, 1969, p. 159). Mais tarde, no sculo das luzes, o Tribunal portugus foi

    obrigado a se ajustar. A legislao pombalina acabou com velhos preceitos que eram bsicos

    para a ao inquisitorial. Note-se, entretanto, que Pombal no agiu para acabar com o

    Tribunal, mas para torn-lo um instrumento de Estado, uma arma para a execuo de sua

    poltica de reformas.

    "Contrariamente ao que se tem escrito, o Marqus

    de Pombal no restringiu as atividades do Tribunal da

    Inquisio, mas, ao contrrio, ampliou-o visando a

    reforar o poder do Estado. Transformou a Inquisio

    num Tribunal Rgio, e deu-lhe o ttulo de

    'Magestade'. Nomeou-se a si prprio e a seus

    parentes 'familiares' do Santo Ofcio. E de seu irmo

    fez "inquisidor'." (Novinsky, 1982, p. 147).

    A Inquisio passou, ento, a depender do rei e no do Papa. A distino entre

    cristos-velhos e cristos-novos foi extinta. Paulo de Carvalho, irmo de Pombal, foi nomeado

    Inquisidor-Geral. Um novo Regimento seria promulgado em 1 de setembro de 1774. Neste

    perodo se daria o que seria o ltimo auto-de-f de Portugal. Seriam queimados a o Cavaleiro

    de Oliveira e o Pe. Gabriel Malagrida. Ambos haviam dito que o terremoto de Lisboa sucedera

    por causas divinas. Na sentena se declara que tanto um como outro so hereges, porque o

    terremoto se deve no a castigo divino, mas a causas naturais (Saraiva, 1969, p. 169). O

    inverso desta culpa talvez fosse possvel algumas dcadas antes. A sentena tem um papel

    quase didtico ao tentar impor um conceito natural diante de uma convico mstica. S que

    no se conseguiu disfarar a ambigidade: tentou-se usar a fora para impor a luz do sculo

    XVIII. As luzes que deveriam triunfar por fora da razo, em Portuga1, pareciam faz-lo

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  • aliando-se ao terror das fogueiras inquisitoriais. Era a poltica de Pombal, a "poltica

    impossvel" de que nos fala o Cnego Antnio Ribeiro Sanches.

    "O ministro tentou seguir uma poltica impossvel:

    quis civilizar uma nao e, ao mesmo tempo,

    escraviz-la; quis espalhar a luz das cincias

    filosficas e, ao mesmo tempo, elevar o poder real

    at ao despotismo (...)" (Antnio Ribeiro dos Santos,

    in Boxer, 1969, p. 190).

    Esta forma de "civilizar" a nao era bastante contraditria. Para Pombal, era a sada

    de uma nao mergulhada em valores do passado e acossada pelo presente. As potncias

    vizinhas eram o modelo do futuro para Portugal. Afinal, segundo o ilustrado Pe. Verney,

    "tem-se notado que o diabo tem muito medo dos

    pases onde se sabe bem Filosofia, Medicina, Leis e

    Teologia, pelo que no se atreve j em tais lugares a

    fazer pacto com homem nenhum" (In Saraiva, 1969,

    p. 203).

    Neste contexto de transformaes ambguas chega ao Brasil uma nova visitao do Santo

    Ofcio: o Pe. Giraldo Jos de Abranches vem inquisitoriar o norte do Brasil. No se pode dizer

    que as reformas do Tribunal j estivessem em vigor, pois a Visita se encerra em 1769 e o novo

    Regimento s entrar em vigor cinco anos depois. Mesmo assim, o quadro de reformas

    caracterstico do perodo pombalino j dava ao Estado autoridade sobre o Tribunal. At que

    ponto essas modificaes se fizeram sentir em tal visita? Este visitador, bem diferente do

    primeiro, ter um trabalho lento e difcil pela frente. Sua autoridade j no tem a fora do

    "Estado dentro do Estado". Amaral Lapa chega a dizer, referindo-se ao enfraquecimento

    paulatino que experimentou a autoridade do visitador, que "a presena do Santo Ofcio

    acabara entrando para a rotina da vida paraense" (Amaral Lapa, 1979, p. 64). Isto no significa

    obrigatoriamente que as reformas do Marqus de Pombal estivessem diminuindo o poder

    inquisitorial. Ser preciso que se pesquisem melhor as especificidades da Visita ao Par para se

    ter uma posio definida. Vimos no captulo anterior que o "abrandamento" da Inquisio

    pode ser uma iluso.

