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CARLA TERESINHA CRAMER ECOS DA VIDA A construção do terapeuta de famílias: a prática clínica sob a lente das vivências na família de origem PUC-SP 2006 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com

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CARLA TERESINHA CRAMER

ECOS DA VIDA A construção do terapeuta de famílias:

a prática clínica sob a lente das

vivências na família de origem

PUC-SP 2006

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CARLA TERESINHA CRAMER

ECOS DA VIDA A construção do terapeuta de famílias:

a prática clínica sob a lente das

vivências na família de origem

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do Título de MESTRE em Psicologia Clínica, sob orientação da Professora Doutora Ceneide Maria de Oliveira Cerveny.

PUC-SP 2006

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BANCA EXAMINADORA

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Ao Eduardo, sábia criança, que preenche meus dias com muita alegria e orgulho.

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AGRADECIMENTOS

Muitas são as pessoas que estiveram ao meu lado durante a realização desse trabalho e que foram fontes preciosas de incentivo e apoio. Por isso, de todo coração, agradeço: à professora doutora Ceneide Cerveny, minha orientadora, por seu estímulo, sabedoria, paciência e acolhimento; às professoras doutoras Ida Kublikowski e Cláudia Bruscagin, por suas valiosas contribuições; ao Reinaldo, companheiro de tantos anos, cujas múltiplas competências e afeto foram fundamentais para que eu tivesse a tranqüilidade de ir e vir, sabendo que tudo estaria sob controle; à minha mãe, Maria de Lourdes, presença carinhosa e constante ao longo de todo o percurso; à minha irmã, Danielle, que, mesmo distante fisicamente, soube se fazer presente e apoiadora; às amigas, Maria Eliza e Silvana, companheiras indispensáveis; às colegas de trabalho e amigas do Intercef, Mariza, Rosana, Rosicler e Vera, que contribuíram, cada uma à sua maneira, para a concretização de meu objetivo; a Bianca, Rodrigo, Leila e Maria Ângela, mananciais de bom humor e fundamentais para que minhas forças se renovassem; aos meus alunos, que me inspiram sempre em busca de aprimoramento; à participante da pesquisa, por sua generosidade e confiança.

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A vida não é aquela que alguém viveu, mas aquela que alguém relembra e a maneira como a relembra para contá-la. (Gabriel Garcia Márquez)

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SUMÁRIO

RESUMO ........................................................................................................... ix

ABSCTRACT ..................................................................................................... x

APRESENTAÇÃO.............................................................................................. xi

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 15

CAPÍTULO 1 – A TERAPIA FAMILIAR E SEU ESTABELECIMENTO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL ................................................................... 23

1.1 A ESCOLA ESTRUTURAL NA TERAPIA FAMILIAR ....................... 27

1.2 A ESCOLA ESTRATÉGICA NA TERAPIA FAMILIAR ...................... 31

1.3 A ESCOLA BOWENIANA NA TERAPIA FAMILIAR ......................... 35

1.4 A ESCOLA EXPERIENCIAL NA TERAPIA FAMILIAR ..................... 39

1.5 A ESCOLA PROCESSUAL NA TERAPIA FAMILIAR ....................... 45 CAPÍTULO 2 – A TERAPIA FAMILIAR E A DIVERSIDADE CULTURAL ....... 51

2.1 A TERAPIA DE FAMÍLIA E AS QUESTÕES DE GÊNERO .............. 52

2.2 A TERAPIA DE FAMÍLIA E AS QUESTÕES DE CULTURA ............ 58 CAPÍTULO 3 – A TERAPIA FAMILIAR NA PÓS-MODERNIDADE ................. 66

3.1 A TERAPIA NARRATIVA .................................................................. 67

3.2 A RESILIÊNCIA ................................................................................ 71 CAPÍTULO 4 – PROBLEMA ............................................................................. 75

CAPÍTULO 5 – MÉTODO .................................................................................. 76

5.1 DELINEAMENTO .............................................................................. 76

5.2 INSTRUMENTOS ............................................................................. 77

5.3 PARTICIPANTE ................................................................................ 78

5.4 PROCEDIMENTOS PARA COLETA DOS DADOS ......................... 79 5.5 PLANO PARA A ANÁLISE DOS RESULTADOS ............................. 79

5.6 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS ............................................................ 80 CAPÍTULO 6 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ................................ 82

6.1 DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DA PARTICIPANTE DA PESQUISA 82

6.2 EIXOS TEMÁTICOS ........................................................................ 88

6.3 DISCUSSÃO DOS DADOS ............................................................. 95 CAPÍTULO 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................... 106

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REFERÊNCIAS ................................................................................................ 110

ANEXO 1 – ROTEIRO DA 1ª ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ............. 116

ANEXO 2 – ROTEIRO DA 2ª ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ............. 117

ANEXO 3 – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.......... 118

ANEXO 4 – ENTREVISTAS SEMI-ESTRUTURADAS∗ .................................... 119

∗ O texto das entrevistas, na íntegra, será entregue apenas aos componentes da banca.

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RESUMO

O campo da Terapia Familiar, em seus pouco mais de 50 anos de

existência, passou por várias modificações em seu corpo teórico e no processo

envolvido em tornar-se um terapeuta de famílias. As abordagens que dominavam o

campo até os anos 80 do século XX eram intervencionistas e embasadas em

paradigmas modernos; voltavam-se à instrumentalização e à aquisição de técnicas.

Ao terapeuta, cabia o papel de especialista. Com a incorporação dos conceitos

provenientes da Cibernética de 2ª Ordem, do Construtivismo e do Construcionismo Social, a terapia passou a ser considerada uma atividade dialógica, e a pessoa do

terapeuta tornou-se alvo de atenção nessa disciplina. Os aportes efetuados por

estudiosos de Gênero e Cultura reforçaram a importância do terapeuta desenvolver

auto-reflexividade, a fim de que conteúdos de sua história de vida, passada e

presente, não venham a repercutir negativamente no atendimento prestado a seus

clientes. O objetivo da presente pesquisa consistiu em compreender de que modo as experiências que o terapeuta vivenciou em sua família de origem fazem-se

presentes em sua prática clínica atual com famílias. O método escolhido baseou-se

em um estudo de caso. Os instrumentos utilizados para a obtenção de material

relevante foram a entrevista semi-estruturada e o levantamento do genograma do

profissional. As informações obtidas foram analisadas e vieram a compor os

seguintes eixos temáticos: Parentalidade, Conjugalidade, Relações Fraternas,

Gênero e Cultura. Outro achado significativo e proveniente dessa pesquisa refere-se

ao desafio atual e presente no campo que é a integração dos diversos conceitos

oriundos das diferentes abordagens que compõem o que se denomina Terapia

Familiar.

Palavras-chave: Terapeuta de família; Família de origem; Ressonâncias.

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ABSTRACT

Family Therapy as a field of work has undergone diverse changes over its

50 years of existence, in relation both to the body of theories it comprises and the

process entailed until it effectively evolved into a family-oriented therapy. Until the

late twentieth century, during the 80s, the most common approaches in that area

were intervention-based and those supported by modern paradigms, which employed

the application of theories as a tool and the acquisition of techniques. The therapist

would take on the role of a specialist. It was finally considered a dialogic activity when Second-Order Cybernetics, Social Constructivism and Constructionism concepts

were brought into the therapy as such, and the therapist became the focal point of

the subject at hand. Contributions made by scholars of Gender and Culture

emphasise the importance of self-reflection, which should be practiced by the

therapist to assure that his or her own life experiences, past or present, do not have a

negative influence when counselling their patient-clients. The purpose of this study was to understand how the therapist’s life experience acquired within the

environment of his or her family of origin could influence their family counselling

practice. The case study method was employed. The tools used to obtain relevant

material were semi-structured interviews and genogram assessment of the mental

health professional. Information yielded was analysed and divided into the following

body of themes: Parentality, Conjugality, Fraternal Relationships, Gender and

Culture. Another significant finding from this study is the current challenge posed by

this field, e.g. the integration of different concepts originating from diverse

approaches that comprise what is known as Family Therapy.

Key words: Family therapist. Family of origin. Resonances.

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APRESENTAÇÃO∗

As histórias de família ocuparam uma parte importante da minha vida.

Lembro, com saudades, das muitas noites passadas junto à minha avó

paterna, remexendo em suas antigas fotos, amareladas, com rostos que, para mim,

eram todos semelhantes, e das histórias que ela me contava. A sua preferida era a

de seu avô que, com 18 anos e inconformado ao ver o seu país invadido por uma

nação inimiga, resolve imigrar para o Brasil, tendo apenas dinheiro emprestado para a passagem; de como, ao chegar aqui, ele não só saldou sua dívida, como progrediu

na vida e conseguiu construir um bom patrimônio; do seu casamento com uma moça

inglesa, com a qual, mesmo não compartilhando o mesmo idioma, veio a construir

uma vida. Minha avó também me contava histórias de suas primas brasileiras que

atuaram como enfermeiras na Segunda Guerra Mundial; de uma delas com quem a família perdeu contato e que só foi localizada anos depois, muito debilitada, em um

campo de trabalho na Sibéria; de seu noivo americano que lhe deu um anel de

noivado com um diamante do tamanho de uma unha mas, é claro, não entrava em

detalhes de como ele acabou se casando com sua melhor amiga. Falava de meu

futuro avô, o “suíço bobo” que, persistentemente, adoçou seu coração com

freqüentes visitas, muita paciência e caramelos de leite. Contava a história dos meus tios; da cigana que anunciou o nascimento do filho temporão que veio a ser meu pai. Eu era a sua companheira freqüente nos Cafés das Primas, eventos mensais que

reuniam a velha guarda feminina da família e nos quais, além da concorrência no

quesito dotes culinários e das fofocas colocadas em dia, tantas outras histórias eram

contadas. Não me recordo da maioria delas, mas a mensagem que ficou poderia ser

resumida em “Orgulhe-se!” Na família materna, muitas histórias também existiam; talvez, essas fossem

mais simples, não tão repletas de feitos heróicos, mas que falavam da vida, de

pessoas, de suas esquisitices, de sua humanidade; do bisavô que enlouqueceu ao

ser enganado pelo irmão; das brincadeiras na infância simples da minha avó; de seu

irmão terrível e guloso; de como ela conheceu meu avô; da carreira política na qual

ele ingressou, movido a idealismo e com atuação marcada pela ética; dos oito filhos

∗ Por se tratar de um relato pessoal, essa parte da dissertação segue descrita com discurso em primeira pessoa.

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que tiveram e da falta que ela sentia dos que se foram antes dela; da saudade de

uma viuvez sem ter quem lhe aquecesse os pés; das tentativas, sempre mal

sucedidas, feitas pela minha mãe para escapar da vigilância e rigidez da família; das

festas; da importância da fé, do trabalho e daqueles que se tornavam parte da

família por laços que iam além da mera consangüinidade: filhos de criação, afilhados

a quem a casa acolhia, amigos de uma vida inteira. Convivi bastante nesta casa

grande e acolhedora, onde todos eram bem-vindos, incorporados nas rodas de

chimarrão, em que outras e mais outras histórias eram desfiadas. A mensagem que

ficou: “Acolha e aceite com generosidade”.

A meu respeito, algumas histórias também foram contadas: da criança esquisita que chorava quando os caçadores matavam o Lobo Mau; da menina

responsável que, com cinco anos, correu por várias quadras movimentadas em

busca de ajuda para a tia que havia desmaiado na mercearia; da garota corajosa

que pegou um ônibus errado em seu primeiro dia de aula e, mesmo assim, não ficou

com medo; daquela que não simpatizava com heróis e heroínas; da

anticonvencional e de tantas outras mais. Á medida que crescia, encontrei novas histórias de família que me

encantaram: nos filmes, nos livros, especialmente Cem Anos de Solidão, que entrou

cedo na minha vida, apesar de tê-lo compreendido pouco na primeira vez em que o

li. As gerações que se sucediam, os nomes que se repetiam, as personagens

excêntricas; enfim, todo o realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez fascinava-

me e impulsionava-me a relê-lo outras vezes; livro gasto, amarelado, manuseado,

mas que, sem dúvida alguma, é o preferido até hoje e seria o escolhido para ficar

comigo se eu pudesse ter apenas um.

Comecei o curso de Psicologia! Quanta novidade, informações importantes,

tantas “verdades”, tantas outras histórias, mais sérias e científicas, para incorporar.

Deixei de lado as velhas histórias. O contato com a Terapia de Família aconteceu

nessa época, em um estágio num hospital especializado em oncologia, onde pude constatar a importância de que não apenas o doente fosse acompanhado em seu

tratamento, e sim toda a família, que se via sofrendo e desafiada frente à doença.

Concluí a graduação e continuei a aprender mais sobre a Terapia Familiar,

nos muitos livros que lia, no curso de formação que fiz, nos grupos de estudo, nos

eventos, nas famílias que comecei a atender. Anos foram passando e, por vezes,

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questionava-me sobre as características de quem buscava atendimento; tantos

outros necessitavam, mas era uma minoria que tinha acesso.

Encontrei, então, a Terapia Comunitária que muito acrescentou. Em minha

vida pessoal, propiciou um reencontro com as velhas histórias e a força de suas

mensagens; na vida profissional, representou uma forma de resolver o antigo dilema

de democratizar o que sabia fazer. Além disso, o seu foco na competência e nos

saberes locais repercutiu na minha forma de atuar no consultório: mais esperançosa,

atendendo famílias, somando conhecimentos e auxiliando no resgate das

potencialidades.

Nesse meio tempo, também atuava na formação de psicólogos que iniciavam especialização em Terapia de Família e chamava-me a atenção o reduzido

valor que davam às suas histórias de vida e o quanto qualificavam o saber

acadêmico. Buscavam técnicas específicas que solucionassem as inúmeras

dificuldades que poderiam surgir no contexto terapêutico. Ao serem designados a

atender famílias que enfrentavam desafios semelhantes aos já vividos por eles,

preocupavam-se, tinham imensas dúvidas se dariam conta de tal tarefa, se seriam totalmente neutros (como se isso fosse possível), quais seriam os riscos do

processo terapêutico resultar em estancamento.

Quando decidi cursar o mestrado em Psicologia Clínica, num primeiro

momento, fazia-se presente em mim o desejo de desenvolver uma pesquisa que se

relacionasse com a Terapia Comunitária, realizando um trabalho que fosse útil e

possibilitasse o desenvolvimento de novos conhecimentos. Aos poucos,

principalmente por estar atuando mais intensamente na formação de novos

terapeutas de família, comecei a direcionar a minha atenção para os terapeutas e

suas histórias, ainda sem muita certeza do foco a escolher.

Ao cursar a disciplina ministrada pela professora Ceneide Cerveny,

Intergeracionalidade e sua Influência na Produção do Conhecimento, quando

buscávamos co-relações entre nossa história de vida e o tema escolhido para o projeto de pesquisa, as respostas foram surgindo. Ao acompanhar as apresentações

efetuadas pelas colegas, vidas repletas de desafios, forças e superações nem

sempre valorizadas, a união que se fez presente no grupo, os sentimentos surgidos

após eu ter contado a minha própria história e a possibilidade de re-conexão

tornaram claro o rumo a seguir. Decidi pesquisar quais significados os terapeutas de

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família atribuem às histórias vivenciadas em suas famílias de origem e como tais

histórias repercutem na prática clínica.

Esse é o ponto do qual parto, como pesquisadora, para atingir meu objetivo

de pesquisa. Para isso, tenho que adentrar em outras histórias: da própria Terapia

de Família em seus mais de 50 anos de existência; do papel que as vivências

pessoais do terapeuta de família em sua família de origem desempenham nas várias

escolas de terapia; da participante da pesquisa; enfim, é mais uma história que se

inicia.

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INTRODUÇÃO

Sara Jutoran (2004), em seu artigo Jornada Pessoal do Terapeuta, Tocando

a Minha Voz – a Mim Mesma, estabelece um paralelo interessante entre a terapia e

a música. Para ela, executar uma música é diferente de tocar, assim como fazer

terapia é diferente de ser terapeuta.

Tornar-se um terapeuta de família é um processo complexo que implica em

desafios que vão além de adquirir embasamento teórico e familiaridade no manejo

de técnicas. Este estudo busca abordar tal processo complexo, enfatizando a importância da história familiar e a sua influência na prática clínica do terapeuta de

família. Para cumprir o objetivo, é necessário adentrar, ao menos em parte, na

história da Terapia Familiar, pois o que é ser um terapeuta não se configura em um

conceito fixo, mas apresentou desdobramentos em virtude dos próprios

desdobramentos da Terapia Familiar.

A Terapia Familiar surgiu no campo da Saúde Mental, há pouco mais de 50 anos, em função das novas necessidades surgidas naquele momento histórico

específico; em especial, da questão da esquizofrenia. A percepção da co-relação

entre sintomatologia apresentada e funcionamento familiar sinalizava a falta de

eficácia das abordagens psicoterapêuticas utilizadas até então, que eram focadas

apenas no membro sintomático.

Incluir toda a família no contexto de tratamento, em um primeiro momento,

representou uma mudança significativa dos enfoques existentes, cujo foco era o

mundo intrapsíquico dos indivíduos. O olhar do profissional direcionou-se à dinâmica

familiar, aos processos interativos presentes e aos padrões de comunicação

existentes entre os membros familiares. O grande desafio consistia no

desenvolvimento de instrumental prático que possibilitasse, se possível em um curto

espaço de tempo, a obtenção de alterações no funcionamento familiar que resultassem no desaparecimento do sintoma.

O desenvolvimento da Terapia Familiar como disciplina esteve a cargo de

vários profissionais, atuando em localidades geográficas e contextos diversos, sendo

possuidores de distintas formações e experiências anteriores, o que influenciou no

seu desenvolvimento posterior e na sua diversidade sempre presente.

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Nos trabalhos iniciais desenvolvidos na Terapia Familiar, de acordo com

Nichols e Schwartz (1998), partia-se do pressuposto de que a família consistia em

uma “realidade” passível de modificação através das intervenções técnicas

implementadas pelo terapeuta; sendo assim, cabia ao profissional dominar um

amplo repertório. O seu ser como pessoa não ocupava um papel de relevância.

Mesmo nas abordagens iniciais que dedicaram um espaço para a pessoa do

terapeuta, fazia-se isso acreditando que o seu desenvolvimento pessoal refletiria

positivamente em sua eficácia como especialista.

Salvador Minuchin afirma que a literatura da área de Terapia Familiar

enfatizou muito mais as técnicas terapêuticas do que a figura do terapeuta como facilitador de mudanças. Segundo ele, “a pessoa do terapeuta começou a se tornar

invisível dos escritos dos pioneiros da terapia familiar” (MINUCHIN; LEE; SIMON,

1998, p. 23). O autor chegou a admitir que seus primeiros livros privilegiaram as

técnicas para modificar as famílias; atualmente, compara as técnicas com as letras

do alfabeto: não basta conhecê-las para se saber ler.

A ênfase na necessidade de desenvolvimento e maturidade pessoais do terapeuta é proposta por Virginia Satir:

...aprender a ser terapeuta não é o mesmo que aprender a ser encanador. Os encanadores geralmente podem se arranjar com técnicas. Os terapeutas necessitam fazer mais. Qualquer que seja a técnica, a filosofia ou a escola de terapia familiar a que pertençamos, qualquer coisa que façamos com os demais deve ser processada através de cada um de nós, como pessoas, como gente. (SATIR; BALDWIN1 apud APONTE; WINTER, 1988, p. 16)

Postura oposta é defendida por Jay Haley, outro dos pioneiros da Terapia

Familiar que, ao se referir ao treinamento de futuros terapeutas familiares, afirma:

“aprendem-se técnicas de entrevistas e técnicas terapêuticas para a variedade de

clientes que procuram auxílio, técnicas estas que precisam ser praticadas” (HALEY, 1996, p. 12), chegando a comparar a condução do processo terapêutico à

aprendizagem necessária para dirigir um carro.

Murray Bowen (1991), outro precursor no campo da Terapia Familiar, que

partiu de experiências vivenciadas em sua família de origem para desenvolver

conceitos fundamentais de sua abordagem, destaca a necessidade de maturidade e

1 SATIR, V.; BALDWIN, M. Satir step by step. Palo Alto, USA: Science and Behavior,

1983.

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diferenciação do terapeuta com relação a sua família de origem como pré-condição

para conduzir os processos terapêuticos de forma adequada.

Breulin, Rampage e Eovaldi (1995) descrevem a história da Terapia Familiar

dividindo-a em quatro estágios. O primeiro refere-se ao período inicial, com os

primeiros trabalhos implementados com famílias e que incorporaram, em medidas

diferentes, os conhecimentos advindos da Teoria Geral dos Sistemas ou das

tendências psicanalíticas da época. No segundo momento, que abrange as décadas

de 60 e 70 do século XX, surgem as escolas específicas, que auxiliaram na criação

da identidade e consolidação da Terapia Familiar no campo da Saúde Mental, mas

maximizaram as diferenças existentes entre si e não se direcionaram na busca de pontos de convergência. No terceiro estágio, a Terapia Familiar, já tendo seu espaço

de reconhecimento conquistado no campo da Saúde Mental, pôde assimilar os

diversos questionamentos direcionados às metáforas sistêmicas e cibernéticas

utilizadas, à insensibilidade frente às questões de gênero e cultura, bem como o

reducionismo, por não levar em consideração contextos mais amplos que a família.

Um quarto estágio, em que a Terapia Familiar encontra-se atualmente, corresponde a um momento de integração, no qual é possível que conhecimentos vindos de

outras disciplinas sejam agregados aos desenvolvidos ao longo de sua história.

Sendo assim, nas décadas iniciais do estabelecimento da Terapia de

Família no campo da Saúde Mental, que corresponderiam ao primeiro e segundo

estágios descritos acima, o foco de observação e intervenção terapêutica era a

família. A partir dos anos oitenta, com a incorporação de conhecimentos advindos do

Construtivismo e da Cibernética de Segunda Ordem e, posteriormente, do

Construcionismo Social, a atenção voltou-se ao terapeuta, caracterizando, segundo

Grandesso (2000), uma transição qualitativa dos pressupostos modernos aos pós-

modernos.

Torna-se claro que, durante esses 50 anos, muitos aportes e reflexões

influenciaram a Terapia Familiar. Hoffmann (1981, p. 20) refere-se à disciplina como “uma maravilhosa Torre de Babel; nela, as pessoas falam muitas línguas”. Cerveny

(2001) acrescenta que é possível considerar um campo em que se falam vários

dialetos, mas derivados de um mesmo idioma. Tendo partido das metáforas

sistêmicas e cibernéticas, o campo da Terapia Familiar atual incorpora cada vez

mais as metáforas da linguagem, da conversação e das narrativas. O caminho

percorrido, as alterações vivenciadas, desde o seu início até o presente, e as suas

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metáforas que se alteraram repercutem, sem dúvida alguma, no processo de tornar-

se um terapeuta de famílias (HOFFMAN, 1990).

No momento atual, é consenso que aquilo que o terapeuta percebe sofre a

influência de seus “mapas” teóricos, que determinam o que será investigado e

observado, bem como de suas lentes pessoais. Uma vez que a realidade

apresentada pela família é uma construção social, o processo terapêutico torna-se

um contexto para a co-construção de realidades sociais alternativas (FRUGGERI,

1998).

Mônica McGoldrick (2003a) assinala a necessidade de os terapeutas de

família serem sensíveis à diversidade cultural, ampliando a sua visão e focalizando os contextos mais amplos nos quais as famílias estão inseridas. Para a autora, os

terapeutas devem levar em consideração temas tais como raça, cultura e gênero,

que podem influenciar nos sofrimentos atuais enfrentados pelas famílias. Porém, ser

sensível a tais questões pressupõe, por parte do terapeuta, ter consciência de como

os mesmos temas fizeram-se presentes em sua própria história, como foram

vivenciados em suas famílias de origem e como se atualizam no presente. Atualmente, é da concordância do campo que a pessoa do terapeuta, sua

história, seus valores e pressupostos são aspectos importantíssimos a se considerar

na condução de qualquer processo terapêutico, segundo Carlson e Erickson (1999,

2001), Haber (1990), Kaslow (2000), McDaniel e Landau-Stanton (1991), Rober

(2005), Roberts (2005) entre outros. Tal postura justifica-se, pois “é por meio deste

reconhecimento que eles [terapeutas] podem observar sua própria maneira de

construir os fenômenos que estão observando e sua relação com eles” (FRUGGERI,

1998, p. 63).

A quase totalidade dos cursos destinados à formação ou especialização em

Terapia de Famílias e de Casais reserva, em sua grade curricular, um espaço

voltado ao trabalho da família de origem e atual do terapeuta em formação. Cerveny

(2001, p. 75), ao abordar tal necessidade, afirma “talvez possamos dizer, sem exagero, que todo terapeuta de família deparou-se com pelo menos uma repetição

de padrões intergeracionais de sua família de origem, durante seus atendimentos

clínicos”.

Grandesso caracteriza os encontros terapêuticos como “dialógicos” e

transformadores; neles, tanto cliente quanto terapeuta reformulam seu pensar e agir

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no mundo e “não há como ser terapeuta apartado da própria vida vivida, das

histórias pelas quais constrói sua autobiografia” (GRANDESSO, 2000, p. 277).

Acredita-se que o terapeuta é mais eficiente no contexto profissional à

medida que adquire amplo conhecimento acerca de sua história familiar, temas

relevantes, crenças e valores compartilhados, padrões de comunicação,

relacionamento e resolução de conflitos, mitos familiares, entre outros. Tal

autoconhecimento também pode vir a ser ferramenta útil para evitar impasses e

limitações em suas atuações, conforme assinalam Aponte (1985), Fontes, Piercy,

Thomas e Sprenkle (1998), Framo (1996), Kane (1996), Rober (1999).

Nos contextos de supervisão, o termo ressonância, proposto por Mony Elkaim (2000), é largamente utilizado e refere-se à intersecção entre temas

presentes tanto na vida da família que busca ajuda, quanto na história passada ou

presente do terapeuta. Entretanto, segundo Carlson e Erickson (2001), as

experiências vivenciadas pelo terapeuta de família em sua família de origem ainda

são vistas como fator de limitação quando são referidas a impasses e ressonâncias.

Os autores assinalam que pouca atenção é dedicada à família como um contexto gerador de competências e co-construtor de narrativas de potencialidades. De

acordo com Timm e Blow (1999), quanto mais os terapeutas puderem visualizar as

forças provenientes de sua história de vida, mais aptos estarão para fazer o mesmo

com os clientes que os procuram.

Concordando com tal perspectiva, Walsh enfatiza que ainda se fazem

presentes, no campo da Terapia Familiar, resquícios provenientes das abordagens

tradicionais baseadas no déficit e na patologia. Ao desenvolver seu trabalho

enfocando a resiliência, que vem a ser “a capacidade de se renascer da

adversidade, fortalecido e com mais recursos” (WALSH, 2005, p. 4), a autora chama

a atenção dos profissionais para levarem em consideração que as famílias podem

ser fonte importante de resiliência. Menciona, ainda, estudo realizado por Higgins2,

em 1994, com adultos resilientes, no qual se percebeu que, em função de terem passado por situações de sofrimento, apresentavam uma maior sensibilidade ao

sofrimento alheio e uma tendência a buscar, através do ativismo social, minimizá-lo.

Outro aspecto ressaltado é que, metade dos participantes dessa pesquisa eram

terapeutas, possibilitando uma reflexão: as dificuldades vivenciadas ao longo da

2 HIGGINS, G. O. Resilient adults: overcoming a cruel past. San Francisco, USA: Jossey-

Bass, 1994.

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história podem, sim, transformar-se em recursos e resultar no desenvolvimento de

competências.

