capítulo 7 brasil dos bancos - cidadania & cultura · já o conceito de economia de escala...

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Capítulo 7 Brasil dos Bancos 7.1. Origem dos bancos e evolução do sistema bancário A economia bancária, na ótica da macroeconomia, deve ser estudada como um todo, em vez de examinada em pequenas parcelas como entidades separadas desse todo. Na atividade econômico-financeira, existem padrões de ação coletiva que são resultantes distintas das esperadas pela mera soma dos comportamentos das partes. Por exemplo, o estímulo dos bancos às aplicações financeiras sem a contrapartida na expansão dos empréstimos pode resultar em futuro declínio nas sobras de renda para novas aplicações financeiras. A atividade bancária, responsável pela circulação financeira, permeia a produção, a distribuição e o consumo. Assim, os bancos integram a economia real. Em outras palavras, todos os agentes econômicos fazem parte do sistema bancário. Daí meu espanto pela “demonização dos bancos”, seja na imprensa junto à opinião pública, seja entre acadêmicos formadores da opinião especializada. O sistema bancário não deve ser visto como “demônio” (ou adversário), em cima do qual se joga toda responsabilidade pelos infortúnios pessoais ou sociais. Fugindo desse “mundo assombrado pelos demônios”, não estaremos caindo na visão do mercado como um deus onipotente e onisciente, que, deixado livre, pode atender a preces e realizar os desejos mais íntimos, desde que não se cometa o pecado de atentar contra suas leis divinas. Nem ele configura o papel de deus, nem o presidente do banco central, a missão de papa dos que professam essa religião, cujas normas e circulares estabeleceriam dogmas inquestionáveis. Senão estaríamos em divertido paradoxo: se é onisciente, ele já tem de saber que vai haver intervenção, para mudar o curso da história, usando sua onipotência; mas isso significa que ele não pode mudar de idéia sobre a intervenção, o que implica que ele não é onipotente... O melhor a fazer é enxergar, claramente, o papel das instituições financeiras na vida econômica. Instituição não é apenas organização ou estabelecimento para promoção de um objetivo em particular, como banco comercial ou banco central. Na visão dos institucionalistas, é também padrão organizado de comportamento grupal, bem estabelecido e aceito como parte fundamental da cultura. Inclui hábitos, costumes sociais, leis, modos de pensar e formas de vida. A vida econômica, afirmam os institucionalistas, é regulada pelas instituições econômicas e não por leis econômicas. O darwinismo, ou melhor, a abordagem evolucionista, pode ser, cautelosamente, empregada na análise econômica, porque a sociedade e suas instituições estão sempre em constante mudança. Em vez do equilíbrio, prezado pela visão ortodoxa, há o movimento. Os institucionalistas discordam da abordagem estática dos modelos neoclássicos ou mesmo dos keynesianos que tentam descobrir verdades econômicas eternas sem considerar as diferenças de tempo e local e sem se preocupar com mudanças que estão ocorrendo constantemente. A evolução e o funcionamento das instituições econômicas

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Page 1: Capítulo 7 Brasil dos Bancos - Cidadania & Cultura · Já o conceito de economia de escala está presente como meta administrativa em qualquer empresa:

Capítulo 7

Brasil dos Bancos

7.1. Origem dos bancos e evolução do sistema bancário

A economia bancária, na ótica da macroeconomia, deve ser estudada como um todo, em vez de examinada em pequenas parcelas como entidades separadas desse todo. Na atividade econômico-financeira, existem padrões de ação coletiva que são resultantes distintas das esperadas pela mera soma dos comportamentos das partes. Por exemplo, o estímulo dos bancos às aplicações financeiras sem a contrapartida na expansão dos empréstimos pode resultar em futuro declínio nas sobras de renda para novas aplicações financeiras. A atividade bancária, responsável pela circulação financeira, permeia a produção, a distribuição e o consumo. Assim, os bancos integram a economia real. Em outras palavras, todos os agentes econômicos fazem parte do sistema bancário. Daí meu espanto pela “demonização dos bancos”, seja na imprensa junto à opinião pública, seja entre acadêmicos formadores da opinião especializada. O sistema bancário não deve ser visto como “demônio” (ou adversário), em cima do qual se joga toda responsabilidade pelos infortúnios pessoais ou sociais.

Fugindo desse “mundo assombrado pelos demônios”, não estaremos caindo na visão do mercado como um deus onipotente e onisciente, que, deixado livre, pode atender a preces e realizar os desejos mais íntimos, desde que não se cometa o pecado de atentar contra suas leis divinas. Nem ele configura o papel de deus, nem o presidente do banco central, a missão de papa dos que professam essa religião, cujas normas e circulares estabeleceriam dogmas inquestionáveis. Senão estaríamos em divertido paradoxo: se é onisciente, ele já tem de saber que vai haver intervenção, para mudar o curso da história, usando sua onipotência; mas isso significa que ele não pode mudar de idéia sobre a intervenção, o que implica que ele não é onipotente...

O melhor a fazer é enxergar, claramente, o papel das instituições financeiras na vida econômica. Instituição não é apenas organização ou estabelecimento para promoção de um objetivo em particular, como banco comercial ou banco central. Na visão dos institucionalistas, é também padrão organizado de comportamento grupal, bem estabelecido e aceito como parte fundamental da cultura. Inclui hábitos, costumes sociais, leis, modos de pensar e formas de vida. A vida econômica, afirmam os institucionalistas, é regulada pelas instituições econômicas e não por leis econômicas.

O darwinismo, ou melhor, a abordagem evolucionista, pode ser, cautelosamente, empregada na análise econômica, porque a sociedade e suas instituições estão sempre em constante mudança. Em vez do equilíbrio, prezado pela visão ortodoxa, há o movimento. Os institucionalistas discordam da abordagem estática dos modelos neoclássicos ou mesmo dos keynesianos que tentam descobrir verdades econômicas eternas sem considerar as diferenças de tempo e local e sem se preocupar com mudanças que estão ocorrendo constantemente. A evolução e o funcionamento das instituições econômicas

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deveriam ser os temas centrais da Economia, em uma abordagem interdisciplinar. Neste plano menos abstrato, ela estaria ligada à Política, à Sociologia, à Psicologia, à Lei, aos costumes, à ideologia, à tradição e a outras áreas de crença e experiências humanas. A Economia Institucional analisa os processos sociais, as relações sociais e a sociedade em todos os seus aspectos.

Por que então os capítulos anteriores deste livro se preocuparam com a economia empresarial, nas atividades bancárias, e não trataram, diretamente, da economia social, como se propõe neste capítulo? Pela simples razão científica de que, assim como para a vida biológica, visando explicar a evolução da complexa vida bancária, em nosso país, não podemos recorrer ao mesmo tipo de raciocínio que podemos aplicar na origem dessa vida. A origem da vida de cada banco no Brasil mereceu o estudo dos diversos casos. Já os eventos que constituem a evolução ordinária, distintos de sua origem singular, podem receber uma explicação unificadora, colocando ênfase no princípio da causação ou de mudanças cumulativas.

Tirando a citação de um autor darwinista de um (con)texto distinto, DAWKINS (2007: 189) afirma: “a evolução da vida é um caso completamente diferente do da origem da vida, porque, repetindo, a origem da vida foi (ou pode ter sido) um evento singular, que teve de acontecer apenas uma vez. A adaptação de espécies a seus diversos ambientes, por outro lado, ocorreu milhões de vezes, e continua ocorrendo”.

A transposição que fazemos é que, aqui no Brasil, também estamos lidando com um processo generalizado para a otimização das espécies bancárias, um processo que funciona em toda economia monetária, em toda economia de mercado, e em todo o contexto contemporâneo. É um fenômeno recorrente, previsível e múltiplo, o da concentração bancária. E, continuando a tomar emprestado conceito de Darwin, sabemos como ele acontece: pela seleção competitiva, dentro de um determinado contexto institucional. Uma vez que aquele golpe inicial de oportunidade tenha sido aproveitado pelo encontro do capital previamente acumulado, seja no poder público, seja em mãos privadas, com o talento profissional em utilizá-lo em atividades bancárias, a seleção competitiva assume, escolhendo os bancos mais aptos para a sobrevivência, em ambiente mutante, a cada momento. A seleção competitiva é “avenida de mão única”, cumulativa, para o aperfeiçoamento do sistema bancário.

Essa proposição vai, então, na contramão do atomismo do mercado livre. O atomismo, originalmente, era uma doutrina proposta por filósofos da Grécia antiga, que propunham que o Universo era composto por constituintes materiais indivisíveis chamados átomos. Sem contemplar que seu núcleo era divisível, em prótons e nêutrons, ligados através de uma força nuclear forte, os neoclássicos defendiam a abstração do atomismo como o modelo ideal para a organização de uma sociedade sob forma de mercado livre. Nenhum agente econômico seria capaz de impor absolutamente seu interesse aos demais e, conseqüentemente, haveria harmonia e não choque de interesses. No entanto, na realidade, esses átomos podem se agrupar, formando moléculas. Combinadas, sob as restrições institucionais de cada Estado, elas podem dar origem aos mais diversos corpos sociais.

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A concentração bancária possui uma lógica imanente à economia capitalista contemporânea: envolve a seleção competitiva entre os mais aptos a sobreviver em um mundo de ofertas hostis. Essa lei de mercado está calcada em dois conceitos motivacionais, um microeconômico, a economia de escala, outro, sistêmico, o multiplicador monetário. Há a tentativa ambiciosa dos maiores bancos em torná-lo endógeno, evitando o vazamento monetário de sua contabilidade de créditos e débitos. Com esse fenômeno cada vez mais internalizado em sua própria rede de clientes, os banqueiros, ou melhor, as figuras do capital bancário, podem se sentir, senão como o próprio deus-todo-poderoso-criador-da-moeda, mas, no mínimo, como divindades legítimas, no momento de recolher suas participações nos lucros multiplicados em bancos múltiplos.

Nesse momento, eles furtam, na prática, o prazer do maior triunfo teórico de um professor de Economia Monetária, segundo James Tobin, autor laureado pelo Prêmio Nobel de Economia. É quando ele expõe, para seus alunos, a múltipla criação de depósitos bancários pelo crédito bancário. Nessa aula, o professor critica a visão dos banqueiros. Segundo eles próprios, seus bancos não criam moeda, na medida em que a escala de seus ativos está limitada por seus passivos e, portanto, emprestam somente o dinheiro depositado. O professor aponta, então, a falácia de composição: o que um banco empresta cria novos depósitos bancários. Isto é verdade para o sistema bancário como um todo, pois depende da aritmética de sucessivas rodadas de criação de depósitos. Está limitado este multiplicador monetário pela exigência do Banco Central de que os bancos comerciais façam depósitos compulsórios de parte dos depósitos à vista e pela retirada de papel-moeda por seus clientes.

O professor, geralmente, conclui a lição afirmando de que não se deve estabelecer o crédito bancário sobre o modelo dos fundos existentes. É mais correto dizer que “empréstimos criam depósitos”, isto é, bancos criam depósitos em seus atos de emprestar, em vez da visão dos banqueiros, que dizem que emprestam somente os depósitos entregues à sua guarda, de acordo com a “teoria dos empréstimos por conta dos outros”. Na realidade, enquanto os depositantes prosseguem gastando (pagando com cheque ou cartão de débito) como se tivessem conservado o dinheiro em seu poder, da mesma forma os mutuários gastam "o mesmo dinheiro e ao mesmo tempo".

Isso era “a verdade”, desde que se considerasse o efeito multiplicador monetário pela rede bancária como um todo. Em outras palavras, caso fossem os clientes de outros bancos os recebedores de pagamentos com o dinheiro originado de um crédito recebido, eles fariam depósitos desse dinheiro e ele se manteria sob domínio do sistema bancário. Não vazando moeda desse circuito bancário sob forma ou de depósitos compulsórios ou de papel-moeda, “o milagre da multiplicação dos pães”, isto é, da moeda bancária, não seria sobrenatural, mas corriqueiro o suficiente para não despertar mais a atenção nem dos clientes nem da autoridade monetária.

A história bancária se desenrolou no sentido da busca desenfreada de uma concentração cada vez maior nos créditos, nos depósitos, enfim, nos ativos, ou seja, as diferentes formas de manutenção de riqueza, na contabilidade de um número cada vez menor de poderosos bancos. Isto ocorreu aqui e lá fora. Ao mesmo tempo, no Brasil, o

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sistema de pagamentos se tornou cada vez mais eletrônico sob controle dos sistemas de processamento de informações desses bancos e câmaras de compensação on line – em tempo real. Tudo isso, a concentração e a automação bancária contribuíram para resultar em lucros surpreendentemente maiores a cada fechamento de balanço.

Já o conceito de economia de escala está presente como meta administrativa em qualquer empresa: produção de bens e serviços em larga escala com vistas a uma considerável redução nos custos relativos. Também chamadas de “economias internas”, as economias de escala resultam da racionalização intensiva de inovações tecnológicas e de processos avançados de automação, organização e especialização do trabalho. Todos os fatores integrantes da economia de escala, geralmente, estão fora do alcance do alcance de pequenas e médias empresas. Conseqüentemente, a tendência é a concentração monopolista, com a eliminação dos concorrentes. As economias de escala não comportam mercados consumidores limitados. Sua existência está diretamente ligada à ampliação da sociedade de consumo capaz de absorver a produção em série sem se limitar às fronteiras geográficas e sociais.

Isso, em se tratando de empresa não-financeira, já é lugar-comum. Mas no caso de instituições financeiras, por trabalharem com um bem público universal, composto pelos meios de pagamento, os interesses corporativos necessariamente devem se submeter a alguma forma de regulação da chamada autoridade monetária. Este estatuto interventor surge porque a fusão entre dois bancos, seja por motivo de aquisição de um por outro, seja pela razão de associação entre os dois parceiros, formando um único grande banco, geralmente sob controle administrativo do maior ou mais próspero deles, tem algumas conseqüências indesejadas. Em linguagem metafórica, a fusão (nuclear) pode gerar uma “bomba atômica”. Esse tipo de associação permite redução de custos, mas pode levar à prática restritiva ou oligopolista. Daí, uma instituição em defesa da concorrência pode (e deve) agir.

Quando um banco se integra a outro, espera ganhar sinergia. A integração leva bastante tempo e, em geral, tem três fases: a primeira, com redução de custos e ganhos de eficiência, depois, a integração tecnológica de operações e de serviços centrais, e, finalmente, a fusão das redes de agências. Como conseqüência da dita duplicidade, algumas agências são fechadas ou mudadas de endereço. Quanto às demissões, a redução de pessoal acontece mediante adiantamento de aposentadorias ou desligamentos voluntários. Parte dos cortes de custos afeta os contratos de outsourcing com terceiros, não afetando neste caso os funcionários do próprio banco adquirido.

O maior risco na compra de um banco é que, nos primeiros anos, a instituição tende a se voltar para si. Há, então, risco de perder oportunidades de bons negócios. Além da dificuldade em si da incorporação, o banco comprador corre o perigo de desprezar conquistas e a experiência de áreas em que o comprado estava na frente, como, por exemplo, o atendimento de qualidade para clientes de determinado segmento. Corre assim o risco de estragar muita coisa que dava certo, inclusive desprezar o valor de mercado da própria marca adquirida. O comprador planeja, imediatamente, certa otimização da organização comercial, unida à adoção de uma estratégia de marca única, no momento oportuno. Todas suas unidades convergirão então para uma única marca.

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Os estudos de casos de origem de bancos no Brasil registraram o DNA histórico dos sobreviventes. Sua miscigenação, derivada de associações, fusões e aquisições com capitais de outras origens, seja estadual, seja estrangeira, irá dificultando, progressivamente, desvendar o genoma. Até que ponto o DNA do banco brasileiro será uma história de bastardia? Será tal como a dos brasileiros brancos, cuja bastardia cultural é revelada pelo fato de, pela linhagem paterna, o brasileiro ser filho de europeu, e pela linhagem materna, aproximadamente 60% dos brancos terem ancestralidade nativa ou africana?

