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  • ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

    Discurso de Posse

    O IMPRESSIONISMO EM LITERATURA

    Ao historiador literrio, o sculo XIX aparece como uma das pocas mais fascinantes, mxime

    levando-se em conta a variedade de correntes estticas que a atravessam, cruzando-se e

    entrecruzando-se, atuando umas sobre outras, opondo-se, prolongando-se, superando-se ou

    interpenetrando-se de modo a torn-lo um dos maiores laboratrios de idias estticas e uma

    encruzilhada de alta relevncia espiritual e artstica. Graas ebulio produzida pelo entrechoque das

    doutrinas, de intensa fecundidade o perodo.

    Suas correntes e escolas literrias no oferecem, em conseqncia, contornos ntidos e apresentam, ao

    contrrio, entre si, zonas fronteirias quando no misturam os respectivos coloridos estticos a ponto

    de os prprios representantes vestirem roupagens diferentes no curso de sua evoluo ou participarem

    das qualidades e caractersticas de diversas. A famosa antologia Le Parnasse Contemporain, lanada

    entre 1866 e 1876, o ponto de partida tanto do Parnasianismo quanto do Simbolismo, algumas das

    principais figuras tendo pertencido aos dois movimentos. Eis a um dos mais curiosos fatos da Histria

    literria.

    Alis, esse e outros exemplos do razo historiografia moderna, que se recusa a admitir a noo da

    delimitao exata entre as pocas literrias, abandonando a idia de comeo e fim em datas fixas. Ao

    invs, esto mais acordes com a realidade as noes das reas intermedirias, das gamas estilsticas,

    das interpenetraes de estticas, da impureza de estilos ou escolas. A nova historiografia de cunho

    estilstico arma-nos, assim, de doutrina muito mais flexvel e realista.

    A dcada de 1880 assiste liquidao do Naturalismo como movimento literrio, a qual acompanha a

    crise do Materialismo e Positivismo. Em verdade a concepo materialista da vida e da Arte j cansava

    os espritos. Uma onda de religiosidade e reespiritualizao, subjetivismo e idealismo, procurava

    afastar a Arte e o pensamento do mundo da realidade estrita, da crua pintura da Natureza, repelindo a

    teoria de que Arte e Natureza se confundem. A reao exprimia um sentimento de desgosto, tdio e

    revolta, contra a hipertrofia da matria, em nome do subjetivismo e misticismo. O Materialismo era

    identificado com a concepo burguesa da vida, da a reao concretizar-se na atitude de rebeldia da

    bomia, decadentismo ou exotismo, mundos diferentes para os quais se pudesse escapar.

    Do mago dessa tendncia desenvolveram-se novos estilos e escolas artsticas o Simbolismo e

    Impressionismo. O primeiro tem sido devidamente valorizado, mas o Impressionismo, em sua

    expresso literria, s recentemente encontrou compreenso e estudo crtico adequado, especialmente

    graas aos mtodos e doutrinas da nova crtica. Utilizando a periodologia estilstica, pela aplicao dos

    conceitos e da anlise dos estilos individual e de poca, a nova crtica e historiografia literrias vm

    descobrindo ou redefinindo pocas anteriores inclassificadas ou figuras retardadas ou perdidas.

    Est entre essas o Impressionismo literrio. Tanto quanto o conceito de barroco aplicado definio da

    Literatura seiscentista, o Impressionismo literrio do final do sculo XIX foi batizado por um conceito

    oriundo das belas-artes. Proveio da Pintura, como extenso da denominao dada por Claude Monet a

    um seu quadro, Impression, exposto no salo de 1874. Mais tarde com o livro de Louis Durants, Les

    Peintres Impressionistes, de 1878, oficializou-se a designao para toda a escola de pintura nova. Mas

    a esttica revolucionria no se resumiu Pintura, contaminando as demais formas, inclusive a

    Literatura, constituindo uma verdadeira poca artstica, entre 1860 e 1810 com unidade de princpios

    estticos, concepo de vida e artifcios tcnicos prprios.

    No Impressionismo, como estilo artstico, dominam os princpios da Pintura, repetindo o velho conceito

    horaciano do Ut pictura poesis. A Literatura e a Msica deixam-se impressionar de tal modo com as

    sedues da Pintura, que esquecem muitos dos seus prprios requisitos.

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  • Desde 1850, a Arte buscava novas direes. Em 1863, no Salon des Rfuss, no qual se reuniram os

    trabalhos rejeitados pelo jri tradicionalista do salo oficial, um quadro marcou as atenes: Le

    Dejeuner sur lherbe, de Manet, e a ele se deve o impulso inicial da escola impressionista em Pintura, a

    frmula pictrica estendendo-se em poucos lustros Msica e Literatura, num desenvolvimento

    paralelo ao Simbolismo.

    Em Pintura, o Impressionismo distinguiu-se por ntidas caractersticas. Em primeiro lugar, os problemas

    da forma tornam-se preocupaes dominantes, alis no somente na Pintura, seno tambm na

    Literatura. Demais dela outras qualidades estticas se impuseram: a luz solar a nica fonte criadora

    das cores; a forma e a cor so noes inseparveis; a Pintura no imitao da Natureza, mas sua

    interpretao artificial; as cores que so responsveis pela profundidade; nas superfcies planas a

    sombra no coerncia de luz, mas uma luz de outra classe; o assunto detalhe acessrio, a mesma

    paisagem podendo oferecer aspectos diversos conforme as mudanas de luz. Em Literatura, o

    Impressionismo afirmou o triunfo da descrio sobre a narrao; o domnio da atmosfera das grandes

    cidades; o entusiasmo pelo movimento, pela vida, gua, sol, cor, ritmo; a superioridade da Poesia

    pura; a obsesso com o elemento psicolgico e sua expresso; a reduo de todo valor potico

    sensao pura e sua descrio, negando a forma externa das realidades; o uso da linguagem em

    combinaes de palavras tais que sejam o instrumento de registro das impresses, abolindo em

    conseqncia no escritor a reflexo sobre as coisas, e exigindo dele que se anule para assimilar as

    qualidades do objeto na sua inteireza.

    Em verdade, o Impressionismo, em Literatura, resultante da fuso de elementos simbolistas e

    realistas. A realidade, cuja reproduo exata era a norma do Realismo, deixou de existir como foco de

    interesse, pois o impressioniosta procura registrar a impresso que a realidade provoca no esprito do

    artista, no mesmo instante em que se d a impesso. Da que o mais importante seja o instantneo, o

    momento exato em que as emoes e sensaes surgem no esprito do observador. No se trata de

    apresentar o real tal como visto, mas como visto e sentido num dado momento. A subjetividade

    colabora, e foi graas a este elemento que o Impressionismo se aliou ao Simbolismo no movimento

    finissecular de reespiritualizao da Arte. O real passou a ser encarado atravs de um temperamento,

    pelas sensaes e impresses que desperta, num singular momento que passa transferindo o negistro

    das relaes externas para o das relaes internas e o das impresses produzidas no esprito pelo

    contato com as coisas, cenas, paisagens ou pessoas, sem falar nas obras de Arte e Literatura.

    Conforme acentua Arnold Hauser, a filosofia da vida implcita no Impressionismo aquela idia de

    Herclito de que o homem no mergulha duas vezes no rio da vida em eterno movimento, os

    fenmenos no sendo os mesmos nesse fluxo constante. Da o domnio do momento sobre a

    continuidade e a permanncia, pois a realidade no existe estvel e coerente, mas em vir-a-ser, em

    curso, em metamorfose, em crescimento e decadncia. O mtodo impressionista, assim, a captao

    do momento, do fragmentrio, instvel, mvel, subjetivo. A prpria noo de tempo modifica-se

    acompanhando a transformao da experincia da realidade, pois atravs do fluir do tempo e da

    soma dos diversos momentos de nossa mutvel realidade existencial que se logra a integrao da vida

    espiritual. O presente o resultado do passado, ressuscitemos pois o passado, recordando-o,

    revivendo-o. A filosofia de Bergson e o romance de Proust constituem os marcos dessas teorias.

    A tcnica literria impressionista, arte de cunho pictrico, consiste no pontilhismo e divisionismo,

    uma pintura com palavras, acumulando sensaes isoladas e detalhes de aparncias efmeras, uma

    gota de chuva, uma linha meldica de som ou de cor, uma nesga de memria apreendendo a realidade

    no em estado de repouso, mas nas impresses e na captao afetiva de aspectos do real. O estilo

    impressionista dotado, assim, de uma qualidade fugitiva. A narrativa, o enredo, a seqncia de causa

    e efeito entre os eventos e os indivduos so substitudas pelo registro dos estados de alma, emoes e

    sentimentos, de acordo com a lgica subjetiva, pessoal, vaga. O que se procura surpreender a

    essncia do momento, incidente ou paisagem, graas a uma captao instantnea do estado de alma

    do artista ou do esprito do observador, das intermitncias do corao ou da memria, que ou so

    capturadas instantaneamente ou desaparecem. Alm disso, o instante percebido visualmente,

    valorizando-se os efeitos da cor e das tonalidades. A prpria estrutura da narrativa reformada, pois

    no so os acontecimentos que importam acima de tudo, porm o deleite das sensaes e emoes

    criadas, subordinando-se a coerncia, a unidade e o suspense atmosfera, s sensaes, s cores e

    qualidades tonais. As convenes tradicionais da narrativa, o efeito total, os elementos literrios cedem

    lugar aos aspectos pictricos. As massas quebram-se em detalhes, da certa impresso de vago, difuso,

    obscuro, sem comeo e fim. A Natureza inventada ou interpretada, antes que vista e descrita

    objetivamente. A onipotncia da Natureza cede liberdade artstica.