Apesar de serem várias as publicações voltadas à importância das vivências

significativas na família de origem e do uso da pessoa do terapeuta na terapia, ainda

são poucas as pesquisas efetuadas acerca do tema segundo Paris, Linville e Rosen

(2006), Horne (1999), Lawson e Sivo (1998). Lum (2002) considera que isso pode

acontecer pelo receio, por parte dos profissionais, em ter suas atuações profissionais

questionadas ao expor aspectos de suas vidas pessoais. No contexto brasileiro,

podemos citar a pesquisa realizada por Guimarães (2005) que, baseada na teoria de

Bowen sobre a família de origem, aprofunda a importância da família de origem na construção do self do terapeuta e no seu processo de diferenciação.

Russel Haber e Lita Hawley (2004) afirmam que o estilo de atendimento de

um terapeuta envolve quatro áreas distintas (metodologia, ideologia, uso do “self”,

criatividade/intuição) e que um bom programa de formação engloba o

aprimoramento dessas áreas. Por Metodologia, entende-se o ensino de técnicas,

métodos, estratégias para manejar adequadamente problemas clínicos; Ideologia diz respeito à fundamentação dessas técnicas, ou seja, quais conceitualizações são

necessárias para haver coerência entre o pensar e o agir terapêutico; O uso do “self”

relaciona-se às repercussões internas que determinadas temáticas podem evocar no

terapeuta, correlacionadas às suas histórias de vida atual e passada; Criatividade/

intuição refere-se à capacidade de criar metáforas, reconhecer o “tempo certo” para

propor intervenções, questionamentos e conexões que sejam “repletas de sentido”.

Os autores, ao supervisionar casos apresentados por seus terapeutas alunos,

inovam quando convidam a família de origem do terapeuta para identificar temas

que estão a “imobilizar” tal profissional. Partindo-se da identificação de temas co-

relacionados ao impasse, solicitam a contribuição da família de origem com o

objetivo de buscar outras alternativas, que sejam libertadoras ou que lancem novas

luzes sobre a problemática apresentada. Entre outros autores, Andolfi (1996), Cerveny (2001), Groisman, Cavour e

Lobo (1996), Stein (1996) têm escrito acerca do uso da pessoa do terapeuta no

processo terapêutico, da importância de que os modelos de formação e supervisão

aliem o ensino de técnicas ao desenvolvimento pessoal do terapeuta e sobre a co-

relação entre impasses terapêuticos e ressonâncias com a história pessoal do

terapeuta. As publicações que versam sobre tal temática são abundantes;

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entretanto, com já mencionado, poucas são as pesquisas realizadas que sustentam

e validam tais intervenções.

Michael White, em obra voltada às vivências dos terapeutas, diferencia os

conhecimentos obtidos através da inclusão na cultura das disciplinas profissionais

daqueles obtidos na vida e alerta que, ao se privilegiar os primeiros, pode-se correr o

risco da “desintegração que contribui para a perda da própria história e a perda de

um determinado sentimento de identidade.” (WHITE, 2002, p. 28)

Sendo assim, no presente estudo, propõe-se a responder a seguinte

pergunta de pesquisa: “Como as experiências vivenciadas na família de origem de

um terapeuta de famílias ressoam no exercício de sua prática profissional?” O objetivo geral deste estudo consiste em compreender como o terapeuta

de famílias percebe a influência de sua história de vida em sua prática clínica. O

objetivo específico configura-se em investigar fatores da família de origem que

podem estar relacionados ao desempenho profissional, tais como: vivências

significativas e prática clínica; diversidade cultural e prática clínica; crises, resiliência

e prática clínica. Para fins do estudo, realizou-se pesquisa qualitativa, através de um estudo

de caso, utilizando-se como instrumentos a entrevista semi-estruturada e o

levantamento do genograma do profissional. A participante da presente pesquisa é

terapeuta de casais e de famílias, atendendo a tal clientela há cinco anos.

Acredita-se que os dados obtidos nesta pesquisa podem fornecer elementos

úteis para o campo da Terapia de Famílias e de Casais. Podem servir como

possibilidade de reflexão e re-significação aos terapeutas experientes, bem como

para a formação e supervisão dos atuais e dos futuros terapeutas familiares,

sinalizando novos pontos a serem desenvolvidos nessa formação.

No Capítulo 1, abordam-se o surgimento da Terapia Familiar no campo da

Saúde Mental, o contexto que influenciou em seu desenvolvimento nos Estados

Unidos da América, seus pioneiros e as escolas criadas por esses profissionais, selecionando-se aquelas que se referem, de maneira mais explícita, ao papel do

terapeuta. No Capítulo 2, enfoca-se a importância de considerar a diversidade

cultural no contexto clínico, decorrente das críticas que a Terapia Familiar recebeu a

partir da década de 80 do século XX e que colocam o foco no terapeuta, em sua

história, em seus pressupostos e na repercussão que tais temas podem vir a ter no

processo terapêutico se não houver a necessária consciência acerca deles. No

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Capítulo 3, abordam-se as tendências atuais dentro da Terapia Familiar e o papel

que cabe ao terapeuta na pós-modernidade, com ênfase na Terapia Narrativa

desenvolvida por Michael White. No Capítulo 4, discorre-se acerca do problema de

pesquisa. No Capítulo 5, explicita-se a utilização do método de pesquisa: quais

procedimentos propiciaram o levantamento de dados e a análise dos resultados

obtidos. No Capítulo 6, efetua-se a discussão dos dados obtidos. Posteriormente, no

Capítulo 7, delineiam-se as considerações finais obtidas por intermédio deste

estudo.

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CAPÍTULO 1 A TERAPIA FAMILIAR

E SEU ESTABELECIMENTO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

...historiar pode ser uma forma de reconhecer a nós mesmos como participantes em uma corrente de cultura mais ampla. (Christian Beels)

A Terapia Familiar possui pouco mais de 50 anos de existência e, de acordo

com Nichols e Schwartz (1998), não existe uma única Terapia Familiar, e sim várias.

Dessa afirmação, é possível deduzir que inúmeras transformações e

desdobramentos ocorreram nessa disciplina ao longo do tempo.

Tal modalidade de intervenção surgiu nos Estados Unidos da América, após

a Segunda Guerra Mundial, período marcado por intensas modificações sociais e econômicas. Inúmeros combatentes voltavam do front apresentando estresse pós-

traumático, e não havia nem profissionais suficientes, nem abordagens que

pudessem minimizar o sofrimento provocado por tais distúrbios emocionais em um

curto espaço de tempo. Os psicólogos atuantes eram meros aplicadores de testes;

as intervenções direcionadas a tratar os problemas emocionais configuravam-se em

“propriedade” dos médicos psicanalistas; os tratamentos tinham como característica

a sua longa duração.

Além disso, o país apresentava um forte crescimento econômico

impulsionado pela Guerra e necessitava de mão de obra para a expansão de seu

desenvolvimento. Pessoas, mesmo com limitações, poderiam vir a compor essa

força de trabalho desde que apresentassem condições mínimas para tal, o que poderia ser obtido através de algum tipo de tratamento que fosse eficaz. O governo

americano passou, então, a financiar pesquisas que possibilitassem alguma

melhoria nas condições mentais dessas pessoas.

No que se refere à comunidade psiquiátrica e psicológica daquela época, de

acordo com Bertrando e Toffanetti (2004), já haviam trabalhos desenvolvidos que

viriam a ser fundamentais no surgimento da Terapia Familiar. Desde o final do século XIX, o Serviço Social nos EUA possuía uma intervenção marcante; as

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famílias eram visitadas e acompanhadas para que pudessem superar as dificuldades

que vivenciavam. Os profissionais atuantes nas Clínicas de Orientação Infantil,

existentes desde os anos 20 do século XX, já haviam percebido a importância de

não apenas atender as crianças, mas envolver as mães em suas intervenções. Cabe

ressaltar que os atendimentos não eram realizados em conjunto e havia a ênfase na

culpabilização da mãe pelos distúrbios apresentados pelos filhos.

Além disso, trabalhos desenvolvidos na primeira metade do século XX e que

se direcionavam ao aconselhamento conjugal e sexual, mesmo não objetivando a

cura, e sim a prevenção, assinalavam que valia a pena sair do espaço dos

atendimentos individualizados e ampliar o foco da atenção dos serviços de Saúde Mental para as famílias.

Outro aspecto que, segundo Bertrando e Toffanetti (2004), constituiu-se em

um ponto propulsor da Terapia Familiar refere-se ao próprio estado da Psicanálise

na época. Analistas, tais como Harry Sullivan, Frieda Fromm-Reichman, Erich

Fromm e Karen Horney, denominados os Neofreudianos ou Psicanalistas Culturais,

direcionavam, mesmo timidamente, o seu olhar para as interações existentes na vida de seus pacientes, e não apenas para o seu mundo interno. Foi com tais analistas

que alguns dos pioneiros da Terapia Familiar vieram a receber treinamento no início

de suas vidas profissionais.

Por último, a mais importante semente do desenvolvimento da Terapia

Familiar encontrava-se na questão da esquizofrenia, refratária a qualquer tipo de

intervenção existente e que desafiava os profissionais a buscarem tanto a sua

etiologia, quanto a sua cura. O otimismo presente na época apontava para a

hipótese de que a esquizofrenia poderia estar relacionada a fatores ambientais;

alguns profissionais já haviam percebido que pessoas esquizofrênicas apresentavam

mudanças em seu comportamento durante as visitas realizadas pelos familiares e

que outro membro da família viria a desenvolver sintomas após elas apresentarem

alguma melhora. Bertrando e Trofanetti (2004) argumentam que a Terapia Familiar poderia

ter sido desenvolvida pelos próprios Neofreudianos; entretanto, tal fato só veio a

ocorrer a partir do momento que uma nova teoria e uma nova nomenclatura foram

desenvolvidas.

Beels (2002), em uma análise abrangente e crítica da história da Terapia

Familiar, assinala que o seu próprio desenvolvimento poderia também ter sido

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efetuado por profissionais ligados ao Serviço Social. No entanto, para que

conhecimentos novos fossem validados pela comunidade da Saúde Mental, era

fundamental que médicos estivessem presentes na tarefa. Além disso, o conceito de

Ciência presente na época fez com que os precursores da Terapia Familiar

utilizassem conceitos de outras ciências, então mais reconhecidas, para que a nova

modalidade de intervenção pudesse ter seu espaço e reconhecimento.

Isso se deu, finalmente, com a incorporação dos conceitos da Teoria Geral

dos Sistemas, de Ludwig von Bertalanffy, e da Cibernética, desenvolvida por

Norman Wiener e John von Neumann. “Graças à cibernética, é possível livrar-se do

influente legado das teorias freudianas para centrar-se essencialmente na informação e retroalimentação...” (BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004, p. 62).

O responsável por tal transposição foi Gregory Bateson, antropólogo inglês que, desde a década de 40 do século XX, em função da sua participação nas Macy

Conferences, havia entrado em contato com os pressupostos cibernéticos e

professava a importância da circularidade das interações entre indivíduo e cultura e

do papel fundamental dos padrões de comunicação na vida das pessoas. Em 1952, recebeu uma subvenção para realizar pesquisas sobre a comunicação; como

antropólogo, seu interesse era o conhecimento, e não necessariamente intervenções

para obter modificações no comportamento. Para compor a sua equipe, convidou

profissionais de diferentes áreas: Jay Haley, Jonh Weakland e Willian Fry,

configurando um grupo heterogêneo, com um interesse em comum: o estudo da

comunicação. Posteriormente, Don Jackson, psiquiatra e psicanalista que já havia atendido famílias, veio a fazer parte da equipe e, em 1959, fundou o MRI – Mental

Research Institute, onde se desenvolveram trabalhos voltados ao atendimento de

famílias como um todo, utilizando-se conhecimentos resultantes da pesquisa sobre

comunicação na esquizofrenia como referencial teórico.

Sendo assim, considera-se que o trabalho desenvolvido por Bateson e

equipe, em Palo Alto foi um dos responsáveis pelo surgimento da Terapia Familiar. Entretanto, em Nova Iorque, um psiquiatra e psicanalista, Nathan Ackerman, na

mesma época, também iniciava atendimentos a famílias. O mesmo ocorria em

Washington; Murray Bowen, também psiquiatra e psicanalista, ao ser nomeado

responsável por uma ala em um hospital psiquiátrico, propõe-se a desenvolver um

trabalho não apenas com os esquizofrênicos, mas cuja intervenção atingisse os

outros membros da família.

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Além desses profissionais, Jonh Eldrick Bell, em 1952, também iniciou

atendimentos a famílias, em Massachusets, mas só veio a publicar os resultados

obtidos dez anos mais tarde (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).

Percebe-se que, diferentemente de outras modalidades de intervenção em

Saúde Mental – Psicanálise, Gestalt Terapia e Terapia de Grupo, entre outras – a

Terapia Familiar não possui apenas um “pai”, mas foi desenvolvida por vários

profissionais, atuando em diferentes lugares, com interesses diversos. Tal

diversidade sempre se fez presente e caracteriza a Terapia Familiar até hoje.

Bertrando e Toffanetti (2004), ao analisarem o contexto do surgimento da

Terapia Familiar, lançam um questionamento que é solucionado posteriormente: Por que tal modalidade de intervenção surgiu nos EUA, e não em outro lugar? Na

opinião dos autores, a cultura americana – pragmática e otimista – é um ponto a ser

considerado como importante; além disso, como vencedores da Guerra, tal otimismo

encontrava-se mais acentuado. Além das motivações econômicas mencionadas, o

valor da família tinha relevância ímpar e era associado a local de refúgio, proteção e

tranqüilidade. Finalmente, mas não menos importante, as próprias condições do país, diferentemente daqueles da Europa destroçada pela Guerra, permitiam que as

pessoas, entre eles os iniciadores da Terapia Familiar, pudessem se locomover e

comunicar-se com facilidade; segundo os autores, isso foi fundamental para a sua

expansão e seu desenvolvimento futuros. Além disso, outro fator que veio a auxiliar

na difusão da Terapia Familiar foi o uso da tecnologia: a partir do momento em que

os atendimentos puderam ser gravados e filmados, os conhecimentos obtidos

passaram a circular com uma rapidez muito maior, se comparada à difusão teórica

resultante da publicação de um livro.

Os trabalhos desenvolvidos no atendimento a famílias, na década de 50 do

século XX, vieram a resultar no desenvolvimento de diversas escolas em Terapia

Familiar, com características específicas, vinculadas, em maior ou menor medida, à

Teoria Geral dos Sistemas e à Cibernética e que apregoavam diferentes posturas do terapeuta no atendimento às famílias. Entretanto, todas elas tinham pontos em

comum: o descontentamento com as práticas prevalentes na época, que enfocavam

apenas os indivíduos, e o olhar voltado para a família, às interações que ocorriam no

momento presente, a criação de estratégias e técnicas para modificar o seu

funcionamento e obter o desaparecimento do sintoma.

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Paradoxalmente, apesar de manifestar tantas diferenças com as

abordagens vistas como lineares, pelo menos nas primeiras décadas da Terapia

Familiar, a família continuou a ser vista da mesma forma que, por exemplo, na

Psicanálise, ou seja, como campo gerador de patologia “...a terapia familiar inicial,

consistente com esse preconceito contra os pais, abordou as famílias com uma

visão de proteger os pacientes em relação a ela.” (MINUCHIN; NICHOLS, 1995, p.

38) Nas palavras de Framo, “...quando nós começamos, tendemos a nos identificar

com os pacientes e ficarmos furiosos com os pais que faziam tais coisas terríveis a

seus filhos.” (FRAMO, 1996, p. 293)

A seguir, enfocam-se algumas dentre as principais escolas de Terapia Familiar que tiveram, e ainda têm, impacto no campo e que influenciaram as futuras

gerações de terapeutas de famílias. Essa escolha foi norteada utilizando-se o critério

de abordar apenas aquelas escolas que enfocaram, tanto como defensoras quanto

opositoras, de maneira mais clara, a questão do terapeuta e de sua pessoa. Cabe

ressaltar que tais “escolas”, como explicitado na Introdução, só foram assim

denominadas nos anos 70; porém, os aspectos teóricos e práticos que deram origem a elas foram desenvolvidos ao longo dos anos 50 e 60 do século XX.

A ênfase dada na abordagem situa-se na visão de funcionalidade e

disfuncionalidade familiar que cada escola apregoa, no modo como o sintoma é

encarado, em quais objetivos terapêuticos são propostos e em qual postura do

terapeuta é defendida por cada escola. Considerando o objetivo deste estudo,

procura-se abordar o significado que cada escola atribui à influência da família de

origem do terapeuta na prática clínica, bem como às questões referentes à pessoa

do terapeuta em seu processo de treinamento e na prática clínica.

1.1 A ESCOLA ESTRUTURAL NA TERAPIA FAMILIAR

A abordagem estrutural da Terapia Familiar foi desenvolvida por Salvador

Minuchin e foi o enfoque dominante na área na década de 70 do século XX, em

virtude da sua clareza teórica, de seu foco na ação e também das características

pessoais de seu principal fundador: carisma e combatividade. Essa escola recebeu

tal denominação em virtude do foco na estrutura familiar, que pode ser acessada

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através da observação das repetidas interações que ocorrem entre os membros da

família e que sinalizam de que forma as fronteiras estão configuradas, quais as

alianças (funcionais ou não) existentes e como se delineia a hierarquia na família.

Minuchin, psiquiatra argentino de origem judaica, complementou sua

formação em Nova Iorque com os psiquiatras e psicanalistas Nathan Ackerman e

Harry Sullivan. Embora não tenha sido um dos precursores na Terapia de Família, foi um dos que entrou cedo no campo, iniciou atendimento a famílias, cujos filhos

apresentavam comportamentos delinqüentes, na Wiltwyck School for Boys.

Posteriormente, foi convidado para atuar na Philadelphia Child Guidance, lá

permanecendo de 1965 a 1981, período no qual desenvolveu os fundamentos da abordagem estrutural, extraídos de sua prática junto a famílias de diferentes classes

sociais, cujos filhos apresentavam sintomas comportamentais. Também analisou a

co-relação entre sintomas psicossomáticos, como asma, diabetes infanto-juvenil e

anorexia, e a estrutura familiar, tendo obtido excelentes resultados no atendimento a

tais famílias.

Utilizando os conhecimentos provenientes da Teoria Geral dos Sistemas, Minuchin encarava a família,

...como um organismo, como um sistema aberto, composto de subsistemas, cada um dos quais é envolvido por um limite semipermeável, que é, na verdade, um conjunto de regras que governa quem está incluído dentro daquele subsistema e o modo como eles interagem com quem está de fora dele. (NICHOLS; SCHWARTZ, 1997, p. 97)

O modelo de família nuclear proposto por Talcott Parsons também foi

incorporado em sua abordagem; nele, cabe ao pai a responsabilidade pelos papéis

instrumentais e cabe à mãe o desempenho dos papéis expressivos (BERTRANDO;

TOFFANETTI, 2004).

Na concepção de Minuchin, a família é a menor unidade da sociedade e possui um papel fundamental na estruturação da identidade humana,

...a experiência humana de identidade tem dois elementos: um sentido de pertencimento e um sentido de ser separado. O laboratório em que estes ingredientes são misturados e administrados é a família, a matriz de identidade. (MINUCHIN, 1982, p. 53)

De acordo com a teoria estrutural, uma família saudável possui fronteiras

claras, subsistema decisório atuante e flexibilidade para se adaptar às inúmeras

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transições que ocorrem ao longo da vida; por outro lado, as famílias “disfuncionais”

possuem fronteiras extremamente rígidas, estabelecendo poucas trocas entre os

subsistemas, ou fronteiras difusas, o que desencadeia falta de clareza no

desempenho dos papéis. “Uma família disfuncional é um sistema que respondeu a

estas exigências, internas ou externas, de mudança, estereotipando seu

funcionamento.” (MINUCHIN, 1982, p. 108)

O surgimento do sintoma ocorre quando a família, em função de

circunstâncias alteradas, não consegue implementar as modificações que se fazem

necessárias. “O terapeuta estrutural considera o paciente identificado meramente

como um membro da família, que está expressando, de modo mais visível, um problema que afeta o sistema inteiro.” (MINUCHIN, 1982, p. 124) O sintoma, então,

é o modo como o sistema sinaliza uma dificuldade contextual.

Conseqüentemente, de acordo com o enfoque estrutural, as “famílias

disfuncionais” possuem sua estrutura comprometida, e a prática do terapeuta deve

ser voltada a promover uma reestruturação na família, o que garantiria um “retorno”,

por parte da família, a um funcionamento “saudável”. “O terapeuta une-se à família com o objetivo de mudar a organização familiar, de tal maneira que as experiências

dos membros da família modificam-se.” (MINUCHIN, 1982, p. 22)

As características estruturais da família podem ser facilmente representadas

graficamente, através do levantamento do Mapa Estrutural, instrumento

desenvolvido por Minuchin e que “foi recebido como um presente divino pelas

legiões de terapeutas desnorteados que estavam perdidos em meio a uma selva

confusa de envolvimentos familiares.” (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998, p. 97) A mera

observação da configuração do mapa estrutural possibilitava a definição dos passos

necessários que, através da intervenção do terapeuta, viriam a resultar na

reestruturação da família.

Nessa abordagem, o terapeuta caracteriza-se por ser extremamente

participativo, diretivo e intervencionista, assumindo uma postura de especialista que “conduzirá a família novamente para a funcionalidade”. Segundo Goldbeter-

Merinfeld, o enfoque estrutural reivindica a 1ª Cibernética, “na qual aquele que

realiza a intervenção observa de forma neutra o espaço familiar e as ‘danças’ que aí

se produzem.” (GOLDBETER-MERINFELD, 1998, p. 228)

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De forma clara, Minuchin expressa a influência que sua família de origem

desempenhou na elaboração de seu método de intervenção:

...o meu estilo é parcialmente um produto de uma infância, passado em uma família emaranhada, com quarenta tias e tios e, aproximadamente, duzentos primos, dos quais todos formavam, num ou outro grau, um entrelaçamento familiar estreito [...] quando eu andava pela rua, achava que uma centena de primos estava me observando. Desta maneira, tive de aprender, como criança, a me sentir confortável em situações de proximidade, contudo a me desligar suficientemente para proteger minha individualidade. O meu estilo terapêutico está organizado ao longo de dois parâmetros: como preservar a individuação e como apoiar a mutualidade. Estou sempre preocupado em preservar as fronteiras que definem a identidade individual. (MINUCHIN, 1982, p. 116-7)

Entretanto, no que diz respeito à formação de futuros terapeutas familiares,

o autor enfatiza, de forma marcante, a aprendizagem e o domínio das técnicas,

acreditando que, da mesma forma que no papel de terapeuta, o supervisor deve ser atuante e diretivo, ensinando aos alunos, preferencialmente ao vivo, como fazer, e

não orientando depois que o aluno efetuou intervenções adequadas. Com relação a

atividades direcionadas à pessoa do terapeuta, afirma :

Parece ineficaz treinar um terapeuta fazendo-o representar papéis correspondentes de sua posição em sua família de origem em diferentes estágios de sua vida, se o que ele necessita é expandir seu estilo de contato e intervenção, a fim de que possa se acomodar a uma variedade de famílias. Parece também inadequado requerer ao terapeuta em treinamento mudar sua posição na sua família de origem, quando seu objetivo é tornar-se um expert em desafiar a variedade de sistemas diversos. (MINUCHIN; FISHMAN, 1990, p. 15)

Por outro lado, refere-se à importância do crescimento pessoal e da

maturidade do terapeuta:

Com a aceitação tanto de minhas habilidades, quanto de minhas limitações, tenho aumentado o alcance de minha ação eficaz [...] aprendi a usar minha experiência de vida e o meu sentimento de companheirismo para com as famílias como parte do processo terapêutico. (MINUCHIN; FISHMAN, 1990, p. 276)

Em escritos posteriores, justifica o “desaparecimento” da pessoa do

terapeuta como decorrente da necessidade do campo da Terapia Familiar

diferenciar-se da Psicanálise e de seus conceitos de transferência e

contratransferência. Ele admite que, em seus primeiros livros, privilegiou as técnicas

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para modificar as famílias. Atualmente, compara as técnicas com as letras do

alfabeto: não basta conhecê-las para se saber ler (MINUCHIN; LEE; SIMON, 1998).

A postura ideal do terapeuta, o seu papel no processo terapêutico e o uso

que faz do poder, segundo Minuchin (1998), são questões ainda presentes,

desafiadoras e que geram divergências; porém, em sua opinião, tal discussão é

pertinente, enriquecendo e ampliando o campo da Terapia Familiar.

1.2 A ESCOLA ESTRATÉGICA NA TERAPIA FAMILIAR

A abordagem estratégica teve seus postulados principais desenvolvidos por

Jay Haley; posteriormente, contou com preciosas contribuições efetuadas por Cloé

Madanes e foi um enfoque que provocou grande impacto no campo da Terapia

Familiar nas décadas de 70 e 80 do século XX. Caracteriza-se por ser uma forma

diretiva de tratamento que busca, primariamente, o desaparecimento do sintoma e, posteriormente, a resolução dos problemas estruturais que deram origem ao sintoma

(NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).

Jay Haley teve a oportunidade de trabalhar junto a figuras fundamentais na

história da Terapia Familiar, atuando, na década de 50, com Gregory Bateson, no

projeto que estudava a comunicação dos esquizofrênicos. Através de Bateson, teve

contato com Milton Erickson, psiquiatra e hipnólogo, que marcou, de forma definitiva,

a si próprio, bem como a sua maneira de atender as famílias: “Erickson pode ser

considerado o mestre da abordagem estratégica à terapia.” (HALEY, 1991, p. 20) Erickson, diferentemente de outros profissionais atuantes da época,

acreditava que as pessoas possuíam recursos internos, que poderiam auxiliá-las a

implementar mudanças rápidas em suas vidas, e que cabia ao terapeuta, centrado

na ação e no contexto, possibilitar que tais recursos emergissem. “Há um desejo natural de crescimento dentro das pessoas [...] há forças pessoais que precisam ser

liberadas para um maior desenvolvimento pessoal.” (HALEY, 1991, p. 35)

A história de vida de Erickson influenciou, provavelmente, seu modo otimista

de encarar as limitações. Aos 17 anos, sofreu de poliomielite, sendo obrigado a

permanecer acamado por um ano, aproximadamente; precisou de muita

determinação para recuperar parcialmente suas habilidades motoras e, apesar de

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apresentar seqüelas decorrentes de tal enfermidade, teve uma vida longa e

produtiva. Sua forma original de tratar as mais variadas problemáticas humanas

incluía uso da hipnose, metáforas, desafios, paradoxos, prescrição de recaídas,

entre outras, que Haley incorporou e aperfeiçoou em sua abordagem estratégica.

Além de Erickson, Haley trabalhou também com Salvador Minuchin, a partir de 1967, na Philadelphia Child Guidance, onde participou ativamente na elaboração

dos conceitos que se tornaram fundamentais na escola estrutural. Com Minuchin,

implementou longo treinamento a profissionais leigos da comunidade interessados

em atuar junto a famílias. A importância da estrutura familiar e, principalmente, os

conceitos de hierarquia e fronteiras foram incorporados na abordagem estratégica.

A avaliação de Haley e seus objetivos são estruturais: melhorar a hierarquia da família e os problemas de fronteiras que dão suporte a essas fronteiras disfuncionais. Sua abordagem calculada e sua tática passo a passo é que são estratégicas. (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998, p. 346)

Haley extraiu da Cibernética os conceitos de retroalimentação e

homeostase e dos estudos da Comunicação o conceito de duplo vínculo e

seqüências interacionais, co-relacionando tais pressupostos com o funcionamento

da família que apresentava problemas. Além disso, buscava compreender qual

função o sintoma desempenhava na família que procurava por atendimento; em

seus escritos originais, enfatiza que o portador do sintoma obtém uma vantagem no

relacionamento; sua premissa era: os relacionamentos humanos caracterizam-se por uma luta pelo controle e poder (MINUCHIN; LEE; SIMON, 1998).