Esse genoma desvendado confirma a história de opressão social do português dono do engenho, predador de africanas e ameríndias por estupro. Mas a “raça brasileira” não existe, como, de resto, nenhuma outra raça epidérmica. Existe apenas a raça humana, que se diferencia das raças de outros animais por ser racional. Geneticamente falando, a origem de todas as etnias é o homo sapiens da África, cidadão do mundo que viveu há 130 mil anos ou 4.333 gerações atrás. As diferenças superficiais de seus descendentes se explicam, simplesmente, por uma mudança evolutiva desses filhos do mesmo pai na adaptação aos diversos meios ambientes.

Cabe também “desracializar” o mundo bancário? Estaremos convencidos, brevemente, que os bancos são efetivamente iguais, ou melhor, igualmente diferentes, e de que o nacionalismo não deve mais existir? Assim como no fim do racismo, a extinção do nacionalismo colocaria em seu lugar a democracia em sua plenitude, isto é, o governo em que o povo exerceria sua soberania, tomando as decisões importantes a respeito das políticas públicas, no território nacional, submetendo todas as instituições financeiras aqui presentes, independentemente de suas origens?

7.2. Fases da história da moeda e dos bancos no Brasil

Ter uma moeda nacional, assim como deter o monopólio da violência, ambos os fatores constituem indicadores da soberania nacional. Nesse sentido, a história dos bancos no Brasil se confunde com a própria periodização da história monetária brasileira. Como síntese didática, reapresentaremos uma visão geral dos estágios importantes no desenvolvimento nacional das instituições monetárias e bancárias.

O primeiro estágio pode ser visto como secular, indo de 1808 a 1921, isto é, desde a primeira fundação do Banco do Brasil até sua transformação efetiva em semi-autoridade monetária, já após sua última fundação, em 1905. A economia brasileira oscilou entre a moeda mercadoria (ouro), ou então o papel-moeda conversível com estritas regras de reserva aurífera, e as diversas tentativas estatais de emissão de uma moeda apenas fiduciária, para cobrir déficits. A rigor não se pode falar nem que havia um relativamente subdesenvolvido sistema bancário, pois os poucos bancos existentes em praças locais emprestavam praticamente seus recursos próprios e através do padrão legal de pagamentos. Em tal economia, a quantidade de moeda, quando lastreada, era determinada fora do setor bancário por fluxos de comércio externo, investimentos estrangeiros ou mesmo a produção de ouro.

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O segundo estágio ocorreu quando, finalmente, surgiram também condições institucionais mínimas necessárias para a criação da moeda bancária e, conseqüentemente, o descolamento da fração bancária da classe dominante. O DNA do Unibanco (ex-Casa Bancária Moreira Salles de Poços de Caldas – MG, criada em 1924) e o do Banco Real (ex-Banco da Lavoura de Minas Gerais) foram encontrados na década de 20 do século XX. Por pressão dos nacionalistas, em reação à fuga de capitais realizadas no período pré-guerra, que colocou fim à primeira das duas experiências brasileiras do século passado com o padrão-ouro, a Caixa de Conversão (1906-1914) e a Caixa de Estabilização (1926-1930), iniciou-se a colocação de restrições legislativas à livre entrada (e saída) dos bancos estrangeiros. A reforma bancária de 1921 resultou na criação de câmara de compensação de cheques e na abertura de carteira de redescontos no Banco do Brasil, para redescontar títulos de outros bancos. Quando as ondas de liquidez internacional se esvaíram, respectivamente, com a I Guerra Mundial e com a Crise de 1929, as experiências com o padrão-ouro findaram. A partir de então, nunca mais houve experiência com moeda conversível em ouro, no Brasil. Mas ocorreram ainda tentativas de câmbio fixo, atrelando a moeda nacional ao padrão monetário hegemônico: o dólar.

Embora tenha havido debate sobre a criação de um banco central no Brasil, inclusive com a vinda de missão de apoio inglesa, em 1931, os fatos que mais marcaram a história bancária brasileira, entre 1930 e 1945, foram: a socialização das perdas bancárias, a imposição da reserva de mercado, no varejo bancário, em favor dos bancos brasileiros, a legislação liberal propícia a fundações de bancos, o início do uso de bancos públicos (federais e estaduais) para uma atuação desenvolvimentista.

A origem dos principais bancos, no Brasil, ocorreu antes de 1945, quando as barreiras à entrada, para brasileiros, era baixa. Exigia-se pouco volume de capital e a tecnologia bancária era acessível. Durante a 2ª Guerra Mundial, dobrou o número de bancos: de 354 em 1940 para 663 em 1944. A partir de então, já se trata da evolução de um sistema bancário, com um processo de concentração simultâneo ao de ampliação da rede nacional de agências. Em 1964, 20 anos depois, já tinha se reduzido para a metade (328) o número de bancos, mais 10 anos, para um terço (106). Este número se manteve até a abertura neoliberal, quando, entre 1988 e 1994, se multiplicou por quase três (271). Mas com a crise bancária, a privatização, a desnacionalização e a concentração, o setor bancário brasileiro reduziu-se para 167 bancos múltiplos e comerciais, em 2002, e, finalmente, 155 em 2007.

O terceiro estágio da história monetária e bancária brasileira ocorreu entre 1945 e 1964, introduzindo a exigência de reservas bancárias fracionárias sobre os depósitos, com mais depósitos possuídos como forma líquida de manutenção da riqueza, com o uso das ordens de transferências de depósitos como um meio mais comum de troca, sendo os cheques mais aceitos pela rede comercial, com rede bancária se expandindo em nível nacional. Sem exigências de reservas legais, a oferta de moeda tornava-se um tanto elástica, com o multiplicador monetário sendo determinado pela demanda de crédito, pelos pagamentos de empréstimos e pela prudência (ou imprudência) dos banqueiros. Vários deles, como vimos, emprestavam para os próprios grupos econômicos (ou familiares) em condições privilegiadas, prática proibida a partir da reforma bancária do regime militar, em 1964. Quando os passivos dos bancos começaram a tomar a forma de

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depósitos transferíveis por cheques, a moeda criada pelos empréstimos bancários usualmente não deixava o sistema bancário, elevando a capacidade de empréstimos dos bancos. Mas eles eram ainda intermediários passivos, isto é, sem ativar a demanda de crédito, apenas atendiam-na, emprestando até o limite de seus depósitos. Isto, conjuntamente com umas financeiras nascentes, descreve, razoavelmente, o sistema financeiro antes do estabelecimento pleno do Banco Central do Brasil. Neste período, a SUMOC dividia o papel de autoridade monetária com o Banco do Brasil.

O quarto estágio foi quando se criou o Banco Central que efetivamente impôs exigência de reserva sobre os bancos. A autoridade monetária buscava regular os empréstimos bancários e recuperar o controle sobre o saldo monetário. Em 1970, o Banco Central do Brasil começou a usar operações de open market ou empréstimos de liquidez para ajustar as reservas bancárias, acentuando seu poder sobre a oferta de moeda. Sob forte influência monetarista, seus técnicos passaram a tentar modelar, formalmente, o sistema monetário, inspirando-se em “modelos de base monetária-multiplicador monetário” e supondo o controle do banco central sobre reservas bancárias e rígidas relações reservas/depósitos.

Durante 3 décadas, entre 1964 e 1994, perdurou um regime de alta inflação, 10 anos mais longo que o próprio regime militar! Este deixou também essa “herança maldita”. Devido ao mecanismo de proteção via correção monetária às aplicações e aos empréstimos, inicialmente restrito aos efetuados em longo prazo, e, depois, com o progressivo encurtamento de prazos, sua contrapartida foi um regime monetário com a chamada “moeda indexada”. Essa situação foi extremamente lucrativa aos bancos, envolvidos em captação de “dinheiro a custo zero” (depósitos à vista e floating – disponibilidades líquidas) para aplicarem em empréstimos ou títulos de dívida pública com correção monetária.

Mas, nesse estágio, a história bancária teve três sub-fases. A primeira (1964-1974) foi a de tentativa-e-erro no esforço tecnocrata de transplantar o modelo norte-americano de segmentação de instituições financeiras, isolando os velhos banqueiros e propiciando o surgimento de novos aventureiros na esteira do breve boom do mercado de capitais (bolsa de valores) e da permanente expansão do mercado (aberto) de dinheiro (open market). A segunda (1974-1988), reclamada aos velhos banqueiros a incorporação de negócios falidos dos novos, foi a do processo de concentração, conglomeração e internacionalização. A visão neoliberal já hegemônica nas instituições multilaterais achava que vigorava, aqui, um processo de repressão (apenas) financeira. Somente na terceira (1988-1994), após a Constituinte, que os ideólogos neoliberais conseguiram liberalizar o mercado financeiro, fazer a abertura externa aos capitais forâneos e denominar corretoras e distribuidoras de “bancos múltiplos”.

Dessa nova aventura liberalizante, com o impacto da estabilização inflacionária (breve bolha de consumo e longa sobrevalorização da moeda nacional, da eleição até a reeleição de FHC), restou um estágio transitório de crise bancária com: liquidação de grandes bancos privados nacionais, privatização de bancos estaduais, reestruturação patrimonial das instituições financeiras públicas federais, concentração e desnacionalização bancária.

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No final dos anos 90´s, um século depois, após mais uma política deflacionista, assistiu-se, novamente, o ponto de partida: crise bancária e recurso aos bancos estrangeiros. Além da tendência à concentração, verificou-se progressiva desnacionalização do setor bancário brasileiro, que tinha usufruído, na era desenvolvimentista, desde os anos 30, de “reserva de mercado”. Na era neoliberal, essa reserva de mercado bancário passou a ser considerada supérflua.

Com a queda da inflação, desapareceu também a “moeda indexada”. Mas novo regime monetário foi de fato implantado somente a partir de 1999, com a mudança do regime de câmbio fixo para câmbio flexível, a adoção de regime de metas de inflação e política fiscal com metas de superávit primário.

Nesse quinto estágio (pós-1999), já se pressupunha que as inovações financeiras eram técnicas descobertas para superar as restrições impostas sobre os bancos através de exigências de reservas pelo banco central. O uso eficiente do mercado interbancário, para captação em mercado aberto, constituiu a inovação-chave. Inovações na forma de captação de passivos e nas técnicas de gerenciamento de ativos permitiam aos bancos aumentar seus empréstimos sobre dado montante de reservas. Paralelamente a essas técnicas de administração de passivos, os bancos viam também a possibilidade de manipular seus portfólios de ativos através de prática tal como a venda de créditos em pacotes (securitização). Os bancos faziam empréstimos sob demanda e, então, cobriam suas posições de reserva mais adiante, usando essas várias técnicas. Outra técnica que aumentava a endogeneidade da oferta de moeda era oferecer linhas de crédito pré-compromissadas, que os clientes podiam utilizar se tivessem necessidade. Desde que a maioria dos empréstimos bancários fosse realizada sob contratações prévias, o volume total de crédito era largamente determinado pela demanda de empréstimos. Além disso, a internacionalização do mercado financeiro reduzia o controle do Banco Central do Brasil sobre o crédito bancário e a oferta monetária doméstica. Embora ele tentasse ainda ter o controle sobre o total de reservas, relaxou quanto à meta de ter a oferta de moeda exogenamente determinada, substituindo-a pela meta de inflação a ser alcançada através da manipulação da taxa de juros básica – a SELIC.

Quando a taxa de juros subia, o valor de mercado dos papéis prefixados, negociáveis no mercado, caia. Entretanto, sabia-se que o Banco Central preocupado com a possibilidade de crise financeira sempre reagiria, seja prestando assistência financeira de liquidez aos intermediários financeiros, seja através das operações de open market. Sob estas circunstâncias, as reservas bancárias eram determinadas endogenamente, pois a autoridade monetária atuava para estabilizar o mercado financeiro, acomodando as necessidades dos bancos por reservas adequadas à cobertura de seus empréstimos criadores de depósitos. Tornando seu comportamento estabilizador previsível, o mercado controlava o Banco Central do Brasil.

A fase 2003-2006 será marcada na história bancária brasileira como a de acesso popular a bancos (“bancarização”) e a crédito (em consignação, aos consumidores e microcrédito). Com o ganho de economia de escala, elevou a competitividade dos bancos no Brasil.

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O número de contas do sistema bancário brasileiro cresceu 52% entre 2001 e 2006, segundo pesquisa do Banco Central do Brasil (FSP: 15/06/07). Ao final do ano de 2006, o Brasil contava com 76,8 milhões de poupanças e 59,5 milhões de contas correntes. No mesmo período, a população do país cresceu 7%, chegando a 183,9 milhões de pessoas. Segundo o estudo, os correspondentes bancários e a criação das contas simplificadas foram os principais destaques do período, e boa parte da expansão ocorreu com a inclusão de clientes de classes mais baixas. A porta de entrada mais usada para o sistema bancário foi a poupança. Em seis anos, o total de contas desse tipo subiu 50%. A evolução das contas correntes foi um pouco mais discreta, com crescimento de 37% no mesmo período.

A FEBRABAN estimava que, em 2006, existiam 102,6 milhões contas correntes (face a 63,7 milhões em 2000), sendo que, destas, 28,9 milhões delas eram contas inativas há mais de 6 meses. As contas de poupança eram estimadas em 75,0 milhões. O quadro abaixo capta as declarações dos próprios bancos de varejo, observando que a Caixa possuía 31,6 milhões de clientes que optavam por contas de poupança, isentas de tarifas.

Clientes de bancos de varejo no Brasil – dezembro de 2006 (em milhões)

Bancos Pessoas físicas Pessoas jurídicas Total de Clientes

Banco do Brasil 22,8 1,559 24,4

Caixa Econômica Federal 9,1 1,061 10,2

Bradesco 16,8 0,985 17,8

Itaú 16,0 0,339 16,3

Unibanco 7,7 0,850 8,6

Santander 7,2 0,300 7,5

Real 5,8 0,405 6,2

HSBC 3,9 0,338 4,2

Nossa Caixa 3,2 0,322 3,5

Banrisul 4,6 0,206 4,8

Total 97,1 6,37 103,5*

Fonte: Anuário Brasileiro de Bancos 2007 – * 73,7 milhões de contas são movimentadas.

Antes, dizia-se que existiam dois tipos de dinheiro, aqui, no Brasil: o “dinheiro do rico” e o “dinheiro do pobre”. O primeiro ficava nos bancos, protegido da inflação. O

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último ficava sem correção monetária, tendo seu poder de compra corroído pela alta de preços. O pobre recebia seu dinheiro e tinha de correr às compras. Tentava comprar enquanto ele valia algo. Passava o resto do mês achando que “sobravam dias, faltava salário”... O rico pegava seu capital e podia deixá-lo nos bancos. Enquanto ele dormia tranqüilo no “overnight”, o dinheiro do pobre ficava no relento. O rico tirava o seu de lá na hora que quisesse gastar, com o poder aquisitivo preservado. Enquanto os ricos recebiam juros, os pobres pagavam juros extorsivos nas compras a prazo.

Essa clientela, chamada de “classe A” pelos banqueiros, era disputada arduamente. Pudera, a renda total do 1% mais rico equivalia à dos 50% mais pobres! Os 10% mais ricos somavam uma renda quase 50 vezes maior do que a soma das rendas dos 10% mais pobres! A discriminação entre o “dinheiro do rico” e o “dinheiro do pobre” agravou o processo de concentração de renda no país. Levou-o a uma situação de desigualdade social vergonhosa, destaque negativo entre todas as nações. O desafio era superar essa fase de nossa história monetária e bancária.

Três mudanças inéditas ocorreram, recentemente, nessa história bancária. Uma se referiu aos chamados “correspondentes não bancários”, outra, à abertura de contas simplificadas e a terceira foi a respeito do acesso ao crédito popular.