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  • Alm dos traos gerais, a arte impressionista criou um estilo, uma concepo lingstica adequada

    reproduo do instantneo e nico. A linguagem usada pelos escritores impressionistas compreende a

    impassibilidade e a impersonalidade, uma sintaxe esquemtica oposta sintaxe estruturada

    tradicional, abandonando a estrutura regular da frase, a ordem lgica, as ligaes conjuntivas

    subordinantes e coordenantes, as conjunes; usa a ordem inversa e o anacoluto, o modo imperfeito, a

    metfora e o smile, o colorido e a sonoridade. uma linguagem expressiva da fantasia e da

    imaginao, que recebeu a denominao de criture artiste.

    Foi a esttica formulada pelos Irmos Goncourt, na Frana, que fixou o impressionismo, libertando a

    Literatura do Naturalismo pela nfase na forma artstica. Consideram-se eles, destarte, os fundadores e

    representantes mximos do novo estilo. E se Manet, Degas, Monet, Renoir so alguns dos mais

    notveis pintores impressionistas e Debussy, Ravel, os msicos mais importantes da escola, em

    Literatura destacam-se Pierre Loti, Henry James, Joseph Conrad, Anton Tchecov, Stephen Crane,

    Marcel Proust, Katherine Mansfield, sem falar nos elementos precursores encontrados na tcnica

    estilstica de Flaubert, Baudelaire, Verlaine, Daudet.

    O IMPRESSIONISMO NO BRASIL: POMPIA

    No Brasil, o Impressionismo triunfou na obra de uma das mais nobres expresses da Arte literria

    entre ns: Raul Pompia. Por coloc-lo em posio do mais alto relevo em nosso panteo de glrias

    que me sinto feliz, senhores acadmicos, pela coincidncia que me reservou a fortuna ao fazer-me

    ocupar nesta Casa ilustre a Cadeira que o tem como patrono, ele que foi, para Capistrano de Abreu, o

    nico dos seus contemporneos que lhe dera a impresso de gnio.

    E ainda mais feliz me sinto, e mais que isso, orgulhoso, por ter sabido compreender a sua posio, na

    Histria literria que tive a satisfao de planejar e dirigir, quando foi pela primeira vez devidamente

    valorado. At antes, a crtica tradicional, desarmada de mtodos e instrumentais adequados anlise

    do fenmeno literrio em si mesmo, na sua qualidade esttica intrnseca e no estilo, demonstrava-se

    incapaz de penetrar casos singulares como o de Raul Pompia. Por isso viveu a repetir-se, definindo o

    autor de O Ateneu como um naturalista ou um realista, e ainda em trabalhos recentes se insistiu nessa

    gratuita interpretao. Afortunadamente, a nova crtica soube trazer a reviso segura da classificao

    de Pompia, naquela obra, pela pena de Eugnio Gomes e Xavier Placer.

    Se, para a identificao estilstica de um autor devemos levar em conta no apenas uma caracterstica,

    mas uma constelao de elementos ou signos predominantes, Raul Pompia enquadrou-se

    perfeitamente no esquema impressionista, sobretudo realizado pelos Goncourt, cuja obra e esttica lhe

    serviram de modelo. A sua crnica de saudades obedece tcnica da recuperao do passado, que

    seria usada pelo impressionista Proust em busca do tempo perdido e como um recurso para encontrar

    a essncia da personalidade. A anlise interior e a introspeco condizem nele com a preocupao da

    escola quanto ao aspecto psicolgico. A escrita artista veicula a sua obsesso da cor, a que subordina

    at a soluo das metforas e da sintaxe. Era um visual, atrado pelos gestos, ritmo, movimento, e

    pelas diferenas de matizes corados, e inclusive na caracterizao dos personagens, graas tcnica

    da caricatura, em que se mostrou exmio. Mas tambm um auditivo, sensvel emisso de um som

    prolongado, a crepitar de consoantes, alteando-se ou baixando, conforme o timbre vogal. Dominava-o

    a caa s sensaes que registrava com volpia, como bom discpulo dos Goncourt, o que o

    sensibilizaria para certas impresses fugazes, que ele prprio referiu na sua obraprima, aquelas

    reminiscncias sonoras que ficam perptuas, falando uma linguagem que faria inveja a Marcel Proust.

    No se restringe a O Ateneu a tcnica impressionista em Pompia. A sua abundante produo de

    crnicas, contos, poemas em prosa ou canes sem metro, que estou em vias de recolher para

    publicao em volume da Biblioteca Luso-Brasileira, juntamente com seus artigos polticos,

    documentam-lhe as preferncias estticas.

    De qualquer modo, a tcnica impressionista espalhou-se, penetrando aqui e ali na Prosa e Poesia,

    invadindo o sculo XX, com obras significativas, como estoutra inclassificada, Cana, de Graa Aranha,

    sem falar da impregnao impressionista no prprio Machado de Assis e em Coelho Neto e Afrnio

    Peixoto, para afinal vir a dar no grande desaguadouro de Adelino Magalhes. Assim, de 1890 a 1915, o

    Impressionismo cria um perodo estilstico, sem limites precisos e rigorosos, mas de fisionomia bem

    caracterizada, com expresses na Arte literria, na Crtica, e paralelamente nas demais artes,

    sobretudo na Pintura de Eliseu Visconti, Rodolfo Amoedo, Helios Seelinger e outros.

    DOMCIO DA GAMA

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  • Ao clima impressionista deve ainda a Literatura Brasileira a obra de Domcio da Gama, o primeiro

    ocupante da Cadeira para que fui eleito, o qual certamente cedeu aos imperativos de secretas e

    inconscientes afinidades espirituais e estticas com Pompia, quando se bateu para tom-lo como

    patrono, logrando que Rodrigo Octavio lhe cedesse, depois de o ter escolhido. Curiosa figura a desse

    brasileiro, escritor e diplomata, cuja personalidade avulta distncia num quadro junto a amigos que se

    chamaram Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Ea de Queirs, Eduardo Prado, Magalhes de Azeredo,

    Baro do Rio Branco. Os testemunhos falam alto das excelncias de suas qualidades bafejadas, ainda

    pelo calor da deusa fortuna, que o colocou, desde o incio, na senda de uma prspera carreira. Menino

    ainda, j os seus dotes intelectuais despontaram, ao liderar um grupo de companheiros em um grmio

    literrio. Logo aps, integrou a Gazeta de Notcias, aquela verdadeira academia que Ferreira de Arajo

    organizara sob a gide do escol intelectual do tempo. A, Domcio afia as armas, apura a inteligncia,

    aprimora o instrumental. Outra grande oportunidade o coloca em Paris, na roda de Eduardo Prado e

    Ea de Queirs. Eram as duas ltimas dcadas do sculo XIX, e a batalha esttica travava-se com

    estrpito. Domcio no era de temperamento inclinado controvrsia, nem s lutas de proscnio.

    Tampouco o seduziriam as tintas fortes e as pinceladas grossas com que o Naturalismo se impunha.

    Sua armadura artstica e sensibilidade requeriam outros processos de realizao, mais de acordo com

    sua natureza retrada e tmida. No lhe deve ter sido difcil encontrar a famlia impressionista, a cuja

    esttica se filiou. Falam por si as suas crnicas, e, sobretudo, os contos dos volumes de Contos a Meia

    Tinta e Histrias Curtas. Os prprios ttulos denunciam a esttica do entretom, da meia tinta, conciso,

    sugesto, conteno de linguagem, expresso branda levemente sussurrada, dita baixinho, captando

    impresses sutis e requintadas de paisagens sombrias e silenciosas. Os seus contos so expresses de

    Arte velada criada sombra da memria, saudade, melancolia, filtrada atravs de uma sensibilidade

    esquiva, Arte de nuances e meia-luz, de atmosfera e transfigurao, Arte sem contornos, vaga,

    imprecisa e indecisa, Arte do fragmento e instantneo.

    * * *

    A linha impressionista que constituiu, assim, a tradio da Cadeira 33, pelo patrono e fundador, teve

    que ser interrompida para dar lugar ao segundo ocupante, Fernando Magalhes, mas quis o destino

    que o fio fosse retomado, pouco adiante, com Lus Edmundo.

    Unindo Letras e Cincias, o que uma tradio desta Casa, elevando a Arte da eloqncia ao pice de

    uma perfeio em que singulares qualidades vocais e dotes oratrios se ajustavam a um estilo

    adequadamente tratado, Fernando Magalhes honrou o gnero como os que melhor o fizeram.

    A REBELIO SIMBOLISTA

    J em 1899, fazia Lus Edmundo parte do grupo de jovens que constituam a brigada de choque

    simbolista no assalto s casamatas parnasianas. Desde o comeo da dcada de 1890 rolava a onda

    simbolista, como uma revanche da subjetividade, interiorizao, espiritualizao, individualismo. Eram

    decadentistas que se reuniram em torno do jornal Folha Popular, em 1891, no Rio de Janeiro, do

    mesmo modo que na Padaria Espiritual, em 1892, no Cear, em nome de novos ideais estticos, e que

    tiveram em 1893, com a publicao de Missal e Broquis, de Cruz e Sousa, o seu grande momento.