    Em 1763, ano em que se inicia a visita ao Par, as transformaes j

    estavam em curso. Somente em 1774 que estas modificaes se consolidaram num

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  • Regimento novo, mas que no ser to inovador quanto se pode imaginar. este

    Regimento que analisamos neste item.

    Utilizaremos o Regimento de 1774 na edio do Excelsior de Lisboa de 1971 com

    introduo e atualizao de Raul Rego (1971). As circunstncias em que se elaborou este

    Regimento transformam-no num importante referencial para uma das mais complexas pocas

    da Histria de Portugal. Redigido em pleno perodo pombalino em conseqncia das reformas

    do todo-poderoso ministro do rei, o documento apresenta at hoje um insondvel mistrio:

    quem o teria escrito? Muito j se discutiu a este respeito, mas ns no pretendemos entrar em

    tal discusso aqui. Apesar de no considerarmos este problema de todo irrelevante,

    acreditamos que o contexto se torna mais importante do que saber se foi o Cardeal da Cunha

    ou o Marqus de Pombal o autor das novas regras pelas quais se guiaria o Tribunal a partir

    da. No volume se pode ler ordenado com o Real Beneplcito, e Rgio Auxlio pelo

    eminentssimo, e reverendssimo Senhor Cardeal da Cunha" (Rego, 1971, p. 4).

    Entender o sentido da reforma do Tribunal do Santo Ofcio dentro do contexto

    das reformas pombalinas um estudo rido. No s pelo tema, mas pelo pouco interesse dos

    historiadores em mergulhar no assunto. Nosso interesse central aqui outro: pretendemos

    compreender a influncia do Regimento na atuao do Tribunal. Apesar disso, dedicaremos

    algumas observaes a respeito, como introduo a anlise do texto do Regimento em si.

    Criou-se certa simplificao neste processo de entendimento do papel do

    Santo Ofcio nos tempos de Pombal. Tem-se estudado muito a Inquisio, mas 1774 aparece

    como uma barreira a partir da qual o tema j no desperta maiores interesses. "Uns supem

    que tudo tenha continuado como dantes e outros julgam que deixa de interessar este objeto

    Inquisio como tema de pesquisa e de estudo" (Falcon, CII, 5). Este ltimo argumento no

    procede. No I Congresso Internacional sobre Inquisio, realizado em So Paulo, o historiador

    portugus Reis Torgal trouxe uma interessante informao a este respeito. Segundo ele,

    durante os movimentos revolucionrios que sacudiram Portugal na segunda dcada do sculo

    passado, se construiu uma viso da Histria do Tribunal do Santo Ofcio, dividindo-a entre dois

    perodos aparentemente conflitantes: antes e depois de 1774 (Torgal, CII, 14). Aps esta data,

    o Tribunal teria evoludo para melhor, tornando-se uma instituio positiva. Esta viso

    maniquesta, surgida tantos anos depois das reformas pombalinas, demonstra a vitalidade que

    ainda movia a instituio naquele incio de sculo. A Inquisio continuou, s que agora

    revestida de uma nova funo: passou a ser um instrumento do despotismo esclarecido

    instalado no trono. Nos tambm consideramos que 1774 marca uma nova fase para a

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  • Inquisio portuguesa, s que de modo algum a reputamos boa ou m. Constatamos apenas

    que o Santo Ofcio tornou-se ainda mais ambguo, passando a ser instrumento do Estado,

    mantendo plenamente sua viso herica do mundo e, ao mesmo tempo, sendo incapaz de

    modificar substancialmente a forma de ao do corpo burocrtico e denunciador que possua

    em todo o Imprio. Como se fosse um monstro cujos membros se movem mesmo aps a

    cabea ter sido cortada, o Tribunal continuou agindo at em desrespeito a algumas reformas.

    No item 3.3 veremos o caso de Matias Guizanda, muito ilustrativo a este respeito.

    Assim, tambm de uma continuidade que estamos falando. A Inquisio

    mantm parte de suas tradies de um tribunal da f, enquanto o Estado tenta transform-la

    em instrumento prprio. Ao mesmo tempo, o Estado busca construir sua mquina

    repressora. Para que a mquina estatal se impusesse como instrumento de represso, o

    aparato policial cresce e se consolida no ltimo quartel do sculo XVIII. Relacionar as condies

    de ao da Intendncia Geral de Polcia com o funcionamento do Santo Ofcio, aps as

    reformas pombalinas, a nica forma de permitir a compreenso do processo que pode ter

    levado ao esvaziamento do Tribunal1. Sem ter uma funo clara, a Fortaleza do Rocio veio

    abaixo. Seguindo esta hiptese, podemos chegar concluso que o Estado fracassou ao tentar

    assimilar a Inquisio sua mquina repressora. Contudo, acreditamos que o Tribunal

    desempenhou um importante papel na transio iniciada por Pombal. Dialeticamente, esta

    transio acabaria por dispensar o prprio Tribunal.