Os sintomas, então, cumpririam uma dupla função: por um lado,

estabilizavam a estrutura familiar disfuncional; por outro, proporcionavam poder ao

seu portador. Sendo assim, cabe ao terapeuta, em primeiro lugar, estabelecer-se

como aquele que detém o poder no contexto terapêutico e, posteriormente, através

de suas estratégias e intervenções, atuar no sentido de reestruturar a estrutura familiar e re-agrupar os membros da família em torno de um poder que favoreça a

todos (BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004).

A terapia estratégica visa ser uma forma de tratamento breve, com o foco

naquilo que é considerado problema pela família, postulando que a mudança é

obtida através de modificações nos comportamentos, e não através da obtenção de

insights; dentro desse enfoque, ter a consciência não implica, necessariamente, em

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mudança. Ao terapeuta, cabe ocupar um papel de especialista, de intervencionista,

bem como elaborar estratégias específicas de acordo com as problemáticas

apresentadas.

A terapia estratégica está voltada para premissa de que o terapeuta deve estabelecer sua prática de modo ativo, diretivo e capacitado [...] planeja e dá início ao que desejaria que ocorresse na terapia. A responsabilidade pela derrota é do terapeuta. (KEIM, 1998, p. 270)

Provavelmente, em função de posicionamentos tão deterministas, a terapia estratégica, que é também denominada de “reengenharia social”, tenha recebido

críticas na década de 90 do século XX, por seu caráter manipulativo, segundo

Nichols e Schwartz (1998). Entretanto, tais autores ressaltam a evolução que o

pensamento estratégico tem apresentado e afirmam que, mesmo na atualidade,

“época de terapeutas não-especialistas, há ainda espaço para estratégias

ponderadas de solução de problemas e orientação terapêutica.” (NICHOLS;

SCHWARTZ, 1998, p. 366)

No que se refere à formação dos terapeutas familiares, Haley, da mesma

forma pragmática que encara as famílias que se encontram em atendimento,

assume como sua a responsabilidade de treinar, supervisionar e garantir o

desenvolvimento do futuro profissional: “Aprendem-se técnicas de entrevistar e técnicas terapêuticas para a variedade de clientes que procuram auxílio, técnicas

estas que precisam ser ensinadas.” (HALEY, 1998, p. 12)

Seus métodos enfatizam a necessidade de os terapeutas dominarem o

maior número possível de técnicas para poder prestar um atendimento adequado.

O que deve ser ensinado são as técnicas para condução de terapias bem-sucedidas, ou seja, como fazer uma pergunta ou um comentário, como deve dar uma diretiva, como determinar quem deverá comparecer às entrevistas e como planejar a estratégia de um caso. (HALEY, 1998, p. 12)

Apesar do foco marcante na aquisição de técnicas, acrescenta que a terapia

não pode ser comparada à carpintaria, pois se trata de um processo conduzido por

pessoas que podem apresentar “limitações”. Sendo assim, cabe ao supervisor atentar que “além de ensinar técnicas clínicas ao terapeuta, o supervisor deve ajudá-

lo a superar dificuldades pessoais e atingir o mais alto nível de competência clínica.”

(HALEY, 1998, p. 22)

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O supervisor, então, é o responsável por encontrar alternativas que

possibilitem ao treinando superar impasses decorrentes de sua vida pregressa ou

presente. No entanto, desaconselha que os profissionais submetam-se a longos

processos terapêuticos, considerando que tal fato acaba sendo um empecilho em seu treinamento. “A meu ver, quanto mais terapia teve o trainee, mais difícil será

treiná-lo numa terapia de abordagem social ativa.” (HALEY, 1998, p. 24)

Haley (1998) condena as supervisões que se norteiam por uma abordagem

conversacional, nas quais prevalecem hierarquias mais igualitárias, e chega a

questionar se tal postura não seria uma sinalização do não comprometimento do

supervisor. Ele também se recusa a incluir, no treinamento de terapeutas estratégicos,

qualquer tipo de atividade relacionada às suas famílias de origem, justificando sua

postura por temer que tal configuração predisponha o profissional a focalizar,

exageradamente, no material histórico familiar, dando menos atenção aos dilemas

vivenciados pelos clientes no presente, segundo McDaniel e Landau-Stanton (1996).

Seu posicionamento torna-se compreensível se for levada em consideração a oposição que Haley demonstrou, durante toda a sua trajetória, contra a Psicanálise e

as inúmeras manifestações públicas que fez acerca de seu modo de encarar tal

método psicoterapêutico.

Entretanto, parece que Haley parte do princípio de que qualquer trabalho

voltado à família de origem teria como foco carências, traumas e impedimentos, ou

seja, de quanto a família ocupa um papel de agente limitador ou repressor ao

crescimento do indivíduo. De forma interessante, acaba por incorporar um dos

pressupostos da Psicanálise (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).

Acredita-se que, se houver um redirecionamento do olhar, através do qual

as vivências familiares sejam vistas como fonte de contribuição no desenvolvimento

de competências, tal postura seria coerente com a crença ericksoniana, incorporada

pelo próprio Haley, de que as pessoas possuem mais recursos do que imaginam, sendo o grande desafio do ser humano acessá-los e implementá-los em suas vidas,

a fim de viver de uma forma mais satisfatória.

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1.3 A ESCOLA BOWENIANA NA TERAPIA FAMILIAR

Abordagem que pode também ser classificada como pertencendo ao

Enfoque Intergeracional foi desenvolvida por Murray Bowen, psiquiatra e

psicanalista, que iniciou sua vida profissional atendendo indivíduos portadores de

esquizofrenia. Diferentemente de outros pioneiros do campo da Terapia Familiar,

Bowen demonstrou grande preocupação em desenvolver uma teoria explicativa dos

comportamentos humanos, que viesse a dar sustentação à sua prática clínica. Dentre todas as teorias desenvolvidas na Terapia Familiar, segundo Framo

(1996, p. 298, 312), a abordagem boweniana “foi e ainda é a mais compreensiva, de

longo alcance e influente no campo [...] acredito que, daqui a 50 anos, a sua teoria

ainda será influente no campo.”

Bowen (1991) não utilizou a Teoria Geral dos Sistemas e a Cibernética

como alicerces da teoria que desenvolveu posteriormente; segundo ele, só veio a compreender tais teorias após ter a estrutura de sua própria abordagem

desenvolvida. Preferiu fazer uso de termos extraídos das Ciências Biológicas e

Naturais, pois acreditava que, ao agir assim, daria um cunho mais científico às suas

descobertas.

No início de seu trabalho, seu foco de interesse deslocou-se do paciente

esquizofrênico para a “relação simbiótica” estabelecida entre mãe e filho,

percebendo que tal interação passava por ciclos repetitivos de proximidade e

distância. Posteriormente, em sua observação, passou a incluir o papel

desempenhado pelo pai nesse relacionamento; a partir de suas conclusões,

desenvolveu o conceito de triângulos, fundamental em sua abordagem teórica e

prática. Bowen postulava que, em um relacionamento entre duas pessoas, é comum

que ocorra o surgimento de algum nível de ansiedade e que, em momentos críticos,

tal ansiedade acaba por ser minimizada com a inclusão de uma terceira pessoa na

relação. Para ele, o sistema básico de relacionamento sempre envolve três pessoas:

“o triângulo é um modo natural de ser” (BOWEN, 1991, p. 187); sendo assim, o

conhecimento dos triângulos é uma ferramenta essencial ao terapeuta. Além disso, em todo sistema familiar, existem múltiplos triângulos interconectados que podem

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estar ativados ou não, dependendo do grau de tensão vivenciado em um momento

específico.

Outro conceito básico de sua teoria refere-se ao grau de diferenciação

alcançado por uma pessoa, ou seja, a autonomia que demonstra na vida, a

capacidade ou não de estabelecer e manter relacionamentos íntimos pessoa a

pessoa, nos quais há controle da emotividade e explicitação de pensamentos e

sentimentos, sem que haja necessidade de incluir um terceiro na relação ou de

recorrer à fusão. “A diferenciação é uma luta constante por se autodefinir e

individualizar-se.” (BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004, p. 88)

Sendo assim, a diferenciação humana é vista como um processo, e não como um estado que não pode ser alterado. Em sua teoria, Bowen não apresenta

uma definição de normalidade familiar; “todas as famílias variam ao longo de um

contínuo, desde a fusão até a diferenciação [...] as famílias são mais parecidas que

diferentes.” (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998, p. 316)

Bowen propôs, com o objetivo de propiciar compreensão e clareza na

divulgação da sua teoria, a Escala de Diferenciação do “Self”, com graus que variavam de zero a cem. No extremo inferior, encontravam-se as pessoas menos

diferenciadas; no extremo superior, aquelas que obtiveram maior diferenciação.

Entretanto, acrescenta que um grau máximo de diferenciação é impossível: “a

diferenciação completa é prática e teoricamente impossível.” (BOWEN, 1991, p. 193)

O grau de diferenciação que uma pessoa possui é resultado das

experiências que vivenciou em sua família de origem e, geralmente, é similar ao

grau de diferenciação obtido por seus pais. Variações podem ocorrer, ocasionando

maior ou menor diferenciação, dependendo das condições serem mais ou menos

favoráveis. A esse fenômeno Bowen denominou Processo de Projeção Emocional

Familiar. Como o grau de diferenciação de um indivíduo depende do grau de

diferenciação de seus pais, que depende daquele obtido por seus próprios pais

(avós do indivíduo) e assim sucessivamente, resulta num processo de transmissão multigeracional presente em todas as famílias.

O conceito de processo de transmissão multigeracional aplica-se ao modo pelo qual os processos de projeção familiar, repetidos de geração em geração, durante longos períodos de tempo, levam os diferentes ramos da família a alcançar níveis mais baixos ou mais altos de diferenciação. (PAPERO, 1998, p. 87)

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Murray Bowen diferencia-se dos outros pioneiros da Terapia Familiar por

não abordar apenas a família atual, e sim buscar na família ampliada, nas gerações

precedentes, indícios e conexões com as dificuldades vivenciadas no presente

(BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004).

Segundo Bowen, as pessoas estabelecem relacionamentos adultos

repetindo os modelos relacionais aprendidos em suas famílias de origem, no que se

refere à proximidade, distanciamento e triangulação; o passado, então, acaba por se

fazer presente através desse processo. Quando se refere a casais, afirma: “o vínculo

emocional entre ambos é idêntico ao que cada um deles havia tido com sua

respectiva família de origem.” (BOWEN, 1991, p. 65) O grau de diferenciação obtido por uma família ou indivíduo possui estreita

relação com os sintomas que podem surgir em uma família; via de regra, pessoas

menos diferenciadas apresentam sintomas mais graves e pessoas mais

diferenciadas apresentam sintomas mais brandos. Além disso, o surgimento do

sintoma possui estreita relação com o nível de ansiedade presente no sistema: “os

sintomas resultam do estresse que excede a capacidade de uma pessoa para lidar com ele.” (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998, p. 319) Mesmo famílias com baixo nível de

diferenciação podem ter uma vida funcional, desde que não ocorram situações que

elevem o grau de estresse do sistema.

O modelo boweniano não enfatiza o sintoma, mas sim a dinâmica familiar

que influenciou em seu surgimento. Dentro dessa abordagem, o objetivo terapêutico

consiste em promover um maior grau de diferenciação do “self” que, por sua vez,

acaba repercutindo em todo o sistema familiar. Além disso, aumentando o seu nível

de diferenciação, a pessoa torna-se mais apta a enfrentar as crises futuras.

Geralmente, Bowen atendia ao casal, mesmo que o portador do sintoma

fosse a criança; na impossibilidade de atender a ambos, atendia apenas a pessoa

mais motivada. Agia assim por crer que o sintoma apresentado pela criança era

apenas um reflexo das dificuldades existentes na relação do casal e que, uma vez que os cônjuges aumentassem o seu grau de diferenciação em relação às suas

famílias de origem e pudessem se relacionar sem recorrer à triangulação, haveria

uma melhora no relacionamento conjugal e, conseqüentemente, no sintoma

apresentado pelo filho.

Dentro do enfoque boweniano, o trabalho terapêutico com o casal fornece

um modelo diferente: o terapeuta ocupa o lugar de um terceiro que triangula com os

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cônjuges. Quando o nível de ansiedade é alto, cabe ao terapeuta ouvir a cada um

dos membros do casal, solicitando que o outro ouça atentamente e só se manifeste

quando o terapeuta assim o solicitar. O terapeuta deve também estimular que os

participantes falem acerca de seus pensamentos, uma vez que a condição básica

para a diferenciação é o fato da pessoa ter o controle racional e intelectual de seus

sentimentos. Os cônjuges também são incentivados a estabelecer relacionamentos

diferentes com suas respectivas famílias de origem, buscando manter contatos dois

a dois, identificar os triângulos presentes na família e buscar a destriangulação. À

medida que o grau de diferenciação de cada um dos cônjuges aumenta, os reflexos fazem-se presentes no sistema conjugal.

No processo terapêutico, enfatiza-se tanto o processo, ou seja, os padrões

reativos desencadeados pela ansiedade, quanto a estrutura, ou seja, quais

triângulos são ativados na presença de estresse. O terapeuta boweniano concentra-

se nos processos cognitivos, e não afetivos, empenhando-se em manter e favorecer

interações calmas, contidas e objetivas. Além disso, esforça-se por manter uma

postura de neutralidade, de proximidade com os cônjuges, mas sem triangular com eles. Para que possa agir assim, é de fundamental importância a sua maturidade e

diferenciação com relação à sua família de origem; essa é a condição básica para

evitar que suas respostas emocionais se entrelacem no problema de seus clientes.

Tal pressuposto baseia-se na experiência que Bowen realizou com sua

própria família de origem, tendo realizado esse processo de diferenciação durante

anos e, mais tarde, exposto publicamente os resultados obtidos em um evento

científico da Terapia Familiar. Seus seguidores, mobilizados por seu exemplo,

espontaneamente, realizaram processo semelhante junto a suas famílias de origem,

e Bowen percebeu que os resultados alcançados por eles eram muito superiores aos

que aqueles profissionais que não haviam feito esse trabalho em suas famílias de

origem apresentavam: “esta modalidade de treinamento passou a ser a regra para

ensinar aos estudantes os conceitos sobre as famílias.” (BOWEN, 1991, p. 66) No processo terapêutico, o terapeuta e a diferenciação alcançada em sua

família de origem acabam por ser o melhor instrumento de trabalho; nessa

abordagem, pouca importância é dada a técnicas: “se o terapeuta está bem

diferenciado, possui todos os requisitos para cumprir com seu trabalho, sem

necessidade de estratégias ou truques.” (BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004, p.

139)

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Com freqüência, na formação e supervisão dos futuros terapeutas de

famílias, utilizam-se a elaboração de genogramas, tarefas específicas para os

terapeutas realizarem junto a suas famílias de origem e atividades que propiciem e

estimulem os terapeutas a assumirem uma posição de eu, responsabilizando-se por

seus comportamentos, sentimentos e cognições.

Embora o trabalho desenvolvido pelos terapeutas e voltado às suas famílias

de origem tenha como foco principal resolver “relacionamentos inacabados”,

destriangular-se e poder se relacionar de forma madura, há também o benefício de,

no percurso, poder re-visitar a sua história e re-conhecer os seus familiares de uma

forma mais completa e humana, bem como ter uma visão mais ampla de sua história e de aprendizados propiciados por ela.

Um conhecimento mais exaustivo das famílias anteriores pode nos ajudar a compreender que não há anjos ou demônios: todos foram seres humanos, com sua força e sua debilidade, com suas reações previsíveis de acordo com o impacto emocional do momento, tendendo cada um deles a dar o melhor de si durante sua vida. (BOWEN, 1991, p. 100)

1.4 A ESCOLA EXPERIENCIAL NA TERAPIA FAMILIAR

O principal expoente da escola experiencial é Carl Whitaker, considerado

um dos terapeutas que, com sua espontaneidade e criatividade, despertou maior

admiração no campo da Terapia Familiar. A abordagem que desenvolveu recebeu contribuições evidentes das tradições existenciais, humanísticas e fenomenológicas

(NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).

Whitaker formou-se em Medicina e, na época em que decidiu se

especializar em Psiquiatria, teve dificuldades em encontrar supervisores, pois a

maioria dos psiquiatras estava de alguma forma envolvida com a Segunda Guerra

Mundial. Tal fato obrigou-o a extrair e desenvolver seus conhecimentos através da

experiência vivenciada, prestando atendimentos a esquizofrênicos, “praticando por si

mesmo a aproximação à loucura, ao invés de assistir a cursos a respeito,

desenvolve uma autêntica fascinação pelo mundo dos psicóticos.” (BERTRANDO;

TOFFANETTI, 2004, p. 111)

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O conhecimento adquirido através de seu trabalho com psicóticos, tanto

adultos quanto crianças e delinqüentes, propiciou que encontrasse os elementos

com os quais elaborou sua abordagem, culminando com o tratamento de famílias.

Foi um dos pioneiros que se depararam com esta problemática: à medida que

resultados positivos eram obtidos no tratamento de esquizofrênicos, “intervinha a

família e destruía nossos esforços terapêuticos. Esta pauta nos aproximou cada vez

mais da decisão de começar com a família.” (WHITAKER, 1992, p. 41)

Quando passou a atender mais e mais famílias, percebeu que essa é a

melhor forma de atuar, a que possibilitava um crescimento real dos indivíduos,

chegando a postular: “não há tal coisa como o indivíduo. Nós somos apenas fragmentos de famílias, flutuando, tentando viver a vida.” (WHITAKER; BUMBERRY,

1990, p. 30) Sendo assim, reunir todo o grupo familiar proporciona experiência

terapêutica em seu melhor nível.

O modelo experiencial enfatiza que as pessoas aprendem de modo mais

eficaz através da experiência; as mudanças não podem ser ensinadas às pessoas, e

sim vivenciadas por elas mesmas. Uma suposição básica refere-se ao fato de que o crescimento dos indivíduos e das famílias engloba um processo de alternâncias

dialéticas entre diferenciação e pertencimento; o perigo da primeira é a solidão e da

segunda, a escravidão.

Outro aspecto importante enfatizado na abordagem experiencial relaciona-

se ao mundo simbólico, que Whitaker compara à infra-estrutura de uma cidade

(sistema de esgoto, canos etc.), que pode não ser percebida à primeira vista, mas

que existe e é essencial para o seu funcionamento. No processo de socialização,

muitos aspectos do mundo simbólico do indivíduo ficam relegados, pois “a estrutura

social só tolera certas versões de personalidade.” (WHITAKER, 1992, p. 67) Um dos

objetivos do processo terapêutico é propiciar que as pessoas, à medida que tomem

contato com sua própria “loucura”, com excentricidades, aspectos ilógicos e

vulnerabilidades que permeiam seu mundo simbólico, humanizem-se e engajem-se em relacionamentos mais plenos e satisfatórios.

No enfoque experiencial, as famílias normais são aquelas nas quais os

indivíduos têm a oportunidade de serem eles mesmos, recebendo apoio em seu

crescimento e no estabelecimento de experiências individuais. Tais famílias são

dinâmicas, estão em constante processo de evolução e mudança; frente a desafios

ou crises, têm a capacidade de se reorganizar, pois são flexíveis e criativas. Suas

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regras “servem de guias e estão a serviço dos esforços de crescimento.”

(WHITAKER; BUMBERRY, 1990, p. 137) Além disso, existe clareza entre as

gerações; triângulos e coalizões eventuais podem ser suportados por seus membros

sem que haja a emergência de sintomas.

Já as famílias disfuncionais não apresentam flexibilidade frente aos

desafios; seus esforços direcionam-se a manter a estabilidade; seus componentes

apresentam dificuldades de estabelecer tanto relacionamentos íntimos, quanto

movimentos autênticos de autonomia (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).

Na opinião de Connell, Mitten e Whitaker, o sintoma pode surgir em

decorrência de impasses nas transições do ciclo vital ou como sinalizador do clima de morte emocional presente na família. O sintoma pode também se referir aos

processos interativos presentes na família, sendo visto como “tentativas criativas que

tendem a ensejar o crescimento familiar.” (CONNELL; MITTEN; WHITAKER, 1998,

p. 72) É através do sintoma, considerado por Whitaker e Bumberry (1990) como o

“bilhete de entrada”, que as famílias podem, fazendo uso da dor que o mesmo

desperta, sair de sua paralisia e efetuar um pedido de ajuda terapêutica. Os objetivos terapêuticos na abordagem experiencial são: possibilitar o

crescimento real da família, restituindo-lhe a direção de seu processo de mudança;

resgatar e aumentar sua liberdade criativa, propiciando que, ao recuperar seu

próprio potencial para a experiência, as habilidades de cuidar um do outro se

intensifiquem. Além disso, é necessário que os membros da família aceitem que as

divergências e diferenças não são destrutivas e que a dor e a ansiedade podem

mobilizar o seu desenvolvimento. Acredita-se que, através da expansão do mundo

simbólico dos membros da família e da respectiva integração em suas vidas, o

resultado será um viver mais pleno.

Na escola experiencial, o desaparecimento do sintoma não é priorizado,

pois adaptação não corresponde, necessariamente, a crescimento; as mudanças de

segunda ordem são vistas como as únicas que são realmente válidas, pois alteram o funcionamento da família como um todo. “O objetivo essencial de toda psicoterapia é

libertar-se do passado, bom e mau, e do futuro, bom e mau, e somente ser.”

(WHITAKER, 1992, p. 70)

Para que os objetivos terapêuticos levantados sejam atingidos, é de

fundamental importância o papel que o terapeuta desempenha nesse processo, uma

vez que ele atua como “modelo” para os membros da família. “Sua disposição para

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trazer mais e mais de si para as sessões é o ingrediente catalítico que pode

desencadear a experiência de crescimento da família.” (WHITAKER; BUMBERRY,

1990, p. 33)

Sendo o terapeuta o principal instrumento de trabalho nesse enfoque, as

técnicas não são priorizadas; acredita-se, inclusive, que a sua utilização, bem como

a preparação antecipada da sessão, pode ocasionar um distanciamento entre o

terapeuta e a família. Connell, Mitten e Whitaker (1998) assinalam: quem precisa da

técnica é o terapeuta, e não a família, e o impacto que ela terá na família dependerá

do envolvimento pessoal que se estabelecerá.

Os terapeutas que atuam orientados pela abordagem experiencial são ativos, diretivos, alternadamente provocativos e apoiadores. Na fase inicial do

processo terapêutico, o terapeuta sinaliza à família que busca seu auxílio que é ele

quem está no comando dos aspectos administrativos do processo; de maneira clara,

determina quem deverá comparecer na primeira entrevista; procura incluir o máximo

de pessoas significativas, a fim de que haja motivação suficiente para se iniciar a

terapia. Preferencialmente, Whitaker incluía três gerações da família no atendimento e postulava que a forma mais efetiva de se modificar uma pessoa engloba a

modificação do sistema no qual ela está inserida: “a presença de toda a família é a

única forma que eu conheço para gerar suficiente ansiedade e motivação para a

mudança.” (WHITAKER; BUMBERRY, 1990, p. 37)

À medida que o processo terapêutico avança, o terapeuta torna-se menos

diretivo e responsabiliza a família mais e mais pelo seu processo de crescimento;

através dessa postura, sinaliza que cabe a eles, como família, encontrarem o seu

próprio modelo. Ao terapeuta, cabe compartilhar do seu mundo simbólico, de

experiências vivenciadas em sua família de origem ou de estórias relevantes aos

conteúdos que a família apresenta. Além disso, deve gerar estresse que

desestabiliza e induz a família à confusão, pois acredita que ela é “a essência real

da desaprendizagem e da nova aprendizagem. Até que você rompa com seus padrões, a rotina continua a se aprofundar.” (WHITAKER; BUMBERRY, 1990, p. 66)

Nessa abordagem, a aquisição de insight não é considerada relevante, pois

se crê que ele ocorre em decorrência da experiência. Ao final do processo

terapêutico, a relação entre o terapeuta e a família apresenta uma maior simetria,

“uma relação existencial e de iguais.” (WHITAKER, 1992, p. 199) O foco principal e

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que pode, até certo ponto, ser considerado o lema desse enfoque refere-se à

importância de priorizar o processo em vez do progresso.

Levando-se em conta o uso que o terapeuta faz de sua pessoa e a sua

extrema implicação nos processos simbólicos e emotivos das famílias que atende, o

seu desenvolvimento pessoal é de fundamental importância. Suas experiências de

vida, a forma como se envolve em relacionamentos significativos, sua

espontaneidade e criatividade são fatores preponderantes e que repercutirão na

maneira como conduzirá o processo terapêutico.

Além disso, o autoconhecimento obtido pelo terapeuta auxilia na percepção

mais clara do quanto as suas experiências, os seus valores e estereótipos funcionam como “lentes” que filtram as vivências trazidas pela família em

atendimento. “Os referenciais que, automaticamente, aplicamos refletem nossa

própria constelação de perspectivas pessoais, preconceitos e distorções. Nós

podemos ver os outros apenas através dos olhos de nossa própria experiência.”

(WHITAKER; BUMBERRY, 1990, p. 135)

Segundo Neil e Kniskern (1990), um fator que mobiliza a escolha de ser psicoterapeuta refere-se às vivências efetuadas em sua família de origem, “os

terapeutas parecem ter sido ajustadores ou esclarecedores ou pais substitutos.”

(NEIL; KNISKERN, 1990, p. 124) Para que o psicoterapeuta obtenha maior clareza

quanto a seu papel profissional e não confunda suas necessidades com as de seus

clientes em atendimento, os autores aconselham a busca de terapia didática

pessoal.

Connell, Mitten e Whitaker (1998) assinalam que se tornar um terapeuta

experiencial é um processo que só pode ser aprendido através da prática. Ser um

terapeuta envolve além de desempenhar um papel, estar como pessoa implicada no

processo; tal desenvolvimento requer tempo, disposição e abertura ao novo. Além

disso, o acesso e a compreensão de seu próprio mundo simbólico e impulsivo é

“pré-requisito para ver e entender o mundo simbólico dos outros.” (WHITAKER; BUMBERRY, 1990, p. 61) “É loucura pensar que você possa trabalhar com uma

família e seu mundo impulsivo se você não pode ter acesso ao seu próprio.”

(WHITAKER; BUMBERRY, 1990, p. 128)

A formação de um futuro terapeuta de família na abordagem experiencial

segue um caminho semelhante ao da terapia: inicialmente, o supervisor assume um

papel mais central, o qual se encaminha para uma maior simetria à medida que o

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terapeuta avança em seu processo de crescimento. O “treinando” é estimulado a

conhecer sua própria interioridade, a efetuar contato com suas peculiaridades, seu

universo simbólico, sua “loucura”, bem como com suas forças e potencialidades.

Também é incentivado a estabelecer, com sua família de origem, um relacionamento

em que tanto o pertencimento quando a individuação sejam possíveis.

Tornar-se um terapeuta pode ser visto como um processo: “primeiro,

aprende-se coisas sobre a psicoterapia; depois, como fazer psicoterapia; e após, se

tudo vai bem, dá-se o passo de converter-se em um terapeuta.” (WHITAKER, 1992,

p. 247)

Um ponto característico da abordagem experiencial, que a distingue de outros enfoques, situa-se na importância de contar com um co-terapeuta na

condução do processo terapêutico. Levando-se em consideração o grande

envolvimento afetivo do terapeuta com a família, a co-terapia propicia maior

liberdade para experienciar, ser criativo, aproximar-se e distanciar-se, diminuindo o

risco de ficar absorvido no campo emocional da família. O co-terapeuta também é

alguém com quem se pode compartilhar a condução do processo terapêutico, suas repercussões internas e que, ao término da psicoterapia, reduz o sentimento de

perda do terapeuta.

Outra contribuição interessante de Whitaker (1992) diz respeito ao

crescimento pessoal que pode ser obtido através de “psicoterapeutas não

profissionais”, denominação que pode ser recebida por qualquer pessoa leiga com

quem é possível estabelecer um relacionamento significativo e desencadeante de

crescimento pessoal. Esse terapeuta não profissional pode ser um familiar, um

amigo ou, inclusive, o co-terapeuta com quem se trabalha. Em seu relato

autobiográfico, Whitaker (1992) menciona várias pessoas que ocuparam esse papel

ao longo da sua vida. Por exemplo: seu avô, quando tinha 5 anos; seus colegas na

escola, que lhe asseguraram a sensação de pertencimento; a experiência

compartilhada com Jonh Warketin, no atendimento em co-terapia de esquizofrênicos.