    Eram excntricos, atrados pelo hieratismo gramatical, pelo gosto da Mitologia, Ocultismo, Misticismo,

    Metafsica, foras invisveis, magia, satanismo, expresso indireta e simblica.

    o prprio Lus Edmundo, em O Rio de Janeiro do meu Tempo, quem evoca a fase em traos

    pitorescos:

    Quando o sculo comea, as hostes novas da nossa Literatura vivem assanhadas pelo Simbolismo. a

    moderna escola. a dourada esperana de um grande renascimento literrio. Vo ruir por terra

    diz-se as tendncias ronceiras que dominam as elites intelectuais. O que no pode continuar

    acrescenta-se essa Arte de representao direta, prosaica e vil que se chama Realismo na prosa e

    Parnasianismo na Poesia. Novas maneiras para criar a emoo! Processos novos para apresentao de

    uma forma simples, natural e de todo contrria habilidade dos malabaristas das Letras. Guerra aos

    ignaros copiadores das Odes funambulesques e dos Trophes, de um lado, e, de outro lado, violenta

    oposio prosa dos que vivem de ancinho de ouro a remexer o lixo vil das sensaes terrenas... Entre

    dez moos que fazem Literatura oito pensam assim.

    Os processos de que se utilizam os paladinos da nova idia so os mesmos de sempre a caracterizar a

    antropofagia das geraes novas: a irreverncia, o desrespeito pelos consagrados do tempo, a nsia de

    alarmar o burgus. Mmias, deuses de ps de barro, e outros eptetos muito mais contundentes eram

    atirados a Machado de Assis, Coelho Neto, Verssimo, Bilac, arrolados como a bilacada. Os franceses

    tambm se incluram na degola, Victor Hugo, Leconte de Lisle, Banville, Coppe, Zola, cedendo ao

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  • culto de Baudelaire, Verlaine, Mallarm, Paul Fort, Samain, Verharen...

    LUS EDMUNDO

    Nascido em 1878, tinha Lus Edmundo 21 anos quando, em 1899, foi encarregado por Cardoso Jnior

    da direo da Revista Contempornea, uma dentre as muitas publicaes de vanguarda em que foi

    frtil o Simbolismo brasileiro. Durou a revista de 1899 a 1901, e esses peridicos efmeros, depe

    Edmundo, so em geral, caticos, confusos, no raro contendo manifestos literrios, que so ridculas e

    fofas declaraes de guerra a lricos, a parnasianos e a realistas, formando uma trincheira onde se

    encastelam soldados vindos de toda a parte, amigos e inimigos, mas que vivem, somente, a dar tiros

    para o ar... E comenta o saudoso memorialista: Anhelo de todo novo, anseio natural de demolir,

    contrrio nsia de conservar, de todo velha. Rinha de frango com galo feito, brigando por um

    galinheiro onde as galinhas so poucas. Luta, porm, at certo ponto, simptica, denunciadora de

    mocidade e de vida.

    A BOMIA E O NAVIO DA LAPA

    A preocupao de espantar o burgus e violentar os hbitos literrios dominantes traduzia-se no

    apenas nas idias estticas e tcnicas artsticas intrnsecas, nem to-somente na pura demolio dos

    dolos da hora, mas tambm nos processos grficos de apresentao de livros e revistas, sob forma

    bizarra e original, em vrias cores e formatos extravagantes.

    Os novos decadentistas ofereciam ainda outro feitio na sua atitude de rebeldia contra os cnones

    estilsticos e sociais estabelecidos. Sua maneira de reagir inclua a bomia e o socialismo. Ledores de

    Bakunin, Kropotikin, Marx, seus dolos eram quem quer que tivesse programa de violncia, para

    dinamitar a sociedade moderna, e admitiam o punhal e a bomba contra as injustias e preconceitos de

    um mundo antinatural e estpido. Conta Lus Edmundo que um certo caricaturista francs, fugido da

    ptria para no fazer o servio militar, tinha escondidas no quarto de Santos Maia duas bombas, cujo

    destino circulava aos cochichos nas rodas bomias. Uma, dizia-se com ares sinistros de conspirador,

    era para o chefe de polcia; quanto outra, envolvia-se em mistrio, e s mais tarde se veio a saber se

    destinava a certo Alberto Pereira da Silva, alfaiate com loja num sobradinho na Rua da Constituio, a

    quem os bomios revolucionrios deviam os cabelos da cabea. que os moos podiam muito bem ter

    por divisa os versos do colega Rafael Pinheiro: Como tu andas agitando as massas sem nem ter as

    massas na algibeira.

    A poca do comeo do sculo pertence bomia intelectual e da Literatura feita e vivida nos cafs,

    imitao da intelectualiade francesa da rive gauche e de Montmartre. O Caf Paris, a Paschoal, a

    Colombo, o Papagaio, o Lamas reuniam elegantes, bomios e intelectuais, cada grupo com as suas

    preferncias e pontos prediletos, sem falar na porta das livrarias, sebos e jornais. Era a belle poque,

    poca frvola, descuidada, de alegria de viver, da confiana no presente e no futuro. A Repblica se

    consolidara com a estabilizao financeira e o esmagamento da reao monrquica e militar e da

    revolta sertaneja. O Rio tornava-se uma cidade moderna, graas a Pereira Passos, Osvaldo Cruz, Paulo

    de Frontin, urbanizando-se e assumindo-se pose de metrpole internacionalizada. Os escritores

    gozavam de largo prestgio, atraindo para si e a Literatura as atenes de uma sociedade que se

    requintava nas viagens Europa e numa vida de luxo, prazeres e cultivo do esprito nos sales, custa

    das liberalidades cafeeiras. Vivia-se a Literatura, no somente os escritores, mas tambm um pblico

    vido de conferncias, polmicas ou saraus literrios com declamao e exibio dos maiorais das

    Letras. Muitos dos participantes das rodas literrias faziam-se respeitar ou temer menos por alguma

    obra de valor do que pela agitao que produziam, capacidade de compor epigrama e inventar piadas

    ou de destruir reputaes. A maioria distinguia-se pelas vestimentas ou ademanes de elegncia,

    ditados pela moda de ento, o fraque e o chapu-coco, bigodeiras, o monculo, as polainas, o

    colarinho alto, a gravata de plastro. O que, porm, mais emprestava carter vida literria era a

    bomia imitao do montmartrismo. Vindo de todo o pas, pobres, os intelectuais levavam existncia

    excntrica, de costumes bizarros e chocantes, passando a maior parte do tempo em cafs, inclusive a

    escrevendo seus versos queridos ou tolerados pelos proprietrios, em vista da notoriedade que assim

    adquiriam os estabelecimentos.

    Exemplo tpico da vida bomia da primeira dcada do sculo o Navio da Lapa. Velho casaro na Lapa

    estava abandonado pois ameaava desabar a qualquer momento. Imaginaram, ento, vrios

    intelectuais bomios, tendo frente Martins Fontes, tom-lo de assalto, arrombando-lhe a porta e

    fazendo dele a sede do grupo. Como navio em mar alto, o assoalho balanava, o que lhe valeu o nome.

    Estabeleceu-se verdadeira organizao naval com oficiais de dia, ordens de comando, livro de bordo. O

    oficial a quem se aproximava, perguntava sempre Quem vem l?, a que o visitante devia responder

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  • com a senha, em geral o nome de um dos grandes poetas da devoo do grupo. No sendo conhecido,

    a entrada era barrada ao intruso, nem que fosse necessrio o recurso fora. Segundo o testemunho

    de Edmundo, durou mais de um ano o Navio da Lapa, com Martins Fontes no comando.

    Uma vez, no carnaval, saiu o grupo com o comandante, e em pleno mar, isto , na rua cheia de folies,

    encontrou outro navio apinhado de crioulos, e, ordem de abordagem lanada pelo chefe, o sururu se

    formou.

    Lus Edmundo era figura habitual das rodas intelectuais bomias. Bonito, elegantssimo, no seu porte

    de quase um metro e noventa, de pernas to compridas que antes pareciam andas, sempre trajado no

    rigor da moda, com um indefectvel monculo, era um dndi, exmio danarino, enamorado das

    mulheres, disputado por elas, com a alma e a Poesia aos seus ps, pondoas em polvorosa nas festas

    ou no footing das cinco horas na Avenida ou na porta da Colombo. Era um furor. E, de fato, foi

    derradeiro representante da gerao literria do Dandismo.

    Na Secretaria da Academia, figura atualmente a tela de Marques Jnior, que pertenceu a Edmundo, e

    que representa uma sesso da Sociedade Brasileira de Homens de Letras, por volta de 1914, na qual

    aparece ele em meio fina flor da intelectualidade da poca.

    A POESIA IMPRESSIONISTA DE EDMUNDO

    Desde os dezenove anos penetra Edmundo na vida literria. Sua vocao para as Letras vinha dos dez

    ou onze anos, quando, de colaborao com um garoto da vizinhana, planejou a representao de uma

    pea de teatro. Brigando com o companheiro, e como era dono do teatro, um canto de porta, resolveu

    montar a pea sozinho, um dramalho com muito choro e fugas de moas, e, como no havia pano de

    boca a descer, depois de morto ressuscitava para encerrar o espetculo. Comentava mais tarde, era a

    graa nica da pea.

    Em 1899, publicou em O Pas, com honras de primeira pgina, um soneto que compusera para um

    concurso mas que no enviara. Teve trs padrinhos literrios, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque e

    Artur Azevedo, e, com tais credenciais, foi incorporado ao grupo chefiado por Olavo Bilac. Lana, ento,

    seguidamente, os seus livros de versos, Nimbus, em 1899, Turbulos, em 1900, Turris Eburnea, em

    1902, para mais tarde, em 1907, reunir a produo potica no volume das Poesias (1896-1907).

    Torna-se extremamente popular e o seu soneto Olhos Tristes todo o mundo sabia de cor,

    declamando-o nos sales.

    Nascido intelectualmente sob o signo do Simbolismo, em cuja revoluo tomou parte, Edmundo no

    fugiu contudo presso parnasiana, exercida onipotentemente pelo seu dolo e chefe de grupo, Bilac.