Antes, nada menos que 30% das cidades do país, ou seja, 1.674 cidades não tinham sequer uma agência bancária. Em 2007, ainda existiam 1.926 municípios (ou 34,5% do total de 5.580 municípios) que possuíam apenas uma dependência bancária, sendo que 1.479 deles possuíam apenas uma agência. Os 447 restantes tinham ou um posto de atendimento bancário (PAB) ou um posto de atendimento avançado (PAA). Só era possível abrir o comércio porque existia nessas localidades a figura do correspondente não bancário, geralmente pequenas padarias, mercearias ou loterias contratadas pela Caixa, ou correios conveniados com o Banco Postal, para fazer pagamentos e receber dinheiro nessas cidades. Com a falta de uma representação bancária, as cidades paravam de crescer e iam minguando. Isso porque, quando as pessoas iam a cidades vizinhas para retirar dinheiro, preferiam fazer suas compras por lá mesmo.

Em correspondentes não bancários, os habitantes de pequenas localidades passaram a pagar suas contas, além de sacar o dinheiro da aposentadoria e depositar na poupança. Um correspondente dividia sua rotina entre vender suas mercadorias e receber contas de luz, água ou telefone. Ele também pagava benefícios sociais para os moradores. A instalação do correspondente começou então a estimular a economia local.

Os números dos tradicionais canais dos bancos, representados por suas agências e postos de atendimento instalados em empresas ou entidades públicas, pouco variaram de 2000 a 2007. Na realidade, em 2000, tinham diminuído em relação ao número de agências já existentes em 1994 (17.400). O que possibilitou a expansão de suas redes de atendimento foram os caixas eletrônicos, instalados em locais de grande circulação de público, e o bem sucedido canal representado pelos correspondentes não bancários. Estas formas de acesso aos seus clientes representavam mais de 80% de suas dependências.

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Rede de Atendimento dos Bancos no Brasil

Período 2000 2007 Variação absoluta

Número de agências 16.396 18.308 1.912

Postos tradicionais (PAB + PAP + PAA) 9.495 10.427 932

Postos eletrônicos 14.453 34.790 20.337

Correspondentes não bancários 13.731 84.332 70.601

Total de dependências bancárias 54.075 147.857 93.782

Fonte: Anuário Brasileiro de Bancos 2008

Outro recurso importante que se desenvolveu em localidades que não dispunha de agência bancária foi a telefonia. Ela permitiu ao comércio de várias dessas cidades excluídas oferecer pagamentos eletrônicos. Por exemplo, uma mercearia poderia colocar no balcão do estabelecimento terminais de cartões de crédito e de débito. A “moeda eletrônica” tornou-se, então, acessível a todos. Não houve mais tanto problema de falta de numerário sob forma de papel-moeda. Substituindo-o, foi se resolvendo o difícil problema de seu transporte (com segurança), em um país de dimensão continental.

Somente tecnologia bancária cada vez mais avançada seria capaz de atender a contingente tão grande de brasileiros com velocidade e segurança. O avanço na automação e na regulamentação, além de vontade política, tudo isso permitiu avançar no acesso bancário.

Esta “bancarização” era o propósito do Programa da Conta Simplificada, criado em 2003, conta corrente desburocratizada em que não era obrigatório ter endereço fixo ou comprovante de renda. O programa tinha como pano de fundo a inclusão bancária e, em última análise, a social. Em um país de alta concentração de renda, dar acesso aos bancos era o mesmo que dar cidadania. Permitia também democratizar o acesso ao crédito bancário, para promover o crescimento econômico.

Quatro anos após o início desse Programa, em maio de 2007, o número de contas simplificadas abertas na Caixa Econômica Federal atingiu 5,04 milhões, sendo 3,93 mantidas ativas. Com isso, ela praticamente dobrou sua base de clientes correntistas. O Bradesco declarava que o Banco Postal tinha 5,5 milhões de contas e o Banco Popular do Brasil, 1,5 milhão.

Antes, a cadeia de “cordialidade” com relações pessoais de clientela determinava o crédito pessoal de cada indivíduo. Originava, então, uma longa tradição histórica brasileira de tratar os negócios como relações pessoais, com o fornecedor do crédito sendo considerado alguém com quem se tem dívida moral, “obrigação pessoal”, em vez de se estabelecer relações monetárias, liquidando os laços de dependências pessoais com a entrega do dinheiro.

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Antes, cadeias de lojas comerciais populares preferiam os clientes pobres para “escravizá-los” em crediários com juros escorchantes. O crédito popular, concedido por bancos públicos federais, passou a ser uma opção para fugir dessa situação, atender suas necessidades emergenciais ou realizar seus gastos extras.

Esse crédito popular, concedido por bancos comerciais, cuja contratação de agentes de crédito seria muito dispendiosa, não seguiu o modelo puro do “microcrédito produtivo orientado” com grupos de aval solidário. Foi construído como modelo propriamente brasileiro, para enfrentar problemas específicos de sociedade urbanizada (84% da população mora em cidades), massificada (5ª maior população mundial), espalhada em território gigantesco (47% da América do Sul) e com grande disparidade de renda. Colabora para fomentar mercado de consumo popular, em nosso país. Confirmando-se também a inclusão bancária dos milhões de recebedores de benefícios sociais, talvez se esteja construindo o maior (e mais rápido) programa de democratização do crédito do mundo!

7.3. Três funções básicas dos bancos

7.3.1. Viabilizar sistema de pagamentos

Esse direito ao acesso ao sistema de pagamentos com moeda bancária só se viabilizou pelo avanço tecnológico da indústria bancária brasileira. É consenso que o barateamento do atendimento aos clientes através de cartões eletrônicos, devido à automação bancária, que possibilitou, financeiramente, ampliar o acesso de clientes pobres.

O setor de Tecnologia de Informações (TI) no sistema bancário brasileiro se desenvolveu nos últimos 30 anos, período que esteve na maior parte sob pressão de uma economia instável sujeita a mudanças bruscas, como nas reformas monetárias ocorridas nos anos 80 e 90. Os bancos brasileiros investiram muito em tecnologia para evitar perdas com a aceleração da inflação, possibilitando elevar a velocidade de circulação da moeda nacional, evitando deixá-la ociosa sem aplicação. Esses percalços provocaram o desenvolvimento de soluções que agilizaram todo o processo de gestão de ativos, de contas correntes, de câmbio, de relacionamento com clientes (CRM), call centers, etc. Estudos realizados em universidades estrangeiras, comparando experiências na área inclusive nos Estados Unidos e na Europa, colocavam o país como um dos mais avançados no desenvolvimento, produção e utilização de tecnologias bancárias. O Brasil tornou-se exportador de serviços e soluções de TI para bancos.

Desde o início dos anos 1980, os três maiores bancos comerciais (Bradesco, Itaú e Banco do Brasil) se envolveram diretamente na produção de hardware e software para automação bancária, através de suas subsidiárias tecnológicas como Sid, Itautec e Cobra, respectivamente. No período da “indústria nascente”, a política de reserva de mercado para a informática, adotada pelo governo brasileiro no final dos anos 1970, a chamada “Lei da Informática”, que limitava a presença estrangeira no país e privilegiava a produção de hardware, passou, com a imposição da realidade, a voltar-se para a automação e a produção de software. Depois da extinção da lei de reserva de mercado, o

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setor já tinha adquirido condições de se desenvolver rapidamente. À ação dos grandes bancos somaram-se iniciativas oficiais de apoio e estímulo à produção e exportação de softwares brasileiros para o sistema financeiro dos anos 90 em diante.

As empresas brasileiras desenvolveram expertise em produtos como hardware e software para redes de máquinas de auto-atendimento (ATMs), internet banking, e-mail banking e, mais recentemente, mobile banking (acesso à conta bancária pela telefonia celular), entre muitos outros produtos. A implantação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), cuja estrutura exigia que as empresas fornecessem soluções para diversas camadas (bancos, câmaras de liquidação, banco central) tornou o mercado interno altamente comprador de automação bancária. Esse sistema que controla todos os pagamentos realizados no país via operações interbancárias, em rede e em tempo real, desperta o interesse em vários países, que enviam missões ao Brasil para melhor conhecê-lo. As empresas brasileiras de software para finanças, atualmente, vendem soluções avançadas, com tecnologias de ponta, em várias regiões do mundo.

O uso da comunicação móvel como canal de serviços era a fronteira tecnológica. Com notebooks e smart phones, acessava-se a internet de qualquer lugar que dispusesse de rede-sem-fio. Mas, enquanto o internet banking teve como limite a ainda reduzida parcela da população com acesso à rede mundial, o celular já estava mais acessível ao bolso de cidadãos brasileiros de todos os segmentos de renda da sociedade. Mirava-se, então, na experiência bancária da África do Sul, onde o First National Bank usou o canal celular para dar acesso bancário a centenas de milhares de pessoas.

Com mais de 100 milhões vendidos no Brasil, os celulares massificaram o acesso à telefonia, o que levava à expansão dos call centers dos bancos. Mas o grande salto seria o uso dos celulares como meios de pagamento. Tratava-se de uma mídia sofisticada, com processador, memória e conectividade, que podia representar uma evolução em relação aos cartões. Entretanto, se o número de celulares era grande, a parcela com aparelhos de fato habilitados a mobile banking ficava entre 4 a 5 milhões de terminais.

Teria ainda que se avançar muito para chegar a uma solução de pagamento para valores baixos, em que o custo da ligação telefônica teria peso relativo. As transações por celular incidiriam em custo para o usuário, assim como tinha o custo do acesso pela Internet. Mas, os acessos às agências ou aos postos de atendimento bancário também tinham custos (e riscos) crescentes, face ao tempo perdido no trânsito, quando não se enfrentava assaltos...

O tema mobilidade passou a ser a pauta mais presente em quase todo grande banco. A expectativa era que as agências permanecessem, mas não mais como centros de transações, mas sim como centros de processamento. A possibilidade de corte de custos com as agências justificava que os bancos investissem pesado em seus projetos de mobile banking e, mais adiante, na HDTV banking, ou seja, no banco diretamente na TV digital do cliente, para ele operar sua agência sem sair de sua casa. No primeiro caso, não existiam maiores problemas técnicos e a infra-estrutura estava preparada para receber esse novo canal.

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De imediato, a expectativa era que pagamentos e transferências deveriam ser o principal atrativo do mobile banking entre categorias de aplicações wireless possíveis. O Mobile Payment era o uso do celular para ordem de transferência de depósitos à vista, em substituição a cartões de débito ou crédito, sendo o canal inerentemente preparado para pagamentos remotos. No serviço de M-Payment, a transação se completaria no próprio celular. Essa solução permitiria que o cliente realizasse e pagasse compras à distância, com a ajuda do celular. Com o serviço, a compra poderia acontecer sem a presença física do cliente, o que seria ideal, por exemplo, para serviços de entregas de lojas virtuais. Uma vez informado o número do telefone, o lojista por um desses três canais (POS adaptado, página da bandeira na internet ou celular próprio) lançaria a transação no sistema. Logo, o cliente receberia uma mensagem SMS informando que havia uma transação pendente de confirmação por senha, que ele faria, imediatamente, usando a mesma do seu cartão. Os maiores apelos seriam facilidade, segurança e rapidez, criando uma cultura de pagamento móvel no Brasil.

Para que as soluções de mobilidade, em transações financeiras, realmente funcionassem, seria preciso que os comerciantes operassem com qualquer banco e com o celular de qualquer operadora. A primeira premissa seria a definição de padrão de mensagem comum, protocolo padronizado. Deveria se estabelecer uma forma padronizada de descrição de transações financeiras, assim como se tinha homogeneizado a descrição dos serviços bancários tarifados, o que permitiria pagamentos e outras interações entre agentes econômicos vinculados a qualquer banco. Seria também necessário criar serviços comuns de clearing (compensação) e liquidação. Uma das propostas era usar a infra-estrutura da Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP), que operava o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), e fazer com que a provedora assumisse a função de clearing. Portanto, haveria ganhos para todos os elos da cadeia: “bancarização” de não clientes, conforto para o já cliente-usuário, rentabilidade para a operadora, com a massificação da escala no seu tráfego.

O SPB iniciou seu funcionamento efetivo no dia 22 de abril de 2002. Reduzir o chamado “risco sistêmico” foi o principal benefício do novo sistema. Era o risco de que um banco não tivesse recursos para honrar suas dívidas com outro banco, que, por sua vez, também ficaria sem ter como pagar seus compromissos, em um “efeito-dominó” que se alastraria por todo o sistema financeiro.

As contas de reservas bancárias devem ser vistas como contas-correntes dos bancos no Banco Central, onde são lançados todos os créditos e débitos oriundos das operações que seus detentores realizam com os outros bancos, o Tesouro Nacional e a própria autoridade monetária. Todas as operações financeiras entre quaisquer contrapartes, exceto o Banco Central, provocam alterações nos níveis individuais de reservas bancárias das instituições financeiras, entretanto, sem alterar o saldo consolidado do sistema financeiro. Constitui sistema fechado onde as instituições não são capazes de criar ou destruir reservas bancárias (em espécie) sem a participação da autoridade monetária.

Todo agente econômico está sujeito ao fluxo de caixa (cashflow). Cada qual, seja deficitário, seja superavitário, necessitará ter seus fluxos de saída e de entrada de caixa

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equilibrados (“zerados”) por instituição financeira. Esta captará o excesso de caixa dos clientes superavitários e concederá crédito para os deficitários, zerando o fluxo de caixa de sua clientela, independentemente do equilíbrio entre os recursos tomados e os concedidos, que só por caso se igualarão. A instituição financeira, por sua vez, ao equilibrar as finanças dos clientes, desequilibrará seu próprio fluxo de caixa, tornando-o superavitário ou deficitário. Como também ocorrem os mesmos desequilíbrios nos fluxos de caixa de outras instituições financeiras, em função da “zerada” do setor real da economia, há oscilações, ao longo do dia, nos fluxos individuais de caixa das instituições financeiras.

Desequilíbrios deverão se compensar. No consolidado do sistema financeiro, fluxo superavitário corresponde a fluxo deficitário, mesmo que seja com valores diferentes. As instituições financeiras recorrerão ao mercado interbancário de reservas bancárias: as superavitárias para “doar” suas sobras de caixa; as deficitárias para “tomar” esses recursos; no final do expediente bancário, todas deverão se “zerar”.

Diariamente, os bancos realizam, entre si, milhares de transferências de recursos, por exemplo, com reais, dólares, ações e títulos de dívida pública. O resultado dessas operações interbancárias, pelo sistema anterior, só chegaria ao conhecimento do Banco Central do Brasil um dia depois que já tivessem sido realizadas. Caso ocorresse falha de pagamento, isso implicaria em série de débitos não honrados nos elos seguintes da cadeia e caberia ao Banco Central arcar com essa conta. O SPB eliminou esse risco.

Antes de o novo sistema entrar em vigor, para evitar que essa reação em cadeia culminasse em colapso do sistema financeiro, o Banco Central do Brasil era obrigado a entrar em cena, garantindo o pagamento dos passivos da instituição que não tivesse como honrar seus compromissos. Pelas novas regras, vigentes desde 2002, as chamadas “câmaras de liquidação diferida por resultado líquido” simplesmente barram a realização das transações se não houver garantias para isso. São elas: a Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP) da FEBRABAN; a Câmara Brasileira de Liquidação & Custódia (CBLC) da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA); e as Câmaras de Ativos, Câmbio e Derivativos, da Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F). Um crédito eliminaria automaticamente um débito no mesmo valor e a clearing não autorizaria o banco assumir novo débito, caso ele não tivesse reserva bancária.

O sucesso do SPB foi o resultado de um pacote de medidas, lançado em 2002, que proporcionou maior segurança jurídico-regulatória, e um confiável aparato tecnológico. Na área jurídico-regulatória, os principais avanços foram relacionados às chamadas “câmaras de compensação” ou clearings, reconhecendo-as como contrapartes centrais nas operações. No caso de um banco que tenha comprado R$ 1 bilhão em dólares, por exemplo, a câmara se compromete a entregar a uma das partes um bilhão de reais e o equivalente em moeda norte-americana à outra. Os negócios são, em última análise, com a clearing e não diretamente entre um banco e outro.