Segundo Whitaker (1992), mesmo os acontecimentos dolorosos ou difíceis

que acontecem na vida podem desempenhar um aspecto terapêutico e

impulsionador do crescimento dos indivíduos; em suas próprias palavras: “a vida em

si pode ser terapêutica.” (WHITAKER, 1992, p. 183)

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1.5 A ESCOLA PROCESSUAL NA TERAPIA FAMILIAR

Virginia Satir, dentre os pioneiros da Terapia Familiar, foi a única mulher,

possuía formação em Serviço Social e prestava atendimento a famílias desde 1951. Em 1955, passou a fazer parte do Mental Research Institute e, na atuação com Don

Jackson, incorporou os conceitos advindos da Teoria Geral dos Sistemas em sua

prática: a família é vista como um sistema, que possui tendência à homeostase e

cujos membros apresentam padrões repetitivos e previsíveis de comportamento e de

comunicação (BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004). A abordagem de Virginia Satir no campo da Terapia Familiar é analisada, de

acordo com alguns autores, como Nichols e Schwartz (1998), Bertrando e Toffanetti

(2004), como situada dentro de um enfoque experiencial, uma vez que busca,

através da experimentação, levar os indivíduos ao crescimento decorrente da

ampliação do repertório de comportamentos disponíveis. Entretanto, optou-se pelo

uso da classificação proposta por Joan Winter e Maria Gomori, representantes e formadoras do modelo desenvolvido por Virginia Satir, explicitado no livro Panorama

das Técnicas Familiares, organizado por Mony Elkaim (1998), que a situa na

abordagem processual.

Virginia Satir foi considerada uma força humanizadora na Terapia Familiar,

pois possuía “o olhar direcionado à vida emocional, ao contrário de outros pioneiros

que estavam enamorados da nova metáfora dos sistemas.” (NICHOLS;

SCHWARTZ, 1998, p. 54)

O modelo processual alia conhecimentos advindos da Terapia da Gestalt,

do Psicodrama, bem como do Enfoque Comunicacional; os pontos principais

abordados nesse modelo referem-se à importância do afeto, da auto-estima, da

comunicação e dos padrões de interação.

Virginia Satir demonstrava uma visão positiva e otimista das pessoas; acreditava que todos os seres humanos possuem, dentro de si, competências e

recursos que podem ser mobilizados em direção à saúde e ao crescimento. A

mudança é vista como oportunidade; é “um processo natural e constante pelo qual

os indivíduos vêm a conhecer a si mesmos, realizar seu potencial e vincular-se aos

demais.” (WINTER, 1998, p. 101)

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Nesse enfoque, as famílias saudáveis são vistas como flexíveis, portadoras

de positiva auto-estima individual e familiar, adaptando-se, de forma criativa, aos

desafios que surgem em suas vidas. Os membros dessas famílias demonstram

afeto, validação e aceitação uns pelos outros; as discordâncias podem ser

comunicadas, pois serão ouvidas e respeitadas. As famílias disfuncionais

evidenciam limitada expressão de afetividade, falta de flexibilidade frente às crises,

papéis familiares rígidos e padrões de comunicação destrutiva que se relacionam à

baixa auto-estima presente em seus componentes (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).

Satir (1993) postulava que a auto-estima dos indivíduos se estabelece no

convívio com a família de origem, nos cinco primeiros anos de vida, através das interações com os membros significativos, geralmente os pais. Os indivíduos que

crescem com baixa auto-estima buscam, em seus relacionamentos futuros,

gratificações que venham a alterar a forma como se sentem acerca de si mesmos.

Quando frustrados em suas necessidades, surgem dificuldades de comunicação nas

interações, que podem desencadear o surgimento de conflitos. Esses indivíduos

também podem vir a utilizar seus filhos para manter ou aumentar a sua própria auto-estima, estabelecendo com eles relações de triangulação.

O surgimento do sintoma ocorre em decorrência da presença de estresse

no sistema e pode ser encarado como um sinalizador da tensão presente na díade

conjugal e que repercute no desempenho dos papéis parentais. O Paciente

Identificado emite uma mensagem “que denuncia estar ele distorcendo seu próprio

crescimento devido aos esforços feitos no sentido de aliviar e absorver a tensão

existente entre seus pais.” (SATIR, 1993, p. 22)

Os objetivos terapêuticos do modelo processual visam alterações no

processo de comunicação, entendida em seus aspectos verbais e não verbais, entre

os componentes da família. Acredita-se que, a partir do momento em que os

indivíduos passam a expressar de maneira mais clara seus pensamentos,

sentimentos, em um clima de aceitação e cordialidade, a integração e a adaptação familiar aumentarão, repercutindo de forma positiva na auto-estima individual. Além

disso, é necessário que cada pessoa seja considerada em sua singularidade; a

existência de diferenças necessita ser aceita e valorizada. A mudança, por si só, não

é o objetivo, e sim o crescimento e a expansão das possibilidades individuais que

virão a repercutir no sistema como um todo. “...não se trata de obter mudanças nas

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pessoas, e sim procurar lhes oferecer uma profunda sensação de compreensão.”

(BERTRANDO; TOFFANETTI, 2004, p. 159)

O foco do tratamento é o processo de interação entre os membros da

família, em detrimento dos conteúdos da comunicação; a mudança ocorre como

resultado da alteração das interações familiares.

No modelo processual, o terapeuta possui um papel ativo frente ao

processo terapêutico; deve demonstrar interesse, aceitação, acolhimento e validação

àqueles que buscam sua ajuda. Necessita ser “um modelo” no que se refere à

clareza e à congruência em sua forma de se comunicar, prestando especial atenção,

sempre que possível, a incrementar a auto-estima dos clientes. O encontro terapêutico é visto como uma oportunidade preciosa de crescimento tanto para o

cliente, quanto para o terapeuta.

O desenvolvimento da pessoa do terapeuta é um aspecto de grande

relevância no modelo processual. Satir propunha a necessidade de que, na

formação dos terapeutas familiares, um trabalho direcionado a seus processos

internos fosse realizado. Para tanto, no treinamento, utilizava-se de vários métodos, tais como: cronologia da vida familiar, dramatizações, esculturas, tendo por objetivo

o aumento da auto-estima, a ampliação das possibilidades de escolha, a maior

responsabilização e a obtenção de congruência pessoal (WINTER; GOMORI, 1998).

Acreditava que, assim como os clientes, os terapeutas também carregam

impactos negativos de seu passado que, ao serem trabalhados, virão a propiciar

melhores resultados na interação e no tratamento de seus clientes (LUM, 2002). No

que se refere às suas famílias de origem, “espera-se que [os terapeutas] tenham se

aceito e se vinculado com seus próprios pais no nível de ‘pessoalidade’ de cada um.”

(WINTER; GOMORI, 1998, p. 134)

O trabalho com a pessoa do terapeuta permite, além da resolução de

questões pendentes, aumentar a consciência acerca dos aspectos positivos, que

foram adquiridos ao longo de sua história. Portanto, cabe a pergunta: “Quais forças e recursos eu ganhei da minha família de origem?” (LUM, 2002, p. 185)

Essa visão direcionada ao impacto positivo que a família de origem

desempenha na vida dos indivíduos repercute favoravelmente no tratamento, pois os

indivíduos passam a ser vistos como dotados de recursos e de poder para enfrentar

e manejar criativamente as dificuldades que se apresentam ao longo de suas vidas;

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passam a ter uma visão positiva de si mesmos; passam a estabelecer

relacionamentos profundos, gratificantes e significativos.

Pelo exposto, observa-se que diferentes pioneiros na Terapia Familiar

propunham formas diversas acerca de qual seria o papel ideal do terapeuta, ênfases

diferentes em suas histórias de vida e diferentes processos relacionados à formação

de um terapeuta de família.

Torna-se claro, então, que os enfoques estruturais e estratégicos

priorizavam a aquisição e o manejo de técnicas como fundamentais ao bom

desempenho terapêutico. Por outro lado, nos enfoques boweniano, experiencial e contextual, o manejo das técnicas relega-se a um papel secundário, sendo o

desenvolvimento da pessoa do terapeuta visto como fator preponderante para o

desenvolvimento de uma prática terapêutica eficiente.

Boscolo e Bertrando (2000) assinalam que os enfoques iniciais da Terapia

de Família, ou seja, todos os já descritos neste trabalho, utilizavam-se do referencial

da Cibernética de Primeira Ordem, ou Cibernética dos Sistemas Observados, que possui como premissas: a possibilidade de separar o sistema observado (a família)

do sistema observante (o terapeuta) e o foco nos mecanismos de retroalimentação,

tanto positiva quanto negativa, que possibilitam a morfogênese e homeostase dos

sistemas, respectivamente. Outras características das abordagens que se utilizavam

desse referencial relacionam-se à possibilidade de uma explicação objetiva do

sistema familiar observado, à neutralidade do observador, à exigência de verdade e

objetividade na descrição das estruturas e processos familiares alvo de modificação

e à conseqüente postura hierárquica do terapeuta como o especialista que

“modificaria” a família, conforme Sluzki (1987), Hoffman (1990) Boscolo e Bertrando

(2004).

A partir dos anos 80 do século XX, no campo da Terapia Familiar, ocorreu

uma “revolução epistemológica” (BOSCOLO; BERTRANDO, 2000); uma “grande mudança” (GRANDESSO, 2000); um “novo desequilíbrio e salto evolutivo” (SLUZKI,

1997). Tais fatos ocorreram em virtude da incorporação de conceitos provenientes

da Cibernética de Segunda Ordem, ou Cibernética dos Sistemas Observantes, e do

Construtivismo.

A Cibernética de Segunda Ordem considerava os sistemas vivos como

“autocriadores” e entidades independentes, que não poderiam ser programados de

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fora, uma vez que não seguem padrões pré-determinados (HOFFMAN, 1990). O

centro de interesse de tal disciplina passa, então, a ser o observador, que é

possuidor de “seus prejuízos, teorias e sensibilidade; constrói e descreve a realidade

observada” (BOSCOLO; BERTRANDO, 2004, p. 236).

Outro aporte importante foram os estudos realizados por Maturana e Varela

referentes à percepção, nos quais demonstraram que aquilo que se enxerga é o

resultado da atividade interna desencadeada pelo mundo externo. Além disso, as

contribuições provenientes do Construtivismo, desenvolvidas por Heinz Von Foester

e Ernest Graserfeld, relacionadas ao conhecimento como resultado de uma

construção mental, e não como representação fiel de uma realidade independente do observador, tiveram um impacto marcante no campo (ELKAIM, 2000).

A partir do momento que tais conhecimentos foram assimilados, percebe-se

a impossibilidade de separar sistema observado e sistema observante; ou seja,

nenhuma descrição é independente daquele que a efetua. O observador encontra-se

recursivamente conectado com o sistema que observa, e aquilo que ele descreve

relaciona-se com suas limitações, seus pressupostos teóricos e preconceitos. Com a incorporação de tais conceitos, as implicações de ordem prática são

fundamentais: o terapeuta perde o seu poder e status de especialista, de

conhecedor da realidade de seu cliente e de interventor objetivo que conduziria a

família em direção à “funcionalidade”. O terapeuta passa, então, a ser mais um

elemento no sistema, cujo papel é o de facilitar, num processo dialógico estabelecido

junto a seus clientes, a emergência de realidades alternativas e o aumento de

possibilidades que sejam mais úteis a eles.

A partir do momento que é mais um no sistema, todo terapeuta carrega

consigo, ao atender seus clientes, premissas e elementos provenientes de sua

formação pessoal e de sua vida passada e presente que, inevitavelmente,

interferirão naquilo que ele observa e seleciona, bem como em suas intervenções

posteriores. Adentra-se, pois, no conceito de auto-referência, que pode ser definida

como “aquilo que o terapeuta leva de si mesmo no contexto do encontro terapêutico

em relação a elementos pessoais, familiares e sociais.” (ANDOLFI, 1996, p. 70)

Sendo as percepções e observações efetuadas pelos terapeutas auto-referentes,

torna-se necessário que ele assuma uma postura constante de interrogação acerca

dos significados que atribui ao que o cliente traz para o contexto terapêutico, bem

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como de reflexão cuidadosa acerca de suas reações e seus envolvimentos afetivos

frente ao que ocorre nos atendimentos; ou seja, é necessário que o terapeuta

desenvolva a auto-reflexividade.

Outro conceito importante advindo das modificações que se fizeram

presentes na Terapia Familiar refere-se à ressonância, que é considerada o conjunto

das “ligações particulares devido à intersecção de dois sistemas diversos em torno

de um único elemento.” (ANDOLFI, 1996, p. 67) Tais conexões, que podem dizer

respeito às histórias do terapeuta e dos membros da família, podem representar

tanto fatores que interferem negativamente no processo terapêutico, quanto

possibilidades de estabelecer um contato empático e verdadeiro. Sendo assim, percebe-se a importância de que os terapeutas de família

tenham consciência acerca de sua história passada e presente, dos recursos que

desenvolveram, de suas premissas pessoais e profissionais e das suas construções

de mundo, a fim de que possam, realmente, atuar como verdadeiros facilitadores

junto à clientela que atendem.

Aos aportes provenientes da Cibernética de Segunda Ordem e do pensamento construtivista à Terapia Familiar, já tendo obtido reconhecimento no

campo da Saúde Mental como uma modalidade de intervenção psicoterapêutica

eficaz, seguiram-se outros questionamentos que serão descritos no próximo

capítulo. Tais questionamentos, que ocorreram nos anos 80 e 90 do século XX,

referiam-se às questões de Gênero e Cultura que, de certa forma, ampliaram o olhar

limitado à família e passaram a considerar o contexto mais amplo no qual as

mesmas se inserem. As críticas recebidas e as alternativas que foram propostas

alertam os terapeutas acerca da necessidade de considerarem, em suas práticas,

quais são suas “lentes” ou seus “mapas” profissionais e pessoais, a fim de que suas

intervenções não venham a representar prejuízos na condução do trabalho

terapêutico propriamente dito e a reverter em sérias situações de injustiça.

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CAPÍTULO 2 A TERAPIA FAMILIAR E A DIVERSIDADE CULTURAL

Lidar com o tema da diversidade cultural é uma questão de equilíbrio entre validar as diferenças entre nós e valorizar as forças da nossa humanidade comum. (Mônica McGoldrick)

Macedo, ao referir-se às responsabilidades dos terapeutas, resume

brilhantemente o que é necessário para sermos profissionais sensíveis à cultura e

direcionados a atuar de forma justa e humana, alertando para que “não nos

tornemos reprodutores de jogos de poder subjacentes em todas as sociedades, nem

multiplicadores da exclusão dos menos favorecidos.” (MACEDO, 2001, p. 47)

A abordagem e a busca por desenvolver uma prática atenta à diversidade

cultural, sensível às questões de cultura, cuidadosa para que as nossas teorias e a

nossa prática não reproduzam injustiças sociais, bem como a existência de viés

ideológico nas teorias, são de conhecimento e preocupação dos profissionais da

Terapia Familiar na atualidade. Entretanto, tais temas só vieram à tona e

estimularam, com seus questionamentos, novos posicionamentos direcionados a novas alternativas, a partir dos anos 80 do século XX.

Apesar de ser claro que o conceito de gênero é uma construção particular

de dada sociedade, inserida em uma cultura mais ampla; ou seja, é uma

categorização dentre as outras possíveis, no tocante à cultura (LAIRD, 2003), optou-

se em seguir um critério cronológico para o presente estudo. Uma vez que as

críticas relacionadas ao gênero foram as primeiras a serem trazidas à discussão no campo da Terapia Familiar, segue-se o mesmo critério e, posteriormente, enfatizam-

se as questões culturais mais abrangentes.

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2.1 A TERAPIA DE FAMÍLIA E AS QUESTÕES DE GÊNERO

...se menosprezarmos a condição feminina, nossa terapia da família talvez não valha a pena. E, argumento, terapia que não valha a pena não merece ser bem feita. (Rachel Hare-Mustin)

A Terapia de Família, nos anos 80 do século XX, já estabelecida no campo

da Saúde Mental, viu-se questionada pelas terapeutas feministas, que direcionaram

suas críticas aos pressupostos teóricos utilizados e às técnicas postas em prática

nos atendimentos às famílias. Mesmo os pioneiros do campo foram alvo de suas

recriminações: Ackerman, por assinalar que mulheres que não correspondiam ao

estereótipo de submissão causavam danos a seus filhos; Bowen, pelos conceitos desenvolvidos de autonomia como traço valorizado e relacionado à maturidade em

oposição à dependência e vinculação; Minuchin, por sua tendência a considerar a

existência de sintomas nos filhos sendo ligados ao superenvolvimento materno; os

teóricos estratégicos, por serem omissos e por não evitarem posturas sexistas em

suas intervenções, valorizando-as desde que houvesse o desaparecimento do

sintoma; dentre os estratégicos, especialmente Haley, por enfatizar o conceito de

geração em detrimento do conceito de gênero.

Retomando os escritos de Haley, Virginia Goldner (1988) assinala: em um

primeiro momento, o conceito de gênero podia ser mencionado, mas logo era

abandonado, dando a entender que a experiência de homens e mulheres é igual e

que ambos têm as mesmas prerrogativas de poder. A partir de então, o conceito de geração associado à hierarquia familiar assumiu importância ímpar; o surgimento

das crises e sintomas foi relacionado às transições do ciclo vital, e não a possíveis

injustiças na divisão de poder das famílias. A mesma autora co-relaciona a atitude

desse pioneiro ao processo de negação de gênero que caracterizou a Terapia de

Família em suas décadas iniciais.

O próprio conceito de família foi questionado pelas terapeutas feministas que alegavam que a família, tomada como modelo nos primórdios da Terapia

Familiar, deveria ser encarada como uma invenção recente, se comparada com a

história da Humanidade. Tal forma de organização familiar, a família nuclear,

remonta ao século XIX, tendo surgido na época da Revolução Industrial, período no

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qual estavam em jogo interesses econômicos e políticos. As transformações sociais

ocorridas nas décadas de 60 e 70 do século XX haviam produzido outras formas de

organização familiar, diversas da família tradicional, e que não se encaixavam no

modelo prévio; nem por isso, pois, mereciam o rótulo de famílias “anormais”.

Outro ponto presente nas contestações feministas refere-se ao fato de que

toda família, estando inserida em contextos sociais mais amplos, acaba

reproduzindo o que a cultura determina que sejam os papéis adequados aos

homens e às mulheres. Os papéis de gênero constituem-se construções sociais, e

não fatos naturais.

A idealização da família também foi questionada, uma vez que ela não é um “porto seguro” para todos, haja vista os índices de violência contra as mulheres e

crianças; muitas vezes, a saúde dos membros familiares pode ser obtida às custas

da saúde (física e mental) das mulheres e de sua falta de poder.

Hare-Mustin (1989) chamou a atenção para as implicações de não se considerar o gênero como princípio organizativo da vida; alertando para os erros alfa

(relativos à maximização das diferenças entre homem e mulher, como são considerados nas abordagens psicodinâmicas) e os erros beta (relativos a ignorar a

existência das desigualdades, presentes nas abordagens sistêmicas). Ambas as

posturas, tendentes à maximização ou à desconsideração das diferenças, são

responsáveis pela manutenção das desigualdades entre os gêneros. Sendo assim,

em qualquer prática terapêutica, cabe o seguinte questionamento: A que funções as teorias servem? A manter o status quo ou a encaminhar-se rumo a uma sociedade

mais justa e humana?

Todas as críticas e contestações efetuadas pelas terapeutas feministas

visavam à reflexão de que, uma vez que a Terapia Familiar não está isenta de

valores, tornam-se necessárias modificações em seu corpo teórico e em suas

implementações práticas para que homens e mulheres ocupem posições mais

igualitárias na ordem social, podendo ambos exercer funções instrumentais e emocionais.

Mesmo conceitos largamente utilizados e pressupostos fundamentais da

prática da Terapia Familiar, tais como: Fusão X Distância, Reciprocidade,

Circularidade, Complementaridade, Neutralidade, Hierarquia, Fronteiras, Triângulos

e Função do Sintoma, tornaram-se alvos de reflexão, pois foram vistos como

auxiliares na geração de desvantagens para as mulheres.

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Segundo Nichols e Schwartz (1998, p. 86), “as terapeutas de família

feministas desconstruíram os modelos existentes, mas também defenderam um

estilo de terapia que é cooperativo e interessado no significado.”

Além das críticas apresentadas, sugestões foram efetuadas a fim de que as

intervenções terapêuticas refletissem a busca de maior igualdade entre os gêneros.

Goodrich e colaboradoras (1990) sugerem que é importante: redefinir os problemas

trazidos ao ambiente terapêutico de forma a incorporar o gênero; perceber as

famílias como elas são, independentemente de sua configuração, atentando não

apenas aos seus prejuízos, mas também às suas competências; abrir espaço, no

contexto terapêutico, para a discussão acerca das limitações referentes ao desempenho de papéis masculinos ou femininos impostos pela sociedade.

No trabalho específico com mulheres, Walters e colaboradoras (1996)

acrescentam a necessidade de enfocar, de forma positiva, características tais como

vinculação, emotividade e afetividade; de reconhecer os conflitos entre ter e criar

filhos na sociedade atual; de validar escolhas que não incluam arranjos tradicionais

tais como matrimônio e filhos; de ter em mente que toda intervenção terá um significado diferente e especial para cada sexo.

Conceitos importantes do campo da Terapia Familiar podem ser repensados

de forma a serem mais adequados e não sexistas. Knudson-Martin (1994), bem

como Knudson-Martin e Mahoney (1999) apresentam uma reformulação dos

conceitos bowenianos referentes à diferenciação; em sua visão, tal processo deve

se dar não apenas com relação às expectativas referentes às famílias de origem,

mas também às construções sociais de gênero presentes no sistema social mais

amplo ao qual o indivíduo pertence. Pessoas bem diferenciadas, homens e

mulheres, são aquelas que conseguem tanto viver autonomamente, quanto se

engajar em relacionamentos afetivos satisfatórios, podendo administrar as

diferenças sem distanciamento emocional resultante de ansiedade, estar aberto às

diferenças e ser mais disponíveis aos outros. Sendo assim, diferenciar-se das construções sociais de gênero configura-se num passo fundamental para o

desenvolvimento relacional dos indivíduos.

O período mais crítico e no qual houve maior número de rivalidade e

polarização entre os terapeutas no tocante ao gênero foi, segundo Nichols e

Schwartz (1998), o início e meados da década de 80 do século XX; já na década

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seguinte, o campo desenvolveu-se em direção a uma forma de terapia mais

cooperativa e socialmente esclarecida.

Na década de 90, a Associação Americana de Terapia Conjugal e Familiar

determinou que os centros formadores em Terapia de Casal e de Família deveriam

incluir, em seus currículos, as questões de gênero como uma forma de reduzir o

número de intervenções sexistas.

Em artigo publicado, Leslie e Clossick (1996) divulgaram o resultado de uma

pesquisa realizada com 150 terapeutas iniciantes, propondo-se a avaliar as

diferenças entre suposições (hipóteses) e intervenções efetuadas por terapeutas

que haviam feito, em suas formações, cursos que abordavam o gênero, comparando-se com aquelas efetuadas por seus pares que não tinham tido esse

espaço especial dedicado ao gênero. A partir de vinhetas clínicas, os participantes

deveriam assinalar as hipóteses que levantariam acerca da problemática

apresentada, bem como intervenções que poderiam ser implementadas. Tendo em

mãos os resultados obtidos, as pesquisadoras apuraram as respostas que remetiam

a um maior cuidado com a questão de gênero, as hipóteses e intervenções neutras e as hipóteses e intervenções sexistas. Seus achados sinalizaram que:

- apenas o treinamento nas questões de gênero não influenciou

significativamente na tomada de decisões clínicas;

- as mulheres são mais propensas a intervenções sensíveis ao gênero,

independentemente de terem ou não recebido treinamento prévio visando a este

tópico;

- grande parte dos sujeitos levantaram hipóteses que revelavam uma

preocupação com o gênero, porém suas intervenções ainda continham aspectos

sexistas.

Sendo assim, as autoras levantam a questão: falar sobre gênero nas salas

de aula e nos ambientes de supervisão é um passo importante; porém, não é o

suficiente para modificar posturas altamente enraizadas. Enxergar os fenômenos como um feminista não corresponde a agir como um; também é necessário refletir

acerca de como se aborda, o que se aborda acerca do gênero e se tal abordagem

conduz a repensar conhecimentos prévios e reorganizá-los, a fim de que a atuação

terapêutica conduza a mudança, crescimento e satisfação tanto de homens, quanto

de mulheres.

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Levando em consideração os achados dessa pesquisa, Knudson-Martin

(1997) argumenta que, na literatura clínica, o conceito de gênero é enfocado de

diversas formas; dependendo de como tal conceito é visto, diferentes implicações

políticas podem estar presentes. Pode-se enfocar o gênero como cultura, percebendo-se homens e

mulheres como indivíduos que vêem o mundo através de diferentes lentes e

desenvolvem estilos relacionais diferentes. Na prática, apesar de largamente

difundida, tal concepção pode aumentar a compreensão e a aceitação mútua, bem

como redefinir os conflitos e estilos diferentes de comunicação como inevitáveis.

Entretanto, ao adotar-se tal premissa, corre-se o risco da perpetuação dos estereótipos, pois não se leva em conta o contexto social que influencia nas

diferenças, e do reforço às injustiças de gênero, uma vez que o padrão relacional é

mantido, e apenas mudanças de primeira ordem estão presentes.

Outra maneira de encarar o gênero é relacionando-o às diferenças de poder presentes entre homens e mulheres, que são resultantes de um sistema

social patriarcal opressivo. Então, o objetivo da terapia direciona-se à mudança do status quo, ou seja, ao desenvolvimento de estruturas sociais com maior igualdade

de poder entre homens e mulheres. Esse enfoque ao gênero pode ser linear e

determinista, rotulando facilmente vítimas e agressores; a complementaridade, os

aspectos individuais nos papéis e as identidades de gênero não são levados em

consideração, resultando em limitadas opções disponíveis tanto aos clientes, quanto

aos terapeutas.

Segundo a autora, a melhor alternativa, para enfocar o gênero, é vê-lo como um processo, no qual se fazem presentes tanto fatores individuais, quanto sociais;

os padrões de comportamento conectam-se recursivamente, e não se pode

compreender a masculinidade e a feminilidade à parte um do outro ou excluídos dos

contextos nos quais se inserem. Perceber o gênero como processo que gera

limitações tanto para homens, quanto para mulheres, que foi criado e que pode ser modificado. Ter claro que o que significa ser homem ou ser mulher pode ser

continuamente recriado ao longo da vida, através das oportunidades disponíveis e

de interações com os outros, abre perspectivas mais esperançosas e direcionadas à

mudança.

Em sua proposta do metaconceito de Gênero, Breulin, Schwartz e McKune-

Karrer (2000) observam que tanto famílias, quanto indivíduos, posicionam-se em

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pontos diferentes na evolução de equilíbrio dos gêneros. Essas posições vão desde

a tradicional, com consciência de gênero, polarizada até a equilibrada. No trabalho

terapêutico, o profissional deve perceber em que estágio encontram-se os seus

clientes para poder trabalhar na redução dos impedimentos que tais posições

desencadeiam. Os autores sugerem, inclusive, intervenções específicas, a serem

efetuadas dependendo da posição em que o indivíduo ou a família encontra-se,

tendo por objetivo aumentar sua conscientização, podendo gerar alternativas de

mudança.