    Poesia amorosa a sua, viu nela Jos Verssimo muito mais eloqncia, nfase, pompa, que sentimento

    no sentido potico desta palavra, embora reconhecendo-lhe uma bela pompa e concepes de uma

    beleza mais alta e de uma Arte mais nobre que as nossas vulgares cantigas de amor.

    Mas a verdadeira compreenso da posio que a poesia de Lus Edmundo ocupa em nossas Letras s

    mais tarde seria possvel. Era uma poesia que oscilava e hesitava entre os dois sis do Parnasianismo e

    do Simbolismo, como a querer fugir de ambos procura de uma zona de sombra e eclipse. Era uma

    poesia intermediria, que ocupou toda uma poca imprecisa de transio e sincretismo, a dos anos

    anteriores ao Modernismo, e que se traduziu pelo Impressionismo e pelo Penumbrismo, misturando

    elementos simbolistas e parnasianos, idias de um e forma de outro, mas, ao mesmo tempo, reagindo

    contra ambos e prenunciando uma nova era esttica. Hermes Fontes, Goulart de Andrade, Pereira da

    Silva, Olegrio Mariano, Augusto dos Anjos, Gilka Machado, Marcelo Gama, Lus Edmundo e vrios

    outros marcaram essa fase de indeciso indeterminada, sincretismo, uns pendendo mais para o

    Parnasianismo, outros para o Simbolismo, abrindo o caminho para os pioneiros do Modernismo, como

    Manuel Bandeira e Mrio de Andrade, ou como Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho, que superaram em

    si mesmos aquela fase, em demanda da nova esttica.

    Lus Edmundo foi um poeta de cunho impressionista, e a primeira definio coube a Alceu Amoroso

    Lima, em artigo de 1919. Nesse ponto, posso dar mais esse testemunho em homenagem sagaz viso

    crtica do grande mestre revelada em tantos problemas de nossa Literatura. Estava j delineado este

    trabalho, Lus Edmundo enquadrado, conforme a minha perspectiva no esquema impressionista,

    quando se me deparou um ensaio seu sobre o poeta, no qual registrava esse feito. Distingue ele a

    potica de Lus Edmundo como tecida de impresses pessoais mais que de sensaes, tudo flor da

    terra, esfumando-se em meias tintas, sob uma atmosfera enevoada, com manchas impressionistas em

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  • que o prprio sol se vela, esbatendo-se. uma Poesia elegante, suave, agradvel, traindo sensaes

    vagas, fugazes, incertas, superficiais, vises rpidas, sem anlise, instintivas. Seu painel leve, seu

    colorido esbatido, a tonalide suave e os sentimentos delicados.

    Fiz deste nosso amor um sonho perfumado

    To tranqilo, to bom, to casto e to profundo,

    Que cheguei a esquecer a maldade do mundo

    Sem ver que eras mulher e que eu estava ao teu lado!

    Assim, dos sentimentos, como das paisagens, essa poesia elegante fala sempre em tom leve, em

    impresses superficiais, revelando um temperamento artstico, inclinado menos para as glrias do

    oceano do que para a humildade do regato, como ele mesmo o disse num poema. um impressionista

    que fez Impressionismo sem o saber, e que teve de esperar pela evoluo das teorias crticas para ser

    devidamente compreendido e valorado.

    Nessa poesia de sensaes fugazes e superficiais do Impressionismo predominam o elemento de

    subjetividade e a experincia humana e sensorial, reproduzidos objetivamente e com toda a fidelidade,

    da a mistura de Parnasianismo e Simbolismo que h nela, diversamente da poesia puramente realista.

    O Impressionismo possui um elemento de subjetividade, que a prpria sensao, e outro de

    objetividade, a reproduo fiel desta sensao, atravs de um temperamento. A impresso viaja do

    objeto para o esprito do artista, e a instantaneamente captada e gravada. O estilo, no

    Impressionismo, como ensinaram os Irmos Goncourt, mestres tambm de Lus Edmundo, como ele

    mesmo confessou, a maneira de exprimir a prpria sensao em todos os detalhes. As palavras

    assumem valor pictrico, so palavras ricas de colorido, cromatismo e pitoresco. As frases pintam, pela

    prpria cadncia e estrutura, e pela abundncia de adjetivos, escassez de verbos e conjunes,

    repeties e insistncias a marcar os pontos salientes do quadro. Vejamos seu famoso poema dos

    Olhos Tristes:

    Olhos tristes, vs sois como dois sis num poente,

    Cansados de luzir, cansados de girar,

    Olhos de quem andou na vida alegremente

    Para depois sofrer, para depois chorar.

    Andam neles agora a vagar lentamente,

    Com as velas das naus sobre as guas do mar,

    Todas as iluses do nosso sonho ardente.

    Olhos tristes, vs sois dois monges a rezar.

    Ouo ao vos ver assim, to cheios de humildade,

    Marinheiros cantando a cano da saudade

    Num coro de tristeza e de infinitos ais.

    Olhos tristes eu sei vossa histria sombria

    E sei quanto chorais cheios de nostalgia,

    O sonho que passou e que no torna mais!

    O teor dessa poesia uma tristeza sem amargor, expresso de um estado de alma, traduzido graas a

    um ritmo lento e ondulante, que desliza de mansinho, com um contedo estranhamente evocativo e

    atravs de uma linguagem de suave musicalidade, mais de cochilo que de declamaes, feita de

    murmrio e matizes, prpria a pintar a sensao e a captar a fluidez e o movimento.

    O CRONISTA DO RIO DE JANEIRO

    Lus de Melo Pimenta da Costa, Lus Edmundo nas Letras, nasceu na cidade de So Sebastio do Rio de

    Janeiro, en 1878, e, sem embargo das diversas viagens que fez Europa como resultado de sua

    atividade de corretor de companhia francesas de navegao, profisso que exercia ao lado do

    Jornalismo, no Correio da Manh, no qual o acolheu desde o princpio Edmundo Bittencourt,

    permaneceu um carioca apaixonado de sua cidade. Sentindo que o estro potico se lhe esgotara,

    transferiu o lirismo e o amor ao ritmo para um prosador que se transformaria no grande cronista da

    cidade. O bomio e o poeta foram substitudos pelo homem de gabinete, numa evoluo atravs de

    quinze anos, que poder parecer contraditria, pois quem o visse na sua biblioteca da Tijuca, nos

    ltimos anos, jamais representaria naquele homem, quieto e pacfico biblifilo e pesquisador do

    passado, o poeta bomio de outrora, que se pintara a si mesmo, num poema, a correr atrs da

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  • Manolita apressada que indiferente e veloz nem v minha alma, abrasada que a segue pela calada.

    O gosto da Poesia-pintura deu-lhe a graa de contar. Alberto Rangel despertou-lhe a vocao da

    Histria, e, depois a leitura do seu livro sobre a famosa Domitila, escreveu as duas peas D. Joo VI e

    Marquesa de Santos. Tomou-se de paixo pelo sculo XVIII e imaginou um vasto painel do Rio de

    Janeiro no tempo dos Vice-Reis, ao que foi desaconselhado, em vista da dificuldade de documentao,

    escassa em relao quela poca. Foi a Portugal, remexeu os arquivos, bibliotecas e conventos de

    provncias, depois Espanha, logrando, no entanto, reunir um material farto, inclusive iconogrfico, e

    atirou-se ao trabalho.

    Vindo a lume, o livro obteve xito absoluto, de crtica, de pblico, de venda. Descobrira um filo

    fecundo, e no teve dvida em explor-lo. De 1932, data do primeiro, salta para 1942, quando lana a

    segunda obra da srie, A Corte de D. Joo no Rio de Janeiro. Da evocao social dos ltimos anos da

    era colonial, passa para a pintura da vida pitoresca e ntima da corte portuguesa no Brasil, soberanos e

    nobres, ministros e fmulos, crianas, adultos e velhos do tempo e da roda do rei fugitivo, retratados

    nos aspectos fsicos e morais e nos costumes, por um miniaturista exmio, a que no faltavam,

    outrossim, a verve e a ironia.

    Ainda aqui o Impressionismo de Lus Edmundo presta-se como uma luva aos seus objetivos e cria a

    sua maneira. Sua obra no de historiador estrito, mas de um cronista. Os dons de poeta mantm-

    se-lhe presentes na evocao do passado, e a imaginao no o abandona, antes lhe serve de

    instrumento na fixao e interpretao da realidade, esteja ela nos indivduos, cidades, ruas,

    sentimentos ou hbitos. No so obras graves e sisudas de Histria. So antes livros de memria,

    baseados no documento, mas libertando-se deles, como o pintor impressionista, pela imaginao e

    impresses pessoais. So livros de homem de letras, evocando um tempo antigo ou a poca

    contempornea sem o rigor do mtodo propriamente histrico. A Histria no Cincia, em sua pena,

    mas antes um meio para escrever uma obra artstica, de restaurao do passado. H muito episdio

    divertido, uns quantos tipos caricaturados, comentrios espirituosos s pencas, que fazem dos livros de

    Lus Edmundo nesse terreno obras de grande atrativo, maior do que de muito historiador no sentido

    rigoroso do termo. A liberdade que se dava no tratamento dos assuntos proporcionou-lhe um

    vontade, uma despreocupao de que lucrou a movimentao do livro, aproveitando-se disso, tambm,

    o seu esprito sarcstico e at irreverente. Dizia ele que costumava trabalhar com alegria, tal a paixo

    que adquiria pelo tema. E essa alegria sabia comunicar ao que escrevia, resultando livros divertidos,

    em que o passado como que se agita aos nossos olhos, com a franqueza e independncia de um

    esprito que, como todos os de sua gerao uma poca que proclamara a morte de Deus e se

    educara sob os ecos da apstrofe de Renan, abismo s o nico Deus , era forrado de um fino

    cepticismo, alm de isento de sectarismo na apreciao dos homens, costumes e acontecimentos.