    Como j vimos no capitulo anterior, a intolerncia inquisitorial "abrandou-se"

    no sculo XVIII. Este processo de "abrandamento" anterior efetivao do Regimento

    pombalino, que s se daria em 1774. Diante de casos que j citamos (Anselmo da Costa em

    1764, Maria Francisca em 1758, Gabriel Malagrida e o Cavaleiro de Oliveira em 1761)

    possvel deduzir-se que as mudanas ocorreram em dois sentidos: abrandava-se a ao

    inquisitorial em relao a culpas tradicionais, mas mantinha-se a intransigncia para com uma

    nova culpa: a de ir contra a "luz do sculo". O Regimento foi antes um esforo do Marqus de

    Pombal para sintonizar Portugal com aquilo que ele considerava ser a contemporaneidade do

    mundo de ento. Mesmo mergulhado nas suas ambigidades e, muitas vezes, nas dificuldades

    que tinha para solucionar muitos dos problemas do Reino, o ministro acabou por impor um

    iluminismo portuguesa sobre a Inquisio. A funo de suas reformas era dupla: servir para

    combater o atraso, ao mesmo tempo, promover mudanas sem romper completamente com o

    passado. Na necessidade de compatibilizar essas duas coisas reside o dilema das reformas.

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  • O texto do Regimento se divide em trs partes: um prembulo assinado pelo Cardeal

    da Cunha (possvel autor de todo o texto), o corpo principal das disposies e princpios

    (divididos em trs livros dos quais falaremos adiante) e o alvar do rei, confirmando em 01 de

    setembro de 1774 a sua validade e dando incio vigncia oficial do Regimento.

    O prembulo se destina a recriar, de uma perspectiva ideolgica, a Histria de

    Portugal. Da mesma forma que fazem os regimes totalitrios de nosso tempo, o pombalismo

    deu ao povo portugus sua justificativa "histrica" para agir. E tambm, como no

    totalitarismo, criou-se um culpado um "bode expiatrio" que por tudo foi responsabilizado

    ao longo de quase trs sculos da vida do povo lusitano. Trata-se dos jesutas. Neste

    prembulo, tenta-se explicar como os "scios" da Companhia (como so chamados

    pejorativamente os jesutas) estiveram sempre por trs das tragdias que infelicitaram o povo

    portugus. Nesta grande conspirao, teriam submetido a Inquisio e os reis. A Inquisio,

    por sua vez, fora originalmente muito boa. Sua funo fora desnorteada pelos "scios" que a

    transformaram num instrumento de aniquilamento da inteligncia dos portugueses atravs da

    promoo de crenas fanticas e irreais como o feitio e as prticas mgicas. V-se aqui a

    razo de Pombal ter extrado do novo corpo de regras do Tribunal a culpa de feitiaria. No h,

    no prembulo, uma Histria real, h os fatos reais recriados luz de uma verso fantstica e

    absurda que abarca todos os fatos, explicando a Histria de forma total. Em contraposio aos

    jesutas e suas aes negativas, tudo de bom que se passara em Portugal teria ocorrido apesar

    dos seguidores de Loyola. A brava resistncia dos monarcas teria dado a Portugal alguns anos

    de crescimento e prosperidade, mas a situao de atraso em que o Reino estava mergulhado

    no final do sculo XVIII era conseqncia da ao nefasta dos jesutas. Era preciso, ento,

    apagar o passado e redirecionar o futuro. Para isso, tornou-se urgente reformular as

    instituies portuguesas. A Inquisio, neste contexto, deixaria de ter no cristo-novo seu alvo

    principal. Pombal considerava que a perseguio aos cristos-novos tinha provocado a fuga de

    capital e que no fora razovel perseguir e processar conversos. O judasmo permanecer

    como culpa, mas a proibio de se processar cristos-novos esvaziara uma das principais

    fontes de rus para o Santo Ofcio. Em lugar do antijudasmo, a nova ideologia inquisitorial

    passou a ser uma complexa retrica que justificava as reformas pombalinas. Seus pontos

    principais dizem respeito trama jesutica, a necessidade de impr a luz e a perseguio aos

    inimigos do Estado. Esta nova retrica no tinha a fora e o apelo popular da antiga. Sem

    apelo, o Tribunal no mais empolgaria as multides que marcaram seus autos-de-f. O papel

    de canalizador das insatisfaes populares, que havia marcado o Tribunal aps a sua fundao,

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  • por mais de dois sculos, estava se exaurindo. diante deste novo e envelhecido Tribunal

    que estariam os denunciadores, denunciados e confitentes da Visita ao Par em 1763 e, alm

    deles, o jornalista Hiplito Jos da Costa e o prisioneiro Matias Guizanda esses ltimos no

    incio do sculo passado.