McGoldrick (2003a, p. 05) alerta que terapeutas de família devem:

...encorajar nossos clientes para irem mais além das definições de família presentes na cultura dominante, transformar a maneira pela qual fomos ensinados a pensar igualdade e diferença e encontrar formas de trabalhar que sejam respeitosas com o comportamento responsável de cada pessoa.

Apesar das várias mudanças que ocorreram na sociedade ocidental, nas

últimas décadas, principalmente a entrada da mulher no mundo do trabalho, ainda

se observa, nas relações atuais, a co-existência das “antigas” construções de gênero

com expectativas de relacionamentos mais igualitários. Isso leva a pensar que existe

um descompasso entre expectativas e realidades; mudanças de segunda ordem

levam um tempo maior para ocorrer. Ter em mente a transição de valores ainda

vivenciados, incluir a reflexão e intervenção, tendo-se em vista questões de gênero

no contexto de trabalho, na formação de novos terapeutas de famílias e na supervisão, configuram-se pontos de extrema importância ao se trabalhar com

objetivo voltado à co-construção de uma sociedade mais justa.

Observa-se que todas as proposições mencionadas enfatizam a importância

do papel que o terapeuta desempenha como agente de transformações sociais; não

se pode abordar as questões de gênero como se fossem alheias a si mesmo. Como

parte do sistema terapêutico, necessita-se considerar o próprio gênero, uma vez que ele se fará presente naquilo que se observa e nas intervenções efetuadas.

Torna-se, então, fundamental direcionar o olhar para a própria história, para

si mesmo como mulher ou homem, que foi socializado, que recebeu do contexto

familiar e do contexto social mais amplo mensagens específicas sobre o que é ser

mulher ou homem, e para quem certas condutas foram estimuladas e outras

proibidas. Questionar de que forma as pautas aprendidas nas famílias de origem

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persistem nos relacionamentos atuais, na vida privada ou profissional, aumenta a

consciência que o profissional tem acerca de si e do impacto que poderá vir a ter no

contato com seus clientes. É necessário, enfim, que se corram os riscos de repensar

e refazer o ser e estar no mundo, a fim de que a terapia que se exerce valha a pena.

Nas palavras de Nichols e Schwartz (1998, p. 127), “A revolução feminista

na terapia familiar não é teórica – é pessoal. Obriga-nos, como terapeutas, a olhar

no espelho nossas próprias atitudes e nossas vidas, fora da segurança de nossos

consultórios.”

2.2 A TERAPIA DE FAMÍLIA E AS QUESTÕES DE CULTURA

Nos anos 90 do século XX, em seguida às críticas feministas à Terapia

Familiar, que denunciaram e explicitaram o viés patriarcal que havia permeado a sua

história no campo da Saúde Mental, outros profissionais vieram a apresentar novos questionamentos. Apontaram a extrema concentração que as abordagens

dedicavam às relações intrafamiliares, desconsiderando o contexto mais amplo no

qual as famílias inseriam-se. Alertaram, principalmente, que os modelos propostos

pelos pioneiros do campo, apesar de serem definidos como isentos de preconceitos,

enfatizavam valores da família branca, de classe média, nuclear; enfim, de

determinados grupos culturais que passaram a ser considerados a norma.

Conseqüentemente, tal classificação acabava por estigmatizar ou patologizar

famílias que, ao apresentarem valores e comportamentos diferentes, não se

enquadravam no conceito de “normalidade” proposto, por serem provenientes de

outras culturas.

De acordo com McGoldrick (2003a), mesmo profissionais como Minuchin e

Auerswald, que atuaram junto a famílias desfavorecidas economicamente e de origem latina, ao compartilhar os resultados de seu trabalho, ressaltaram as

diferenças encontradas; conseqüentemente, ao serem hierarquizadas, estas

levavam as famílias a serem encaradas como categorias especiais e tratadas como

exceções.

Inicialmente, as novas críticas apresentadas ao campo direcionavam-se a

uma não consideração da influência da etnicidade nos padrões comportamentais

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familiares; pouco a pouco, porém, temas como as opressões relacionadas ao

pertencimento a classes sociais desfavorecidas, o prejuízo daqueles que sofrem

preconceito racial e a marginalização dos homossexuais começaram a ser

abordados.

De acordo com Laird (2003), fazem parte das categorizações culturais:

gênero, raça, etnia, classe social e sexualidade, sendo que nenhuma categorização

cultural existe sozinha. Para a autora,

...cultura é uma construção individual e social, um conjunto de significados em constante evolução e mutação, que só pode ser entendida no contexto de um passado narrativo, de um presente interpretado e de um futuro desejado. (LAIRD, 2003, p. 33)

Assim sendo, propõe o uso da cultura como uma metáfora, que propicia

adentrar na vida, na realidade e no cotidiano das pessoas, possibilitando escutar as

suas vozes e os significados atribuídos a suas experiências.

McGoldrick (2003b) alerta que profissionais, mesmo bem intencionados,

podem promover injustiças se desmerecerem o fato de que aquilo que consideram

“normal” refere-se a uma construção social efetuada em um determinado momento histórico, e não a uma verdade absoluta. Segundo a autora, a cultura desempenha

um fator preponderante na vida de todos os indivíduos, possuindo influência

importante em sua forma de agir, pensar e sentir. Breulin, Schwartz e McKune-

Karrer (2000, p. 179) atribuem a mesma relevância às questões culturais, ao

enfatizarem que “a cultura proporciona um plano de como agir e de como se

comportar nas comunidades, nas instituições e nas sociedades.”

Foi somente no final da década de 90 que, de acordo com McGoldrick

(2003a), uma nova visão fez-se presente, afirmando que raça, gênero, classe social, etnia e orientação sexual dizem respeito a todas as famílias, e não apenas às

famílias das minorias, e que o pertencimento a tais contextos, fundamental para a

identidade cultural, gera tanto potencialidades, como impedimentos. Falicov (2003) defende que as famílias apresentam características

diferentes dependendo de sua inclusão em culturas individualistas, ou seja,

naquelas que priorizam a família nuclear, ou coletivistas, cuja prioridade é a família

extensa. Conforme a sua inserção, apresentarão diversidade no que se refere a

quem compõe a família, conexão entre os membros, hierarquia, fronteiras, estilos de

comunicação, manejo de conflitos etc. Nos primeiros modelos na Terapia Familiar,

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percebe-se que o conceito de família utilizado encaixava-se em uma visão

individualista, coerente com a cultura norte-americana, da qual a maioria de seus

fundadores era proveniente.

McGoldrick (2003b) acrescenta outras características que se evidenciam em

decorrência da identidade cultural da família, tais como: a atitude frente à terapia ser

mais ou menos favorecida, dependendo da importância que o ato de falar

desempenha na resolução de problemas; dar maior ou menor ênfase nas transições

do ciclo vital; e até mesmo frente a própria definição do que é ou não considerado

problema.

Conseqüentemente, os métodos utilizados na Terapia Familiar podem apresentar maior ou menor adequação para clientes que possuem diferentes

inserções culturais, e cabe ao terapeuta, principalmente se fizer parte dos grupos

dominantes, o cuidado para não assumir os seus valores como norma, não julgar o

significado daquilo que observam e não impor de forma arbitrária o que considera

funcional.

Então, o grande desafio para os terapeutas está na aquisição de competência cultural ou de sensibilidade perante as questões de cultura. Segundo

McGoldrick (2003a), para desenvolver tal ferramenta, faz-se necessário que os

terapeutas desafiem as concepções universalistas, presentes no discurso

dominante, questionando sempre as definições pré-determinadas apresentadas e

tendo em mente que se tratam de construções sociais temporárias. Devem, também,

ser respeitosos, curiosos e humildes, explorando as complexidades das identidades

culturais de seus clientes.

Laird (2003) acrescenta que é fundamental que os profissionais saibam

formular boas perguntas, tentando compreender aquilo que o cliente apresenta e

que é visto como diferente e, ao se depararem com posturas ou valores que não

compreendem, mobilizem-se em busca de informações que possam enriquecer a

sua visão. Nichols e Schwartz (1998), em consonância com Macedo (2001),

McGoldrick (2003a), Falicov (1995) e Laird (2003), assinalam a importância de que o

terapeuta tenha consciência de sua própria identidade cultural, da aprendizagem

cultural a que foi submetido, efetuando um autoquestionamento, a fim de perceber

quais são as suas atitudes frente a categorizações culturais: raça, classe social,

gênero, orientação sexual e etnicidade, entre outras.

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A partir dos anos 90 do século XX, a ênfase dada às questões culturais

propiciou não apenas reflexão e questionamentos aos terapeutas atuantes no

campo, mas também preocupações e cuidados no treinamento propiciado aos

futuros terapeutas de família.

Falicov (1995) apresenta quatro posturas referentes ao treinamento dos

terapeutas sensíveis à questão cultural, que geralmente são assumidas. A primeira dela é a universalista, que parte do princípio que as famílias são

mais semelhantes que diferentes, havendo, pois, pouca necessidade de enfocar um

treinamento específico referente à cultura. Aqueles que defendem tal treinamento

buscam, principalmente, enfocar processos humanos universais, não levando em consideração que o conceito de normalidade é relativo e construído social e

historicamente. A segunda postura é a particularista, que acredita que as famílias

apresentam mais diferenças entre si do que semelhanças, sendo, pois, impossível

obterem-se generalizações; na medida em que cada família é percebida como única,

pode ser vista como uma cultura em si. Ao evitar generalizações, os terapeutas são orientados a ser respeitosos e voltados à compreensão da singularidade da

realidade familiar; porém, não recebem nenhum treinamento referente às questões

culturais. Entretanto, ao agirem assim, os terapeutas correm o risco de desmerecer

os contextos mais amplos nos quais as famílias inserem-se e de culpabilizá-las

perante as dificuldades que vivenciam. A terceira postura adotada é a do treinamento voltado à obtenção de

sensibilidade cultural e centrado nas questões de etnicidade, que, embora

favoreça ao terapeuta o desenvolvimento de sensibilidade perante a diversidade

cultural, pode apresentar alguns prejuízos. O primeiro deles reside no risco de

estereotipar; as famílias, mesmo provenientes da mesma etnia, podem apresentar

grandes diferenças se pertencerem, por exemplo, a classes sociais diversas ou

tiverem um nível de escolaridade formal muito discrepante. Além disso, tal postura não leva em consideração que as características étnicas apresentam evolução tanto

pela exposição a outras culturas, quanto pela imposição da cultura dominante.

Outros autores apresentam críticas semelhantes, referentes ao treinamento

em cultura centrar-se, exclusivamente, na aprendizagem das características

diferentes que os vários grupos étnicos apresentam. Dyche e Hayas (1995)

argumentam que tal modelo privilegia a aquisição de erudição e conhecimentos que

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não se traduzem, por si só, em sensibilidade. Acreditam que o conhecimento cultural

pode ser uma ferramenta; porém, em hipótese alguma, este deve substituir o contato

com o cliente, a escuta ativa acerca de sua cultura e o aprendizado que pode ser

decorrente desse processo. Enfatizam, ainda, a importância do terapeuta assumir

uma postura “ingênua”, que desencadeie abertura e receptividade, e “curiosa”, que

vá além de suas pré-suposições, podendo ter satisfação com as surpresas que

podem surgir como resultado de tais posicionamentos.

Hardy e Laszloffy (1995) concordam que o mero conhecimento teórico não é

suficiente, pois defendem que a expansão da consciência refere-se a processos

intelectuais. Por outro lado, a sensibilidade cultural situa-se no campo afetivo e só pode ser obtida partindo-se da compreensão que o terapeuta venha a desenvolver

acerca de sua própria identidade cultural.

Segundo Falicov (1995), a quarta postura (para a autora, a mais adequada

no treinamento em Terapia Familiar) é a multidimensional, que leva em

consideração os múltiplos contextos, nos quais as famílias inserem-se – rural,

urbano ou suburbano, idioma, idade, gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade, status sócio-econômico, emprego, educação, ocupação, ideologia política, migração

e estágio de aculturação – e que podem vir a resultar em diferentes configurações

culturais. No treinamento com os estudantes, as características referentes à

etnicidade são abordadas; entretanto, propõe-se que, ao buscar comparações e

conexões entre os grupos étnicos, utilizem-se três deles, no mínimo, para evitar

hierarquização. Além disso, os terapeutas em formação são estimulados a

entrevistar famílias não clínicas e pertencentes a outras culturas, bem como são

orientados a escrever previamente suas pré-suposições acerca do grupo cultural ao

qual a família pertence. Tal procedimento tem como objetivo ensinar os alunos a

explorarem a cultura, investigando quatro parâmetros propostos pela autora:

contexto ecológico, migração e aculturação, organização familiar e ciclo vital. Tal

modalidade acaba também por ser “uma forma simples e poderosa de trazer à tona a consciência de que os valores e idéias do observador são parte do que é

observado.” (FALICOV, 1995, p. 384)

Para a mesma autora, o tema cultura deve dominar todo o treinamento em

Terapia Familiar; ou seja, qualquer conteúdo apresentado referente a famílias deve

ser analisado levando-se em consideração as diferenças que podem se fazer

presentes devido à diversidade cultural.

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Outros conceitos relevantes, propostos por Falicov (1995), referem-se à

importância do terapeuta acessar o mapa cultural da família, buscando, através de

uma postura respeitosa, conhecer sua realidade, sua história, seus valores, suas

crenças e as repercussões que desempenham em sua vida. No entanto, o terapeuta

também possui seus próprios mapas e, uma vez que é parte daquilo que observa, é

fundamental que tenha acesso a eles. Os mapas do terapeuta incluem os seus

mapas teóricos, que influenciam em seu agir terapêutico e que podem limitar o que é

observado. Ademais, “a perspectiva do terapeuta é organizada pelas experiências

em suas famílias de origem e pelas preferências pessoais, ou seja, constituem seus

mapas pessoais.” (FALICOV, 1995, p. 383) Portanto, ter consciência desses mapas, profissionais e pessoais, possibilita

que o terapeuta vincule-se melhor e compreenda mais amplamente as diferentes

famílias que buscam o seu auxílio. Um ponto bastante enfatizado na literatura

pesquisada refere-se ao autoconhecimento e à auto-reflexividade que o terapeuta

deve ser estimulado a desenvolver durante sua formação.

Tendo por objetivo que os treinandos acessem suas próprias atitudes e crenças, seus conhecimentos e estilos na área da diversidade cultural, bem como

identifiquem pontos que necessitam de maior aprofundamento, conhecimento e

desenvolvimento de competências facilitadoras de maior compreensão dos aspectos

culturais, Hardy e Laszloffy (1995) e Halevy (1998) sugerem o uso do genograma

cultural.

Kelley, Dolbin e Karuppaswamy (2002) apresentaram estudo que valida a

utilização do uso do genograma cultural como ferramenta, considerando-o de grande

utilidade no treinamento dos futuros terapeutas de família. Além disso, aprofundaram

tal instrumento acrescentando questionamentos aos já sugeridos no formato inicial, a

fim de que a experiência seja enriquecida.

Halevy (1998) assinala que, ao se trabalhar, em um curso de formação,

aspectos tão pessoais referentes à história e à família de origem do futuro terapeuta, fortes sentimentos podem ser desencadeados, tais como: desconforto, vergonha,

sensação de ser julgado. Entretanto, segundo a autora, o foco deve estar naquilo

que o estudante, em função de sua história pessoal, necessita continuar a

desenvolver e não naquilo que não sabe. A autora propõe o “genograma com uma

atitude” como outro instrumento a ser utilizado em conjunto ou, preferencialmente,

após o uso do genograma cultural proposto por Hardy e Laszloffy (1995).

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Em concordância com os autores citados, Dyche e Hayas (1995) defendem

a validade da apresentação do genograma do futuro terapeuta de família em grupos

compostos por outros estudantes, nos quais preconceitos, habilidades e restrições

advindas do pertencimento a determinados grupos culturais possam ser

compartilhados e utilizados na percepção das conexões e das diferenças existentes

entre os participantes.

As reflexões apresentadas, acerca da necessidade do manejo da

diversidade cultural, foram formuladas, principalmente, por terapeutas que atuam

nos EUA e referem-se ao contexto específico daquele país, que possui como

característica marcante o grande número de imigrantes que atrai anualmente. Entretanto, acredita-se que o tema da diversidade cultural também seja

extremamente pertinente ao contexto brasileiro, uma vez que todos os temas

referentes à cultura fazem-se presentes nessa realidade: etnias diversas,

desigualdades referentes à gênero, opressão e privilégios decorrentes do

pertencimento ou não a determinada classe social, preconceitos vivenciados em

função da raça ou da orientação sexual. Em pesquisa realizada por Marra (2005) e que tinha como objetivo

investigar como os psicólogos têm trabalhado com as questões da diversidade

cultural na prática clínica, evidenciou-se que o desenvolvimento de sensibilidade às

questões culturais ainda é algo que está distante de ser considerado uma conquista.

Os profissionais participantes de tal pesquisa referem que “essa postura está

atrelada, a princípio, a três condições: ao contexto em que atuam, à demanda da

população e à abordagem teórica empregada.” (MARRA, 2005, p. 72) Tal conclusão

levanta, no mínimo, alguns questionamentos: É possível um terapeuta ser sensível

às questões culturais em um contexto e não ser em outro? Assume-se uma postura

sensível à cultura apenas em virtude da população atendida? Ao atender clientela de

um nível sócio-econômico semelhante, parte-se do princípio que não existirão

diferenças culturais entre terapeuta e clientes? Portanto, percebe-se que ainda é preciso dedicar um grande espaço de

reflexão a tais questões, bem como assumir uma postura crítica frente a

desigualdades e injustiças que podem estar sendo cometidas ao aferrar-se a

abordagens padronizadas que situam o sofrimento das pessoas num nível individual

ou intrafamiliar.

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Além disso, a maneira de se lidar com a cultura também pode ser vista

como um legado da família de origem e está intimamente conectada aos significados

que o terapeuta atribui aos componentes culturais tanto em seus atendimentos,

quanto em sua vida. Conclui-se, então, que o contato do terapeuta de famílias com

sua história cultural familiar e a auto-reflexão constante constituem-se em

ferramentas fundamentais para o exercício de uma prática respeitosa e justa.

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CAPÍTULO 3 A TERAPIA FAMILIAR NA PÓS-MODERNIDADE

Toda história é um ato de censura; que exclui outras histórias. (Salman Rushdie)

Mills e Sprenkle (1995) classificam a pós-modernidade como um período em

que se fizeram presentes mudanças de valores que abalaram os alicerces de

diversos campos. Crenças consideradas sagradas foram desafiadas, tais como: a existência de uma realidade absoluta e fixa; a possibilidade de obtenção de um

conhecimento objetivo que representasse a verdade; a não influência do observador

no fenômeno observado.

A pós-modernidade desencadeou uma desconstrução dos conhecimentos

anteriores, uma vez que se tornou claro que o era descrito como realidade não passava de “convenções desenvolvidas por pessoas com suas próprias perspectivas

e motivos tendenciosos.” (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998, p. 115)

A perspectiva pós-moderna postula que não há realidades, mas pontos de

vista que podem ser mais ou menos úteis; e as teorias que embasam as práticas

clínicas podem ser vistas sob esse prisma. Grandesso, ao abordar o valor das

teorias, assinala que “são lentes provisórias e seu valor não deriva de nenhum

pretenso valor de verdade, e sim de sua utilidade como marco gerador e organizador

de significados úteis para a compreensão dos dilemas humanos e para favorecer

uma prática terapêutica geradora de mudanças.” (GRANDESSO, 2002, p. 22)

O campo da Terapia Familiar, de acordo com Mills e Sprenkle (1995), foi

profundamente influenciado, a partir dos anos 90 do século XX, pelo contexto pós-

moderno, em função das diferentes configurações familiares presentes naquele momento histórico, bem como devido à incorporação dos conceitos provenientes da

Cibernética de 2ª Ordem, do Construtivismo e do Construcionismo Social.

Tais aportes vieram a apresentar novos desafios e a modificar a prática

corrente da Terapia Familiar, centrada, desde seus momentos iniciais, na

instrumentalização e nas técnicas, introduzindo um novo panorama, que considera a

realidade socialmente construída, através das interações mediadas pela linguagem.

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Buscar compreender os significados que as pessoas atribuem às suas vidas, às

suas dificuldades, bem como a forma como expressam tais significados por meio da

linguagem, abriu perspectivas mais esperançosas no que se refere a mudanças,

uma vez que se parte da seguinte premissa: ao desconstruir e reconstruir uma nova

narrativa, é possível mudar a vida.

Grandesso (2002) assinala que as influências da pós-modernidade fazem-

se presentes em várias abordagens atuais da Terapia Familiar, tais como: as Pós-

modernas Críticas, representadas pelo trabalho de Charles Waldgrave e Kiwi

Tamasese, na Nova Zelândia; as Colaborativas ou Conversacionais, propostas por

Arlene Anderson e Harry Goolishian; as Centradas na Solução, desenvolvidas por Steve de Shazer e Insoo Berg; bem como as Terapias Narrativas. Nesta última,

situam-se vários trabalhos, como os desenvolvidos por Carlos Sluzki, Tom

Andersen, Peggy Penn e Michael White.

Mills e Sprenkle (1995) acrescentam que, além das novas abordagens de

intervenção que se desenvolveram num contexto pós-moderno, houve também a

emergência de novas tendências clínicas, como os trabalhos direcionados à pessoa do terapeuta, à crescente auto-revelação efetuada pelos terapeutas em seus

atendimentos acerca de sua vida pessoal, ao uso freqüente nos atendimentos das

equipes reflexivas e às formas alternativas de supervisão, pautadas pela inovação, criatividade e redução ou eliminação da hierarquia supervisor X supervisionado.

Apesar de serem várias as abordagens que podem ser consideradas como

terapias narrativas, escolheu-se abordar o enfoque desenvolvido por Michael White,

terapeuta australiano. O critério de tal escolha baseou-se no impacto significativo

que esta modalidade de atendimento tem atualmente na Terapia Familiar e nas

considerações propostas por ele no que se refere aos terapeutas e às suas histórias

de vida, foco do interesse da presente pesquisa.

3.1 A TERAPIA NARRATIVA

Bertrando e Toffanetti (2004) caracterizam a terapia familiar australiana

como uma abordagem verdadeiramente alternativa, pautada pela ética, pela crítica e

pelo respeito às minorias. Tal modalidade de atendimento a indivíduos, casais,

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famílias ou sistemas mais amplos, difundida por todo o mundo a partir dos anos 90

do século XX, é considerada o modelo mais coerente e completo de terapia

narrativa, e seu representante principal é Michael White.

A terapia narrativa parte do princípio que as pessoas vivem imersas em

múltiplas histórias; recortam, ordenam e dão significado às suas vivências através

das narrativas que contam acerca de suas vidas. William Lax assinala que “é o

processo de desenvolvimento de uma história de vida que se torna a base de toda

identidade” (LAX, 1998, p. 88), acrescentando que desenvolver narrativas envolve a

ocorrência tanto de diálogos internos, quanto de diálogos presentes nas interações

sociais. Um ponto importante ressaltado nesse enfoque diz respeito ao contexto cultural mais amplo no qual a pessoa insere-se, que pode favorecer ou não a

emergência de histórias mais “ricas”.

Cabe ressaltar que as histórias podem ser continuamente recriadas e

reconstruídas; entretanto, via de regra, selecionam-se certos eventos que se

encaixam nas narrativas já estabelecidas, e chamadas de dominantes, que podem

restringir e desqualificar os indivíduos. Dentro da terapia narrativa, os problemas existem na linguagem e são

vistos, de acordo com Grandesso (2006), como opressivos e nocivos para a vida das

pessoas que, ao vivenciarem-nos, geralmente apresentam uma narrativa saturada

de problemas, bem como descrições “magras” ou “ralas” acerca de suas vidas.

Grandesso (2002) enfatiza que, na terapia narrativa, o objetivo terapêutico

consiste em viabilizar que os clientes descrevam suas vidas de maneira mais

“densa” ou “rica”, buscando eventos que, ao não se encaixarem nas histórias

dominantes, possibilitem a emergência de histórias alternativas mais úteis e

potencializadoras para eles.

Uma das maneiras de oportunizar que os clientes re-escrevam suas

autobiografias acontece através da externalização do problema. Tal intervenção

parte do seguinte princípio: ao cliente perceber o problema como situado fora de si e localizar momentos em que teve algum domínio sobre as dificuldades, ele aumenta o

seu nível de autoconfiança, o que possibilita o surgimento de outras formas de ação,

pois ele sente-se capaz de influenciar e controlar aquilo que o aflige.

A emergência de narrativas mais “densas”, nas quais as experiências e a

existência da pessoa passam por um re-historiar, aumentam as suas conexões com

suas redes de pertencimento, num processo denominado, por White (2002), de

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remembering, termo que remete tanto a relembrar, como a voltar a ser membro ou

participante do “clube da vida”.

Outra modalidade de intervenção útil no enfoque narrativo refere-se ao uso da testemunha externa, que pode ser um familiar, amigo ou outro convidado para a

sessão terapêutica. Essa pessoa “é envolvida no processo de narrar e re-narrar

histórias, mesclando o que ouviu nos relatos [...] com suas próprias histórias, relata o

que ouviu [...] caracterizando um re-contar da história relatada a partir da sua própria

experiência.” (GRANDESSO, 2006, p. 24) A pessoa que está em terapia ouve o

relato da testemunha externa, e desencadeia-se, então, um novo re-narrar do re-

narrado, o que favorece o enriquecimento das narrativas. Ao final do processo de terapia, na etapa de alta, realiza-se um “ritual de

passagem”, no qual o cliente é convidado a rever os movimentos que fez em direção

à mudança, as narrativas que resgatou ou desenvolveu, bem como as formas de

ação possíveis em momentos de desafios futuros. O cliente também é convidado a

ser uma espécie de consultor para o terapeuta quando este vier a atender outras

pessoas que vivenciam dificuldades semelhantes àquela que o mobilizou em busca de ajuda psicoterapêutica (EPSTON; WHITE, 1997). Tal intervenção propicia ao

cliente a sensação de ser produtor de conhecimento, o que, por si só, possui

poderosos efeitos relacionados ao aumento de sua auto-estima e à expansão de seu

potencial criativo.

Os terapeutas narrativos atuam de forma colaborativa e respeitosa,

objetivando o incremento do poder pessoal e da identidade dos clientes; não dão

conselhos; não são os especialistas. Como profissionais, cabe a eles a formulação

de perguntas que favoreçam a emergência de descrições mais “densas”, positivas e

possibilitadoras, dentro da perspectiva de seus clientes.

White (2002), em obra voltada aos terapeutas, alerta que, ao se ingressar

na cultura da psicoterapia, os saberes advindos da história de vida dos futuros

profissionais passam a ocupar um papel marginalizado frente à importância dos conhecimentos considerados científicos e traduzidos como “verdades”. Tal

desmerecimento dos conhecimentos locais pode afastar o indivíduo dos antigos

contextos de pertencimento informais e contribuir para que a sua narrativa torne-se

mais “rala”. Outros fatores que favorecem o “empobrecimento” da descrição que o

terapeuta faz de si mesmo são a quantidade de conhecimentos validados a serem

incorporados, que se configura em um imenso desafio, bem como as maneiras

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validadas de auto-expressão que, nos ambientes profissionais, estão sujeitas a

normas rígidas, restringindo a espontaneidade e a validação de formas alternativas

de conhecimento.

Aos pontos já levantados, White acrescenta:

...não é nada raro que, ao ingressar na cultura da psicoterapia em vários contextos e como parte do treinamento e da supervisão, submeta-se às pessoas sistemas de interpretação que são patologizantes das relações significativas de sua vida e, especialmente, de suas relações familiares. (WHITE, 2002, p. 29)

Para ele, tais vivências, além de resultarem no “empobrecimento” das

narrativas pessoais dos terapeutas, colaboram para a sensação de esgotamento, desamparo, isolamento e até mesmo no surgimento da síndrome de burn-out,

freqüente nesse contexto profissional.