O segundo avanço foi a “sacramentação das garantias” oferecidas nessas clearings para a realização das transações. Esses recursos, pelas novas regras, não podem, em hipótese alguma, deixar de ser usados como garantias. Antes, havia risco legal quanto

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à execução de garantias. Caso um banco fosse posto sob intervenção, o interventor podia, simplesmente, escolher quais operações honrar e quais não honrar.

No que diz respeito à tecnologia, a principal novidade foi o desenvolvimento do Sistema de Transferências de Reservas (SITRAR), mecanismo de comunicação por mensagens criptográficas. Seu objetivo foi assegurar, de forma rápida e segura, a transferência de recursos entre as contas dos bancos, nas contas de Reserva Bancária no Banco Central do Brasil, e as clearings, nas contas de Liquidação, também no Banco Central.

O SPB representou a modernização dos sistemas de pagamentos no Brasil, tornando-o comparável aos mais avançados do mundo. Foi o principal motivo da melhora como um todo do sistema financeiro nacional e reduziu drasticamente os riscos sistêmicos, ajudando a criar condições para a inserção do país no atual sistema globalizado. Com a intervenção no Banco Santos, no final de 2004, e sua posterior liquidação, comprovou-se, na prática, que a utilização de garantias para os sistemas estruturalmente importantes funcionaram e delimitaram as conseqüências indesejáveis para o sistema financeiro nacional. Isolou os efeitos colaterais daquela bancarrota. Na realidade, a CIP não ficou nem um só dia “fora do ar”, nos primeiros cinco anos do SPB.

Para os clientes pessoas físicas, representou dispor de uma rapidez inédita no mundo na movimentação de recursos, com a criação da TED – Transferência Eletrônica Disponível. Ela permite remeter ou receber qualquer valor, mas os bancos fizeram um “acordo entre cavalheiros” de ser igual ou acima de R$ 5.000, para não estourar a capacidade de processamento da CIP com transferências do pequeno varejo, em qualquer ponto do país, no mesmo dia, quando não em tempo real. Diferentemente das transferências realizadas por meio de DOCs e cheques, cuja liquidação é realizada um dia após o processamento da operação (D + 1), nas TEDs a liquidação é realizada, instantaneamente, on line.

Para as empresas, em geral, mas, sobretudo, para aquelas que gerenciam caixas que as aproximam de bancos, o SPB representou mais segurança, agilidade e eficiência no manejo de recursos e instrumentos financeiros. Por exemplo, os supermercados, que realizam, diariamente, inúmeras operações de compra e venda com fornecedores e clientes, a introdução da TED representou mudança na forma de atuação dos departamentos financeiros. O SPB mudou as transações financeiras entre empresas, que antes eram feitas através de cheques e DOCs e a transferência dos recursos só era confirmada no dia seguinte. Em regime de alta inflação e com alta taxa de juros real, havia custo de oportunidade significativo para os que tinham dinheiro a receber. Com o SPB, transações acima de R$ 5 mil são realizadas on line. É possível conferir as entradas e as saídas, poucos minutos após a negociação. Isso propicia mais segurança para remetentes e receptores que movimentam grandes quantias, já que podem acompanhar a liquidação das operações, confirmando se as movimentações foram efetivadas, e corrigir eventuais problemas durante o próprio expediente bancário.

Nas tesourarias das empresas não-financeiras, também foi preciso automatizar os processos de apuração dos valores dos pagamentos e recebimentos. Internamente, foram

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implantados sistemas para a troca de informações entre Contas a Pagar, Contas a Receber, e Caixa. Com horários mais rígidos para as transferências, era preciso um fluxo rápido de informações, pois, passado o prazo, não havia mais como resgatar recursos para cobrir necessidades de caixa nem aplicar sobras. Estreitou-se também o relacionamento dessas grandes companhias com seus bancos, pois boa parte das operações passou a ser feita por sistemas informatizados. Por esse lado, o SPB também induziu a redução de custos, pois foram eliminados processos manuais que demandavam mais tempo e com maior probabilidade de falha humana. Por outro lado, o SPB incentivou a concentração bancária ao exigir gastos altos com o desenvolvimento de sistemas e aumento dos controles internos. Alguns controladores de instituições pequenas desistiram de se manter no negócio diante das exigências em operar no novo sistema.

As inovações tecnológicas, aceleradas nos últimos anos, permitiram inovações financeiras no Brasil. Na terceira onda da internet, os usuários têm a possibilidade de produzir conteúdo e o disponibilizar na rede. Trata-se agora de produzir, receber e propagar. Pode-se avaliar e comentar notícias, selecionar os assuntos de interesse próprio, colaborar na geração e alteração de conteúdo, classificar e indicar os produtos. Quanto mais rápida se tornar a conexão interativa, mais pessoas colocarão conteúdo na rede, transformando-a em via de mão dupla. Daí as áreas de TI dos bancos pretenderem utilizar a infra-estrutura da rede celular para conectar agências em Wi-Max (banda larga sem fio), o que permitirá plena mobilidade nas unidades de atendimento. As agências serão itinerantes, com todo funcionário (e seus maravilhosos dispositivos móveis) tendo de ir onde o povo, ops, o cliente está! Lá estará ele, o banco onipresente e onisciente, cuja TI o tirou fora das limitações físicas do tempo (real) e do espaço (total). Sobrenatural: será deus ou demônio? Ou apenas instituição de mercado regulável?

7.3.2. Oferecer segurança, rendimento e liquidez para aplicações

É possível fazer um breve resumo da história da riqueza no Brasil, para entender qual foi o papel histórico dos bancos ao oferecer “papéis” aos clientes, como formas alternativas de manutenção de riqueza.

No espaço colonial brasileiro, a forma de manutenção de fortuna local, composta de escravos, terras e engenhos, era em “bens de raiz”, não sendo possível levá-los para a metrópole européia. Havia grande dificuldade para transformar a fortuna em dinheiro. Muitos senhores de engenho eram ricos, mas havia o problema de falta crônica de moeda metálica. Os patrimônios eram cada vez maiores, mas a liquidez proporcionalmente menor, pois o valor de produção crescia muito mais que a moeda em circulação.

Em face da escassez quase absoluta de moeda, o governo da capitania do Rio de Janeiro chegou a determinar o curso forçado do açúcar para pagamento de impostos e soldos. Essa moeda-mercadoria, mesmo com valor incerto e flutuante face à paridade oficial, cumpria a função de intermediária de trocas de aceitação geral e medida de valor, enquanto os escravos desempenhavam a função monetária de reserva de valor, isto é, a representação da fortuna já obtida. O açúcar e os escravos eram os substitutos da moeda metálica.

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Com o fim do “ciclo da economia açucareira” (séculos XVI e XVII) e do “ciclo do ouro” (século XVIII), depois de dois séculos de letargia, restou à população pobre a alternativa da migração. A região Nordeste, o grande ponto de origem das migrações internas brasileiras, perdeu, no século XX, sua participação na população total do Brasil: de 39% a 28%. A região Sudeste, centro do “ciclo da economia cafeeira” (séculos XIX-XX) e do “ciclo urbano-industrial” (após a crise do café na década de 1930), manteve o patamar próximo de 45%, chegando a 2000 com 43%. A região Sul oscilou, mas terminou com os mesmos 15% que tinha em meados do século. Com a crescente interiorização da população brasileira, a região Norte quase dobrou sua participação, saindo de 4% em 1900 para 7,6% em 2000; a região Centro-Oeste mais que triplicou, ao longo do século XX, indo de 2,1% para 6,8%.

Caracterizou-se, assim, depois de uma “marcha nordeste-sudeste/sul”, uma “marcha para o oeste (e o norte)”, seguindo a trilha em busca de riqueza: o madeireiro chegava primeiro, o gado o seguia e depois vinha a soja. Com a adaptação da soja para plantio em zonas tropicais, o agricultor comprava as pastagens do pecuarista. Com o dinheiro recebido do agricultor de soja, o pecuarista comprava terras exauridas por madeireiros mais ao norte. O madeireiro avançava sobre terras devolutas, extraía as árvores nobres e ficava à espera de uma oferta do pecuarista. O ciclo de destruição se repetia... Na Amazônia, ¾ das áreas de árvores derrubadas por motosserras de peões (cativos por dívidas) eram transformadas em pastagens, o que fazia da pecuária uma das grandes causas do desmatamento.

Na realidade, as cidades brasileiras não tiveram capacidade de absorver, adequadamente, o ritmo elevadíssimo de migração vindo do campo, na segunda metade do século XX. Em busca de maior esperança de vida, acesso a serviços públicos e moradia (“sonho da casa própria”), a população urbana passou de 31% a 84% do total, em pouco mais de 60 anos. Não foi atendida a necessidade levar ao campo os mesmos direitos civis disponíveis na cidade, para dar melhores condições de vida e de trabalho nas zonas rurais brasileiras.

“Bolhas” surgiram quando os preços de mercado dos ativos eram inconsistentes com o que os fundamentos justificariam. Uma economia de boom (com alto crescimento) gerava uma bolha de ativos quando a escala de influxos nominais de riqueza à caça de oportunidades em ativos reais ultrapassava a capacidade de criação desses ativos de capital. As bolhas de ativos seguidas por colapsos de ativos foram virtualmente onipresentes em economias (ou em mercados) com fronteiras delimitadas (DYMSKI: 1998).

Em sistemas baseados em mercado de capitais, a volatilidade dos preços dos ativos (cambiais, mobiliários e imobiliários), que representam parcela importante do patrimônio das famílias e das empresas, reflete-se seja em um “efeito riqueza”, seja em um “efeito pobreza”. A percepção de um aumento relativo no patrimônio eleva os gastos de consumo e deriva em investimento, inclusive pelo fornecimento de capitais de risco para financiá-lo. Isso ocorre mesmo sem a liquidação das posições, ou seja, na ausência da realização dos lucros imaginados. A seqüência de altas nas cotações pode, então, resultar em ciclo produtivo, com aceleração da taxa de crescimento.

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No Brasil, não se constituiu uma “economia de mercado de capitais”. Em uma economia com grande instabilidade inflacionária e cambial, a forma preferida de manutenção de fortuna local sempre foi em “bens de raiz”. No passado, predominava o estoque de riqueza em escravos, terras, engenhos, imóveis urbanos, etc. Com a constituição progressiva de um mercado financeiro, desde o século XIX, as emissões de títulos de dívida pública forneceram lastro para aplicações financeiras em títulos de renda fixa, contrapondo-se, parcialmente, às fugas de capital para o ouro ou as divisas estrangeiras. Evitaram a plena dolarização da economia.

Grande parte da riqueza de "novos ricos" surgiu de atividades não-produtivas, geralmente ligadas a ganhos de capital por meio de valorizações mercantis, como a venda de bens (imóveis, fazendas, empresas, participações, etc.) comprados com preços baixos e vendidos após forte alta. Os empreendedores pioneiros investiram, inicialmente, em “zonas de fronteiras” ou espaços urbanos ainda não atendidos por determinadas atividades. Com o controle monopolista de mercados locais, obtiveram “ganhos de fundadores” extraordinários, devido ao crescimento das cidades.

Exemplo dessas “economias de bolha”, que atraia capital e trabalhadores, São Paulo era o Estado que concentrava a maior parte dos ricos do país, cuja renda média mensal era a quarta maior (R$ 31.900,00), após a dos ricos de Distrito Federal (R$ 40.800,00), Minas Gerais (R$ 32.600,00) e Mato Grosso (R$ 32.100,00), segundo o “Atlas dos Ricos no Brasil” de POCHMANN (2004). A renda média mensal do 1% mais ricos no Brasil era de R$ 23.400,00 por mês, em setembro de 2003, e a relação entre ela e a renda média da população era de 14,5 vezes maior. Nivelada por cima, a menor relação (13 vezes) desse tipo era no Distrito Federal, cuja renda média dos ricos era a maior entre todas as Unidades Federativas. O Estado do Maranhão, que tinha a menor renda média mensal entre o 1% mais ricos (R$ 14.000,00), era onde justamente essa relação era maior, em torno de 20 vezes, assim como em Alagoas (R$ 17.400,00) e no Piauí (R$ 15.800,00).

Na capital de São Paulo moravam 443.462 famílias ricas, representando 38% das famílias com renda mensal superior a R$ 10.982,00, em setembro de 2003, nível arbitrado por POCHMANN (2004) para essa classificação. Cerca de metade do total de 1,162 milhão de famílias ricas do país morava em quatro cidades. Além de São Paulo, cuja renda média dos ricos era R$ 36.600,00, eram elas: Rio de Janeiro com 76.317 famílias (R$ 17.400,00), Brasília com 34.994 (R$ 40.800,00) e Belo Horizonte com 27.526 (R$ 32.600,00).

Essa concentração urbana da riqueza sugere que as bolhas de ativos, no Brasil, ocorreram mais no mercado imobiliário. A demanda por imóveis era determinada pela elevação do grau de urbanização da população. A concentração do mercado consumidor, nessas grandes cidades, favorecia o sucesso dos empreendimentos empresariais. Entre 1900 e 1973, a taxa de crescimento médio do PIB brasileiro foi a maior do mundo, propiciando uma economia de boom com bolhas imobiliárias. A sobra de renda dos mais ricos permitia construir a “casa própria” ou investir em imóveis, aplicação que era, antes da reforma financeira de 1964, considerada segura e rentável. Tinha mercado secundário organizado que dava, então, relativa liquidez. Poucas “bolhas” ocorreram no mercado de ações brasileiro.

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No Brasil, o Estado, à custa de um imenso e contínuo endividamento, teve que se encarregar da tarefa de industrialização pesada, devido aos grandes riscos do investimento. A insuficiente mobilização de capitais pelos empresários brasileiros, em face da envergadura dos empreendimentos, os afastou. Eles tinham oportunidades lucrativas de inversão, com baixo risco e diminutas barreiras tecnológicas, na medida em que atuassem em mercados protegidos como o bancário e o de empreitadas de obras públicas. Os investimentos que requisitavam patentes tecnológicas foram efetuados por empresas estrangeiras. Essas trouxeram capital do exterior; não necessitaram emitir ações no país.

Os investimentos e, conseqüentemente, as necessidades de financiamento das empresas privadas nacionais foram limitados. Foram atendidas pelos lucros retidos e créditos comerciais e oficiais. Com isso, nunca houve estímulo, pelo lado da demanda de recursos, para os proprietários dividirem o poder sobre suas empresas, lançando ações. Inclusive, para incentivar a abertura de capital, criou-se o expediente de separar ações ordinárias e preferenciais como proteção face ao risco de perda do controle acionário por takeover hostil. Isso desestimulava o mercado secundário.

Nos últimos 37 anos, a bolsa de valores teve apenas cinco “booms”, no Brasil. O primeiro foi em 1971, durante o chamado “milagre econômico brasileiro”. O segundo foi 15 anos após, depois do lançamento do Plano Cruzado. Em 1989, houve a mega-especulação do Nagi Nahas. Em meados de 1997, com a “crise asiática”, explodiu a penúltima bolha, a da “abertura financeira ao capital estrangeiro”. Desde então, a BOVESPA somente retomou seu crescimento após a crise pré-eleitoral (ou de “marcação a mercado”) de 2002, simultaneamente à estabilização da inflação e ao fim da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Nos oito anos antes de 2003, quando Lula tomou posse, a Bolsa acumulou quedas expressivas. Em 1995, a queda foi de 13,9%; em 1998, de 38,5%, em 2000, de 18,3%; em 2001, de 25%; e em 2002, de 45,5%. Depois, a Bolsa acumulou altas expressivas: 141,3% em 2003; 28,2% em 2004; 44,8% em 2005; 45,5% em 2006; e 48% em 2007.