    O novo Regimento, oficializado em 1774, reflete a fase por que passava o

    Tribunal naquele momento. O volume era dividido em trs partes, conforme o esquema a

    seguir:

    ESTRUTURA DO REGIMENTO DE 1774

    Prembulo

    Livro I - 9 Ttulos

    Regimento Corpo Principal Livro II - 15 Ttulos

    Livro III - 23 Ttulos

    Alvar do Rei

    O corpo principal do Regimento se divide em trs livros: o primeiro composto por

    nove ttulos e designa as pessoas que estavam a servio do Tribunal; o segundo est

    subdividido em quinze ttulos especficos e trata da prtica judicial do Tribunal do Santo Ofcio;

    o terceiro se compe de vinte e trs ttulos e determina as penas aplicveis e os casos a serem

    punidos. Abaixo, apresentamos os ttulos referentes a cada captulo. Em seguida, explicaremos

    o papel de cada um dos trs livros do Regimento.

    COMPOSIO DO REGIMENTO DE 1774 TTULOS POR LIVRO

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  • Livro 1: Dos Ministros e Oficiais do Santo Ofcio e das cousas que nele h-de haver para

    expedio do seu Ministrio. TTULOS: I, II- Dos Inquisidores, III- Dos Deputados, IV-

    Do Promotor, V- Dos Notrios, VI- Dos Procuradores dos reis, VII Dos

    Qualificadores, VIII- Dos Comissrios e Escrives do seu cargo, IX- Dos Familiares do

    Santo Ofcio.

    Livro II: Da forma e ordem por que ho-de ser processados os rus de delitos que pertencem

    ao conhecimento do Santo Ofcio.

    TTULOS: I - Da forma por que se ho-de tomar as denuncia, II - De como se ho-de

    tomar as confisses aos presos, III - Dos Tormentos, IV- Das provas que se ho-de

    somente reputar legitimas para a convico dos diminutos. V- De como ho-de ser

    requeridos os Ordinrios para o final despacho dos processos, VI - Dos

    apresentados e forma que se deve guardar em seus despachos, VII - Do despacho

    final dos processos e votos que neles deve haver, VII - Como se h-de proceder com

    os rus convictos ao crime de heresia, IX - Dos Hereges Afirmativos, X - Dos presos

    que endoidecem na priso, XI - Dos defuntos, XII- Dos absentes, XIII - Das

    suspeies, XIV - Das Apelaes, XV - Do que se h de observar nos casos em que,

    pelas circunstncias que concorrem, se fizer indispensvel a publica demonstrao

    dos autos-de-f.

    Livro III: TTULOS: I - Dos apresentados, II - Dos negativos, III - Dos confitentes, IV - Dos

    confitentes diminutos, V - Dos que revogam as confisses judicialmente feitas, VI

    -Dos relapsos, VII - Dos apostatas, arrenegados e hereges que delinqirem nestes

    Reinos, VII - Dos blasfemos e dos que proferem proposies herticas, temerrias

    ou escandalosas, IX - Dos que desacatam o Santssimo Sacramento, ou as imagens

    sagradas, ou recebem o mesmo Santssimo Sacramento no estando em jejum, X

    Do jacobinismo, XI - Dos feiticeiros, sortlegos, advinhadores, astrlogos judicirios

    e malficos XII - Dos bgamos, XIII - Dos que dizem Missa ou ouvem confisses, no

    sendo sacerdotes, XV - Dos confessores solicitando ao sacramento da Confisso, XVI

    - Dos sigilistas; XVII - Dos que do o culto devido aos Santos, aos que no so

    beatificados e canonizados pela Igreja; dos livros que tratarem dos seus milagres ou

    revelaes e dos que fingirem, XVIII - Dos que impedem e perturbam o ministrio

    do Santo Ofcio, XIX - Dos que se fingem Ministros e Oficiais da Inquisio, XX - Dos

    que fogem dos crceres e dos que no cumprem as penitencias que lhes foram

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • impostas, XXI - Das testemunhas falsas, XXII - Dos que cometem o nefando crime

    de sodomia, XXIII - Dos absentes e defuntos que morreram antes ou depois de

    presos; dos que se mataram ou endoideceram nas prises. (Rui Rego, 1971, pp.