    Porventura no com esse estofo que se tm escrito alguns grandes livros? E no ter sido essa a

    razo que levou Joo Ribeiro a considerar grande livro de verdadeira Histria nacional a sua crnica do

    tempo dos Vice-Reis?

    O xito dos primeiros estimulou-o a explorar ainda mais o gnero. No modelo de seus mestres, os

    Goncourt, do mestre dos seus mestres, Saint-Simon, lanou-se crnica de seu prprio passado e da

    vida de sua cidade no tempo em que a viveu. O Rio de Janeiro de Meu Tempo, continuado pelas

    Memrias, o registro despretensioso de episdios e costumes da cidade tal como ele a testemunhou,

    a que se vieram juntar outros volumes sobre o Rio de outrora, casos e impresses descritos sua

    maneira, em Recordaes do Rio Antigo e Olhando para Atrs.

    NACIONALISTA MANSO E CAMARADA

    Adquiriu Lus Edmundo reputao de extremado chauvinista, o que ele mesmo admitia, apenas

    acrescentando a qualificao de manso e camarada, que no se interessava por lisonjear as

    vaidades patriticas.

    Na ltima dcada do sculo passado, quando se processava sua fase mais aquisitiva de formao

    intelectual, assistiu a uma das mais fortes ondas de Nacionalismo antiluso em que tem sido frtil a

    nossa Histria. Por culpa de nossos antigos colonizadores, inconformados com a perda da presa frtil,

    houve sempre movimento desse tipo, desde a Independncia, em reao s tentativas de subjugar-nos

    o esprito de autonomia. Depois da Repblica, sofremos uma dessas fases de exacerbao da

    intromisso portuguesa em nossa vida interna. No terreno intelectual, houve uma revanche da

    mentalidade colonialista, procurando orientar-nos pensamentos, interesses e conduta e dirigir-nos os

    passos, no falso pressuposto que no tnhamos capacidade para agir por conta prpria e que ainda

    constituamos uma unidade cultural, falcia que leva muitos publicistas de alm-mar a acreditar que o

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  • que serve para um se deve estender ao outro e a falar na primeira pessoa do plural quando se referem

    a problemas que julgam comuns.

    Assim ocorreu no decnio final do sculo XIX, como est testemunhado por Araripe Jnior, e como se

    pode julgar pelos trabalhos de Raul Pompia, Rodrigo Octavio e do prprio Araripe, entre muitos. Os

    principais rgos da imprensa eram ocupados maciamente por porta-vozes do antigo imperialismo,

    insuflando no pblico o veneno do pessimismo e derrotismo contra o Brasil. Nosso Pas era considerado

    incapaz de construir uma civilizao, porque habitado por uma raa inferior, anmica, raqutica, sem

    vontade e com nervos flor da pele, deprimida, arruinada pela doena, mestiagem e ignorncia.

    Ainda naquele tempo, a fisionomia mental brasileira escapava aos portugueses, que no tomavam a

    srio o Brasil. Para a inteligncia lusa o Brasil no contava, nem no aspecto material, nem no seu

    desenvolvimento intelectual, a ponto de um escritor de alm-mar, Bruno, um dos primeiros a se voltar

    com simpatia para nossa cultura, declarar: A mais completa ignorncia das coisas do Brasil, das suas

    aptides, dos seus homens polticos, de sua Literatura, dava cabimento a extravagncias de tal ordem

    que s podiam ser respondidas com apodos e represlias truculentas.

    Com os maiores espritos de ento, Lus Edmundo formou o seu nacionalismo, que cultivou a vida toda.

    Ao contrrio dos pessimistas estrangeiros, recebeu ele de seus compatriotas uma mensagem de f no

    Pas, o qual demonstraria, em meio sculo, extraordinria capacidade de realizao e desenvolvimento,

    e no seu povo, que provaria a aptido para todos os progressos, com qualidades diferenciais mui

    dignas de cultivo e ateno, graas s quais daramos e estamos fornecendo ao mundo uma

    contribuio original.

    Nossa Literatura um exemplo dessa capacidade criadora. E Edmundo sentiu-lhe bem precocemente o

    carter autnomo, verificao idntica que levou Domcio da Gama, aos dezoito anos, a fundar um

    grmio de jovens para afirmar a existncia de uma Literatura nacional independente. O conhecimento

    do nosso folclore mostrava-lhes a novidade ou as qualidades novas da Literatura nacional desde o

    incio nos sculos XVII, e quanto ao pensamento, temtica, aos sentimentos, uma Literatura nossa,

    extremada, independente da portuguesa, no dizer de Clvis Bevilqua.

    Mas foi a diferenciao lingstica a que mais impressionou Edmundo, de modo a apaixon-lo em todas

    as oportunidades em que veio ribalta a discusso do problema, sempre o encontrando na trincheira

    de defesa da maneira brasileira de escrever, embora, como assinalou Viriato Correia, sua pena

    mergulhasse com mais freqncia nas tintas lusitanas. Ele mesmo confessou ao seu amigo as

    preferncias pela forma nacional:

    Ah! como eu quisera escrever brasileiro como vocs escrevem!

    Quisera, mas no posso. Culpa de meu pai, que assim me educou. Meu filho, como os de sua gerao,

    no ser assim. Minha infncia e minha adolescncia foram invadidas, encravilhadas pelos clssicos

    lusos. Sa da forma como sou. Alm disso preciso contar com o ambiente portugus em que sempre

    vivi, parentes e amigos portugueses. Viagens a Portugal. Muitas viagens! s vezes, confisso sincera,

    tento escrever como vocs, brasileiramente, mas nada sai. No mudo. como se quisesse mudar a cor

    dos meus olhos!

    Era o reconhecimento do fenmeno da diferenciao lingustica, paralelo ao da autonomia literria e ao

    da formao histrica especificamente nossa, que fez dele um historiador brasileiro do Brasil, no dizer

    de Viriato Correia.

    UM BRASIL BRASILEIRO

    Esse Brasil brasileiro coube Repblica dar-lhe a ltima demo, para fazer com que em nosso tempo o

    Pas atinja a sua fase de maturidade e maioridade de civilizao. As foras de seu gnio manifestam-se

    por toda a sorte de maneiras originais, provando eloqentemente a grandeza do povo, desmentindo os

    conceitos pessimistas, e se a Nao se contorce, ainda, em dificuldades, estas refletem apenas as

    dores masculinas do desenvolvimento de sua forte personalidade.

    S h que lamentar no atual estgio, a muitos olhos parecendo como crtico, certa defasagem entre o

    progresso material e intelectual e o das instituies polticas e administrativas. Enquanto o povo

    oferece ao mundo demonstraes da mais alta afirmao e eficincia em vrios setores, mostrando-se

    cada vez mais politizado e consciente de seus interesses e dos mtodos democrticos de resolv-los,

    levantando quase todos os campeonatos mundiais no esporte e conquistando as maiores lureas

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    9 de 16 03/09/2014 16:31

  • artsticas; e enquanto a cultura e as Letras do prova de extrema vitalidade, a cpula poltica e

    administrativa, com raras excees, revela-se completamente fracassada, inteiramente fora do tempo

    e necessidades do Pas, incompetente e desaparelhada para dirigi-lo, dando a impresso de que

    representa o fim de uma classe dirigente que no sente a terra fugir-lhe aos ps. O Brasil vive um

    momento revolucionrio, e s no o v essa elite, insensvel, inatenta, indiferente a que o processo se

    concretize sua revelia. No h qualquer sombra de xenofobia em reconhecer a necessidade de

    sermos brasileiros, como o fez Lus Edmundo.

    Defronta-nos atualmente apenas um dilema: ser brasileiros ou antibrasileiros. A prpria oposio

    direita-esquerda, que tanto devastou as atuais geraes, est superada. -nos de todo indiferente a

    ambio das duas naes, que se digladiam pelo domnio do mundo, conflito idntico a tantos outros

    do passado na poltica das grandes potncias mundiais.

    O que nos interessa o Brasil, dar soluo brasileira aos nossos problemas, eqidistantes de Cuba e

    da Argentina, pensar o Brasil, afirm-lo, consolidar-lhe as foras vitais, harmonizar-lhe a vida

    interior, favorecer uma existncia feliz e confortvel, livre de sofrimentos e angstias, para o povo. S

    um fanatismo deve mover-nos, aquele fanatismo da esperana de que falou Mirabeau.

    O AMOR DAS DUAS CIDADES

    O artista Lus Edmundo, o poeta da adolescncia, transferiu a sensibilidade esttica para o amor da

    cidade natal, e tornou-se o seu cronista, na obra da idade madura, estudando- lhe a engrenagem pea

    por pea, seus rgos, funes, vida passada.