A diferença entre os rendimentos da renda fixa e os da variável pode ser observada através de proxy da primeira: a evolução do Certificado de Depósito Interbancário (CDI), que é referência para os fundos de renda fixa e os depósitos a prazo. Estimativa da rentabilidade acumulada, de julho de 1994 a dezembro de 2005, mostra que o CDI acumulou variações de 1.308%, bem superior à variação do Índice BOVESPA, a proxy para a renda variável, que acumulou em 819%. A poupança, no mesmo período, acumulou 404%. Interessante observar que todas essas aplicações ficaram bem acima da taxa de inflação (IPCA) acumulada no período (196%). Apenas o câmbio variou menos, mostrando que a sobrevalorização da moeda nacional, no 1º mandato do governo FHC, e sua apreciação no 1º mandato do governo Lula, desestimularam as aplicações em dólares.

Levantamento da Economática (OESP: 04/09/07), referente a um período mais recente, entre o início de 2002 e o fim de agosto de 2007, mostrou que o Ibovespa, principal índice da Bolsa de Valores de São Paulo, acumulou alta de 302,4%. No mesmo período, a rentabilidade do Certificado de Depósito Interbancário (CDI), que acompanhava a taxa básica de juros (SELIC), foi de 152,3%. Foi a primeira vez, em toda

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a história moderna do mercado brasileiro, que o Ibovespa, parâmetro para investimentos de renda variável, apresentou rentabilidade superior ao do CDI, parâmetro para investimentos de renda fixa, por cinco anos consecutivos.

Antes, o movimento da bolsa de valores se concentrava em ações das empresas estatais. Com o modelo de privatização, adotado nos anos 90, acompanhado de desnacionalização, perdeu-se a oportunidade histórica de criar grandes corporações privadas nacionais, com a venda de suas ações de maneira pulverizada. Não se fez a “democratização do capital”.

O fato histórico é que aqui se constituiu “economia de endividamento”, não “economia de mercado de capitais”. Ainda não houve no mundo nenhuma experiência que tenha convertido a primeira nessa última, típica dos países anglo-saxões. Esse modelo institucional de mercado financeiro não foi copiado senão como caricatura do original. Pelo contrário, atualmente (assim como em 1929), a bolsa de valores de Nova York absorve ações (ADRs) das grandes empresas do resto do mundo, esvaziando as congêneres.

Mas, nas décadas de 80 e 90, graças às atividades ligadas ao setor financeiro, pequena parcela da classe média conseguiu enriquecer, elevando a desigualdade social. A piora no Índice de Gini (IG), durante um ciclo com alta inflação e moeda-indexada (disponível para os que tinham acesso a bancos), mostra isso, indiretamente. Em 1981, ele foi 0,564; agravou a concentração de renda até 1993, quando atingiu 0,600. Apenas após a estabilização da inflação, em 2002, ele retomou o patamar de duas décadas antes: 0,563. Em 2007, o IG da renda do trabalho atingiu seu nível histórico mais baixo: 0,528.

Em ano de boom na bolsa de valores e expansão econômica, as famílias das classes A e B tiveram o maior crescimento de renda da população brasileira. A expansão foi constatada em estudo da LatinPanel com 8.200 lares no país (FSP: 09/11/07). O principal motivo para o aumento no rendimento foram os ganhos com aplicações financeiras. As famílias mais ricas aumentaram os investimentos em 216%, de uma média mensal de R$ 1.520,00 para R$ 4.812,00. Quem aplicou em ações fez uma boa escolha até o final de 2007. Os ganhos com comissões e bonificações, como a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, também ajudaram nesse crescimento do rendimento, com uma ampliação de 27%, no período analisado.

A partir dos anos 80, o que se viu foi o estabelecimento de um modelo de acumulação de riqueza por meio da dívida pública e dos juros altos em que o Estado transferia recursos oriundos de tributação sobre toda a população para as camadas mais ricas do país. O aumento da dívida foi gerado por um conjunto de fatores. A explosão dos juros, sua dolarização em simultâneo à depreciação da moeda nacional, o reconhecimento de dívidas antigas (“esqueletos” como os que levaram o Tesouro Nacional a assumir dívidas estaduais e a trocar ativos da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil e do INSS) e a própria necessidade de financiamento do setor público (déficit nominal) aumentaram a dívida líquida. Enquanto isso ocorria, a receita de privatizações reduzia em muito pouco o montante da dívida.

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Na segunda metade da década passada, a necessidade de rolagem da dívida exigiu conquistar espaço entre os haveres financeiros para os títulos de dívida pública, como fica demonstrado pela relação crescente entre os fundos de renda fixa e o total dos haveres financeiros. Essa participação sai de 12,5%, em janeiro de 1995, sobe até um primeiro “pico” de 32%, dois anos após, cai para 25%, no ano seguinte, voltando a subir até 39%, em janeiro de 2001, cai levemente até 35%, em janeiro de 2003, e sobe inexoravelmente até 45%, nível alcançado em janeiro de 2006.

O estímulo à indústria de fundos de investimentos financeiros ocorreu em desfavor do funding típico dos bancos públicos: depósitos de poupança e a prazo. O crescimento do estoque de títulos de dívida pública conquistou mercado em relação aos títulos de dívida privada (depósitos a prazo e depósitos de poupança), dificultando a obtenção de funding adequado ao financiamento. Esses depósitos, conjuntamente com os haveres monetários (depósitos à vista e papel-moeda em poder do público), representavam 75% do total de haveres financeiros, em janeiro de 1995. No final de 2001, já tinha atingido o patamar de 40%, do qual apenas recuperou com a crise da “marcação a mercado”, em 2002, quando chegou a 49%. No fim do exercício de 2007, os fundos representavam 54% do total de captações, os depósitos a prazo, 20%, os depósitos de poupança, 16%, e os depósitos à vista, 10%.

A interpretação interessante do fenômeno da “indústria de fundos mútuos de investimento” é que ele mostra a administração de recursos de terceiros, que é segregada nos bancos pela “chinese wall”, concorrendo com os próprios negócios bancários, isto é, com a captação de funding para a carteira de crédito dos bancos. Em outras palavras, houve um vazamento de dinheiro do circuito monetário tradicional: bancos - crédito - empresas - pagamento dos empregados - consumo - receita das empresas - pagamento do crédito. Nesse sentido, houve um vazamento de recursos do mercado de produtos, não tanto para depósitos quanto para o mercado de títulos de dívida pública.

Por que os bancos aceitaram isso? Obviamente, porque foram muito bem remunerados por isso. Os gestores dos fundos de investimento se apropriavam o equivalente a 1,5% do PIB brasileiro, anualmente, apenas com taxas de administração. A maioria deles tinha apenas a tarefa burocrática de comprar títulos da dívida pública do governo que vinham garantindo os juros reais mais elevados do mundo, independentemente do cenário econômico. A indústria de fundos administrava R$ 1,2 trilhão e cobrava taxas de administração em percentual significativo do patrimônio anual dos recursos administrados. Em 2006, a taxa média cobrada nos fundos de varejo ficou em 2,6% e nos fundos de ações, 3,5% (FSP: 24/09/07). Com aquela taxa, os “administradores dos recursos de terceiros” embolsavam bilhões de reais por ano para fazer um dos trabalhos mais simples do sistema financeiro internacional, que pouco envolvia a prestação de um serviço de valor ao cotista. Porém, com a tendência de queda da taxa de juros, cada vez mais os cotistas teriam a necessidade de um serviço personalizado, que atendesse às necessidades particulares de aplicação de recursos e de tomada de risco.

A perspectiva de juros ainda baixos no país colocava um desafio aos gestores de fundos administrados pelos bancos no Brasil: eles teriam de apresentar mais resultado

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para o cliente, fazendo uma gestão de patrimônio mais personalizada, e ainda cobrando taxas de administração menores. O efeito colateral seria assumir cada vez mais riscos. Havia muita riqueza correndo atrás de poucos ativos. Com o aumento da riqueza, os investidores tendiam a aceitar mais riscos. A indústria de fundos teria de responder com maior oferta de investimento de risco, o que elevaria a volatilidade nos mercados.

7.3.3. Financiar atividades

A evolução real do crédito, em todo o governo FHC (1995-2002), foi medíocre. Com a reestruturação patrimonial dos bancos públicos federais, em maio de 2001, o saldo de empréstimos caiu inclusive em termos nominais. Esses bancos não recuperaram suas antigas participações no mercado de crédito, desde então. Parte dos recursos direcionados a setores prioritários foi assumida como “esqueletos”.

O fato é que, findo o governo FHC, a relação entre o estoque de crédito bancário e o PIB, no Brasil encontrava-se entre as piores, considerando os Estados Unidos (160%), Japão (143%), Europa (130%), países asiáticos emergentes (73%), Europa emergente (51%), América Latina (39%), Chile (60%). A do Brasil, no “fundo do poço”, era de 23,8%. Mas, em decorrência da política de crédito adotada no governo Lula, o estoque total de empréstimos passou a representar 37% do PIB, em julho de 2008.

O financiamento ao setor habitacional estava estagnado, desde 1992, quando se detectou a sobre aplicação em relação aos 65% exigidos do saldo da poupança pela Caixa Econômica Federal. O crédito ao setor rural através do Banco do Brasil tinha um desempenho sofrível. O BNDES era o único a apresentar um forte crescimento em suas operações de crédito, destacando-se seu papel no financiamento às exportações face à escassez das linhas de crédito dos bancos múltiplos.

A participação média do Banco do Brasil e da Caixa, no mercado de crédito, entre 1993 e 1999, foi de 40,4%. Em junho de 2002, um ano após a reestruturação patrimonial, passaram a deter apenas 21,4% do total de operações de crédito. Em compensação, trocaram os “ativos podres” por títulos da dívida pública, passando a carregar em suas carteiras próprias 34,2% do total em posse do setor bancário. Em conseqüência, os quatro maiores bancos privados nacionais igualaram à parcela de operações de crédito que os quatro maiores públicos detinham: cerca de 30%.

A relação entre a carteira de títulos e a carteira de empréstimos dos maiores bancos públicos (exceto BNDES) era muito superior do que a da média do sistema bancário. O único privado que tinha a mesma característica era o Banespa, desde a renegociação da sua dívida junto ao Estado de São Paulo. Os bancos “carregadores” de títulos de dívida pública estavam obtendo uma receita com títulos muito superior do que a com operações de crédito. Estavam também conseguindo obter maior eficiência, rentabilidade patrimonial e cobertura de despesas de pessoal com receitas de serviços. Devido à reestruturação patrimonial, os bancos públicos federais passaram a ter bom desempenho micro-financeiro, mas mantinham um mau desempenho macro-social, antes de 2003.

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A disponibilidade de grande rede de agências e de “clientela cativa” por parte do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal lhes permitia captar 38% do total de depósitos do sistema. O Banco do Brasil captava 31% dos depósitos à vista, a Caixa, 32% dos depósitos de poupança, ambos somavam 30% dos depósitos a prazo. Essas participações no mercado de depósitos propiciavam-lhes desfrutar do aumento da captação via esses haveres financeiros, quando havia fuga dos fundos, devido à perda de competitividade deles, seja pela “marcação a mercado”, seja pela queda da taxa de juros e elevada taxa de administração cobrada pelos administradores de recursos de terceiros. Nessa circunstância, haveria a possibilidade de geração do funding necessário para embasar a concessão de crédito agrícola e imobiliário. Essa seria a chave da retomada do crescimento.

No debate sobre o crédito no Brasil, contra o argumento de que a situação, após o segundo semestre de 2003, passou a ser muito melhor do que antes, lançava-se mão da “denúncia” que a relação entre o saldo do crédito total e o PIB aqui ainda era muito inferior do que a de em outros países. Em outros termos, em vez de se comparar evolução no tempo, contrapunha-se comparação entre espaços econômicos distintos.

As comparações internacionais têm de ser muito cuidadosas. Não se pode diferenciar “espaços” ignorando as diferenças no “tempo”, isto é, não é correto simplesmente fazer um corte temporal no ano presente, para denunciar que “ocupamos uma posição inferior no ranking internacional”. Não há diferenças estruturais entre os países, então, como ignorá-las nessas comparações? Por que desconhecer os distintos pontos-de-partida ou esquecer as heranças de problemas históricos, na análise do dinamismo de uma variável econômica?

Basta consultar as séries temporais sobre o crédito no Brasil. O saldo total de crédito concedido pelo sistema financeiro brasileiro, comparado com o PIB da época, depois do confisco de parte do estoque de títulos de dívida pública pelo governo Collor, subiu de uma relação de 20,2%, em 1990, para o patamar de 28,6%, no início de 1994. Ao final deste ano, em que ocorreu uma “bolha de consumo”, provocada pelo Plano Real, a proporção atingiu seu “pico histórico”, isto é, 37%. Durante os dois mandatos do governo FHC, a tendência de queda predominante levou ao “piso” de 23,8%, em maio de 2003. Com uma série de incentivos ao crédito, desde então, somada ao início da queda da taxa de juros básica de referência (SELIC), a relação crédito / PIB voltou a atingir 37% do PIB, em julho de 2008, considerando inclusive a revisão do PIB a maior. Era a melhor relação, desde novembro de 1995, mais de 13 pontos percentuais em relação à de maio de 2003, ou seja, uma elevação de 55%!

A relação crédito sobre PIB mostrava um crescimento consistente, desde meados de 2004, em função tanto de mudanças institucionais quanto de fatores econômicos. No que se refere às alterações institucionais, destacava-se a Lei 10.820 de 17/12/2003 que regulamentou os empréstimos consignados em folha de pagamento, ampliando o acesso dos trabalhadores a uma modalidade de crédito mais atrativa ao tomador e de menor risco para o credor. Referente aos fatores econômicos, o destaque era a consolidação de um cenário favorável, com maior estabilidade de preços e perspectiva de crescimento. Este quadro elevou a confiança dos agentes econômicos, fator fundamental para a expansão do

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mercado de crédito. Além disso, a estabilidade de preços da economia também permitiu que Banco Central reduzisse a taxa básica de juros e, conseqüentemente, que os bancos diminuíssem suas taxas de empréstimos. A partir de setembro de 2005, a autoridade monetária estabeleceu um segundo ciclo de redução da taxa básica de juros, diminuindo-a em 8,5 pontos percentuais. A trajetória de queda, porém, foi interrompida em outubro de 2007, quando ela pôs fim a uma seqüência de redução dos juros que durou dois anos. Antes, tinha iniciado outro ciclo de declínio dos juros básicos, em junho de 2003, mas interrompendo-o em meados de 2004.

Houve, em junho de 2001, queda muito significativa na série do crédito com recursos direcionados, aquele cuja taxa de juros média ponderada (pelas participações relativas do crédito habitacional, rural e de infra-estrutura) era quase ¼ da com recursos livres. Em maio daquele ano, o saldo do crédito direcionado para habitação era de R$ 47,5 bilhões; um mês após, passou a ser contabilizado apenas R$ 19,5 bilhões, ou seja, retirou-se da série histórica acumulada cerca de R$ 28 bilhões. No total geral, considerando também a retirada de saldo no crédito rural concedido pelo Banco do Brasil, o saldo das operações de crédito caiu R$ 37,5 bilhões, o que representava uma queda de 11% em relação ao saldo anterior de R$ 340 bilhões. Em julho de 2001, o saldo total ficou em R$ 315 bilhões. Felizmente, graças a uma política de crédito ativa, a partir de meados de 2003, o volume de crédito na economia cresceu, superando R$ 1 trilhão durante o primeiro semestre de 2008, segundo dados do Banco Central do Brasil. No início do governo Lula, em janeiro de 2003, o saldo total estava em R$ 384 bilhões.

Sem dúvida, a primeira lição histórica a ser retirada desses episódios é a respeito da importância de incentivar o direcionamento de recursos para o crédito em longo prazo. Há setores prioritários no desenvolvimento de qualquer país que têm de contar com empréstimos adequados às particularidades de suas atividades. Ao contrário do crédito de giro rápido, seja para pessoa jurídica, seja para empréstimos pessoais, são os financiamentos com prazos de amortização contados em anos que elevam, de fato, a relação crédito / PIB.