    235-236).

    OBS: Entre os ttulos XI e XII do Livro III, constam dois Captulos que pertencem

    ao ttulo XI: I - Das pronncias e ordem dos processos. II - Das sentenas e

    penas que nelas devem ser impostas aos rus (Raul Rego, 1971, p. 236).

    Na concepo dos inspiradores do novo Regimento, a Inquisio sob influncia

    jesutica teria representado as trevas da ignorncia e da superstio diante das luzes da

    alvorada humanista e renascentista. Esta forma maniquesta e distorcida de ver a Histria do

    Santo Ofcio se assemelha dicotomia luz x trevas que marcou a viso com que os prprios

    renascentistas viam a Idade Mdia. Nesta viso, os renascentistas consideravam-se

    portadores da luz diante do que Petrarca denominou de "barbarismo medieval" (Sevcenko,

    1984, p. 14). Este "barbarismo" teria feito submergir a idade de ouro do pensamento antigo.

    Com o advento do Renascimento, o mundo medieval caiu por terra. A concepo reformista

    da Inquisio portuguesa tomou uma atitude parecida para explicar os erros (?) do Tribunal,

    s que a ordem teria sido inversa: as trevas se sobrepuseram s luzes, pois os jesutas teriam

    imposto ao Tribunal um caminho distorcido em oposio a um incio bom e puro. A funo da

    reforma seria restabelecer a luz. Esta concepo serve duplamente aos seus criadores: (1)

    justifica as reformas diante da constatao de que o Tribunal estava desvirtuado; (2) permite

    evitar reformas exageradamente radicais, pois o Santo Ofcio original teria sido bom e a

    funo das mudanas era recuperar o objetivo inicial do Tribunal. A extino no era do

    interesse dos reformadores, mas uma mudana muito radical poderia tomar rumos

    inesperados. Em Portugal, ento, as trevas tomaram o lugar das luzes e as reformas

    pombalinas haveriam de inverter o processo colocando-o no mesmo sentido da dicotomia

    luz/treva que inspirara o Renascimento trs sculos antes. Este resgate da "ordem natural"

    est implcito na concepo reformista do Regimento de 1774. uma volta ao passado, mas

    com o sentido de retomar o caminho certo e prosseguir novamente. Ao mesmo tempo, era a

    vitria final do bem sobre o mal. Seria um caminho de volta travestido de inovao, seria uma

    continuidade aparentando ruptura. No difcil imaginar a fora do apelo reformista para um

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  • pas ibrico e catlico to prximo das grandes potncias econmicas da poca, necessitando

    acompanhar o ritmo de seu crescimento.

    A partir desta oposio entre bem e mal surgem, ao longo do texto regimental,

    opositores "menores", sempre dentro do contexto descrito no pargrafo anterior. Dentre estas

    oposies, podem-se destacar trs: poder real x papado; tribunal legtimo x tribunal ilegtimo e

    tribunal rgio x tribunal eclesistico. Ao longo do texto essas idias vm sempre em oposio

    umas s outras. Esta forma de apresentar o problema tem como funo fazer o leitor assumir

    uma posio idntica do texto em relao s questes levantadas. Como num regime

    totalitrio o(s) autor(es) do Regimento pretende(m) induzir e convencer quanto pertinncia

    de suas razes e validade das mesmas. Fosse um sculo depois e poderamos supor uma

    influncia positivista nesta concepo de retorno ao Tribunal puro dos primeiros anos, com

    uma adequao simultnea ao sculo XVIII, como se estivesse em busca de reencontrar o

    caminho da evoluo.

    O discurso desenvolvido no Regimento de 1774 permite falsear as mudanas

    promovidas e limita estas mudanas, quase sempre, ao formal e exterior, sem promover

    transformaes de fundo. O texto fala em sculo das luzes, mas mantm vivas caractersticas

    indubitveis da Inquisio tradicional, como o antijudasmo, nem sempre disfarado, de busca

    da pureza de sangue para os pretendentes a integrantes do corpo de agentes do Santo Ofcio.