Ele propõe, como antídoto frente ao panorama exposto, práticas de re-

integração da vida que “contribuem para que os terapeutas percebam a si mesmos

como pessoas preparadas e capazes em seu trabalho e, de maneira mais geral, em

suas vidas.” (WHITE, 2002, p. 20) As conversações de re-integração oferecem

possibilidades de ricas descrições dos saberes provenientes do cotidiano e das

habilidades aprendidas nos espaços informais de pertencimento, como a família ou o

círculo de amizades.

Nas intervenções de re-integração, faz uso da metáfora do clube da vida,

que favorece ao profissional a revisão das pessoas significativas na sua trajetória pessoal e o reconhecimento das contribuições importantes e valiosas feitas por elas.

Essa prática reativa espaços de pertencimento, desencadeia a emergência de

descrições mais “densas” e “possibilita que as pessoas experimentem, em sua vida

cotidiana, a presença mais completa dessas figuras, mesmo quando já não estejam

mais por perto.” (WHITE, 2002, p. 41)

Da mesma forma que nos contextos terapêuticos, as cerimônias de definição são realizadas no ambiente de formação dos terapeutas. Com a presença

da testemunha externa, os participantes são estimulados a narrar suas vidas,

salientando os saberes e as habilidades advindos de sua história. Cria-se, em

parceria com as testemunhas externas, um espaço para “reconhecer que, com a

história do outro, a minha própria história se enriquece.” (WHITE, 2002, p. 136)

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Carlson e Erickson (2001) assinalam que os paradigmas pós-modernos e as

idéias da terapia narrativa tiveram grande aceitação junto aos terapeutas de família;

entretanto, nos contextos de formação e supervisão, os pressupostos modernos

ainda se fazem presentes. Referem que os trabalhos direcionados à pessoa do

terapeuta ainda tendem a apresentar a família de origem em termos de patologia e

déficit, estimulando os futuros terapeutas a lidarem com suas questões pessoais.

Utilizando os referenciais da terapia narrativa, Carlson e Erickson (2001)

introduziram, em seu programa de formação em Iowa, EUA, atividades direcionadas

a privilegiar a pessoa e a história do terapeuta que são, na opinião dos autores,

sagradas. Sem desmerecer aspectos teóricos que constam no programa de formação,

os autores pautam a sua atuação utilizando-se das seguintes crenças: as pessoas

são os especialistas em suas vidas, e suas experiências podem ser honradas e

reverenciadas; as pessoas são mais criativas quando descrevem suas vidas de

forma “densa”; a possibilidade de “adensar” uma história de vida reside dentro das

pessoas, e não fora delas; é necessário levar os futuros terapeutas a explorar as suas formas de interagir com as pessoas e a ter consciência dos valores morais

subjacentes ao seu ser e estar no mundo.

Tal enfoque positivo, no que se refere às experiências vivenciadas, em

diversos espaços de pertencimento, como contexto de aprendizado e superação,

faz-se presente nas abordagens que utilizam o conceito de resiliência, ponto que

será desenvolvido a seguir.

3.2 A RESILIÊNCIA

Segundo Ravazzola (2005), as ciências sociais foram profundamente influenciadas pelos modelos explicativos reducionistas que enfatizavam déficits e

problemas. Utilizando-se de tais paradigmas, os profissionais da saúde mental

mobilizaram-se a fim de desenvolver intervenções corretivas para os problemas

apresentados pelos clientes, que passaram a ser meros receptores passivos de tais

intervenções.

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Entretanto, ao depararem-se com pessoas que, mesmo tendo vivenciado

condições de vida extremamente adversas, apresentavam um bom ajustamento na

vida adulta, a curiosidade desses profissionais foi despertada. Esse foi o impulso

que desencadeou a realização de estudos que explicassem tal fenômeno, o que,

posteriormente, veio a ser denominado de resiliência.

Tal termo, extraído das ciências físicas e que se refere à capacidade de,

sob pressão, voltar ao estado original ou recuperar a forma original, pode se

constituir em uma metáfora útil na compreensão do que leva à superação das crises.

Segundo Walsh, a resiliência “pode ser definida como a capacidade de se renascer

da adversidade fortalecido e com mais recursos. É um processo ativo de resistência, reestruturação e crescimento em resposta à crise e ao desafio. É forjada pela

adversidade, e não através dela.” (WALSH, 2005, p. 4).

Inicialmente, as pesquisas direcionaram-se em busca de fatores individuais

que poderiam estar associados ao desenvolvimento de resiliência; posteriormente,

foi se tornando mais clara a importância de fatores relacionais como constitutivos de

tal característica. Os estudos atuais propõem a existência da resiliência em indivíduos, famílias e comunidades.

Um conceito fundamental, quando se aborda a resiliência, é o conceito de

crise, que pode funcionar como um desencadeador de maneiras novas, criativas e

eficientes de enfrentamento de situações novas, como também pode significar “um

chamado para despertar.” (WALSH, 2005, p. 7)

Os estudiosos da resiliência postulam que, no enfrentamento de crises,

deve-se levar em consideração os fatores de risco, que podem ser individuais,

familiares ou comunitários, e os mecanismos de proteção, que se referem às

crenças compartilhadas, ou seja, os significados dados ao evento estressor, os

processos de comunicação e os padrões organizacionais. Tais componentes

interagem recursivamente entre si, e é importante que se leve em consideração o

contexto histórico e social no qual aquele que enfrenta a crise está inserido. (SOUZA, 2004)

A maneira como as pessoas enfrentam as crises depende das crenças que

elas possuem; os significados que são dados às mesmas são construídos

socialmente; “crenças e significados são expressos nas histórias e narrativas que

contamos.” (SOUZA, 2004, p. 75) A possibilidade de compartilhar os sentimentos

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vivenciados frente à crise oportuniza que novos significados sejam atribuídos à

situação, bem como favorece a obtenção de apoio das suas redes de pertencimento.

Walsh (2005) propõe que os profissionais que atuam com famílias

questionem os seguintes mitos: famílias bem sucedidas são isentas de problemas e

o modelo ideal de família é o nuclear. Ravazzola acrescenta “com ênfase nos

desvios, corremos o risco de não ajudar a construir narrativas coerentes, com

significados dignificantes, que poderiam produzir fortalecimento.” (RAVAZZOLA,

2005, p. 83) Ambas as autoras assinalam a importância de pensar sobre as famílias

como sendo desafiadas perante a vida. Tal mudança de olhar pode ser uma

ferramenta útil que leva à busca de competências e ao desenvolvimento da resiliência.

A utilização do conceito de resiliência favorece também ao profissional, que

se desloca de seu papel de especialista que necessita “reparar” famílias ou

indivíduos “danificados” para o de facilitador da emergência de processos que levam

ao desenvolvimento e à superação.

Ravazzola (2005) assinala que, ao agirem utilizando-se desse paradigma, os profissionais favorecem a sua própria resiliência, pois podem olhar a si mesmos e

identificar as suas próprias fontes de competência. Walsh alerta acerca de

necessidade de os terapeutas buscarem, em suas histórias, os desafios que foram

superados: “abrir os vínculos encobertos entre os eventos e acontecimentos do

passado e aqueles do presente e, então, extrair os melhores recursos de dentro de

nós e nossos legados.” (WALSH, 2005, p. 298)

Cabe ressaltar que, no contexto brasileiro, uma abordagem que utiliza como

um de seus pressupostos teóricos a teoria da Resiliência, é a Terapia Comunitária,

desenvolvida na cidade de Fortaleza pelo Dr. Adalberto Barreto, e hoje presente em

várias cidades do país.

Tal modalidade de intervenção visa ao fortalecimento das redes sociais e ao

resgate da auto-estima. Na opinião de Grandesso, contribuições da terapia narrativa podem ser inseridas na terapia comunitária, uma vez que, nas sessões, torna-se

possível “a reconstrução de significados não só de uma autobiografia individual, mas

das histórias coletivas dos participantes.” (GRANDESSO, 2005)

Na terapia comunitária, é dada ênfase especial à figura do terapeuta;

atividades vivenciais são desenvolvidas com o objetivo de “cuidar do cuidador”,

partindo-se do princípio que, à medida que o profissional acessa, em sua história de

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vida, os recursos e as potencialidades que foram desenvolvidas, ele estará mais

apto a fazer o mesmo nas sessões que coordena, bem como identificará as reais

motivações que regem sua escolha por ser um terapeuta comunitário. Segundo

Barreto,

...uma outra fonte de produção de saber é a vivência pessoal ao longo da vida [...] os obstáculos, os traumas, as carências e os déficits superados transformam-se em sensibilidade e competência, levando-nos a ações reparadoras de outros sofrimentos. (BARRETO, 2005, p. 99)

Conclui-se esse capítulo, assinalando que tanto na terapia narrativa

originária da Austrália, quanto nos estudos americanos da resiliência e na terapia comunitária desenvolvida no Brasil, especial atenção é dispensada à figura do

terapeuta e à transformação que se desencadeia a partir do momento em que ele

resgata seus saberes e competências desenvolvidos ao longo da sua história, em

especial em sua família de origem, foco de interesse na presente pesquisa.

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CAPÍTULO 4 PROBLEMA

O problema do presente estudo consiste em levantar a história vivenciada

por uma terapeuta de família em sua família de origem, com ênfase nos significados

que a participante atribui a tal história e no modo como suas vivências ressoam em

sua prática clínica.

O problema apresentado leva à proposta do objetivo geral do estudo:

• Compreender como o terapeuta de famílias percebe a influência de sua

história de vida em sua prática clínica.

O objetivo específico consiste em:

• Investigar fatores da família de origem que podem estar relacionados ao

desempenho profissional, tais como:

- vivências significativas e prática clínica;

- diversidade cultural e prática clínica;

- manejo de crises, resiliência e prática clínica.

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CAPÍTULO 5 MÉTODO

Levando-se em consideração os objetivos do presente estudo, escolheu-se

como método a Pesquisa Qualitativa baseada em um estudo de caso. Nesse tipo de

procedimento, a ênfase encontra-se em compreender em profundidade o fenômeno

abordado, buscando acessar os significados que o pesquisado atribui às suas

vivências significativas (DENZIN; LINCOLN, 1994).

Outro ponto importante a ser ressaltado acerca das modalidades de pesquisa qualitativa refere-se ao papel desempenhado pelo pesquisador, que

participa como um observador engajado e envolvido em um processo de interação,

no qual se fazem presentes seus sistemas de significados pessoais e profissionais.

É justamente dessa relação de proximidade que emergem os significados possíveis

acerca do fenômeno enfocado.

Então, torna-se necessário que, em tal processo interativo que é a pesquisa qualitativa, o pesquisador assuma uma postura reflexiva e sensível à linguagem e

aos conceitos utilizados pelo participante, a fim de assegurar a compreensão das

interpretações que o pesquisado atribui aos eventos significativos e co-relacionados

ao tema escolhido para o estudo.

Dessa forma, “os resultados dos estudos qualitativos decorrem do campo da

intersubjetividade, na medida em que podem ser definidos como produto da ação

conjunta entre o pesquisador e o participante da pesquisa” (GRANDESSO, 2000, p.

301).

5.1 DELINEAMENTO

De acordo com Stake, o estudo de caso “não é uma escolha metodológica,

mas a escolha de um objeto a ser estudado” (STAKE, 1994, p. 236). Através de tal

escolha, é possível vislumbrar o fenômeno em profundidade, de acordo com o

quadro de referências do próprio pesquisado; acessar suas particularidades; verificar

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quais foram os acontecimentos significativos vivenciados e quais repercussões

tiveram em sua vida.

Num estudo de caso, não se propõe uma representação do mundo, mas visa-

se descrever e interpretar um fenômeno inserido em um contexto amplo e que venha

a viabilizar o aprendizado e refinamento de uma teoria. A escolha do caso dá-se em

função da riqueza de possíveis aprendizados que o mesmo pode oferecer. Cabe

ressaltar que, em um estudo de caso, a gama de informações levantadas é muito

maior que a possibilidade de apresentá-las; torna-se, então, responsabilidade do

pesquisador descrever o caso de maneira que permita aos leitores a percepção clara

dos acontecimentos descritos, bem como a articulação de suas próprias conclusões. D’Allones assinala que a riqueza de um estudo de caso situa-se na força da

realidade apresentada pelo participante e na singularidade de sua história. Apesar

de o objetivo de um estudo de caso não residir em buscar generalizações, é

somente “a partir da experiência pessoal, do vivido, [que se] pode, legitimamente,

aspirar a uma forma limitada e controlada de generalização.” (D’ALLONES, 2004, p.

86)

5.2 INSTRUMENTOS

Os instrumentos que foram utilizados na presente pesquisa são o

Genograma e a Entrevista Semi-estruturada. Segundo McGoldrick e Gerson, o

genograma “proporciona uma visão de um quadro trigeracional de uma família e seu

movimento através do ciclo de vida.” (MCGOLDRICK; GERSON, 1995, p. 144) Além

disso, os genogramas são “retratos gráficos da história e do padrão familiar,

mostrando a estrutura básica, a demografia, o funcionamento e os relacionamentos

da família.” (MCGOLDRICK; GERSON, 1995, p. 144) Tais informações são de primordial importância ao objetivo da presente pesquisa, que visa compreender

como as histórias vivenciadas na família de origem do terapeuta ressoam no

encontro terapêutico.

A entrevista semi-estruturada (anexos 1 e 2), vista como ferramenta que

possibilita a melhor compreensão possível das vivências da participante, conteve em

sua estrutura perguntas guias que visavam à obtenção de informações e que foram

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ampliadas e aprofundadas de acordo com as necessidades e os objetivos do estudo,

respeitando-se as especificidades e o envolvimento da participante. Utilizou-se tal

instrumento como um disparador do diálogo, o que possibilitou à entrevistada

abordar livremente temas decorrentes de sua vivência, bem como favoreceu a

compreensão dos significados atribuídos pela participante às suas experiências.

5.3 PARTICIPANTE

Para os fins da pesquisa, escolheu-se realizar um estudo de caso com uma

psicóloga, terapeuta de família, com cinco anos de atuação profissional em

consultório particular, prestando atendimento psicoterapêutico a indivíduos, casais e

famílias.

Delimitar um tempo mínimo de cinco anos de atuação profissional decorreu

do fato de acreditar-se que tal tempo de exercício profissional permite a aquisição de bagagem prática considerável e a possibilidade de fornecer informações relevantes.

A participante da pesquisa faz parte do círculo profissional da pesquisadora

e foi convidada por se acreditar que tal conhecimento prévio viria a propiciar maior

facilidade na abordagem de temas referentes à sua história de vida, permitindo que

ficasse à vontade para falar sobre vivências profundas.

Nortear a escolha da participante, utilizando tal critério, vai ao encontro das

formulações propostas por Nicolaci-da-Costa3 (apud GUIMARÃES, 2005), a qual

assinala a importância do vínculo de confiança entre pesquisador e pesquisado, a

fim de propiciar uma maior riqueza de informações apresentadas. Cabe acrescentar,

também, ser tal riqueza de informações um dos critérios que viabilizam, segundo

Stake (1994), a escolha do caso a ser estudado.

3 NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Questões metodológicas sobre a análise de discurso.

Trabalho apresentado na 40. Reunião Anual da SBPC, jul. 1988 apud DIAS, M. A construção do casal contemporâneo. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 2000.

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5.4 PROCEDIMENTOS PARA COLETA DOS DADOS

Na presente pesquisa, foram realizadas duas entrevistas no consultório da

participante; na primeira, com duração de três horas, aproximadamente, efetuou-se

o levantamento do genograma, a obtenção de dados referentes à história da sua

família de origem e o levantamento dos significados gerais que ela atribui às

repercussões de sua história em sua prática terapêutica com famílias, casais e

indivíduos.

Após a primeira entrevista, realizou-se a transcrição de todas as informações gravadas e efetuou-se a primeira análise dos dados obtidos. Partindo-

se desses dados, organizou-se um roteiro para a segunda entrevista semi-

estruturada com o objetivo de complementar e aprofundar as informações

anteriormente obtidas, enfatizando-se aspectos referentes ao exercício profissional

atual da participante.

A segunda entrevista teve duração aproximada de uma hora e meia, fazendo-se também uso de perguntas previamente estruturadas como facilitadoras

do diálogo entre pesquisadora e participante.

5.5 PLANO PARA A ANÁLISE DOS RESULTADOS

Todas as entrevistas e os dados provenientes do levantamento do

genograma foram gravados e, posteriormente, transcritos. As informações

transcritas foram exaustivamente analisadas através de inúmeras leituras,

buscando-se separar o material essencial do não essencial e identificar temas

relacionados ao objetivo da pesquisa. Através dessa seleção, chegou-se aos eixos temáticos citados a seguir.

a) Significados gerais atribuídos às experiências vivenciadas na família de

origem. b) Vivências na família de origem X repercussões na prática clínica

- na parentalidade;

- na conjugalidade;

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- nas relações fraternais.

c) Questões de gênero e prática clínica.

d) Aspectos culturais e prática clínica.

e) Manejo de crises, resiliência e prática clínica.

f) Construção da identidade do terapeuta de família:

- influências teóricas;

- questionamentos atuais.

Em cada um desses eixos temáticos, procurou-se analisar, detalhadamente,

os significados atribuídos pela participante e buscar as co-relações das vivências significativas na sua família de origem e as repercussões decorrentes de tais

aprendizados na prática clínica.

As informações obtidas foram submetidas à análise de conteúdo que,

segundo Bardin (1977), configura-se como um conjunto de técnicas de análise das

comunicações que visa obter, de forma sistemática e objetiva, indicadores que

permitam a inferência de conhecimento do que está sendo pesquisado.

5.6 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS

O presente projeto foi, inicialmente, encaminhado ao Comitê de Ética da

PUC-SP; somente após a sua aprovação, os procedimentos da presente pesquisa foram realizados.

A participante recebeu todas as informações necessárias, em linguagem

acessível, quanto a justificativa, objetivos, relevância e procedimentos da pesquisa.

A pesquisadora colocou-se à disposição para esclarecimentos que se fizessem

necessários, alertando para o fato de não haver riscos de danos físicos ou

emocionais na participação de tal estudo. Além disso, a pesquisadora esteve atenta

para eventuais problemáticas que pudessem surgir, a fim de efetuar os

encaminhamentos que se fizessem necessários.

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As entrevistas e o levantamento do genograma só foram realizados após a

assinatura do Termo de Consentimento Informado (anexo 3), e a participante teve

conhecimento prévio da gravação de todo o procedimento.

Em estudos de caso, como o realizado na presente pesquisa, Stake (1994)

assinala, como preocupação primordial, a redução de riscos na vida daquele que

compartilha aspectos de sua vida particular com o pesquisador. Nessa investigação

em especial, que aborda a história da família de origem da participante, acredita-se

que os cuidados multiplicam-se, dado o número de personagens que fazem parte de

tal história. Sendo assim, optou-se pela não inclusão das entrevistas na íntegra, a

fim de resguardar a identidade não apenas da participante, mas de todos os envolvidos.

Foi assegurado à participante que seus dados pessoais, levantados através

do genograma apresentado na presente pesquisa, seriam preservados, a fim de

manter seu anonimato, e que é um direito seu retirar seu consentimento em qualquer

fase da pesquisa, sem ônus ou prejuízos.

A participante foi informada de que terá livre acesso às informações obtidas pela pesquisa, se isso for de seu interesse, podendo consultar o material arquivado

na forma de dissertação de Mestrado nas dependências da biblioteca da PUC-SP.

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CAPÍTULO 6 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

6.1 DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DA PARTICIPANTE DA PESQUISA

Uma vez que as entrevistas realizadas com a participante para fins da

pesquisa não serão publicadas na íntegra devido aos motivos éticos relacionados e

que envolvem preservar o sigilo, a sua identidade e a de seus familiares, serão levantados os dados considerados significativos acerca de sua história de vida e da

sua prática profissional.

Ana Lúcia∗ tem 54 anos, é psicóloga, concluiu sua formação em Psicologia

na década de 80, dedicou-se a trabalhar com grupos em instituições por um longo tempo, dentre outras atividades exercidas. Há 5 anos, atua em consultório particular,

como terapeuta de famílias.

A participante acredita que os fatores que a auxiliam no desempenho de seu

papel profissional de forma adequada referem-se à sua maturidade pessoal e ao

trabalho terapêutico a que se submeteu, além do preparo técnico e do

aprofundamento teórico. Ana Lúcia encontra-se em um segundo casamento, ocorrido há 9 anos; tem

uma filha de 16 anos, de um casamento anterior que durou, aproximadamente, 13

anos. É a mais velha de 4 filhos, dois homens e duas mulheres.

A seguir, serão apresentados os dados mais relevantes obtidos em suas

entrevistas.

Família De Origem Paterna

Ambos os avós nasceram em Portugal e emigraram para o Brasil quando

crianças. Seu casamento durou, aproximadamente, cinqüenta anos e é tido, pela

participante, como um modelo de funcionalidade, visto que cada um deles ocupava

um espaço próprio, validado e respeitado pelo cônjuge. Tiveram cinco filhos; o mais

∗ Todos os nomes citados neste estudo são fictícios, a fim de preservar a identidade da participante.

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velho faleceu jovem, em um acidente; o pai da participante era o filho mais novo e

percebido por ela como tendo um vínculo de muita proximidade com a mãe.

Ela relata que seu avô possuía a dedicação e força de trabalho como

características marcantes; veio a fazer fortuna neste país, em virtude de ter sido um

dos desbravadores do norte do Paraná, possuindo fazendas, entre outras

propriedades. Ana Lúcia conviveu com ambos os avós paternos; em seu relato,

torna-se evidente o lugar especial ocupado pelo avô; refere não ter desenvolvido

afeto significativo com a avó, que faleceu quando ela tinha dez anos; o avô morou

com o seu filho mais novo e sua família durante algum tempo.

A participante relata que, em sua família de origem, o avô ocupava o lugar de autoridade; o respeito com que ele era tratado resultava de seu comportamento,

visto como extremamente afetivo.

Família De Origem Materna

Ana Lúcia refere ter tido um contato maior com a família de origem materna; sua avó é de origem italiana e o avô brasileiro. Tiveram três filhos; primeiro, um filho

homem; depois, sua mãe e a tia com quem ela tem muita proximidade. Assinala

como significativo na família de origem materna o fato de seu avô ter falecido

precocemente, antes de haver completado quarenta anos. Em virtude de tal perda, a

família, que residia em São Paulo e que, aparentemente, vivenciava um bom

momento, devido à carreira promissora de seu avô, mudou-se para o interior do

Paraná, a fim de residir próximo aos irmãos de sua avó.

Segundo Ana Lúcia, tal mudança foi imposta por esses irmãos, que se

posicionavam como autoridade inquestionável em decorrência de serem homens.

Acredita que sua avó não pôde escolher, nem ao menos expressar o seu desejo de

permanecer em São Paulo, apesar de ter na cidade uma rede de relacionamento

que lhe daria apoio. Na visão da entrevistada, a perda do avô materno e a conseqüente mudança de cidade provocou impactos significativos no contexto

familiar: os filhos foram morar em casas diferentes e a avó teve que se sacrificar

muito para conseguir sobreviver; desses sacrifícios, originaram-se os problemas

circulatórios que teve posteriormente, bem como em seu falecimento aos quarenta e

seis anos de idade. Sua avó casou-se novamente numa tentativa de, na visão de

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Ana Lúcia, readquirir um status de mulher inserida socialmente; teve uma filha na

segunda união, mas o marido abandonou-a quando a filha tinha três anos.

Ana Lúcia foi a sua primeira neta; segundo ela, a neta preferida. Teve com

essa avó um relacionamento muito próximo e assinala como característica marcante

o otimismo da avó que, mesmo em uma cadeira de rodas, era uma pessoa alegre.

Segundo a entrevistada, a avó foi uma das pessoas mais significativas em sua vida;

outra figura mencionada é a tia materna que, ao contar histórias para os seus

sobrinhos, transmitia-lhes mensagens de esperança e de superação das

dificuldades.

Apesar das características positivas mencionadas, acrescenta que as mulheres do lado materno da família mantinham-se em posição subordinada aos

homens.

Seus Pais e Irmãos

Seu pai casou-se aos 32, e sua mãe, aos 19 anos; inicialmente, residiram

em uma fazenda de propriedade do avô paterno. Segundo a participante, o

casamento de seus pais já começou com indícios de que poderia vir a apresentar

problemas posteriores: a mãe casou-se após uma desilusão amorosa que teve com

outro namorado e o pai passava muito tempo na casa de seus próprios pais,

deixando a esposa grávida sozinha, até altas horas da madrugada. Além disso,

refere que, na família de sua mãe, os homens eram a autoridade inquestionável e as

mulheres não podiam expressar a sua insatisfação; sua mãe veio, então, a

reproduzir tal padrão de comportamento em seu casamento. Esperava do

matrimônio que o esposo cuidasse dela, validasse suas atitudes e assegurasse-lhe

um papel de importância, mas não sabia comunicar o que desejava. Na visão da participante, o pai, tendo sempre sido super protegido pela sua própria mãe, não

pôde corresponder às expectativas da esposa. Tiveram quatro filhos: a participante

primeiro; dois anos depois, um filho; três anos depois, outra filha; quando Ana Lúcia

tinha dez anos, o quarto e último filho.

No que se refere à sua infância, Ana Lúcia considera que seus dez

primeiros anos foram um período feliz; por um tempo, a família morou na fazenda e, posteriormente, vieram a residir na cidade; tinham um bom poder aquisitivo, e seus

pais mostravam-se presentes e carinhosos com os filhos. Suas lembranças referem-

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se ao vínculo estreito que sempre teve com seu irmão, às brincadeiras que juntos

faziam e à proximidade com a família de origem materna. Em função de suas

características comportamentais, tais como “ser calma, ser a boazinha”, bem como a

comparações efetuadas pela família com o irmão, nascido logo em seguida e que

apresentava um comportamento mais agitado, parece ter recebido uma validação

positiva em seu ambiente familiar.

Menciona a proximidade que sempre teve com seu irmão, dois anos mais

novo, mas o mesmo não ocorreu com sua irmã, com quem tinha uma diferença de

idade de cinco anos. Segundo ela, sua irmã sempre demonstrou ter muito ciúme do

papel que ela ocupava; além disso, Ana Lúcia tinha atributos físicos que a favoreciam, diferente da irmã. Também acredita que os pais não conseguiram deixar

claro para a filha mais nova que os privilégios que a filha mais velha tinha eram

decorrência de sua idade, mas não eram sinalizador de preferência.

Através de seu relato, observa-se que a sua infância ocorreu dentro de um

modelo de família tradicional: o pai ocupava o papel de provedor e a mãe era a

responsável pelo cuidado com os filhos e pelos afazeres domésticos; às crianças, restava obedecer e não se manifestar. Pode-se dizer que tal configuração

correspondia ao padrão vigente naquele contexto, interior do Paraná, nos anos 50

do século XX, época de seu nascimento. As crenças presentes em sua família de

origem referiam-se a autoridade masculina, respeito pelos mais velhos, papel

subordinado ocupado pelas mulheres, importância do trabalho, da aquisição de

conhecimento e da honestidade.

Basicamente, ela tem lembranças muito positivas dos dez primeiros anos de

sua vida, mas o mesmo não ocorre a partir de então. Sua mãe teve uma gravidez

problemática; teve um mioma no útero e precisou se submeter a uma cirurgia; sua

avó paterna faleceu; seu irmão mais novo nasceu. Paralelamente a isso, seu pai

envolveu-se em um relacionamento extraconjugal, com uma moça muito jovem e

que fazia parte da rede social familiar; como residiam numa cidade do interior, muitos comentários surgiram em decorrência dessa relação. Começou, pois, uma

fase de mudanças geográficas em sua vida: sua mãe, a fim de protegê-la de

observações maldosas, transferiu-a para estudar em um colégio interno, em São

Paulo. Posteriormente, a mãe e os filhos mudaram de cidade por mais de uma vez.