    O adorador do Rio de Janeiro sabia a razo de seu bem-querer. Ningum mais carioca do que ele, e

    nenhum conhecia melhor os segredos desta metrpole admirvel, nica no Brasil isenta de esprito

    provinciano, sempre pronta a reagir pelo humorismo e pela stira contra os ridculos humanos e as

    trapaarias de certos polticos, rica de entusiasmo generoso e prodigalidade justiceira, alegre e cordial,

    democratizante na sua tendncia a favorecer a igualdade dos benefcios, excitante pela sua vida

    nervosa, mas tranqila e fcil no modo de sua gente flanar pelos bosques e praias, cidade feminina, de

    graa sedutora e temvel, desinteressada e ardente, capitosa e aconchegada, que se faz amar como

    uma mulher. Centro nervoso e cultural do pas, jardim de aclimatao, pela sua vocao assimiladora

    ela atua como rgo de unificao intelectual, verdadeira bomba de suco atraindo de todos os

    escaninhos da Nao as foras vivas e as seivas regionais com as quais plasma essa conscincia e essa

    fisionomia intelectual una que o nosso passado oferece. No so as histrias literrias particulares que

    representam o Brasil, mas o amlgama de todas realizado nesse extraordinrio laboratrio humano e

    social que o Rio de Janeiro no Brasil. E por no terem passado pela etapa carioca, muitos polticos

    provincianos jamais lograram mentalidade federal ou nacional, alguns se revelando afinal prejudiciais

    ao Pas, pela ausncia desse carter universalizante da educao poltica que se adquire nas praas

    pblicas e nas redaes de jornais da velha capital. Jamais ela perder essa funo brasileira de capital

    de fato, em que pese a ter deixado de ser capital de direito.

    E lamentvel que um pas com tantos problemas de maior premncia viesse a esbulhar de seu antigo

    papel uma cidade que tem todas as qualidades materiais e espirituais para ser a capital, e que ainda

    acabou de dar prova dessa superioridade entregando o seu posto, entre folgaz e chocarreira, sem

    reagir, como a ter certeza de que o futuro lhe daria razo com o fracasso da aventura nababesca no

    planalto, responsvel pelo maior entrave na to complicada administrao nacional.

    Tinha, pois, sobrados motivos Edmundo, esse carioca flneur, de amar a sua cidade. Seus livros

    trescalam esse aroma de amor. E ele ainda tinha a seu favor poder venerar somente uma diva, ao

    contrrio de muitos de ns outros que aqui vivemos, oriundos de outras cidades.

    De mim, sou um sofredor, com o corao dilacerado entre dois amores, o da cidade que me viu nascer,

    que me embalou a infncia, e a outra que escolhi para a idade madura e consciente. Uma depositou-se

    na memria e no inconsciente com as emoes infantis, a outra conquistou-me pela inteligncia e

    reflexo.

    Venho de longe, senhores acadmicos, venho da Bahia, a terra dadivosa e boa que tanto bem tem feito

    ao Brasil. L formei o esprito e o carter, l reuni a seiva que venho gastando pelos caminhos. Como

    me faz falta a minha

    Bahia! Tenho dela uma saudade indizvel. Guardo na retentiva a imagem daquela cidade super-realista,

    com as suas ladeirinhas grimpando pelos morros, o encanto de seus telhados amontoados, as ruas

    esconsas de cheiro colonial, as igrejas majestosas, os conventos montados nas encostas, a sua colina

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    10 de 16 03/09/2014 16:31

  • sagrada do Senhor do Bonfim, as praias de sargao e areia branca, as restingas, os mangais e as ilhas,

    as suas rvores Oh! mangueiras e cajazeiras de minha terra! , as suas frutas capitosas, as suas

    comidas e doces, os seus peixes e mariscos, as tradies populares e festas fericas de arraial, a

    sinfonia multicolorida de seus poentes e o infinito prateado de seus luares, a msica fantstica de suas

    noites misteriosas, a alma encantadora e mgica de sua gente, alma aristocrtica acalentada ao som

    misterioso de seu mar a bater caprichoso beira das verdes praias, o palcio de cristal das

    mes-dgua!

    Como me foi penoso arrancar as razes! Mas como me falta coragem para regressar! Eis o mal de todos

    os desterrados. Vivem a sonhar com uma volta que impossvel. You cant go home-again! a sntese

    perfeita desse estado de esprito no ttulo do romance de Thomas Wolfe. Ningum consegue voltar.

    Com todos que o tentam repete-se o que ocorreu com a personagem daquele conto de Saroyan.

    Partido de sua cidadezinha, andou por mil terras e depois de muitos anos cedeu tentao do retorno.

    Saltou do trem, dirigiu-se velha casinha, penetrou o porto e espiou pela janela. Era vspera de

    Natal, a neve caa, e, dentro, em torno mesa no aconchego do lar, os pais e irmos comemoravam a

    data de acordo com a tradio. O corao se lhe confrangeu e, no suportando a cena, o homem saiu

    de mansinho e se foi na escurido.

    Ento se assim, por que tantos emigram? A essa pergunta impertinente, respondia o nosso Afrnio

    Peixoto, o olhar faiscante de malcia: Samos para vencer. L, no podemos, pois todos somos

    baianos!

    Se alguma vantagem levamos a que explica a energia e o xito de tantos emigrados: afogam a

    saudade no trabalho. E, posto que jamais voltemos, resta-nos ao menos a felicidade de falar daquilo

    que amamos.

    O MISTRIO ACADMICO

    Senhores acadmicos

    Ao me escolherdes para a vossa ilustre Companhia, elegestes a prpria controvrsia. Naturalmente,

    nos vossos ouvidos repercutiram os seus ecos. J tivestes disso a evidncia aqui mesmo. Mas ficastes

    indiferentes. O mistrio

    acadmico impenetrvel. E esse mistrio que faz as academias agirem segundo seu prprio

    interesse coletivo e no conforme a vontade e prevenes de qualquer de seus membros. Ningum

    dono de uma instituio. Cada um de ns, ao ser admitido, no perde a liberdade, pois a Academia no

    coroa as opinies mas o talento, a capacidade, as realizaes. Cada qual entra como , e assim ela o

    quer, sem abrir mo dos princpios e traos de carter e conduta, que o tornaram conhecido. O que ela

    exige precisamente a fidelidade a si mesmo, jamais pedindo o despojamento dos atributos

    especficos. Se me preferistes,senhores acadmicos, foi porque me quisestes como sou, com a

    personalidade intelectual que formei e a modesta obra que venho construindo. Nada vos trago de novo,

    mas somente a reafirmao de tudo o que fiz e disse.

    Acedo, portanto, a esta colina de glria como culminao de uma longa carreira, no curso da qual

    no foram poucas as lutas, mas cuja unidade, coerncia e culto da dignidade jamais sofreram mossa.

    Premiastes o trabalhador modesto e paciente que no fez outra coisa seno pr-se a servio daquela

    fora misteriosa que habita a Literatura, qual se referiu Cocteau.

    Disse algum que, ao ler os grandes livros de Literatura, tornamo-nos mil homens e, no entanto,

    permanecemos ns prprios, enxergamos com mil olhos mas quem v ainda somos ns,

    transcendemo-nos para ser cada vez mais ns mesmos.

    Meu canteiro tem sido lavrado com o carinho que merecem as plantas delicadas, cuidado de sol a sol,

    na labuta honesta e a duras penas.

    Temperamento de luta, habituado a ser considerado direitista pelos esquerdistas, e esquerdista pelos

    direitistas, no sou de amaciamento e contemporizao, mas de tomada de posio, de ntidas opes

    doutrinrias, por isso despertando sempre divises, reaes e adversrios.

    Minha paixo o assalto praa. Capitulada, h que buscar outro motivo para empenhar a

    pugnacidade ou para a provocao ao debate intelectual permanente e inconformado, renovador e

    revisionista. Esprito afirmativo, acredito em minhas idias, sei batalhar por elas e defender o que fao.

    Acostumei-me a reunir do outro lado da barricada os adversrios, a fim de derrot-los a todos juntos,

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  • recuando sem amargor, nas batalhas perdidas, para no final vencer a guerra.

    Atinjo, assim, esse momento com a alegria do soldado que chega ao topo da cumeada com a serena

    postura de quem tem saldadas as dvidas para com Deus e o prximo.

    CASO DE GERAO ESPONTNEA

    Nas Letras, sou um caso de gerao espontnea, e minha carreira resultou de um deliberado e tenaz

    esforo de vontade, abandonando a profisso mdica, para forar caminho com inflexvel continuidade.

    No sofri as habituais

    influncias de ambiente ou crculos literrios para aderir Literatura. Nunca fui de rodas, antes sempre

    um isolado, tendo-me, no incio, batido dentro de solido escura, para abrir janelas sobre a vida

    intelectual.

    Certa feita, h muitos anos, numa classe elementar, o mestre, um bom irmo marista, apontou para

    um menino, que se escondia sob as asas de sua timidez, e mandou que lesse um trecho da antologia.

    Ia a leitura sem tropeos, quando o pequeno, muito concho, largou uma dessas silabadas memorveis.

    Uma gargalhada estrondosa abalou o prdio do colgio, e ainda hoje eu a sinto fazendo tremer-me a

    estrutura. Mas a gargalhada redobraria, se o mestre benevolente tentasse bancar a pitonisa e

    insinuasse que o desastrado ocuparia um dia um lugar ao vosso lado. Naquele instante, em verdade

    vos digo, nada em mim poderia fazer crer ou prenunciar o homem de letras.

    At onde pode ir a minha memria to longe que me recorde, o primeiro frmito que me perpassou a

    sensibilidade provocada pela emoo literria, posterior, em classe mais avanada, diante daquele

    trecho do Quincas Borba a propsito das travessuras do cozinho. Relembros a pgina:

    Quincas Borba vai atrs dele pelo jardim fora, contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saboreia a

    liberdade, mas no perde o amo de vista. Aqui fareja, ali pra a coar uma orelha, acol cata uma

    pulga na barriga, mas de um salto galga o espao e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os

    calcanhares do senhor. Parece-lhe que Rubio no pensa em outra coisa, que anda agora de um lado

    para outro unicamente para faz-lo andar tambm, e recuperar o tempo em que esteve retido. Quando

    Rubio estaca, ele olha para cima, espera; naturalmente, cuida dele; algum projeto, sarem juntos,

    ou coisa assim agradvel. No lhe lembra nunca a possibilidade de um pontap ou de um tabefe. Tem

    o sentimento da confiana, e muito curta as memrias das pancadas. Ao contrrio, os afagos ficam-lhe

    impresos e fixos, por mais distrados que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o .

    possvel que essa impresso remota e primitiva seja responsvel pelo humilde mas entusiasta

    machadiano em que vim a tornar-me.