    Para estes de sangue impuro a exigncia clara:

    "3 - Para constar das qualidades sobreditas, que ho

    de ter os Ministros e Oficiais do Santo Ofcio, se faro

    (precedendo os competentes depsitos) informaes

    por despacho Nosso ou do Conselho Geral nos

    lugares onde eles e seus pais e avs foram naturais e

    moradores, principalmente os Inquisidores por

    mandarem fazer diligncia nos secretos se neles h

    culpas de judasmo provadas contra os pretendentes,

    ou se os cometeram seus pais ou avs paternos, e

    por elas foram processados e condenados nas

    penas estabelecidas nos (sic) Leis do Reino. E,

    achando culpas e sentenas desta qualidade,

    suspendero nas informaes e Nos daro conta, e,

    no as havendo, se passaro disso certides que

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  • mandaro juntar s diligncias" (Raul Rego, 1971, p.

    38).

    O descendente de cristo-novo condenado pelo Tribunal no seria mais vtima

    da Inquisio, mas tambm no poderia fazer parte dela. A qualidade do indivduo continuava

    a ser medida pelo sangue. A tradio cedia algum terreno, mas no deixava de influenciar. Em

    vrias partes, o Regimento de 1774 repete o de 1640 (Francisco Falcon, CII, 5). Alguns

    pargrafos so condensaes de vrios pargrafos do Regimento de 1640. Entre os ttulos, dois

    novos surgem no texto de inspirao pombalina: o 10, do Livro 2, sobre os sigilistas e o 16, do

    mesmo Livro, sobre os jacobinos. Por jacobinos, o Regimento entende uma "coligao de

    indivduos dos cleros secular e regular e de seqazes leigos que, ligados a um particular e

    inventado mtodo de vida espiritual" (...) se atrevessem a constituir na Lei da Graa uma

    seita formal em tudo semelhante dos fariseus na Lei Escrita que pela do Evangelho se acha

    reprovada" (Raul Rego, 1971, p. 173). J o termo sigilista designa os religiosos que quebraram

    o sigilo sagrado da confisso (Raul Rego, 1971, p. 202). Paradoxalmente, apesar de repetir em

    boa parte o de 1640, o de 1774 nega a validade do velho Regimento ao negar a prtica

    inquisitorial que teria sido inspirada por ele, mas como sendo o resultado da influncia do

    plano diablico dos jesutas. Mesmo assim, os reformadores do sculo iluminado no ousaram

    atingir por completo o auto-de-f e a pena de morte. O auto recebe uma severa crtica no

    Ttulo XV do Livro II, mas logo em seguida reabilitado com algumas modificaes. Neste

    sentido, o texto comea a qualificar o auto como obra dos jesutas.

    "e at autorizados com as armas da sua perversa e

    j extinta Sociedade, foram outro invento da

    malignidade dos mesmos regulares, para mais

    fomentarem a ignorncia e o fanatismo que tinham

    introduzido nestes Reinos com geral escndalo das

    naes estrangeiras, as quais, sabendo, como

    iluminados, que no havia na boa e sua Filosofia, na

    Moral Crist, na Religio ou na Poltica razo ou

    fundamento algum com que se pudessem coonestar

    aquelas pblicas ostentaes de horrores e misrias,

    viam caminhar to numerosos e miserveis rus em

    solene e pomposa procisso para um teatro

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  • levantado dentro de uma Igreja, para a ouvirem

    suas sentenas" (Raul Rego, 1971, p. 136).

    Ao mesmo tempo em que condenava com tanta veemncia a realizao dos autos-de-

    f, o Regimento recriava-os alguns pargrafos depois, camuflando-os:

    "Porm, sendo presos e convencidos alguns rus ou

    de heresiarcas ou de dogmatistas, ou de hipcritas ou

    de sigilistas, ou culpados em outros delitos que, pela

    sua extraordinria gravidade, escndalo, perigo de

    grassarem e pelas agravantssimas circunstncias de

    que se revestirem, peam satisfao, ordenamos que

    na Inquisies, a que os ditos rus tocarem, depois

    de os terem processado, consultem ao Conselho

    Geral com os processos, substanciando na consulta

    as culpas que se acharem provadas contra os ditos

    rus e as circunstncias delas, para determinarmos o

    tempo e o lugar em que devem ouvir as suas

    sentenas os sobreditos perniciosos delinquentes"

    (grifo nosso. Raul Rego, 1971, p. 138).

    Mudava o local, mas continuava a existir uma cerimnia pblica onde o penitenciado

    poderia, inclusive, ser relaxado justia secular (Raul Rego, 1971,

    p. 139) terminologia inquisitorial que significa ser morto ou garroteado e, depois,

    ser queimado.

    No reino das ambigidades, essa era apenas mais uma.