Oficialmente, seus pais continuaram casados, apesar de ele conviver com

as duas famílias ao mesmo tempo; durante a época de sua adolescência, a

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participante relata que veio a ocupar um papel de apoio para a sua mãe e de

cuidadora de seus irmãos. Seus pais só vieram a separar-se quando Ana Lúcia

apresentou um ultimato à sua mãe: ou a mãe oficializava a separação ou ela saía de

casa. Como repercussão, tal postura ocasionou rompimentos: com o seu pai e com

a família de origem dele. Além disso, o padrão financeiro da família sofreu um sério

abalo; embora seu pai tivesse um bom poder aquisitivo, não houve, em sua opinião,

uma divisão justa dos bens do casal. Ela necessitou trabalhar para ajudar no

sustento da família e, segundo ela, nessa época, seu irmão e sua irmã começaram a

usar drogas.

Retrospectivamente, ela vê-se como ocupando um papel central frente às crises vivenciadas em sua família de origem, sendo aquela que recebia, inicialmente,

as más notícias: as conseqüências do uso de drogas feito pelo irmão, a doença da

irmã. Chega a comparar-se a uma peneira: filtra os acontecimentos; os resíduos

ficam com ela, e repassa o restante, já coado e limpo, aos outros.

Sua Vida Adulta A entrevistada mudou-se de cidade quando começou a fazer a faculdade de

Psicologia; conheceu seu primeiro marido na época da faculdade, moraram juntos

por um tempo e, posteriormente, vieram a se casar. Moraram em diversos lugares

do país em virtude da profissão dele. Ela relata que, apesar de ter havido muito amor

no relacionamento e de ele ser essencialmente uma boa pessoa, o fato de ser

usuário de substâncias químicas contribuiu para que o casamento terminasse.

Ana Lúcia viveu alguns anos apenas com sua filha; mais tarde, veio a

conhecer o atual marido com quem, segundo ela, tem um bom relacionamento. Ela

relata que o fato de seu marido atual ter uma filha de um matrimônio anterior

configurou-se em um desafio adicional; porém, percebe que tal experiência

favoreceu-lhe muitos aprendizados, sendo vista como fonte de competência, inclusive no contexto profissional, ao atender famílias que passam pelos mesmos

desafios.

A seguir, apresenta-se o genograma da participante da pesquisa.

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6.2 EIXOS TEMÁTICOS

PARENTALIDADE

VIVÊNCIAS NA FAMÍLIA DE ORIGEM

REPERCUSSÕES NA PRÁTICA CLÍNICA

“Na minha família, essa questão de

respeito pelo mais velho é uma coisa presente.”

“Meu pai nunca encostou um dedo em mim. Você introjetava a autoridade, respeitava e assunto encerrado.”

“Aprendi com minha mãe: filho a gente assume.”

“Quando eu queria uma coisa, eu fazia sozinha; minha mãe me deixava fazer, me deixava tentar; isso fez com que eu acreditasse que eu era capaz.”

“Eu sempre tive um avô super presente e que era a autoridade; o olhar era tudo.”

“Ele sentava em uma ponta da mesa, e meu pai na outra; a gente sentava, quieto; criança não ficava dando palpite, era quieta.”

“O hábito, de manhã, [era] pedir a benção pro meu avô; não podia dormir sem pedir a benção, jamais. As figuras masculinas eram assim, como autoridade; meu pai não precisava nem falar, ele olhava.”

“Meu avô Raul era o patriarca; ele era indiscutível pelo comportamento; super funcional.”

“Na família da minha mãe, meus tios tomaram esse lugar de autoridade indiscutível; não se questionava; não se discutia com eles, mesmo estando muito infeliz.”

“Os pais detém o poder porque têm a

obrigação de proteger.” “[Tem] pai e mãe que se confunde e

que imagina que liberar filho é ser um pai democrático, [mas] é um pai que não protege; adolescente que não tem pai protegendo vai dar problema.”

“A pouca cobrança é muito mais séria; é muito mais difícil de melhorar a situação do que sendo mais exigente com os filhos.”

“O quanto ser amorosa, às vezes, pode impedir que o outro expresse o desconforto.”

“Dentro da teoria do meu sentimento, da minha história como mãe, como mulher, parto do princípio que limite é demonstração de afeto, de amor; quem dá limite [...] ama; dar limite é dizer: até aqui chega.”

“Quer saber o que teu filho pensa? Então, escuta; é isso de estar disponível.”

“Não se conversa tudo com pai e mãe.” “Tem que haver limite, tem que haver

respeito, não pode tudo; mas respeitando a hierarquia sempre.”

“[Vejo] como meu filho está crescendo, e como eu posso crescer nessa relação.”

“Nem que sua mãe esteja usando fralda, ela continua sendo sua mãe.”

“A mulher, quando administra bem seu papel de mãe, pode ajudar os filhos a serem mais competentes.”

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CONJUGALIDADE

VIVÊNCIAS NA FAMÍLIA DE ORIGEM

REPERCUSSÕES NA PRÁTICA CLÍNICA

“Minha mãe, grávida de mim; ele ia

pra farra, ela ficava sozinha; já começou mal, péssimo.”

“Daí, eles se separaram; foi uma desgraceira. Meu pai passou minha mãe para trás financeiramente. Foi um caos.”

• Família Paterna: “É um privilégio muito grande. tem

casamento estável, não tem separação. Minha avó tinha o espaço dela como mulher; ele não entrava no dela, ela não entrava no dele.”

• Família Materna: “Quando minha mãe casou com ele,

ficou na expectativa de que ele fosse fazer por ela o que minha avó já esperava: cuidar, validar a presença dela, dizer: Você é importante, eu te reconheço, reconheço teu lugar.”

“Com o número de separações, que são muitas, os homens são mais estáveis, as mulheres se separam muito; elas não conseguem manter um casamento.”

“Eu nem sei se, algum dia, teve o papel de casal nesses casais; parece que se entrava com um modelo pré-definido de pai e de mãe.”

“As mulheres, discretamente, despotencializavam esses homens, que eram senhores feudais, e fizeram com que o casamento fosse algo impossível.”

“As coisas eram assim: Ah, não? Então, joga fora. Era oito ou oitenta.”

“O quanto elas podem se prevenir; não

é errado você saber que metade do que teu marido ganha é teu.”

“Como se prevenir? Tem uma poupança? Vai se separar, procurou um advogado, viu seus direitos?”

“O que, na minha família paterna, foi feito de forma diferente e que este casal não enxergou ainda?”

“Potencializar ambos...” “Trazer o homem mais pra perto da

mulher, nas decisões com os filhos.” “Trabalhar com eles o fato de que a

intimidade tem que ser discutida de porta fechada, do quanto eles dão limite.”

“O que vocês dois pretendem como casal?”

“Se os filhos saíssem todos de casa; [olha] a riqueza que pode ser uma relação na idade madura, sem haver idealização.”

“Casamento é algo real, e tem ganho nisso.”

“Poder usar: Eu sei porque gosto de você; eu sei porque estou contigo.”

“Não usar as saídas únicas, por exemplo, a vida sexual, para retomar o afeto.”

“Poder um estar mais próximo do outro; falar sobre a relação em todos os momentos.”

“O fato de você não expressar o que quer pra um homem pode te deixar numa situação muito difícil.”

“Os homens são bons parceiros também pra carregar pesos; a gente não precisa carregar todo o peso.”

“Não sou casamenteira no consultório; se tem que separar, então separe.”

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INTERAÇÕES FRATERNAS

VIVÊNCIAS NA FAMÍLIA DE ORIGEM

REPERCUSSÕES NA PRÁTICA CLÍNICA

“Ela [avó] era muito ligada no tio Pedro; eram os grandes parceiros, como eu sou com o Leo.”

“[A] grande proximidade que eu sempre tive com o Leo, com quem mais brinquei; nós brigávamos muito na infância.”

“A Ana Paula era muito ligada no Leo; era o herói dela.”

“Eu nunca fui amiga da Ana Paula; existia uma disputa; eu reinava soberana; nós nos unimos na dor, [foi uma] forma de resgatar a nossa relação.”

“O meu irmão caçula... eu cuidei dele; eu era super ligada nele; quando ele se casou, se afastou da gente.”

“Os irmãos do meu pai nunca foram muito próximos.”

“Entre meus primos, existe falta de parceria mesmo; existe um distanciamento entre alguns. Não se fala pra não ficar sem falar ou fica sem falar porque não fala.”

“Eu falo com o Leo; sei que posso falar.”

“Vocês são irmãos, mas a tua idade

faz com que você tenha um papel diferente nesse momento.”

“Como negociar entre eles, se comunicar.”

“Possibilidade de reconhecer o que meu irmão fez por mim.”

“Diferenciar: quem sou eu; quem é você; quais são as tuas necessidades neste momento?”

“Lidar com a questão de não ser preferido.”

“Quanto eles podem, um dia, apoiar um ao outro.”

“Quanto isso vai ser útil na vida deles,

essa parceria ao longo do tempo.”

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PAPÉIS DE GÊNERO

VIVÊNCIAS NA FAMÍLIA DE ORIGEM

REPERCUSSÕES NA PRÁTICA CLÍNICA

“Ela [bisavó] era daquelas mulheres que não conta pros filhos que está morrendo do coração.”

“Se a minha avó tivesse dito não pra esse irmão mais velho... mas vê como a família era uma coisa tão importante para ela, a família extensa.”

“Elas [mulheres] não eram vistas como quem precisasse de estudos.”

“Casamento [foi a] tentativa de minha avó de refazer a família, de casar, de readquirir aquele status de mulher inserida socialmente.”

“Aí, meu pai deu a palavra final; não teve mulher que convencesse a criatura.”

“Mulher não pode ter uma vida boa, financeiramente, se não tiver um homem mantendo isso.”

“As mulheres da minha família são guerreiras; elas vão, batalham, seja costurando, fazendo pão, com dignidade.”

“A maioria delas [mulheres] se separou para ter poder.”

“Até a adolescência [era] frágil, tímida, vítima; depois da adolescência, meu comportamento [era] bem masculino: agir, impulso, me posicionar.”

“O homem acolhe diferente, com proteção, com sabedoria, com a festa.”

“Acolher... isso é bem coisa de mulher; padrão único nas mulheres; acolhem pelo poder.”

“Essa coisa da mulher dizer amém, pra

mim, bate forte; me dão muita aflição as mulheres cordatas. Não que eu vá ser a salvadora, mas há uma possibilidade quando você aventa a hipótese.”

“Ela pode ter a sua vida, o seu espaço, o seu trabalho, salário. Já vai pro casamento com outra expectativa; isso faz toda a diferença [...] Acaba sendo uma escolha.”

“É olhar pra essas mulheres e compreender [suas fragilidades].”

“Curiosidade muito grande de como os homens pensam.”

“E dos homens também entenderem que eles não precisam fazer tudo; o que sobrecarrega o homem é imaginar que ele tem toda a responsabilidade.”

“Poder favorecer, dentro do consultório, o conhecimento das mulheres; fazer com que este homem conheça mais o que esta mulher pensa.”

“O fato de não dizer o que pensa não significa que você vai estar protegida; te deixa muito desprotegida.”

“Fazer com que a mulher veja mais como é o homem, que ele não é essa força toda.”

“Quando o homem tem a autoridade reconhecida, não autoritária, ele promove proteção, aconchego.”

“Cuidado como terapeuta, [de] que maneira eu acolho, o quanto eu respeito, [para] não me tornar uma terapeuta manipuladora.”

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QUESTÕES CULTURAIS

VIVÊNCIAS NA FAMÍLIA DE ORIGEM

REPERCUSSÕES NA PRÁTICA CLÍNICA

“O filho mais velho, homem, pra

português, é o tal; é aquele que vai levar a família adiante o nome da família.”

“Meu pai tinha muito sotaque; o jeito de ser de português, grosseirão.”

“Minha mãe [era] italiana, afetiva. Família de italianos, todo mundo se mete na vida de todo mundo, apinhado igual besouro; nem que fosse pra brigar, mas tava com alguém por perto.”

“O quanto é arraigado pra mim o que vem da cultura portuguesa e italiana; por exemplo, ter lugar à mesa.”

“Se eu pegar o meu dia e for olhar pra ele, em 90%, está presente a cultura.”

“[É] um dos motivos porque eu faço o

genograma. Chama a atenção quando tem duas culturas diferentes; me dá uma atração incrível, uma curiosidade. Quais novas regras estão sendo estabelecidas?”

“Faz pensar: quem somos nós, brasileiros; quem são essas pessoas que sentam aqui, com essa multiplicidade de informações culturais?”

“O quanto a cultura interfere, sem que tenham consciência.”

“Como a cultura oriental era forte e se relacionava com a sua dificuldade.”

“Ser terapeuta, no Brasil, [é] desafio muito grande.”

“O italiano é aquela festa; os japoneses são super reservados.”

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CRISES E RESILIÊNCIA

VIVÊNCIAS NA FAMÍLIA DE ORIGEM

REPERCUSSÕES NA PRÁTICA CLÍNICA

“Você não se deixa abater pelas

coisas; então, levanta, vamos trabalhando e mexendo, não tem muito de ficar deprimida. Diziam que minha avó, mesmo numa cadeira de rodas, fazia piada, era muito engraçada.”

“Eu aprendi a ser otimista. Se a vaca ta indo pro brejo, a gente vai tomar um banho de lama; quem sabe faz bem pra pele.”

“Ouvir a história do Patinho Feio e saber que um dia eu podia virar um cisne foi muito saudável. As coisas não são como parecem, e acreditar nisso faz muita diferença.”

“Essas dores da vida eu redefino mesmo...”

“As crises, na minha vida, promoveram o crescimento, e eu olho pra isso com muito otimismo.”

“O fato de eu ter tido crises me fez acreditar que as coisas possam acontecer de maneiras diferentes e muito boas.”

“Eu sou uma pessoa super otimista; acho que posso chegar a qualquer lugar.”

“Eu olho a crise como uma grande oportunidade.”

“A crise favoreceu... Quando ela contraiu ficou doente, nós nos unimos na dor. Tive a possibilidade de me aproximar da minha irmã e de ela morrer em paz comigo.”

“Eu tenho que tomar cuidado para não

ser muito otimista; nem todas as pessoas têm esse mapa de mundo.”

“Não passar mensagem de que o resultado da terapia seja uma mega sena.”

“Que o objetivo seja dentro das limitações da família.”

“Tomar cuidado para não usar a crise como algo muito fácil de ser superado, mas também não tão difícil que não se supere.”

“Olhar a crise como uma oportunidade, que promova um novo pensar.”

“Mostrar que a crise promove o contato; a crise promove uma proximidade emocional não só com os de casa, [mas] com outras pessoas, que podem ajudar”

“Pedir ajuda é fundamental.” “Ajudar a olhar pra trás e ver que já

enfrentou outras crises. [Ver] o que aprendeu com elas e pode ser útil agora; [ver] quais ferramentas desenvolveu.”

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A CONSTRUÇÃO DO TERAPEUTA DE FAMÍLIAS

INFLUÊNCIAS TEÓRICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

QUESTIONAMENTOS ATUAIS

“O Minuchin [Enfoque estrutural, p.

27.], bastante, por causa de ele ser desafiador; eu me sinto assim, como uma terapeuta provocativa; vou muito dentro dessa coisa do foco.”

“Gosto da maneira [como] trabalha o

Michael White [Enfoque narrativo, p. 67.]; essa coisa de ele buscar o que está por trás do explícito, externalizar o problema; no consultório, eu uso bastante e funciona. Quando ele externaliza, tira o rótulo, coloca isso como um comportamento à parte, mostra a pessoa na sua essência; pode-se enxergar o outro lado da pessoa.”

“Com criança, [...] quando ela externaliza, muda o comportamento.”

“Externalizar, tirar de dentro da pessoa, dá um alívio da carga; olhar isso do lado dá um alívio da carga; você é mais que isso, você é competente, pode retomar o poder para si.”

“Ele é ágil, eu sou ágil também; acho que é bem legal isso.”

“Monica McGoldrick [Enfoque

intergeracional ou boweniano, p. 35.]: sem ter o genograma, não existe terapia familiar para mim.”

“Cloé Madanes [Enfoque estratégico, p. 31.]: acho bem interessante a forma como ela enxerga a violência; acho ela super afetiva.”

“Joel Bergman [Enfoque estratégico,

p. 31.]: quando ele usa os paradoxos... Muitas vezes, eu uso, [...] quando cabe.”

“Ouvir aquilo que o cliente traz, o que

ele está dizendo; fazer ele se escutar.” “O grande cuidado, como terapeuta, é

não se distanciar muito do cliente; na medida que você amplia o teu conhecimento e que você não valide a dor que ele está sentindo.”

“Procuro ver qual é o ritmo do meu cliente, respeitar isso.”

“Poder enxergar o mapa de mundo do cliente.”

“Não ir pro caminho que só eu estou enxergando; tenho que ir pelo que ele está me pedindo; respeitar; não tenho que ser a dona da verdade.”

“Qual é o limite da criatura; até onde ela pode ir?”

“Até que ponto eu posso trabalhar com um cliente, qual é o momento de dar alta?”

“Não me tornar uma terapeuta manipuladora; respeitar o outro, a regra que aquela família tem [que] não é a que eu considero politicamente correta; não interessa a minha regra naquele momento.”

“Não misturar a pessoa que eu sou; tomar cuidado com esse limite.”

“Ser mais paciente, cuidar com o que eu faço para não atropelar os outros.”

“Todos nós temos fragilidades, inclusive os terapeutas. Cuidado para que o cliente não saia daqui carregando os meus problemas.”

“Humildade... É ótimo ver que não se dá conta de tudo, tem que ir atrás.”

“Ouvir, sentir... Acho que esse é o grande ponto: acolhimento.”

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6.3 DISCUSSÃO DOS DADOS

Levando-se em conta que o objetivo do presente estudo refere-se a

conhecer a história vivenciada por uma terapeuta de famílias em sua família de

origem e compreender a percepção que a mesma tem acerca da influência de sua

história de vida em sua prática clínica, discutem-se, a seguir, os pontos de maior

relevância, que foram obtidos como resultado da organização das informações

levantadas. De acordo com a entrevistada, as experiências vivenciadas por qualquer

indivíduo na família de origem são fundamentais para o seu atual posicionamento no

mundo: “São verdades absolutas; você não tem outra forma de ver a vida.” Acrescenta que, muitas vezes, tais vivências podem acarretar dificuldades na

aceitação de valores diferentes: “Quando entra alguém novo, às vezes, choca, cria

expectativas, medos.” Entretanto, salienta que a estrutura familiar, se é mais ou

menos aberta ao novo, pode influenciar na forma de absorver informações diferentes e chega a comparar os valores aprendidos na família a filtros ou lentes que

interferem em seus comportamentos, regulando-os. Ao ser questionada acerca das repercussões que as vivências familiares

apresentam na prática clínica de um terapeuta de família, parece se referir ao termo

ressonância proposto por Elkaim (1996), embora não o use explicitamente, ao

assinalar o cuidado necessário a ser tomado quando as experiências do terapeuta e

do cliente apresentam semelhanças: “[É preciso] pensar no que é meu, no que é do

cliente, ter respeito por esse espaço, porque é bem tênue”; “[É preciso ter] cuidado

com meu cliente, [para] que ele não saia daqui carregando os meus problemas.” No

entanto, um aspecto assinalado por Andolfi (1996), em que a ressonância também

ser vista como “porta de entrada”, faz-se presente em sua fala ao marcar a

importância de ter vivenciado situações em que se sentiu estigmatizada: “...entender a dor de quem sente preconceito; eu vivi e sei muito bem o que é ser apontada [...] o

meu pai [...] discriminada porque meu irmão era usuário de droga.” Percebe a história que vivenciou em sua família de origem, como um

aspecto positivo e facilitador em sua profissão: “Eu vejo que, graças a essa confusão

toda, eu tive oportunidade de chegar aonde eu cheguei; vejo que tudo que eu vivi, a

desgraceira que não foi pouca, me traz uma competência tal que estou com a

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agenda cheinha de paciente.” Acrescenta que as diversas temáticas presentes em

sua família de origem aumentam sua bagagem como terapeuta: “Eu olho assim: tem

quase todo tipo de relação, é uma riqueza”, bem como a auxiliam na vinculação com

os clientes. Fala, ainda, do fato de tanto ela, quanto seu irmão, terem sido usuários

de substâncias químicas e estarem sem utilizá-las há muito tempo ser um fator

importante no atendimento a dependentes químicos: “É uma coisa que eu conheço

muito bem, todas elas [...] pra minha experiência com dependência química, foi

muito importante tudo isso que eu vivi.” Como aprendizados efetuados em sua família de origem e que

desfavorecem a sua prática profissional atual, relata a dificuldade em cobrar um valor justo pelo seu trabalho: “Que o meu trabalho vale dinheiro, isso eu não aprendi;

aquela coisa de que você nunca é bom o suficiente, lá da família de minha mãe;

você nunca é perfeitinho o suficiente.” Assinala, ainda, que tem se esforçado para

modificar isso. Tais aspectos parecem estar relacionados a aprendizados referentes

a gênero; em sua família, relata que as mulheres são batalhadoras, exercem

qualquer atividade para manter os filhos; porém, cabe ressaltar que, em seu discurso, tais atividades são aquelas que recebem remuneração limitada, tais como

costurar, fazer pão, entre outras. No que se refere aos modelos de parentalidade presentes em sua família de

origem, faz referências à clareza na hierarquia: “Eu tive um avô que era a

autoridade, seu olhar era tudo”; “As figuras masculinas eram, sim, a autoridade”; “Aí,

meu pai dava a última palavra, não tinha mulher que convencesse a criatura”; “O tio

Paulo, o patriarca nessa família [...] ficou decidido que eu nasceria na casa dele.”

Percebe-se, em seu discurso, que o papel máximo da hierarquia era ocupado pelos

homens (avô paterno, pai e tio materno): “Ele [avô] sentava em uma ponta da mesa

e meu pai, na outra.” Por outro lado, às crianças, cabia obedecer e não se

manifestar: “A gente sentava, quieto; criança não ficava dando palpite, era quieta.” O

respeito pelos mais idosos também era uma crença presente: “Não podia dormir sem pedir a benção; jamais.” Correspondendo a um modelo patriarcal tradicional, as

mães eram responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos; a entrevistada refere

que sua avó paterna não estimulou os filhos a terem autonomia: “Ela não queria

liberar os filhos, eram todos dela”; porém, uma postura diferente era apresentada

pela sua mãe: “Quando eu queria uma coisa, eu fazia sozinha; minha mãe me

deixava fazer, deixava tentar; isso fez com que eu acreditasse que eu era capaz.”

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Em sua prática clínica, visa auxiliar os pais, em especial as mães, a estimularem a

autonomia de seus filhos: “...a mulher, quando administra bem seu papel de mãe,

pode ajudar os filhos a serem mais competentes.” Em seu desempenho profissional, os aprendizados efetuados na sua família

de origem e relacionados à parentalidade fazem-se presentes na importância que

atribui à clareza na hierarquia: “...tem que haver limite; quem dá limite é porque ama;

tem que haver respeito; não pode tudo; respeitando a hierarquia, sempre.” Cabe

acrescentar que tal preocupação com a estrutura familiar, com ênfase no sub-

sistema decisório atuante, pode também relacionar-se às contribuições teóricas do

enfoque estrutural, influência que percebe em sua prática clínica. A autoridade é um tema central em seu discurso; ela descreve que, em sua

história, vivenciou dois tipos de modelos: um autoritário, representado pelos homens

da família de origem materna: “Não se discutia com eles, mesmo estando muito

infeliz...”; e outro que associa a proteção com autoridade: “Meu avô... ele era

indiscutível pelo seu comportamento, [era] super funcional.” Tais vivências

repercutem em sua prática, quando atua tendo por objetivo que os pais ocupem esse lugar: “...detêm esse lugar porque têm a obrigação de proteger”; acredita que,

quando não existe uma delimitação clara, isso pode vir a ser problemático: “Pai ou

mãe que se confunde e que imagina que liberar filho é ser democrático não protege;

adolescente que não tem um pai protegendo vai dar problema.” Entretanto, enfatiza

a necessidade de que haja proximidade entre pais e filhos: “Quer saber o que teu

filho pensa? Então, escuta...”, acrescentando que propõe aos pais o trabalho sobre

os ganhos decorrentes do crescimento dos filhos: “Como meu filho está crescendo e

como eu posso crescer com ele nessa relação?”

Outro fato importante a mencionar é que a participante da pesquisa possui

uma filha que se encontra na adolescência; segundo ela, como está enfrentando os

desafios dessa etapa do ciclo vital, alia a sua vivência com a busca de subsídios, na

teoria, que a auxiliem tanto pessoal, quanto profissionalmente: “Usar isso que está escrito, a teoria, pra nortear.”

No que se refere aos modelos de conjugalidade presentes em sua família

de origem, faz uma clara distinção entre o que aprendeu com o lado materno e com

o lado paterno. Situa o casamento de seus avós paternos como um modelo de

funcionalidade em virtude de ter sido uma relação de longa duração, na qual cada

um possuía um lugar delimitado e validado pelo cônjuge. Na prática profissional com

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casais, utiliza tal modelo como referencial quando questiona: “...o que, na minha

família paterna, foi feito de forma diferente e que este casal não enxergou ainda?”

Já da família de origem materna, refere ter tido modelos de casamento nos

quais: “...as mulheres, discretamente, despotencializavam os homens, que eram

senhores feudais, e faziam com que o casamento fosse algo impossível”, possuindo

expectativas não expressas com relação ao casamento: “...ficou na expectativa de

que ele fizesse o que minha avó já esperava, que era cuidar, validar a presença dela.” A participante, em sua atuação clínica, visa estimular a comunicação entre os

cônjuges: “Poder um estar mais próximo do outro, falar sobre a relação em todos os

momentos, não utilizar saídas únicas”, bem como a busca de validação: “...potencializar ambos.”

Outro fato significativo vivenciado em sua história de vida, e que apresenta

repercussões no seu exercício profissional, refere-se à separação de seus pais,

evento que desencadeou, além do sofrimento decorrente da ruptura do vínculo,

perda financeira para sua mãe e os filhos dela. Tal vivência repercute em sua prática

e menciona os questionamentos que dirige a suas clientes: “...como se previne? Tem uma poupança? Vai se separar, procurou um advogado? Viu seus direitos?

Não é errado você saber que metade do que seu marido ganha é seu.”

Acrescenta que, dentre os modelos de casamento vivenciados em sua

família de origem, percebia que o vínculo conjugal recebia menos atenção que o

parental: “Parece que se entrava com um modelo pré-definido de pai e de mãe”; na

sua prática, suas intervenções visam estimular a proximidade emocional entre os

cônjuges: “...a intimidade tem que ser discutida de porta fechada; [...] se os filhos

saíssem todos de casa [...] a riqueza que pode ser uma relação na idade madura,

sem haver idealização.” Tais posicionamentos também parecem refletir influências

teóricas tanto do enfoque estrutural, quanto do modelo de ciclo vital familiar proposto

por McGoldrick (1995). Ainda no tocante à conjugalidade, enfatiza a importância da

auto-responsabilização no relacionamento, tornando presente, na sua atuação profissional, questionamento tal como: “O que vocês dois pretendem como casal?

[...] poder usar: eu sei porque gosto de você, eu sei porque estou contigo.”

Outro ponto ressaltado, referente às vivências conjugais em sua família de

origem, diz respeito ao grande número de separações femininas: “As mulheres se

separam muito, elas não conseguem manter um casamento; as coisas eram assim;

joga fora; oito ou oitenta.”, sinalizando a repercussão de tais vivências quando

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trabalha a estimulação de reflexões como: “O casamento é algo real e há ganho

nisso; o fato de não expressar o que quer pra um homem pode te deixar numa

situação difícil.”