    Outros fatores devero ter agido em mim como germe do homem de letras que hoje recebeis.

    O lar feliz onde nasci tinha por chefe um homem de sensibilidade artstica e gosto refinado, arquiteto e

    construtor, cuja mentalidade tcnica no era infensa valorizar os grandes das Letras e cresci

    habituado s presses de admirao pelos nossos Castro Alves, Rui Barbosa, Euclides da Cunha,

    Gonalves Dias. Um antepassado, meu bisav paterno, Antnio Joaquim Rodrigues da Costa, foi poeta

    da linhagem dos cstridas, e sempre recebeu a venerao da famlia, que lhe editou a obra. Meu

    prprio prenome um reflexo do clima de sucesso que cercou o aparecimento de A Esfinge, de Afrnio

    Peixoto. Parece que os fados teciam misteriosamente e escondidos a rede que me laaria para as

    Letras, conspirao essa que teve a complacncia de meu pai quando no adolescente despontou, em

    detrimento da formao mdica iniciada, o vcio impune da leitura literria, nas longas horas de intensa

    aprendizagem, j ento definidos o gosto e o pendor para a Literatura; e a mesma complacncia

    encontrei no corao da amorosa companheira que Deus me deu, embora, estou certo que, no ntimo,

    secretamente inconformada com a perda do grande mdico de seus sonhos. Assim como Rilke

    desejava que o deixassem morrer a prpria morte, faz-se mister muita compreenso para um

    caminhar a sua prpria vida.

    RELAES NA VIDA LITERRIA

    Nem sempre foram amenas as minhas relaes com os grupos literrios, desconfiados com o solitrio

    que se recusava a submeter-se ao ritual de admisso nas confrarias e igrejinhas e reagia contra o

    predomnio, habitual entre ns, da vida literria sobre a Literatura. Desde o primeiro instante de meu

    regresso ao Brasil, aps cinco anos de estudos e trabalhos nos Estados Unidos, carregado como abelha

    de volta do bosque uma temporada de estudos no estrangeiro vale-nos para o esprito um grande

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  • salto no tempo no foi animadora a recepo que tive. Tal como um Edmundo Dants, minha volta

    assustava certas ms conscincias e velhas rixas reacenderam-se, o meio literrio prevenido por

    comcios porta das livrarias e nos seres, onde a ciznia substitua o estudo. A origem era uma s e

    eu senti na pele o visgo da baba de Caim a envenenar o ambiente, na inteno de barrar-me os

    passos. Eram perfdias, intrigas, presses, boicotes, meus trabalhos submetidos a um processo de

    contabilidade, anotando-se no dever e haver os elogios e referncias, at mesmo subestimando-me a

    capacidade de desforrar e ser inimigo.

    Meu mestre Machado de Assis, contudo, ensinara-me a lidar com os rubies da fauna literria. A

    parania os faz crescerem aos prprios olhos, como o sapo da Histria, e desafiar a lua. Idlatras de si

    mesmos, inertes de carter, pem na cabea coroas imaginveis, regem imprios s existentes no seu

    delrio, enxergam fmulos nas ratazanas que lhes passam aos calcanhares; fazem tudo para chamar a

    ateno sobre si, como aquele sujeito que acompanha enterros para ver o nome no jornal; multiplicam

    a prpria inpia fazendo-se passar por gnios; incapazes de saber a prpria medida e limitaes,

    reduzem por maus tratos a famlia a escravos da sua falsa grandeza, produto de uma imaginao

    esquizofrnica; do-se em espetculo tanto mais confrangedor quanto mais sabemos que esses

    megalmanos so menos perigosos do que desgraados e torturados como um personagem de squilo,

    infelicitando a si e aos seus pelo veneno que segregam, desastrados e incapazes, estragando tantas

    oportunidades que a sabujice lhes propicia; cemitrios de amizades, traem amigos e benfeitores no

    pressuposto de que so credores eternos da humanidade qual, muito embora, nada oferecem;

    frustrados, truncadas as suas aspiraes por falta de capacidade interior de realizao, entregam a

    alma s devastaes da inveja e do despeito. que o mal s o mal pode gerar.

    Tambm eu no fui peco. Enfrentei tudo. Da seteira das Correntes Cruzadas no poupei flechadas.

    Combativo, sabendo cultivar as amizades mas tambm as inimizades, no dei trguas. Em vez de

    cortejar os papas da vida literria e os donos das cadeias de felicidade dos suplementos, atirei-me,

    qual guerreiro audaz, a desmantel-las, numa campanha de desmoralizao das capelinhas e dos vcios

    em que se cevavam as mediocridades engalanadas, os moedeiros falsos, os mistificadores. A Repblica

    das Letras uma comdia representada num beco sujo. Dela tiram partido os inautnticos que no

    servem s Letras porque baldos de legtima vocao e amor pela Literatura antes fazendo dela um

    instrumento de autopromoo e carreirismo desenfreado. A prova que, desmascarados e fracassados,

    muitos vo buscar compensao na Poltica, Administrao, Diplomacia, passeando nelas a sua

    falsidade, o seu grosseiro ridculo de arrivistas desgarrados.

    Minha coluna no jornal tornou-se a pedra no sapato. Vrias vezes foi ameaada de arrolhamento

    graas peonha da rivalidade mesquinha e aos esbirros a seu prstimo, atirando contra ela polmicas

    no prprio suplemento, at por fim conseguirem suprimi-la. O meu nome era proibido nas colunas

    literrias, dios e desavenas desfaziam-se no interesse comum de combaterme e escribas

    mercenrios mobilizavam-se em funo do sistema de ataque montado contra mim. Embalde, porm,

    se espezinha algum contra quem nada se pode alegar alm de razes infantis e inconfessveis.

    No adiantaram os empecilhos contra o trabalho e o estudo. Continuei combatendo a moeda m dos

    falsrios, falando de nomes e coisas que os pseudo-sbios nunca ouviram. Felizmente encontrei

    sempre a compreenso e apoio de amigos que confiavam em mim, um Otvio Mangabeira, um

    Clemente Mariani, um Simes Filho, um Levi Carneiro, um Clementino Fraga, um Leondio Ribeiro, um

    Pricles Madureira de Pinho, um Fernando Tude, um Abgar Renault, um Rodrigo Octavio Filho, um

    Ribeiro Couto, um Cassiano Ricardo, um Gustavo Barroso, um Nilo Bruzzi, um Ivan Lins, como j

    encontrara antes, desde o tempo da Bahia, um Afrnio Peixoto, um Ansio Teixeira, um Eugnio

    Gomes, um Euvaldo Diniz, um Aristides Novis, alguns grandes homens que so glria desta Casa e do

    Brasil. Dois desses amigos esto associados mui intimamente a esta solenidade: Levi Carneiro, com a

    fidalguia de sua palavra; Clementino Fraga, pela segunda vez apadrinhando-me na vida, com a mesma

    emoo que teria se no meu lugar estivesse um de seus gloriosos filhos. No mais vejo entre vs,

    todavia, o meu querido Otvio Mangabeira, o grande estadista, cuja ausncia a nota triste na festa

    de meu corao.

    O que consegui realizar vejo agora aprovado pelo vosso acolhimento, sem que recorresse a aparelhos

    de presso, polticos ou jornalsticos, de que no dispunha, mas impondo-me exclusivamente como

    escritor, depois de conquistar a simpatia dos independentes e dos jovens.

    A BANDEIRA DA RENOVAO CRTICA

    A bandeira que empunho neste momento solene de regozijo insopitado a da crtica literria renovada,

    a nova crtica, com que identifiquei meu trabalho intelectual, e que doravante ter por si o prestgio da

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  • Casa de Machado de Assis.

    Poder parecer uma ironia do destino que me haja sido reservada nesta Casa, ao adversrio da crtica

    impressionista, uma Cadeira evoluda sob o signo do impressionismo literrio.

    Quando viajei da Bahia para os Estados Unidos, levava comigo todas as inquietaes e anseios de

    renovao da metodologia crtica. Vivera at ento debatendo-me comigo mesmo em busca de

    caminho. Sentia estarem esgotados e superados os velhos processos em que me educara pelo exemplo

    da maioria dos meus maiores. Na minha condenao, inclua-me a mim mesmo, e se h algo a meu

    favor foi ter tido a coragem de romper com o passado. Depois, muitos conformistas reagiram reforma

    que advoguei, mas a culpa lhes coube pela incapacidade de renovarem-se e no surpreende que

    tenham tido que calar-se em virtude da rarefao produzida ao seu derredor pela sua inatualidade.

    Em verdade, represento um esforo de mudana de princpios e mtodos, quanto ao processo e

    funo da crtica em nossos tempos. A Histria da crtica rica de meditaes a respeito de sua prpria

    funo, o que constitui motivo a dignific-la. Assim, tem sido vista ora como instrumento tico,

    religioso, poltico, ora como investigadora das origens da Literatura no complexo geogrfico, biolgico,

    social e cultural, ora como expresso das aventuras da alma atravs das obras-primas.

    Evoluindo de sua fase primitiva e emprica, em que atuou como ancilar de outras cincias,

    encaminha-se ela, em nossos tempos, para a plena maturidade de disciplina autnoma, com mtodos e

    princpios especficos.