Por isso, a partir de 2004, o mercado e o crédito imobiliário tornaram-se prioritários para o governo federal e para a Caixa. Ocorreram avanços institucionais: novo direcionamento dos recursos antes vinculados ao FCVS (Fundo de Compensação das Variações Salariais), lei do patrimônio de afetação, regra do valor incontroverso, estabelecimento de vantagens tributárias, etc. A Caixa lançou novos produtos, reduziu taxas de juros, aumentou prazos, aperfeiçoou sistemas de risco e simplificou processos de contratação, realizando também vários “feirões da casa própria”. Tudo isso representou forte estímulo ao crédito habitacional.

Os desembolsos liberados de acordo com o andamento das obras, no caso de crédito a construtores, começaram a superar as amortizações dos créditos imobiliários do passado, refletindo-se nas estatísticas. Em média, um empreendimento imobiliário levava de 20 a 24 meses para ser construído. O que os analistas macroeconômicos deveriam se atentar é que o multiplicador de renda e emprego, acionado a partir desses investimentos em “casa própria”, deveria se prolongar, sustentando um crescimento econômico nos anos seguintes.

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O financiamento da casa própria com recursos da poupança contratou R$ 18,3 bilhões referentes a 195.981 unidades em 2007, o maior patamar registrado em 19 anos (o recorde anterior era de 181,8 mil imóveis em 1988), segundo a ABECIP (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança). O setor entrou em uma conjuntura favorável, alavancado pela expansão do emprego e da renda e pela estabilidade econômica, que permitiu aos bancos flexibilizar suas regras de empréstimo com segurança e ampliar o público beneficiado com financiamentos. Conseguiu-se disponibilizar o crédito para mais pessoas. Em 2002, carta de crédito no valor de R$ 80 mil tinha juros de 12% ao ano, 120 meses e era dada para quem tinha renda de 12 salários mínimos. Em 2007, o prazo passou para até 300 meses, juros entre 9% e 10% e exigência de 7 salários mínimos. Em simultâneo, cresceu o funding desses empréstimos imobiliários, devido à captação líquida (depósitos menos saques) das cadernetas de poupança pela melhoria da massa salarial e da competitividade frente aos fundos.

O crescimento do volume de crédito com recursos livres passou a ser expressivo desde o início de 2004. Devia-se tanto à consolidação de um cenário macroeconômico favorável quanto a mudanças microeconômicas, por exemplo, a regulamentação que permitiu maior difusão do crédito consignado. Conseqüentemente, a expansão do mercado de crédito estava contribuindo para o aumento da produção e do consumo, principalmente de bens de consumo duráveis. O crédito para pessoas físicas se beneficiava da melhora na dinâmica do mercado de trabalho, pois a população ocupada e o número de trabalhadores com carteira assinada no setor privado aumentavam.

O crescimento do consumo das famílias era viabilizado não só pelo aumento do crédito, mas também pelo aumento da renda e do emprego. Por sua vez, o consumo contribuía para a expansão da economia. A expansão das operações de crédito, por exemplo, ajudava a sustentar a venda de veículos e a fomentar a produção neste segmento. Ambos, produção e venda, seguiam batendo sucessivos recordes históricos.

Além das modalidades já citadas de crédito para pessoa física, as operações de crédito pessoal continuavam em expansão, principalmente as operações de crédito consignado. Este tipo de crédito com desconto das prestações em folha de pagamento já representava 57,3% do total de empréstimos pessoais registrados no país. Os funcionários públicos e aposentados do INSS eram os maiores interessados nessa modalidade de crédito, respondendo por 87,0% do total. Os segurados da Previdência já tinham realizado, desde 2004, quando o programa entrou em vigor, quase 24 milhões de operações, ou seja, número maior que o próprio número de aposentados, devido às operações de refinanciamentos. No final de 2007, o teto de juros para os aposentados, que era estipulado pelo Conselho Nacional da Previdência Social, era de 2,64% ao mês ou 36,66% ao ano. Mas, na realidade, a taxa média para operações de crédito consignado era 30,5% ao ano. Isso comprovava que, quanto melhor era a garantia envolvida em uma operação de crédito, menor era a taxa de juros cobrada.

As taxas de juros dos empréstimos seguiam em queda. A taxa média de juros relativa às operações de crédito referenciais (com recursos livres) situou-se no menor valor da série histórica iniciada em junho de 2000, 33,8% a.a. em dezembro de 2007, o que representava uma queda de 15 pontos percentuais (p.p.) em relação a setembro de

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2005, quando teve início o ciclo de afrouxamento da política monetária. O spread bancário apresentou 22,4 p.p. em dezembro, patamar mais reduzido da série temporal. O custo médio dos empréstimos destinados às pessoas físicas alcançou 43,9% a.a., o que representava uma queda de 18,3 pontos percentuais em relação a setembro de 2005. A taxa média de empréstimos para pessoa jurídica caiu 10,4 pontos percentuais, de 33,3% ao ano, em setembro de 2005, para 22,9% ao ano, no mês de dezembro de 2007.

Além da queda observada nas taxas médias de empréstimos, também se destacava o alongamento dos prazos que aumentaram concomitantemente ao crescimento do volume das operações de crédito. A despeito do crescimento do volume de crédito nos últimos anos não estavam sendo observados aumentos da inadimplência. A relativa ao crédito referencial, considerados os atrasos superiores a noventa dias, correspondeu a 4,3% da carteira total de empréstimos, em dezembro de 2007. Esse resultado foi determinado pela queda nos atrasos referentes a pessoas jurídicas, que alcançaram 2% no mês, bem como pela redução nos atrasos das operações voltadas às pessoas físicas, que se situaram em 7%.

Responder à pergunta se a taxa de juros de empréstimos era muito elevada no Brasil, comparativamente às de outros países, era, à primeira vista, fácil. Quando se considerava apenas a taxa média ponderada com base em recursos livres, para pessoas jurídicas e pessoas físicas, ela ainda era muito alta, embora cadente. Porém, não se podia deixar de se considerar que, no país, os demandantes de crédito tinham a opção de empréstimos para habitação, agricultura e infra-estrutura com recursos direcionados: em torno de 30% do volume total com taxa média ponderada equivalente a ¼ da com recursos livres! Nesses empréstimos com taxas abaixo inclusive da SELIC, a taxa de referência para captação do funding comercial (depósitos a prazo com remuneração em % de CDI), os bancos públicos federais eram os principais cedentes.

No entanto, mesmo a opinião especializada muitas vezes não tinha uma visão clara a respeito do papel de “fazedores-do-mercado” (market-makers) exercido por esses bancos públicos. Essa visão míope não enxergava longe. Em vez de se considerar que, na formação da taxa de juros de empréstimos, o nível da taxa de juros básica de referência (SELIC) para o custo do funding (composição passiva) era fundamental, desviava o olhar apenas para o spread (diferença em pontos percentuais entre a taxa de empréstimos média ponderada e a taxa de captação média ponderada de CDB). Obviamente, assim não se observava a atuação da autoridade monetária, elevando o custo de oportunidade do dinheiro...

Não se tratava de um debate “desinteressado”. Cada grupo de interesse apontava uma determinada causa para justificar o spread elevado. Quando se apontava só a “cunha fiscal”, responsabilizava-se a busca de maximização do superávit primário governamental. Quando o destaque era a inadimplência, a responsabilidade ficava com a má gestão dos clientes (seleção adversa) e/ou com o contumaz perdão dos devedores concedido pelo judiciário brasileiro (risco moral). Quando se olhava apenas as despesas de pessoal, os “culpados” eram os sindicatos. Outra tentativa de achar o “bode expiatório” foi feita por economistas do Banco Central do Brasil, apontando “um elevado grau de ineficiência do setor, notadamente dos bancos públicos, estes os grandes

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responsáveis pela elevação da componente do spread, a parcela relativa aos custos administrativos” (ABRÃO COSTA & NAKANE: agosto de 2004).

Observando-se uma série de longo prazo, constata-se uma queda pronunciada do spread médio, desde o patamar que tinha em 1994 (139,2 pontos percentuais) até em 2007 (22,4 p.p). Mas alguns analistas detectaram “um elevado grau de inércia do spread bancário, particularmente no Brasil, o que pode indicar a presença de características institucionais, de regulação e de concorrência do setor” (DE PAULA & PIRES; 2007: 180). Paradoxalmente, “um fator que daria suporte à hipótese de que o problema do spread no Brasil é resultado do poder de mercado dos bancos é a tendência recente de aumento de concentração do setor bancário” (SILVA, OREIRO & DE PAULA; 2007: 204). O paradoxo era que, justamente no período pós-1994, houve aumento da concentração bancária e queda do spread...

Houve o reconhecimento de que “a literatura que trata dos determinantes do spread bancário não tem sido conclusiva a respeito do assunto. Os estudos realizados apresentam evidências de que a estrutura de mercado do setor bancário brasileiro é imperfeita, mas não caracterizando a existência de cartel” (id., ibid). Cartel no sentido de ser determinante da fixação e controlador de taxas de juros, certamente não existia. Mas talvez pudesse se conceber que havia um grupo de bancos independentes com market-shares expressivos que não formalizavam um acordo para uma atuação coordenada, com vistas a seus interesses comuns, mas que tinham uma prática de apreçamento comum e auto-referenciada.

Na realidade, eles adotavam um modelo padrão de precificação, cujo objetivo era “decompor” o valor de cada item de despesa e de receita aferido para o produto objeto da análise, demonstrando o resultado em termos de uma taxa efetiva anual. O pressuposto de qualquer banco era que ele iria conceder empréstimos com base em recursos de terceiros dos quais, mais tarde, teria de prestar contas, provando seu uso adequado. Portanto, ele nunca poderia perder dinheiro em operações de crédito. O custo da perda tinha de ser transferido aos tomadores de crédito. No modelo-padrão de apreçamento, a mitigação de risco teria um peso fundamental, pois “os justos pagariam pelos pecadores”, em uma espécie de “aval solidário”, sem que os clientes tivessem consciência disso.

Havia a alternativa de, “acompanhando o mercado”, fazer como bancos concorrentes faziam: divulgar a taxa de juros de seu produto sem demonstrar o efeito, no custo final que o cliente pagaria, da Taxa de Abertura de Crédito (TAC). Os bancos cobravam essa tarifa à vista, divulgando apenas qual era o seu valor nominal. Faltava transparência ao não informar ao cliente, previamente, o custo efetivo total da operação. Da mesma forma que os concorrentes, então, o banco que estava precificando o novo produto se sentiria à vontade para também cobrar uma tarifa à vista que compensasse o risco de crédito, mantendo a mesma taxa da operação.

Com a cobrança da tarifa, a perda seria compensada. Outra vantagem da tarifa sobre o incremento da taxa ativa seria que, com o pagamento da tarifa á vista, o cliente passaria a ter “algo mais a perder” se ele não honrasse seus compromissos, podendo, em tese, desestimular sua inadimplência.

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O modelo bancário de precificação acumulava os itens de despesa e de receita apurados para o produto ou carteira de financiamento. No final, verificava a diferença entre ambos (spread líquido). Se o spread fosse negativo, era indicativo, em primeiro lugar, de que variáveis sobre as quais o banco tinha domínio deveriam ser investigadas e trazidas aos limites de tolerância admissíveis.

Essas variáveis problemáticas podiam ser: risco de crédito acima do dimensionado na origem da operação; descontrole das despesas operacionais; alto custo do passivo; alto risco de mercado ou alto risco de transformação de funding; tarifas mal dimensionadas para o produto; taxa ativa da operação mal dimensionada. O risco de transformação ocorreria quando o passivo de menor custo financeiro direcionado para a operação tivesse vencimento inferior ao ativo correspondente. Nesta hipótese, após o vencimento (resgate) do passivo, a instituição completaria o prazo de duração (duration) do ativo lastreando-o com dinheiro captado no mercado aberto a custo SELIC, elevando, portanto, o custo do funding. Se, depois dessa investigação, se verificasse que a operação estava bem estruturada e adequadamente gerenciada, e mesmo assim o spread estava negativo, concluir-se-ia que ela seria inviável nas dadas condições de mercado. Caso fosse parte de uma política pública, exigiria um subsídio, para chegar ao ponto de equilíbrio e se manter no portfólio do banco público.

O relatório demonstrativo da formação da taxa de juros de empréstimos apresentava, primeiro, as despesas financeiras constituídas por custo do funding (o custo do passivo), despesas de origem (despesas cadastrais, elaboração do contrato, etc.), despesas mensais (despesas operacionais com sistemas, cobrança, etc.), risco de transformação (risco de não gerar fluxo no ativo que honrasse o passivo) e FGC (obrigação do Fundo Garantidor do Crédito). As despesas tributárias computavam PASEP, CONFINS, CSLL, IR, ISSQN. A “cunha fiscal” era ainda maior para os clientes, em função da CPMF e do IOF que eles pagavam, cuja responsabilidade dos bancos era apenas agir como agentes arrecadadores. A “perda sobre o valor financiado” era o custo referente à expectativa de perda, devido à avaliação do risco desse crédito, segundo seu histórico. O custo de capital (patrimônio de referência) era o retorno mínimo exigido pelo controlador (acionista majoritário) para seu capital, geralmente, o custo de oportunidade do capital – SELIC.

Além disso, para que o banco pudesse conceder crédito, era necessário que tivesse capital que o suportasse, pelo Acordo da Basiléia (11% do patrimônio líquido). No caso de crédito imobiliário, o Patrimônio Líquido Exigível para cada R$ 100,00 em crédito, era de 50% (porque tinha garantia imobiliária) vezes 11% (fator de risco), logo, 5,5%. Portanto, o acionista aportaria R$ 5,50 para cada R$ 100,00 financiado e, sobre este capital, exigiria, por exemplo, um retorno de 15% aa para a operação, durante o seu prazo: 15% de retorno requeria ter pelo menos uma taxa de 0,83% aa.

As receitas eram constituídas pela soma da taxa contratual (taxa ativa da operação para calcular a prestação), da tarifa à vista cobrada do mutuário e da taxa à vista de subsídio, para cobrir risco até o break even e para ressarcimento das despesas em caso de repasse de fundo social, p.ex., FGTS. Logo, descontando dessas receitas as citadas

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despesas, o resultado da operação era o spread líquido. As taxas apuradas eram demonstradas como efetivas ao ano e eram capitalizadas.

Na prática bancária, portanto, os spreads eram resultados ex-post da diferença entre as receitas e as despesas apuradas, diretamente, por informações levantadas em cada banco. Observando isso, investigar “os determinantes macroeconômicos do spread bancário” seria apenas focar o custo do funding (baseado em % do CDI/SELIC) e recusar a determinação desses fundamentos microeconômicos. Focalizando estes, poderia se perceber que, em um oligopólio diferenciado, a competição por clientes se dá menos pelos preços dos produtos e mais pela qualidade específica dos serviços oferecidos por cada banco, ou seja, pelo atendimento.

A estrutura básica dos mercados bancários, no Brasil, é caracterizada pela coexistência de poucos grandes bancos com um grande número de bancos menores que constituem uma franja. Aqueles são definidos como os que, na ordem do ranking, conjuntamente, controlam mais da metade dos depósitos totais. Esta estrutura de mercado é sustentada por investimentos competitivos em qualidade de serviços prestados. O nível de qualidade oferecido eleva-se de acordo com o tamanho do mercado e os bancos dominantes providenciam maior qualidade do que os bancos marginais.

A formação de preços na estrutura de mercado oligopolista é determinada pela capacidade das firmas de dirigirem o comportamento da demanda e de preverem as ações e reações de seus potenciais concorrentes no mercado. Entre os fatores que criam barreiras à entrada de novas firmas, em um oligopólio, salientam-se: a existência de grandes economias de escala; a diferenciação do produto, associada à promoção de vendas com publicidade, na qual também se obtém economias de escala; as vantagens absolutas nos custos das firmas já existentes sobre as entrantes, tendo em vista a possibilidade de acessos exclusivos à tecnologia, rede de fornecedores e clientes; os fatores de caráter institucional tipo patentes, franquias e contratos governamentais; etc.