Quanto às interações fraternais presentes em sua família de origem, relata

que, principalmente no lado paterno, tal vínculo não é valorizado: “...os irmãos do

meu pai nunca foram muito próximos; entre meus primos, existe falta de parceria

mesmo”; por outro lado, assinala a parceria que percebia entre sua avó materna e os

irmãos dela, bem como a que existe entre si mesma e seu irmão: “...ela [avó] era

muito ligada ao tio Pedro; eram os grandes parceiros, assim como eu e o Léo, com

quem eu mais brinquei; nós brigávamos muito na infância.” Percebe, como fatores presentes em sua família de origem e que limitam a

proximidade entre irmãos, o temor do rompimento, além da dificuldade do

estabelecimento de comunicação clara entre eles: “Existe um distanciamento entre

alguns; não se fala pra não ficar sem falar ou fica sem falar porque não fala.”

Acrescenta que, com seu irmão, sempre pôde fazer diferente: “...eu falo com o Léo,

sei que posso falar”; essa vivência pessoal positiva repercute na sua atuação profissional ao atender irmãos, ao direcionar o trabalho com os clientes: “...como

[podem] negociar entre eles, comunicar-se”; bem como ao levá-los a refletir:

“...quanto isso pode ser útil na vida deles; essa parceria ao longo do tempo.”

Ainda no tocante a interações fraternais, a participante relata não ter tido um

vínculo de proximidade com a sua irmã: “Eu nunca fui amiga da Ana Paula, existia uma disputa”, acreditando que tal fato ocorreu em virtude de terem cinco anos de

diferença de idade e da irmã, provavelmente, sentir-se ressentida do maior espaço,

validação e liberdade que ela tinha e de como tal situação não foi revertida pelos

pais. Repercussões dessa vivência tornam-se claras em sua prática terapêutica

quando objetiva, no trabalho com irmãos, a busca de: “...diferenciar; quem sou eu,

quem é você, quais são as suas necessidades neste momento; lidar com a questão

de não ser preferido.” Além disso, como filha mais velha, relata ter cuidado de seu irmão caçula: “Eu cuidei dele, eu era super ligada nele”; na atuação clínica, estimula

a existência de reconhecimento entre os irmãos: “[há] possibilidade de reconhecer o

que meu irmão fez por mim.”

No que se refere às questões de gênero, a entrevistada percebe as

mulheres de sua família de origem como submissas: “Se a minha avó tivesse dito

não pra esse irmão mais velho [...] mas vê como a família era uma coisa importante

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para ela, a família extensa”; “Elas não eram vistas como quem precisasse [de

estudos]”; como dependentes: “Mulher não pode ter uma vida boa, financeiramente,

se não tiver um homem mantendo isso” e também altruístas: “Ela [bisavó] era

daquelas mulheres que não conta pros filhos que está morrendo do coração.”

As vivências relativas a gênero parecem repercutir quando, em sua prática

clínica, no trabalho com clientes, direciona-se em busca de outras possibilidades:

“Essa coisa de mulher dizer amém, pra mim, bate forte; me dá muita aflição ver

mulheres cordatas. Não que eu vá ser a salvadora, mas há uma possibilidade

quando você aventa a hipótese”; em busca de estimular comunicação clara das

expectativas: “O fato de não dizer o que pensa não significa que você vai estar protegida, [mas] lhe deixa muito desprotegida...”; em busca de movimentos voltados

a sua independência, que a mulher pode fazer: “...que a mulher pode, pode, ter a

sua vida, o seu espaço, o seu trabalho, salário; se já vai pro casamento com outra

expectativa, isso faz toda a diferença; acaba sendo uma escolha.”

Os homens, em sua família de origem, além de serem vistos como a

autoridade e trabalhadores, também eram percebidos como severos: “Meu pai era bravo, meu pai só olhava”; “O tio Guilherme era uma pessoa bravíssima”, mesmo

que, em seu relato, a afetividade de seu pai estivesse presente. Percebe-se, nas

vivências em sua família de origem, a existência de papéis fixos e pré-determinados

daquilo que corresponde a ser homem, atrelado à força e à autoridade, e daquilo

que é ser mulher, relacionado à fragilidade e à submissão.

Em sua prática clínica, parece direcionar seu trabalho no sentido de a

favorecer a existência de maior simetria e compreensão mútua quanto aos papéis de

gênero: “Poder favorecer, dentro do consultório, o conhecimento das mulheres, fazer

com que este homem conheça mais o que esta mulher pensa”; “...fazer com que a

mulher veja mais como é o homem, que ele não é essa força toda”; “...e dos homens

também entenderem que eles não precisam fazer tudo; o que sobrecarrega o

homem é imaginar que ele tem toda a responsabilidade.” Tais posicionamentos parecem direcionar-se a questionar, no espaço terapêutico, tal como proposto por

Knudson-Martin (1997), as limitações que tanto homens, quanto mulheres, sofrem se

os significados atribuídos ao gênero não são abertos a desconstruções.

Outros aspectos referentes a questões de gênero dizem respeito ao fato de

ter nascido mulher, o que propicia, em sua prática: “Olhar pra essas mulheres e

compreender [as fragilidades]”; “...curiosidade muito grande de como os homens

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pensam”; assinalando, como aspecto importante, ter vivenciado, em sua família de

origem, diferentes formas com que homens e mulheres acolhem: “...o homem acolhe

diferente, com proteção, com sabedoria, com festa.”

Em sua prática clínica, procura estar atenta para a forma como ela, como

terapeuta, acolhe, pois vivenciou, em sua família de origem, manifestações rígidas

de tal postura: “...acolher, isso é bem coisa de mulher, padrão único nas mulheres;

acolhem pelo poder”. O seu questionamento dirige-se para si mesma: “De que

maneira eu acolho, o quanto eu respeito? [Para] não me tornar uma terapeuta

manipuladora e respeitar o outro.”

Sendo a entrevistada descendente de portugueses, pelo lado paterno, e de italianos, pelo lado materno, em seu relato, há referências às influências de tais

etnias no comportamento de seus avós e pais: “O filho mais velho, homem, pra

português, é o tal, é aquele que vai levar a família adiante, o nome da família”; “Meu

pai tinha muito sotaque e o jeito de ser de português, grosseirão; às vezes, dava

umas engrossadas, umas cavalices”; “Minha mãe, italiana, afetiva, não tinha dinheiro

para nada, mas a minha avó cantava”; “[Em] família de italianos, todo mundo se mete na vida de todo mundo, é apinhado igual besouro; nem que fosse pra brigar,

mas tava alguém por perto.” Mesmo em momentos que descrevia a afetividade

demonstrada por seu pai para com ela e com seu irmão: “Ele deitava na rede, punha

a gente na barriga dele e lia dicionário com a gente”; “Eles me deram uma

maquininha de costura quando eu era criança; ele costurou horas na minha

maquininha”; “Aos domingos, meu pai pegava sempre um guardanapo e

transformava num ratinho.”, parece que tais comportamentos não interferem em sua

percepção, a qual assinala certa aspereza na postura do pai e está co-relacionada

às suas características étnicas. Segundo a entrevistada, em sua vida atual, os

aspectos culturais são presentes em seu dia a dia: “O quanto é arraigado, pra mim, o

que vem pela cultura portuguesa e italiana; por exemplo, ter lugar à mesa”; “...se eu

pegar o meu dia e for olhar pra ele, em noventa por cento, está presente a cultura.” Em sua prática clínica, procura entender como a cultura atua na vida de

seus clientes: “...um dos motivos [por]que eu faço o genograma [...] chama a atenção

quando tem duas culturas diferentes; me dá uma atração incrível, uma curiosidade

[...] que novas regras estão sendo estabelecidas.” Levanta um questionamento,

através de sua prática, acerca da identidade do brasileiro e da multiplicidade de

informações culturais existentes nessa sociedade e assinala que busca direcionar

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sua atenção, no contexto terapêutico: “Quanto a cultura interfere, sem que tenham

consciência [...] se relacionava com a sua dificuldade.” Apesar da entrevistada considerar-se atenta à diversidade cultural, percebe-

se, em seu relato, ao menos no que se refere a origens étnicas, certas

generalizações: “O italiano é uma festa, os japoneses são super reservados”, que

estão presentes também quando se refere à sua família de origem. Além disso,

cultura parece ser assumida, para a participante, como sinônimo de etnia. Tais

aspectos remetem às considerações propostas por Falicov (1995) e que assinalam

os desafios implícitos no desenvolvimento de competência cultural, o perigo do

treinamento em cultura enfocar apenas as origens étnicas e o cuidado em se evitar comparações entre duas etnias diferentes a fim de não haver hierarquização entre

as mesmas.

Com relação às crises vivenciadas em sua família de origem, considera

como aprendizados mais importantes o enfrentamento: “Você não se deixa abater

pelas coisas; então, levanta, vamos trabalhando e mexendo, não tem muito tempo

de ficar deprimida; diziam que a minha avó, mesmo numa cadeira de rodas, fazia piada, era muito engraçada”; o otimismo: “Minha avó era feliz, era alegre; na cadeira

de rodas, cantava, contava piadas; eu sou otimista, eu aprendi a ser otimista; se a

vaca ta indo pro brejo, a gente vai tomar um banho de lama e, quem sabe, faça bem

pra pele”; bem como a capacidade de assumir uma postura pró-ativa frente às

dificuldades: “Minha mãe sempre foi uma guerreira; ela dizia que não adianta

lamentar; vamos levantar, ver o que sobrou e resolver; não tem essa choradeira, tem

o tempo de chorar; se já chorou, então vamos embora, vamos em frente, não fique

de muita lamúria, de muita desgraceira.”

Relaciona a sua postura ativa e esperançosa frente às crises como

característica adquirida na infância: “A estória do Patinho Feio [...] vi o quanto isso

dava segurança de que as coisas vão dar certo; a minha fé e a minha resiliência vêm

dessas estórias; ouvir a estória do Patinho Feio e saber que um dia eu podia virar um cisne foi muito saudável; as coisas não são como parecem, e acreditar nisso faz

muita diferença.” A entrevistada, ao assinalar o otimismo, o uso do humor e de

crenças esperançosas, parece referir-se aos fatores de proteção para o

enfrentamento favorável de crises assinalados por Walsh (2005).

Em sua prática clínica, junto a famílias que vivenciam crises, a participante

relata que procura levar em consideração que as pessoas têm concepções diversas

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das suas: “Eu tenho que tomar cuidado para não ser muito otimista, nem todas as

pessoas têm esse mapa de mundo”; “...não passar a mensagem de que o resultado

da terapia seja uma mega sena, mas que o objetivo esteja dentro das limitações da

família.” Busca atuar no sentido de enfocar os aprendizados que podem resultar

daquele momento específico: “...olhar a crise como uma oportunidade, que promova

um novo pensar”, bem como a proximidade que pode se dar em decorrência do

enfrentamento de crises familiares: “...mostrar que a crise promove contato não só

com os de casa, [mas] com outras pessoas que podem ajudar.”

Tal situação ocorreu em sua vida pessoal, quando pôde resgatar o

relacionamento com a sua irmã: “A crise favoreceu; quando ela ficou doente, nós nos unimos na dor; tive a possibilidade de aproximar-me da minha irmã e de ela

morrer em paz comigo.”

Em sua família de origem, nos momentos de crises inesperadas, como o

falecimento repentino do avô materno, em seu próprio divórcio e mesmo em outras

situações mais corriqueiras, tais como o cuidado das crianças e doentes, poder

contar com o apoio da família mais extensa revelou ser uma fonte de grande importância. Em sua prática clínica, tal aprendizado pode repercutir quando relata

que suas intervenções direcionam-se a estimular a busca de alternativas: “Pedir

ajuda é fundamental”; outro ponto que implementa refere-se ao resgate de

competências: “Ajudar a olhar pra trás e ver quais outras crises já enfrentou, o que

aprendeu com elas e que pode ainda ser útil, quais ferramentas desenvolveu.” Outro achado relevante da pesquisa refere-se à construção do terapeuta de

famílias na atualidade. Tal debate é presente no campo, segundo Levy (2006) e

McNamee (2005), e direciona-se à possibilidade de integração das contribuições

provenientes de modelos situados dentro do paradigma moderno e os advindos do

paradigma pós-moderno.

A entrevistada relata que, dentre os principais autores da Terapia Familiar,

identifica como influências mais significativas em sua prática profissional Salvador Minuchin e Michael White. Minuchin, o terapeuta intervencionista e que sempre

defendeu como a postura ideal do terapeuta ser um especialista e que direcionou

diversas críticas às abordagens narrativas em terapia. Michael White, por outro lado,

constantemente alerta aos perigos inerentes ao se assumir uma posição de poder

no contexto terapêutico. A entrevistada também cita outros autores, provenientes

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dos enfoques intergeracionais, como Mônica McGoldrick, e estratégicos, como Cloé

Madanes e Joel Bergman.

No que se refere à influência que Minuchin tem em sua prática, menciona a

importância do foco no trabalho terapêutico, bem como a postura desafiadora e

provocativa propostas por tal autor, aspectos que identifica em si mesma, como

terapeuta. Com relação a Michael White, assinala como ponto positivo a sua

agilidade e o uso que faz, com sucesso, da externalização do problema. Acredita

que tal técnica possibilita ao cliente retomar o poder, sentir-se competente e

perceber a si mesmo de uma forma mais ampla, indo além dos rótulos decorrentes

do comportamento sintomático. Considera interessante a forma como Cloé Madanes trabalha, com famílias, as questões de violência; em sua prática, incorpora o uso do

genograma proposto por Mônica McGoldrick; de Joel Bergman, ressalta o uso dos

paradoxos como formas de intervenções clínicas, das quais se utiliza quando

possível.

Segundo Cerveny∗, a incorporação de influências de autores que propõem

posturas tão diversas reflete o fato que os terapeutas de famílias, no contexto

brasileiro, em sua grande maioria, receberam aportes das mais diversas abordagens

da disciplina e, mesmo no momento atual, são raros os centros formadores que

capacitam terapeutas em uma única abordagem. Quanto aos seus questionamentos atuais em sua prática clínica, a

entrevistada relata que seus maiores cuidados como terapeuta dizem respeito a: não

se distanciar muito do seu cliente, não utilizar o conhecimento técnico como algo que

banalize ou que não valide a dor daquele que busca a sua ajuda, respeitar o ritmo e

compreender quais são as concepções do cliente. Também menciona o cuidado, a

fim de não impor verdades aos clientes, bem como o conhecimento e a humildade

que o terapeuta deve ter no que se refere às suas próprias limitações ou fragilidades, utilizando-as como mobilizadoras de aprimoramento profissional ou

pessoal. Outro ponto que considera importante para bom exercício profissional

relaciona-se a buscar equilíbrio entre os vários papéis que desempenha na vida, o

tempo dedicado a cada um deles e a obtenção de gratificação tanto na vida

profissional, quanto na vida pessoal. Tais aspectos podem ser vistos sob a ótica do

“clube da vida” proposto por Michael White, que assinala a importância do terapeuta

∗ Comunicação pessoal, realizada em supervisão. São Paulo, 09 ago. 2006.

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estar conectado às suas redes de pertencimento informais como forma de

desenvolver narrativas “densas”.

Além disso, a participante enfatiza como posturas que considera

fundamentais para o bom exercício profissional: o acolhimento: “Acho que este é o

grande ponto, não utilizar o conhecimento técnico de forma que crie distância e

desmereça as dificuldades que o cliente vivencia”; “Que você não invalide a dor que

ele está sentindo...”, bem como o respeito pelas concepções e limitações que o

cliente possui: “Enxergar o mapa de mundo, não ir pelo caminho que só eu estou

enxergando; não tenho que ser a dona da verdade”; “Ver qual é o ritmo dele e

respeitar isso; qual é o limite da criatura e até onde ela pode ir.” Também assinala a necessidade do terapeuta reconhecer as suas próprias fragilidades e desenvolver

humildade: “É ótimo ver que não se dá conta de tudo, [mas] tem que ir atrás”, bem

como o cuidado com o uso do poder que a posição de terapeuta pode fornecer:

“[Para] não me tornar uma terapeuta manipuladora; a regra que aquela família tem

não é a que eu considero politicamente correta, mas não interessa a minha regra

naquele momento.” Em sua opinião, na sua prática clínica, tem aprendido: “a ser mais paciente, a cuidar com o que faço para não atropelar os outros.” Acrescenta

também que, no início de sua prática, preocupava-se em ter em mãos técnicas e

recursos com os quais pudesse auxiliar as famílias em atendimento. Atualmente,

procura conciliar o uso de técnicas com a escuta empática; ouvir, acolher,

respeitosamente, aos que buscam auxílio terapêutico e propiciar que os clientes

escutes a si mesmos. Tais comentários parecem caracterizar desdobramentos no

seu estilo terapêutico na prática clínica, deslocando-se da instrumentalização para

práticas mais dialógicas e menos hierárquicas, pontos considerados fundamentais

na Terapia Familiar em um contexto pós-moderno.

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CAPÍTULO 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar esse processo investigativo, que consistiu em compreender

como as experiências vividas na família de origem de um terapeuta de famílias

repercutem em sua prática clínica, vários pontos destacam-se como relevantes.

Inicialmente, os achados dessa pesquisa ilustram de forma clara os

pressupostos pós-modernos incorporados na Terapia Familiar, que assinalam a

conexão recursiva entre sistema observado e sistema observante, a inexistência de uma observação neutra, bem como a afirmação de Grandesso (2000) acerca da

impossibilidade de exercer qualquer prática terapêutica sem que aspectos

provenientes da história pessoal do terapeuta se façam presentes no contexto

terapêutico. Conseqüentemente, evidencia-se a necessidade de uma postura

constante de auto-reflexão por parte do profissional, a fim de ter clareza quanto a

essa influência e qual uso fará das emoções despertadas nos encontros terapêuticos.

Cabe ressaltar, também, a intensidade dos registros que as vivências na

família de origem imprimem nas pessoas em geral e, nesse caso, no terapeuta, bem

como a forma como as experiências vivenciadas na família de origem, tanto as

positivas, quanto negativas, acabam se configurando, no espaço terapêutico, em

poderosas lentes através das quais as dificuldades vivenciadas pelos clientes são

percebidas. Além das lentes provenientes de sua história, o terapeuta também faz

uso das lentes teóricas; segundo Carlson e Erickson (1999), a identificação com uma

abordagem teórica, que contém em si mesma valores, igualmente se relaciona a

aspectos pessoais do próprio terapeuta.

Ao mergulhar nessa pesquisa, utilizando-se do método e dos instrumentos

que foram escolhidos, foi possível o levantamento de inúmeros dados que, dependendo do recorte escolhido, favoreceriam outras reflexões tão válidas quanto

a que foi feita. Tem-se a sensação que, no recorte utilizado, não se consegue,

infelizmente, descrever o fenômeno com toda a riqueza e complexidade que o

mesmo apresenta. Tentar traduzir em palavras uma interação tão dinâmica quanto a

prática clínica resulta em um questionamento acerca de quais outros dados

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poderiam ser buscados ou quais outros instrumentos poderiam ser escolhidos, como

se uma apreensão tão ampla fosse possível.

Na realização dessa pesquisa, em especial, considera-se como um fator

facilitador o vínculo prévio de confiança existente entre pesquisadora e pesquisada,

que favoreceu, ao longo de todo o seu processo, que a entrevistada discorresse de

forma livre e despojada acerca da sua história, das dificuldades que vivenciou, das

dores que sofreu, das atitudes que possibilitaram a superação e dos pontos que

sente que ainda tem para desenvolver. Por outro lado, acompanhar tal “entrega” por

parte da participante configurou-se em um desafio para a pesquisadora, o que se

tornou evidente na preocupação em realizar as entrevistas de forma a realmente acessar os significados atribuídos pela participante, bem como em analisar o

material obtido de maneira ética, criteriosa e sem efetuar julgamento de valor. Tal

posicionamento, igualmente, reflete as considerações assinaladas por Lum (2002),

que alerta acerca da necessidade de se realizar mais pesquisas tendo como

participantes terapeutas; porém, para que isso aconteça, é fundamental que eles

não se sintam avaliados ou questionados no que se refere a sua competência profissional.

A participante da presente pesquisa evidencia aceitar e valorizar as

experiências que teve em sua família de origem, bem como as que ocorreram em

etapas posteriores da sua vida, caracterizando-as como fonte de competência e

potencialidades. Essa postura pode ter sido favorecida por alguns fatores tais como:

sua idade, maturidade e os processos terapêuticos a que se submeteu

anteriormente e que, provavelmente, auxiliaram-na a aceitar e integrar a sua história

de vida em sua totalidade. Tal achado sinaliza para a necessidade da realização de

outros estudos com profissionais que se encontrem em momentos diversos do ciclo

vital individual e familiar, bem como em momentos diferentes no que se refere ao

tempo de prática clínica.

Outro ponto a ser destacado e que favorece ao campo da Terapia Familiar refere-se aos aspectos que podem ser desencadeadores de reflexão nos contextos

de formação. Inicialmente, destacam-se os relacionados à diversidade cultural e que

coincidem com os dados levantados na bibliografia pesquisada. São desafios tais

como os assinalados por Marra (2005), que enfatiza o processo atual de mudança

vivenciado por profissionais da psicologia, permeado, ainda, de certa confusão

quanto a considerar ou não as diferenças culturais em seu trabalho. Também

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acrescentam-se as propostas de Falicov (1995), no tocante a ampliar a consideração

aos aspectos culturais, a buscar enfocá-los multidimensionalmente e a ter clareza

quanto aos outros contextos nos quais as famílias estão inseridas. Cabe agregar,

igualmente, os cuidados propostos por Hardy e Laszloffy (1995) e referentes ao

treinamento, em questões étnicas, não abordar apenas conteúdos cognitivos, nem

se focar em estereótipos. Além disso, as considerações provenientes da pesquisa realizada

acrescentam dados ao estudo de Guimarães (2005) e são relevantes ao se pensar

no quanto e no como a pessoa do terapeuta deve ser abordada nos contextos de

formação. É fundamental reservar espaço para abordar a importância de diferenciação do terapeuta na prática clínica, bem como enfocar a ressonância de

forma ampla, enfatizando, sim, os cuidados com os aspectos pessoais e com o

respeito ao cliente; entretanto, igualmente válido é criar oportunidades que

possibilitem a emergência dos aprendizados e das competências provenientes das

vivências na família de origem do terapeuta. Enfocar as forças familiares que foram

desenvolvidas justifica-se frente à necessidade de realizar uma prática voltada à potencialização e ao desenvolvimento de resiliência em indivíduos e famílias

clientes.

A integração dos diversos enfoques presentes na Terapia Familiar,

levantada como achado desse estudo, é outro desafio que se faz presente na prática

terapêutica e que representa um aspecto de grande relevância nos contextos de

formação, pois permite a seguinte questão: Como fazer uso de tantas contribuições

provenientes dos diferentes modelos que a Terapia Familiar vivenciou, conciliando-

as aos aportes valiosos efetuados pela terapia narrativa e pelas outras abordagens

pós-modernas? Pode-se questionar, também, os modelos de supervisão

provenientes de tal integração, como os alternativos, cuja própria denominação tem

sido modificada para modelos de multivisão.

Percebe-se que há oportunidades imensas de futuras pesquisas a serem realizadas no que se refere à formação, treinamento e supervisão em Terapia

Familiar, ressaltando-se que o presente estudo apresenta especificidades próprias

decorrentes do contexto no qual a própria participante exerce sua prática clínica;

principalmente no que se refere às questões culturais; grande riqueza seria obtida se

futuras pesquisas fossem direcionadas a profissionais atuantes em outros contextos

do país.

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Cabe acrescentar que, ao ter desenvolvido essa pesquisa de natureza

qualitativa, como pesquisadora, também se vivenciaram ressonâncias ao longo do

processo. Muito foi agregado à bagagem profissional, frente à riqueza dos temas

abordados nesse estudo e às reflexões desencadeadas. Obtiveram-se dados

importantes que repercutiram na prática da pesquisadora na área de formação de

terapeutas de famílias, seja na validação de posturas assumidas anteriormente ou

em novos desafios e idéias que vieram a se desenvolver. A trajetória da

pesquisadora como pessoa também se enriqueceu; ao acompanhar uma história de

vida com tantas peculiaridades e emoção, foi impossível não pensar em sua própria

história e em aspectos que se assemelhavam ou diferiam, mas que falavam, sobretudo, da natureza humana em toda a sua complexidade. Pode-se dizer que, ao

participar desse processo, a sua própria narrativa pessoal e profissional tornou-se

mais densa.

Conclui-se esse trabalho repetindo-se uma citação, que resume

adequadamente todos os pontos mencionados como mais significativos no presente

estudo: “Qualquer que seja a técnica, a filosofia ou a escola a que pertençamos, qualquer coisa que façamos com os demais tem que ser processada através de

cada um de nós como pessoa, como gente.” (SATIR; BALDWIN4 apud APONTE;

WINTER, 1988, p. 16)

4 SATIR; BALDWIN, op. cit.

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REFERÊNCIAS

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ANEXO 1

ROTEIRO DA 1ª ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA

QUESTÕES NORTEADORAS

1. Em sua opinião, de que forma as experiências vivenciadas na família de

origem repercutem na vida atual das pessoas em geral?

2. Que influência tais experiências podem vir a ter na vida profissional de um terapeuta de família?

Ø Levantamento do Genograma – obtenção de dados significativos acerca

de composição familiar, identificação dos integrantes da família, relacionamentos,

características individuais e relacionais marcantes, fatos significativos da história de

vida familiar, origem étnica, cultural, valores religiosos etc.

3. Quais valores, crenças e regras importantes de sua família de origem

contribuíram na formação de quem você é hoje ?

4. O papel que você desempenhou na família de origem exerceu influência

na escolha de sua profissão? Tal papel repercute na forma de atender a seus

clientes ?

5. De tudo o que foi abordado no seu genograma, quais foram os

aprendizados mais significativos que você vivenciou em sua família de origem?

6. Esses aprendizados favorecem a sua vida profissional? Como isso

acontece?

7. Esses aprendizados desfavorecem a sua vida profissional? Como isso acontece?

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ANEXO 2 ROTEIRO DA 2ª ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA

QUESTÕES NORTEADORAS

1. Quais estudiosos da Terapia de Família tiveram influência em sua

prática clínica?

2. Se fosse possível, que pessoa você escolheria para fazer uma terapia de

família? 3. Como a hierarquia na sua família de origem teve influência em sua

prática clínica?

- E em relação aos modelos de casamento?

- E em relação à parentalidade?

- E em relação às interações fraternas?

4. Como o fato de ter nascido mulher em sua família de origem contribui para sua prática?

5. As origens culturais e étnicas da sua família de origem têm que tipo de

papel (lugar) na construção de seu ser profissional?

6. Qual a sua reação frente a famílias clientes que vivenciam crises?

7. Pensando em sua família de origem como um lugar de formação ou uma

escola, o que você aprendeu com ela que lhe auxilia como profissional?

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ANEXO 3 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

Título do estudo: A construção do terapeuta de famílias: a prática clínica

sob a lente das vivências na família de origem.

O objetivo desta pesquisa é conhecer a história vivenciada pelos terapeutas

de família em suas famílias de origem, com ênfase na repercussão de tais vivências

na prática clínica e nos significados que a mesma atribui às sua tais histórias.

A entrevistada poderá entrar em contato com a pesquisadora: telefone (41)

3363.1636 ou 9972.1910; endereço: Rua da Paz, 195, sala 420, Curitiba.

Declaro que os objetivos e detalhes deste estudo foram-me completamente

explicados, conforme seu texto descritivo. Entendo que não sou obrigada a participar

do estudo e que posso descontinuar minha participação, a qualquer momento, sem

ser em nada prejudicado. Meu nome não será utilizado nos documentos

pertencentes a este estudo, e a confidencialidade dos meus registros será garantida.

Desse modo, concordo em participar do estudo e cooperar com a pesquisadora.

Pesquisada

Nome:______________________________________________________________ Data: _________________ RG: __________________

Assinatura: ______________________________

Pesquisadora

Nome: ______________________________________________________________

Data: _________________ RG: __________________ Assinatura: ______________________________

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ANEXO 4 ENTREVISTAS SEMI-ESTRUTURADAS

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