    Tendo a Literatura uma misso reconhecida na sociedade, a captao da voz imortal do homem em

    busca de explicao do prprio mistrio cabe Crtica exercer o magistrio da Literatura, regulando a

    criao e disciplinando- a luz das leis do fenmeno artstico.

    A crtica no , em conseqncia, um gnero literrio de imaginao, como o Romance, a Poesia, o

    Drama, a Crnica. uma disciplina racional prxima Filosofia, e exercendo-se conforme as regras do

    raciocnio lgicoformal. Esse aspecto aproxima-a tambm da Cincia. No uma Cincia, no sentido

    escrito, porque no seu processo colaboram foras intuitivas, impresses sensveis, elementos de gosto,

    acumulado no inconsciente, recebidos pela tradio ou pela educao. Tampouco uma Cincia no

    sentido em que usaria mtodos e conceitos provenientes de outras cincias, como foi o erro dos

    Hennequin, Brunetire, Taine e tantos deterministas biolgicos e sociolgicos do sculo XIX.

    Mas no se lhe podero negar foros de Cincia e h cincias do esprito ao lado de cincias da

    Natureza se quisermos que ela ganhe em rigorismo metodolgico e conceitual, caracterstico da

    atitude cientfica, alm da independncia de meios e fins. E s o lograremos, se lhe aplicarmos o

    esprito cientfico, se a forrarmos de uma atitude cientfica. Os que se recusam a admiti-lo no passam

    de cpticos quanto sua possibilidade de aprofundamento tcnico, e preferem mant-la e manter-se

    na epiderme da tarefa, identificando-a com o vago e superficial jornalismo crtico e com a mera funo

    de noticiar e comentar as obras literrias na base do palpite e do esprito opinitico.

    A Crtica no apenas isso. Vejo-a como algo acima do simples diletantismo, do noticirio ou do

    autobiografismo impressionista.

    A POSIO DO IMPRESSIONISMO CRTICO

    No verdade que advogue a eliminao do Impressionismo e mais de uma feita j procurei esclarecer

    o equvoco. No h crtica sem impresso ou resposta intuitiva, imediata, despertada no esprito pela

    obra de arte. Recuso-me, porm, a aceitar que se reduza o ato crtico a essa operao primria,

    transformando a impresso em sistema e o seu registro em mtodo. A Crtica um conjunto de

    atividades para a aferio do valor esttico e sua manobra valorativa parte da impresso, invade a

    rea da reflexo, anlise, explicao e afinal emite um juzo que deve ser, no caso, no tico, mas

    esttico, de valor. , assim, um ato complexo, em trs etapas a da impresso, a da reflexo, a do

    julgamento sem uma das quais no h verdadeira crtica. E, para realizar-se, ela se vale de uma

    viso armada, como dizia Coleridge, uma viso armada de todo um instrumental prprio de anlise do

    tecido literrio especfico, alm do subsdio fornecido pela Lingstica, Filologia, Estilstica, Retrica,

    tcnicas de explicao de textos e anlise estrutural, e dos que oferecem cincias correlatas, como a

    Psicologia, a Etnologia, a Antropologia. , portanto, uma disciplina integral de explicao do fenmeno

    literrio, na sua natureza esttica e no intrnseco de sua estrutura. atividade egocntrica e especfica,

    usando nesse objetivo tudo o que tiver mo.

    Minha proposta visa a reduzir o Impressionismo crtico s suas propores verdadeiras. Ele tem dado

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  • lugar, no passado, a elevadas manifestaes: um Walter Pater, uma Virginia Woolf, um Anatole France.

    Mas erro pretender inculcar como Impressionismo crtico o que no passa de simples comentrio

    jornalstico ou noticirio de livros. Este traduz impresses sobre enquanto o primeiro uma

    impresso de.

    Por outro lado, o fato de reagir contra os malefcios do Impressionismo na crtica no implica em

    condenar o Impressionismo literrio. Ainda aqui minha atitude crtica. O Impressionismo literrio

    uma alta escola que merece a admirao, pelo que produziu, inclusive entre ns. A crtica genuna sabe

    reconhecer e apreciar uma expresso artstica do passado, deixando-a, entretanto, no seu tempo, pois

    a miso dos estilos no perene, desde que eles se identificam com o todo espiritual de uma poca.

    Se no perteno famlia espiritual de meus antecessores, sou capaz de reuni-los sob a minha

    admirao e compreender e valorizar o estilo esttico em que se expressaram, procurando enxergar a

    beleza da Arte de entretons e nuances que produziram. Ao mesmo tempo, todavia, proclamo a

    necessidade, para a atualidade, de libertarmo-nos das implicaes da crtica impressionista em favor

    de uma crtica tcnica, objetiva, baseada em critrios e padres estticos e mtodos rigorosos de

    investigao e valorao, de anlise tanto verbal quanto estrutural, e inspirada no pressuposto

    conceitual do primado do texto como seu ponto de partida. H que distinguir entre Impressionismo

    como elaborao estilstica e como mtodo crtico de aferio de valores. O que me recuso a aceitar a

    transposio, para a anlie do fenmeno literrio, da palheta impressionista de Toulouse Lautrec. A

    Nova Crtica, como deve ser entendida, que afinal ser a verdadeira Crtica. E sob a sua gide,

    eliminar-se-o automaticamente os espritos superficiais, os mistificados, os preguiosos mentais que

    costumam no ler as obras para critic-las e escrevem sob ditado ou base de conversas, crticas

    portanto de orelha, com teses sopradas por outros acerca de autores que nunca leram, analfabetos e

    jejunos, que no tm lan interior para estudar, adquirir cultura e preparo especializado.

    O IMPORTANTE FAZER BEM

    O estgio presente da cultura universal, nessa era tecnolgica, exige que melhoremos a relao entre o

    cientfico e o literrio, lanando uma ponte entre as culturas cientfica e humanstica.

    De conformidade com o esprito cientfico, no basta fazer, como j foi proclamado, mas fazer bem.

    Fazer no , de nenhum modo, o essencial.

    Fazer somente uma operao animal, e a ela se reduzem os homens impotentes de criar,

    angustiados nos seus ressentimentos, incapacitados de fazer bem porque no sabem o que fazer e

    como se deve fazer, empricos movidos apenas pelos instintos e reflexos vegetativos, inaptos a

    aprender o que se faz nos centros de cultura por preguia mental e ignorncia lingstica, e ficam a

    falar sozinhos, dialogando monocordicamente com a prpria e pequenina sombra e assinando o que

    outros escrevem, porque so privados da alegria de produzir, talento e capacidade de realizar-se em

    obras.

    O importante no fazer, mas fazer bem, e, para tanto, mister pureza de alma, humildade de

    esprito e propsito, e sade mental, para, em primeiro lugar, aprender como se deve fazer. Do

    contrrio, a mistificao, a falta de seriedade, a inveja e o ressentimento por que s a alegria de criar

    compatvel com a criao alheia.

    As geraes que surgem nesse Brasil novo no mais toleram o embuste intelectual. Exigem

    autencidade de comportamento. O Brasil est a para que o pensemos brasileiramente. Cabe Crtica

    Literria uma funo, que, sobre ser literria, isto , exercer-se no contexto literrio, no menos

    brasileira, porquanto deve orientar-se para o Brasil, concorrendo para consolidar a sua Cultura. Mesmo

    com o melhor dos mtodos, impe-se que ela se adapte circunstncia social e nacional.

    H, pois, uma funo especial da Crtica em nosso momento histrico. Em primeiro lugar aperfeioar-se

    quanto a mtodo e princpios, o que proporcionar o estudo superior de Letras agora possvel com a

    formao universitria. Em seguida, assumir o seu papel de educadora do pblico e mediadora entre

    ele e a criao, no sentido de fazer da Literatura uma real voz da tribo, traduzindolhe os sentimentos

    coletivos, e, de torna viagem, atuando sobre a alma popular. O crtico no um artista, mas um

    pensador, cujo dever interpretar a obra de arte literria, elucidando-a aos olhos do pblico,

    melhorando o gosto coletivo, a fim de torn-lo mais exigente e assim fazer subir o nvel da

    criatividade. Desta maneira, a Crtica uma atividade vlida e seminal, uma disciplina do esprito,

    detentora de um agudo senso da atualidade e apta a enxergar a Literatura no centro da vida cultural,

    que a importante posio que usufrui em nosso Pas.

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  • * * *

    Senhores acadmicos,

    No creio que a Academia seja a instituio reacionria e abstrata que aparece aos olhos de muitos.

    Tudo depende dos homens que a compem quererem firmemente participar dos dramas e do bulcio da

    vida nacional, tornando-se caroveis mentalidade nova que cresce cada vez mais no combate

    alienao cultural. No mais estamos no tempo em que os intelectuais se exilavam do Brasil e viviam

    voltados para a Europa.

    No tenhais receio, senhores acadmicos, a vossa regra da boa convivncia saberei acatar. Fortiter in

    re, suaviter in modo. A educao intelectual compatvel com as tomadas de posio, e no me peja

    sopitar o vulco interior para respeitar o direito de opinio.

    Antes de integrar-me ilustre Casa de Machado de Assis, j identificara a alma com outras grandes

    instituies culturais do Pas: a Faculdade de Medicina da Bahia, o Colgio Pedro II, a Biblioteca

    Nacional. Tenho a mstica institucional.

    Ao me preferirdes, e por isso vos sou agradecido, consagrastes uma vida de fidelidade ao ideal,

    dignidade espiritual da pessoa humana e ao culto da beleza, no servio da Crtica, Histria literria,

    organizao de edies.

    Permiti-me, senhores acadmicos, que instale aqui, ao vosso lado, em louvor da Literatura Brasileira, a

    minha lmpada votiva.

    20/7/1962

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