Observando esse padrão competitivo também entre os bancos brasileiros, os analistas desse mercado oligopolista diferenciado e fortemente concentrado em um pequeno grupo de grandes empresas deveriam atentar para uns pontos equivocados que têm aparecido nessa polêmica sobre a formação de preços no sistema financeiro. Primeiro, a disputa por relacionamentos fiéis com novos clientes é renhida. A competição ocorre através de localização de agências, PABs, ATMs, qualidade dos serviços oferecidos (principalmente em automação) e segurança, ou seja, porte do banco. As pessoas físicas escolhem seus bancos por isso, se não estão em folhas de pagamento de empresas que negociam reciprocidade. Permanecem fiéis a eles, apesar das eventuais elevações de suas taxas de juros. Aos pequenos bancos sem rede restam “nichos de mercado”. Quando quase a totalidade da população economicamente ativa urbana já é correntista, sobra a disputa de carteira de clientes através de aquisições e fusões bancárias. Os maiores bancos aumentam suas economias de escala com a concentração de clientes e o corte de estruturas desnecessárias em termos de pessoal e agências.

A concorrência por clientes, portanto, não se dá de acordo com modelos abstratos de competição perfeita em torno de “menores juros e tarifas”, mas sim em

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disponibilidade e qualidade de produtos e serviços bancários. Em uma estrutura de mercado caracterizada por um oligopólio diferenciado, os líderes sempre foram pioneiros na automação bancária e no atendimento eletrônico massivo.

Outro ponto equivocado na polêmica sobre a formação de preços no sistema bancário brasileiro diz respeito à taxa fixada pelo COPOM. Ela tem sim importância fundamental como custo de oportunidade. Qualquer funding captado com juros abaixo dela, inclusive os depósitos à vista captados a “custo zero”, tem seu custo contabilizado como “SELIC”, que seria o mínimo que um banco ganharia com o dinheiro disponível. A partir desse patamar, ele forma seu spread, somando as despesas administrativas, as tributárias, a perda esperada com inadimplência e a margem líquida. Geralmente, a elevação do custo do funding é repassada para o cliente. Entretanto, essa formação da taxa de juros não é livre, nas operações direcionadas, realizadas principalmente por bancos públicos.

As instituições tentam evitar “guerra de preços”, que desandaria o mercado. Competem fortemente, mas através das inovações financeiras e oferecimento de outros serviços, mais do que em preços. Quanto a esses, cada qual observa seu “cluster” (os competidores diretos de mesmo porte) e tentam não se afastar muito dos preços (juros e tarifas) deles. Esse conluio surge de forma espontânea ou informal. Se sua taxa de juros for fixada acima da de seus concorrentes, só maus clientes (rejeitados por eles) aceitarão contratá-la, pois intencionam mesmo não pagá-la... Se for fixada sistematicamente muito abaixo, haverá custo de oportunidade, e o controlador poderá despedir o precificador! “É melhor errar de maneira coletiva, onde você se apresenta como ‘vítima dos acontecimentos’ que atingiram a todos, do que individualmente, quando você não terá uma boa desculpa”: esta é a máxima dos profissionais do mercado financeiro.

Taxas de juros baixas não implicam de imediato em expansão da demanda do crédito. Elas não são o determinante em primeira instância da contratação de um crédito pessoal, pois são decisivos para uma pessoa física fatores como necessidades básicas de consumo, motivo precaução (segurança no emprego), custo de oportunidade do capital próprio, restrição cadastral e prazo, que estabelece o comprometimento da renda mensal com prestações.

Já decisões de investimentos (e demanda de crédito por pessoa jurídica) dependem também de outros fatores. O primeiro é o risco crescente com o grau de endividamento, ou seja, depende da capacidade de autofinanciamento. O estado de confiança, as expectativas de lucros e as perspectivas de vendas também devem ser consideradas. Logicamente, o grau de utilização da capacidade produtiva (disponibilidade ou não de capacidade ociosa) é levado em conta. Pesa também a onda tecnológica, isto é, se é um projeto inovador com alta taxa de retorno.

A decisão de concessão de empréstimos não é unilateral. A oferta efetiva ex-post (não a potencial, ex-ante) depende da demanda por crédito. Esta, por sua vez, relaciona-se com as condições em que os bancos estão dispostos a ofertar empréstimos face às condições dos clientes. Em outras palavras, nenhum cliente (pessoa jurídica) responsável demandará crédito se não tiver uma perspectiva segura de conseguir pagá-lo. Para isso, o

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rendimento esperado deve ser superior ao custo do endividamento a ser assumido. Isso depende das perspectivas macroeconômicas para a realização de seus planos de vendas.

7.4. Perspectivas dos negócios bancários no Brasil

O Brasil dos bancos não pode ser apenas o Brasil dos brancos!

Esta talvez seja a grande lição da história bancária brasileira: todo banco que se volta, exclusivamente, ao atendimento da “elite branca” (minoria composta pelo conjunto de 565 mil famílias correspondente ao 1% mais rico, cujo rendimento médio mensal era de R$ 7.688,00 per capita, em 2006) torna sua presença insignificante, para o povo brasileiro, embora o banqueiro possa ser muito bem sucedido em termos pessoais, principalmente, vendendo seu banco para estrangeiros. Embranquece, enriquece, desaparece... da construção da Nação!

A herança histórica do penúltimo país do mundo ocidental a abolir a escravidão (o último foi Serra Leoa, em 1929) e o atraso histórico na construção de uma Nação com democracia multiétnica, entretanto, não devem ser analisados, estrategicamente, como um determinismo histórico inescapável. As conquistas democráticas e o progresso social, sim, devem ser vistos como inelutáveis, na medida em que serão, com erros e acertos, com avanços e atrasos, resultados de luta permanente na sociedade brasileira.

A estratégia de um banco com significado, na história brasileira, manifesta-se quando ele se torna uma instituição nacional. Suas atividades devem ter uma abrangência geográfica e social de tal ordem que ele seja um componente fundamental do sistema de pagamentos no país. Em outras palavras, quanto mais clientes tiver, ricos, remediados ou pobres, empresas grandes ou pequenas e médias empresas, governos de todas as instâncias, mais o multiplicador monetário estará internalizado e mais poder de criar, endogenamente, moeda terá. Montado o conjunto de sistemas, quanto mais colocar o input dinheiro, mais output dinheiro produzirá.

Neste tópico final, nossa visão estará voltada para o futuro do Brasil dos bancos. Olhar para frente não significa que nossos olhos abandonarão o retrovisor: a análise das tendências históricas nos advertirá sobre o que os brasileiros aguardarão no futuro. Para tanto, vamos sintetizar, simplesmente, em quatro pontos significantes, quatro setores de atividades com as quais o relacionamento bancário poderá cooperar, financeiramente, para a construção da Nação mais desenvolvida e menos desigual que queremos: o agronegócio, a urbanização, a massificação do consumo e a inserção internacional. Na tradição histórica, esses eram os focos dos bancos por origem de capital, respectivamente, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, bancos nacionais privados e bancos estrangeiros. No futuro, todos eles, múltiplos e concentrados, deverão explorar tudo.

7.4.1. Agronegócio, crédito agrícola e seguro rural

Na visão oficial do Ministério da Agricultura, o agronegócio brasileiro é apresentado como uma oportunidade de investimentos. “Moderno, eficiente e competitivo, o agronegócio brasileiro é uma atividade próspera, segura e rentável. Com um clima diversificado, chuvas regulares, energia solar abundante e quase 13% de toda a

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água doce disponível no planeta, o Brasil tem 388 milhões de hectares de terras agricultáveis férteis e de alta produtividade, dos quais 90 milhões ainda não foram explorados”.

O setor agrícola mantém o superávit do balanço comercial e ainda cobre o déficit dos demais setores. Recentemente, as vendas do agronegócio foram beneficiadas pelas cotações recordes das principais commodities agrícolas e pela ampliação de mercados para o complexo de carnes, fatores que compensaram a apreciação do real ante o dólar. Esses resultados levaram a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) a prever que o país será o maior produtor mundial de alimentos na próxima década. Este setor é estratégico sob os pontos de vista interno e externo, isto é, da geopolítica e das exportações brasileiras, inclusive considerando a crise de alimentos mundial.

O Brasil é um dos líderes mundiais na produção e exportação de vários produtos agropecuários. É o primeiro produtor e exportador de café, açúcar, álcool e sucos de frutas. Além disso, lidera o ranking das vendas externas de soja, carne bovina, carne de frango, tabaco, couro e calçados de couro. As projeções indicam que o país também será, em pouco tempo, o principal pólo mundial de produção de algodão e biocombustíveis, feitos a partir de cana-de-açúcar e óleos vegetais. Milho, arroz, frutas frescas, cacau, castanhas, nozes, além de suínos e pescados, são destaques no agronegócio brasileiro. A atividade agrícola foi responsável por 16,6 milhões de pessoas ocupadas, ou seja, 18,3% do contingente total, segundo a PNAD/IBGE 2007.

O desempenho das exportações do setor e a oferta crescente de empregos na cadeia produtiva devem ser atribuídos também ao desenvolvimento científico-tecnológico e à modernização da atividade rural. Esses avanços foram obtidos por intermédio de pesquisas da EMBRAPA e da expansão da indústria de máquinas e implementos, incentivada pela Agrishow (Feira Dinâmica de Tecnologia Agrícola) e pela Moderfrota. Este é o programa do governo federal, com recursos repassados pelo BNDES, para substituir o sucateado parque de velhas máquinas agrícolas pela geração nascida da Agrishow, feiras de competição entre máquinas agrícolas, realizadas desde 1993 em Ribeirão Preto. Eles contribuíram igualmente para transformar o país em uma das maiores plataformas mundiais do agronegócio.

A atividade agropecuária, entretanto, é diferente da realizada em outros setores, em função dos riscos envolvidos, pois trabalha com produtos biológicos. Além disso, ela exige ciclos de produção relativamente mais longos. São períodos de safras e entressafras em que se sujeita à volatilidade do clima e dos preços de mercado. Em todo o mundo, o seguro rural é um dos mais importantes instrumentos de política agrícola. O produtor protege-se contra perdas decorrentes, principalmente, de fenômenos climáticos adversos. Surpreende até que a excelência do estado atual do agronegócio brasileiro tenha sido alcançada, praticamente, sem adoção desse tipo de seguro.

O subsídio agrícola no Brasil é relativamente diminuto face às experiências de outros países, sendo apenas equivalente de 3 a 4% da renda agrícola. Nos Estados Unidos, atinge 18%. Na Europa, chega a 34% dessa renda. Aqui, o subsídio está,

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basicamente, no crédito agrícola. Este possui taxa de juros não só abaixo da taxa de referência do mercado de dinheiro, como também chega a ser inferior às variações do índice geral de preços. Dessa forma, há uma tradição histórica dos produtores rurais adotarem a “regra do terço” em seus financiamentos: 1/3 com recursos próprios, 1/3 em crédito comercial dos fornecedores de insumos e maquinarias e 1/3 em crédito bancário.

Contra o risco do devedor não receber a receita esperada e não ter condições de pagamento de sua dívida adotou-se um protecionismo governamental através de vários mecanismos de “socialização das perdas”. Entre 1964 e 1986, era responsabilidade da “Conta de Movimento” do Banco do Brasil no Banco Central do Brasil. Uma década depois de sua extinção, seguida de perdões da dívida rural, houve a necessidade da primeira grande capitalização do BB, em 1996, e da reestruturação patrimonial em 2001. O ajuste, conjuntamente com a automação bancária, envolveu também o ônus social do corte de 1/3 dos funcionários: de 151 mil para 99 mil, entre 1993 e 1996. Desde então, o Tesouro Nacional evita transformar um problema de natureza fiscal (prorrogação das dívidas rurais) em um bancário, compensando o BB com a receita de equalização dos juros.

Houve, em contrapartida, “socialização dos benefícios”. O setor agrícola foi bastante penalizado nos planos de estabilização da inflação dos anos 90. As correções das dívidas dos produtores rurais e dos preços agrícolas por indexadores distintos levaram-nos à fragilidade financeira. No Plano Real, repetiu-se o descasamento e mais dívida escritural: as dívidas foram corrigidas pela TR e quase dobraram em um ano, enquanto os preços agrícolas foram controlados, em nome do combate à inflação. Era a chamada “ancora verde do Real”.

Na década atual, a estimativa de receita com a safra 2004-2005 foi frustrada pela seca, pela praga da ferrugem na soja, pela queda de preços no mercado mundial e pela apreciação da moeda nacional. Além disso, um problema localizado de febra aftosa provocou o fechamento do mercado para a exportação brasileira de carne de gado.

Dado que a produção de alimentos (e de commodities exportáveis) é prioritária, criou-se um consenso entre os devedores rurais: sempre “passar a conta para a viúva”, ou seja, o Tesouro Nacional. Portanto, há um trauma social entre os contribuintes: quando é arregimentada toda força parlamentar da bancada ruralista, sabe-se que haverá nova renegociação da dívida rural. O risco de imagem pública se soma aos outros riscos. É necessária uma proteção não apenas face ao risco climático.

Necessita-se também de uma política preventiva contra as súbitas oscilações de renda agrícola que afetam não só os produtores rurais, mas também os credores, as comunidades locais e, em última análise, o próprio Tesouro Nacional. A última renegociação de dívida rural, aprovada pelo Congresso em agosto de 2008, constituiu a maior ajuda financeira, em toda a história, a agricultores endividados. O pacote envolveu R$ 75 bilhões em dívidas, acumuladas desde 1980, que poderiam ser renegociadas com descontos do saldo devedor, redução dos juros, ampliação de prazos, e quitadas com abatimento de até 80% dos débitos. No total, os agricultores poderiam ter um desconto de até R$ 9 bilhões nas dívidas, beneficiando 2,8 milhões de produtores, dos quais cerca de

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1,8 milhão de agricultores familiares e assentados da reforma agrária. Obviamente, esses benefícios provocariam toda sorte de oportunismo e, posteriormente, “risco moral”. Todos os devedores, necessitando ou não, passariam a querer renegociar suas dívidas.

Por isso, a despeito de suas excelentes transformações tecnológicas e comerciais, ocorridas na economia rural nos últimos anos, os bancos privados ainda se mostravam reticentes a financiar, voluntariamente, o setor agrícola. A precificação segundo critério de mercado contabilizaria, certamente, esse risco sistemático de “perdão das dívidas”. Um banco não podia perder recursos que terceiros lhe confiavam.

A primeira perspectiva para o futuro dos negócios bancários no Brasil aponta, então, a adoção de uma política preventiva, seja via seguro rural, seja via instrumentos de hedge no mercado de derivativos. Em dezembro de 2003, foi implantada uma nova legislação referente a esse seguro, cujo objetivo principal é garantir 70% da renda em caso de sinistro climático. O Banco do Brasil está condicionando o financiamento de custeio à aquisição do seguro.

Na Itália, Austrália, Canadá e Estados Unidos, por exemplo, o Estado chega a subsidiar até 90% do prêmio do seguro. O governo brasileiro pretende adotar mecanismos capazes de assegurar a convergência entre o valor do prêmio que o produtor pode pagar e o que a seguradora julga economicamente viável. Estima-se que o governo federal entrará com 50% e o estadual com 25% do valor.

Na gestão de riscos de mercado, não apenas de preços, mas incorporando a prática de realização de produção contratada com base nos mecanismos de venda antecipada, na BM&F, o governo federal também bancará parte dos custos. O cumprimento dos contratos de opções nos futuros exigirá subsídio para as margens de segurança, ou divisão de eventual ganho, em uma repartição equânime da conta.