    Apesar das semelhanas, o Regimento de 1774 guarda tambm diferenas em relao

    prtica dita tradicional da Inquisio. A aparente supresso do segredo do processo e o fim

    da culpa de ser cristo-novo representariam, em conjunto, grandes modificaes para o

    funcionamento do Tribunal. De agora em diante, o ru teria informaes mais precisas e

    especficas sobre sua culpa e o desenrolar de seu processo. Afloram tambm outras

    preocupaes que do uma amostra da mentalidade que inspirava o novo Regimento. Ao

    longo do texto pede-se insistentemente que os processos sejam ilustrados com provas cabais e

    definitivas. A culpa de feitiaria deixa de ser aceita por considerar-se pura e simplesmente que

    no se pode prov-la. Em outros casos, o texto incisivo na necessidade de provas para

    condenar os culpados. Esta preocupao no existe na prtica da Inquisio tradicional. Nela, o

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  • ru era preso, s vezes sem nenhuma prova ou culpa formada, mas apenas por determinao

    da Inquisio. Neste caso, o segredo do processo permitia que se mantivesse preso algum

    que no tinha nenhuma denncia oficial, mas a culpa poderia ser "construda" leia-se forjada

    dentro da priso com as denncias mesmo falsas dos espias do Santo Ofcio que se fingiam

    de presos (e mesmo os presos aceitavam participar desta tarefa humilhante). Outra

    preocupao que no caberia no esprito da velha Inquisio era a de "buscar a luz do sculo".

    Esta preocupao gera um preconceito contra o prprio povo portugus ao se comparar,

    constantemente, este com outros povos j iluminados. Isto demonstra um sentimento de

    inferioridade que far parte do caldo ideolgico que constituiu a poltica pombalina. Este

    sentimento inerente s reformas, pois estas partem do princpio de que Portugal estava

    ficando para trs em relao s outras naes do continente e, em funo disso, precisaria de

    uma profunda mudana que envolvesse tanto os aspectos materiais quanto mentalidade

    sustentadora do atraso. Enfim, tambm em relao ao tormento eufemismo para a tortura

    a Inquisio mudou, mas conservou, mantendo esta prtica de investigao atravs de um

    tenaz exerccio de camuflagem do velho dentro do novo. Desde a antigidade, a tortura vem

    sendo considerada a "Rainha das Provas" (Peters, 1985, p. 51). Neste sentido, a tortura no

    uma pena, pois antecede a prova da culpa. O tormento serve para criar a prova e alimentar o

    processo. Entretanto, o sculo XVIII vai assistir a um perodo de abrandamento do uso da

    tortura nos processos. A concepo geral que se tem hoje em dia de que a tortura tem uma

    histria linear ao longo dos tempos. Na verdade, a prtica do suplcio para extrair confisso

    tem passado por altos e baixos. Nos dias de hoje, estamos assistindo a um "renascimento"

    frentico da tortura para as mais diversas funes. No sculo das luzes havia um

    abrandamento. Naquele momento, "o fluxo de movimentos abolicionistas bem-sucedidos (...)

    conseguiu acabar com a tortura, principalmente como parte dos processos penais" (Peters,

    1985, p. 13). Em Portugal, contudo, a tortura mantida para crimes contra o Estado,

    mascarados de crimes de religio. No Ttulo III do Livro II, a tortura posta de lado e, em

    seguida, trazida de volta pelo artifcio jurdico da exceo. Diz o texto:

    "Sendo a tortura uma crudelssima espcie de averiguao de

    delitos, inteiramente estranha dos pios e misericordiosos sentimentos da

    Igreja Me, a mais segura inveno para castigar um inocente fraco e para

    salvar um culpado robusto ou para extorquir a mentira de ambos, a mais

    exorbitante das regras ordinrias do Direito que no sofrem a imposio de

    uma pena certa e to forte por um delito ainda duvidoso; abandonada do foro

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • secular destes Reinos por um uso contrrio s Leis deles, legitimamente

    prescrito com cincia e aprovao dos Augustssimos Senhores Reis dos

    mesmos Reinos, permitida somente nos casos (que nunca aconteam) das

    conjuraes de muitos contra a vida e estado dos Monarcas, em que a

    indispensvel necessidade de se extirparem as razes de pestes to nocivas

    faz prevalecer a segurana pblica contra o cmodo particular do delinquente

    atormentado (...)" (Grifo nosso. Raul Rego, 1971, p. 89).

    Diante de tanta nfase, possvel que o leitor apressado no veja o que vem logo a

    seguir. Admitindo a tortura somente para conjuraes contra o Estado, o Regimento trata logo

    de incluir como conjurao os crimes de religio dos novadores, heresiarcas e espritos fortes

    que tenham difundido e disseminado as suas perniciosas seitas, em que, tambm para se

    arrancarem entram as regras do maior bem comum de todos os Estados, que, consistindo na

    conservao da Religio pura e ilibada de seitas, cismas e heresias que abalem e arruinem os

    seus firmssimos fundamentos, se fazem igualmente superiores a toda a considerao

    particular a favor dos atormentados (...) (Raul Rego, 1971, p. 90). Mesmo notando que

    assuntos do Estado no fariam parte das preocupaes da Inquisio (no havendo destes

    casos no Santo Ofcio, Raul Rego, 1971, p. 89), o Regimento nega-se a si mesmo e acaba

    deixando as coisas quase como estavam. Parece-nos que houve uma tentativa de transferir a

    funo do tormento para crimes contra o Estado, mas, como no simples adaptar o interesse

    do Estado na legislao inquisitorial, acabou por haver uma manuteno da tortura para

    crimes de religio que agora seriam tratados como assunto de Estado. Uma contradio que

    custou a clareza do texto e deixou espao para que se abrissem tantos precedentes quantos

    fossem de desejo do Estado ou do Tribunal. O melhor aliado de um sistema totalitrio uma

    legislao generalista e pouco precisa na definio dos crimes que pretende punir. Um

    exemplo clssico temos entre ns com a famosa Lei de Segurana Nacional usada pelo

    Regime Militar que se implantou com o golpe de 1964.

    Mais adiante, no item 3 do Ttulo III, Livro II, o texto deixa bem claro que "heresiarcas

    ou dogmatistas" que disseminaram erros e que no os confessassem nem aos nomes de seus

    cmplices,

    "sero postos a tormento proporcionando a

    qualidade da prova e dos indcios que contra eles

    houver pelo muito que importa arrancar de entre os

    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011

  • fiis to venenosas e pestferas razes" (Raul Rego,

    1971, p. 91).

    A dualidade do Regimento de 1774 servia com perfeio aos interesses de Pombal e da

    sua poltica reformista. Na verdade no era o Regimento, mas a prpria poltica que era

    ambgua e contraditria. Reflexo da sociedade portuguesa da segunda metade dos anos

    setecentos.

    CONSIDERAES FINAIS

    Os Regimentos Inquisitoriais de 1640 e 1774 apresentam ambos um nascimento em

    meio conturbaes polticas, sociais e econmicas. As caractersticas do Regimento de 1640

    so tpicas de um estado mercantil, de uma coroa centralizadora e de uma inquisio presente

    nas aes estatais. Em 1640, comparando com 1774, podemos dizer que havia uma maior

    interao da Igreja com os assuntos dos Estados nacionais ibricos, enquanto que o regimento

    posterior, engloba funes e atividades antes restritas a clrigos unicamente. O cristo novo

    no mais o alvo central do sculo XVIII, como era no sculo XVII. A ameaa dos discursos

    inflamados dos iluministas, dos jacobinos e a constante ameaa externa oriunda das novas

    potncias emergentes, marcam o tom do sculo XVIII portugus. Juridicamente podemos

    observar no regimento de 1640 um direito mais conciso, denso, com poucas margens para

    interpretaes variadas. Este regimento preso ao direito cannico e a elaborao deste

    documento passou pelo crivo de vrios funcionrios da Igreja que faziam parte do Conselho

    Inquisitorial. Ao contrrio do seu sucessor de 1774. Apesar de possuir diversas passagens

    idnticas ao regimento anterior e preservar muito de sua estrutura bsica, o regimento de

    1774 possui muitas ambigidades, elaborado deixando-se influenciar pela cultura jurdica

    portuguesa. Sua elaborao misteriosa e a corpo de funcionrios inquisitoriais nesse perodo

    demonstravam grande subordinao para com as decises estatais. Em muitos momentos,

    mecanismos do Estado portugus, como: tribunais rgios, fora policial e administradores

    eram colocados disposio da inquisio, no sendo raro tambm, quando a inquisio era

    colocada a merc de interesses deste Estado. Um Estado que tentava trazer para a realidade

    lusitana a ilustrao iluminista, sem que com isso, a Coroa no fosse corroda pelas

    modernidades trazidas por esta filosofia. Essa luz, esse afastamento das trevas, foi levado

    at os pores inquisitoriais.

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    Simpsio Internacional de Estudos Inquisitoriais Salvador, agosto 2011