Logo, os riscos climáticos e sanitários seriam mitigados com o seguro rural e os riscos de mercado, com o mercado formal de derivativos agropecuários em operações de hedge. As transações com derivativos envolveriam instrumentos contratuais de venda antecipada e proteção contra variações cambiais. Tratar-se-ia de uma transição histórica: da economia de endividamento, via Banco do Brasil, para uma economia de mercado de capitais, via seguradoras ou BM&F. Os bancos dariam a consultoria técnica e o apoio operacional através de suas coligadas.

Entretanto, proteger contra riscos futuros custa caro. Exigirá, principalmente no caso da agricultura familiar, profissionalização, formalização, normatização, cumprimento das regras contratuais, banco de dados acessível e confiável. Haverá necessidade também de uma mudança cultural nos produtores rurais brasileiros: no período de “vacas gordas” (com bons preços), fazer a capitalização necessária para suportar o “período de vacas magras”. Isto porque, nesse cenário futuro, o subsídio ao prêmio de seguro deverá ser o único subsídio público para a agropecuária no Brasil. Os benefícios da maior credibilidade de contratos e dos menores custos públicos superarão os custos com a equalização de juros do crédito rural oficial, as securitizações e as renegociações da dívida rural.

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7.4.2. Urbanização, crédito imobiliário e securitização

Após a extinção da escravidão no Brasil, em 1888, os descendentes dos escravos, assim como os dos imigrantes europeus e asiáticos pobres, ficaram predominantemente na zona rural, em péssimas condições de sobrevivência, sem posse de terra. Não tinham a propriedade que lhes daria a plena cidadania em uma economia de mercado. Somente na segunda metade do século XX, partiram para as periferias das grandes capitais, em busca da posse de uma moradia, do acesso a serviços públicos e da conquista de emprego. Emigraram logo que as “BRs” (grandes estradas federais) abriram-se aos “paus-de-arara” (transporte de pessoas em caminhões).

Negros libertos tinham sido usados em tropas pelo exército, na mais violenta Guerra Civil do Brasil, a “guerra do fim do mundo”, ocorrida entre 1896 e 1897 em Canudos, no sertão da Bahia. Nela, milhares de sertanejos pobres, seguidores de um líder messiânico, foram massacrados. A “Maldição de Antônio Conselheiro” foi que os combatentes de Canudos, que lá tinham se instalado em um morro conhecido como Favella (nome da vegetação do lugar), quando voltaram ao Rio, sem receberem uma posse de terra legalizada, instalaram-se no Morro da Providência, chamando sua comunidade de favela.

A massa de emigrantes rurais, descendentes de escravos e/ou retirantes da seca, enfim, sem posse da terra, dirigiu-se para as cidades, em busca de esperança de vida (acesso à educação e à saúde) e de “realização do sonho da casa própria”: adquirir a propriedade que lhe daria status de cidadão. Em 1940, em torno de 31% da população total morava em zona urbana. No final do século XX, esse percentual já era 81%. Em 2006, estava em 84%. A explosão urbana foi a contrapartida de aqui não ter sido feita a reforma fundiária, nem rural, nem urbana: sem terra no campo, sem teto na cidade...

No início do século XXI, o país tinha 16.433 favelas, mocambos, palafitas ou outras residências em precárias condições, com 2.362.708 domicílios cadastrados, ou seja, cerca de 9,450 milhões de moradores nesses habitações. Havia favelas em pelo menos 23% dos 5.560 municípios brasileiros, inclusive em todos os 32 municípios com mais de 500 mil habitantes.

Esses números foram estimados de acordo com critérios como o acesso a saneamento e a precariedade da moradia. No entanto, se fossem considerados itens como a irregularidade de posse, o total subiria para 51,7 milhões de “favelados”, tornando o Brasil o país com a terceira maior população favelada do mundo, atrás apenas de Índia e China. Isto mostrou o livro "Planeta Favela", do urbanista norte-americano Mike Davis, publicado em outubro de 2006, que foi originado de pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Tornou-se consenso entre especialistas que não basta urbanizar favelas. É preciso integrá-las às cidades, com transporte, geração de renda e educação. Outro consenso é a palavra de ordem: “favela é cidade: não à remoção". Não se trata de discutir mais se as favelas são responsáveis pela degradação da cidade e favorecem a violência, como

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costuma ser argumentado por empresários do mercado imobiliário, fazendo lobbies em busca de oportunidades de negócios.

O programa HABITAT-ONU (Programa da Organização das Nações Unidas para Assentamentos Humanos), por exemplo, é contra a remoção das favelas, a não ser em casos específicos como riscos ambientais, desastres naturais ou se a comunidade apresentar uma conduta anti-social. A ONU vem acompanhando a questão dos despejos das comunidades desfavorecidas no mundo e também no Brasil, embora os governos brasileiros não tenham mais um programa oficial de remoção de favelas, pelo menos desde a posse dos governadores eleitos em 1982, na primeira experiência eleitoral em que foram eleitos governadores da oposição, durante o regime ditatorial. A preocupação passou a ser com os direitos humanos dos favelados, vistos desde então como vitimas da desagregação social. As remoções, nos anos 60, deixaram um saldo negativo para as populações faveladas, que perderam a proximidade com o trabalho e também a relação com a sociedade mais protegida.

A expansão acelerada das favelas correlacionou-se, no final do século XX, com o colapso do sistema de crédito habitacional no Brasil, como aponta especialista como o coordenador do Observatório das Metrópoles, Luiz César de Queiroz RIBEIRO. As duas décadas que marcaram a explosão da “moradia subnormal” coincidiram com a destruição do regime contratual do SFH pela alta inflação e a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1986, e o agravamento da depressão arquitetada pelo FMI e o Consenso de Washington, que, durante duas décadas (80 e 90), cortou emprego e renda de brasileiros.

Segundo essa linha de interpretação, a combinação dessas mazelas levou a que parte da população de baixa renda, sem outra opção de moradia, acabasse inflando as favelas. Apenas 0,8% do déficit habitacional urbano em 2005 se referiam aos lares com renda média domiciliar superior a 10 salários-mínimos. Nada menos que 90,3% estavam associados às famílias com rendimento até 3 salários mínimos e 6,0% de 3 a 5 salários mínimos. A partir desses dados da Fundação João Pinheiro, concluía-se que, no Brasil, apenas 10% das famílias que demandavam por moradia tinham condições de pagar por ela. Os 90% restantes não tinham nem renda nem condições de formalidade para assumir um financiamento por 20 ou mesmo 30 anos.

Gerou-se um círculo vicioso: a falta de financiamento empurrava as pessoas para a habitação precária que, por sua vez, inibia a oferta de crédito. Os especialistas apontavam como entraves ao acesso a crédito a insuficiência de renda e a informalidade no mercado de trabalho. As estatísticas confirmavam que as favelas tinham taxas de desemprego muito superiores às dos “moradores do asfalto”, o emprego sem carteira assinada era maior e os salários eram menores.

O mercado de crédito privado tem ainda aversão ao risco de financiar famílias que ganham menos de 5 salários-mínimos. Este segmento depende de subsídio, mas, com o fim do BNH, em 1986, e o repasse de seus problemas para a Caixa Econômica Federal, o poder público ficou sem foco no setor de habitação até 2004.

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O mecanismo criado, em 1964, para o financiamento da aquisição da casa própria pela massa de emigrantes rurais, descendentes de escravos e/ou retirantes da seca, enfim, “despossuídos (e sem-terra)”, praticamente tinha se esgotado, durante o regime de alta inflação. Surgiu um descasamento contratual entre o custo do passivo (correção monetária/TR e juros), base de remuneração da poupança e do FGTS, relativamente à possibilidade de repasse às prestações. A massa salarial não subiu na mesma proporção. O resultado disso foi a elevação dos saldos devedores do FCVS.

Em conseqüência, o financiamento imobiliário chegou a uma encruzilhada. Além de ter essa dívida do FCVS não paga pelo Tesouro Nacional, a procura por empréstimos para a compra da casa própria aumentava, mas as principais fontes de recursos dos bancos, seja o FGTS (“poupança compulsória”), seja a caderneta de poupança (“poupança voluntária”), para lastrear a concessão do crédito, não cresciam. Devido à estagflação e ao crescimento da “indústria dos fundos de investimento” (fruto da expansão da dívida pública interna), nos anos 90, as linhas de crédito imobiliário reduziram-se.

As famílias de baixa renda dependiam de recursos orçamentários da União, dos Estados e dos Municípios, para subsídios ao pagamento de moradias, além de FGTS e FAR (Fundo de Arrendamento Residencial). O nível de renda intermediário conseguia pagar crédito do SFH, desde que fosse parcialmente subsidiado. A classe média teria de contar com mecanismos sustentáveis do SFI, baseados em recursos captados no mercado, via depósitos de poupança, letras hipotecárias, fundos de investimento imobiliário, fundos de recebíveis imobiliários, etc.

Somente com a retomada do crescimento econômico e do emprego formal, no caso do FGTS, e do espírito público, no caso da poupança, voltaram os financiamentos imobiliários. No último trimestre de 2005, a então direção da Caixa Econômica Federal assumiu a decisão de fazer política social (e não mais política financeira estrita), retomando os financiamentos com depósitos de poupança. Ela possuía um “market-share” de 31% em sua captação, mas eles estavam suspensos desde 1992. Argumentava-se, antes, que simplesmente não era necessário, pois ela estava “sobreaplicada” em crédito imobiliário: tinha acima da exigência de direcionamento de 65% desses depósitos. Com essa decisão estratégica, novamente, o crédito imobiliário deslanchou.

Com o sucesso da retomada, logo se passou a ter um crescimento mais elevado da contratação (fluxo) do que do desembolso (estoque) do crédito imobiliário. A captação da poupança, devido à queda da taxa de juros básica e à conseqüente perda de competitividade dos fundos mútuos de investimentos, também ficou com um ritmo mais rápido do que o do cumprimento da exigibilidade de 65% de seu saldo lastrear estoque de crédito imobiliário. Dada essa exigibilidade, não havia condições de oferta por parte dos bancos de crédito para securitização, apesar de haver demanda das securitizadoras para emitir e dos investidores para adquirir Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI).

O desafio futuro dos bancos no Brasil, na área de crédito imobiliário, será a junção dessas “economias” (a de endividamento e a de mercado de capitais) via securitização. Este termo é oriundo da palavra inglesa “security”, significando o processo

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de transformação de uma dívida com determinado credor em dívida com compradores de títulos ou contratos originados no montante dessa dívida. Na realidade, trata-se da conversão de empréstimos bancários (e outros ativos) em títulos (securities) para a venda a investidores.

Securitização é um anglicismo. Significa representar ativos por meio de securities (valores mobiliários), por exemplo, os bancos venderem seus créditos imobiliários em um mercado secundário para investidores, via CRI.

Os principais atores nessa trama são: os poupadores populares (que fornecem o funding, recursos para os empréstimos), os ofertantes de crédito imobiliário (bancos credores), os demandantes com capacidade de pagamento de crédito imobiliário (mutuários), as companhias securitizadoras (emissoras de CRI), os investidores institucionais (e/ou qualificados, inclusive estrangeiros), que são os fundos de pensão, fundos de investimentos, private (alta renda).

Seus interesses têm de ser conciliados. O dos devedores é ter crédito disponível em condição de pagamento de acordo com a evolução do salário real. Os bancos buscam compensar spread baixo com grande escala (rentabilidade), reciclagem dos ativos imobiliários (liquidez) e baixo risco de perda (segurança). O objetivo maior dos poupadores populares é a manutenção do valor real de sua poupança. As securitizadoras provocam o encontro entre a oferta de crédito imobiliário para securitização e a demanda de CRI por parte dos investidores. Quanto a estes, os fundos de pensão desejam CRI com rentabilidade acima do atuarial em longo prazo e baixo risco de perda, os fundos de investimentos têm preferência por liquidez, e os private, por isenção fiscal.

A segunda perspectiva para o futuro dos negócios bancários no Brasil aponta, então, para a mudança do modelo de funcionamento do crédito imobiliário no país, no que se refere aos mecanismos de mercado, o que exclui os programas de habitações de interesse social. A passagem do modelo de direcionamento (“repressão financeira”) para um de auto-regulação do mercado exige ritmo gradual em vez de “tratamento de choque” via “pacote” de medidas de implantação imediatas. Trata-se de continuar a mudança progressiva da “cultura inflacionária” e das condições sociais no país.

O esquecimento da “memória inflacionária” exigiria, entre outras medidas, eliminar, gradualmente, indexadores tipo TR, tanto de passivos quanto de ativos. Fazer a transição de taxas pós-fixadas para prefixadas. Trocar a emissão de LCI, captação de passivos, para a de CRI, reciclagem de ativos. Reduzir o “curto prazismo” ou a preferência por liquidez. Trocar bancos por investidores institucionais na função de carregar ativos de longo prazo.

Quando houver vantagem competitiva da poupança face a fundos de investimentos de varejo, ela poderá estar atraindo capital volátil, que entra nos passivos dos bancos por especulação e sai no primeiro susto. Esse capital não constitui um funding compatível com o longo prazo dos financiamentos habitacionais. O cumprimento da exigibilidade do seu direcionamento com base no estoque de crédito imobiliário de cada

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banco e não no fluxo de concessão torna-se, então, uma trava para se fazer securitização com o saldo dos empréstimos.

Caberia, então, retirar essa trava, estabelecendo uma regra de transição até o momento de extinção da exigibilidade de direcionamento, isto é, quando o crédito “voluntário” for, persistentemente, superior ao “compulsório”. Medida transitória seria contabilizar o cumprimento da exigibilidade (65% da poupança) através da “originação”, isto é, pela soma do saldo de crédito imobiliário em carteira e da carteira vendida, excluindo, portanto, a carteira adquirida ou os CRI comprados de outros bancos.

Com isso, voltaria haver vantagens, para os bancos concessores originais do crédito, de emissão de CRI como realização de lucro antecipada, transferência de risco de inadimplência e maior rotação de capital com ganho de liquidez para concessão de novos créditos imobiliários. Nessa junção entre a “economia de endividamento” e a “economia de mercado de capitais”, trocando bancos por investidores institucionais na função de carregar ativos de longo prazo, estará um grande avanço para o sistema bancário brasileiro.

7.4.3. Sociedade de consumo massificado, crédito ao consumidor e inserção internacional

Se mantiver, continuamente, uma política de crescimento com mobilidade social, o Brasil terá a possibilidade ser um dos maiores mercados consumidores do mundo, atraindo com sua escala mais investimentos diretos estrangeiros, que podem multiplicar renda e empregos. Essa economia de escala deve ser a meta de todos os empresários no Brasil, seja do setor produtivo, seja do setor financeiro.

Os manuais de economia ensinam que há economia de escala quando os custos médios de longo prazo diminuem ao aumentar a produção, tornando as firmas maiores mais eficientes do que as menores. Esse conceito é microeconômico. As economias internas de escala dependem das eficiências introduzidas por uma empresa individual à medida que ela se expande. Pode, por exemplo, desfrutar de uma produção em massa mais especializada, empregar máquinas de grande capacidade produtiva, fazer compras e vendas mais econômicas, obter melhores créditos, melhorar a organização empresarial, etc. Já as economias externas à empresa dependem do desenvolvimento geral da nação. Envolvem a maior disponibilidade de mão de obra treinada, de fornecedores de matérias primas e peças de reposição, de serviços de transporte, de infra-estrutura em água e esgoto, estradas, energia, etc.

Mas podemos ampliar o conceito para “economia com escala”, em termos macroeconômicos. Refere-se à economia que alcança escala competitiva no âmbito internacional. É o caso da economia brasileira.

Se cruzarmos o ranking das dez maiores economias por PIB (considerando a paridade de poder de compra), o das vinte e cinco maiores economias por mercado externo (exportação) e o das sete maiores economias por mercado interno (número de consumidores com paridade de poder de compra anual acima de US$ 7 mil), as únicas economias que se encontram nos três rankings são: Estados Unidos, China, Japão,

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Alemanha, Rússia e... Brasil! Mas se acrescentarmos a esse cruzamento de rankings, os de território e população, até a posição do Brasil, os únicos países que aparecem nos cinco na sua frente são Estados Unidos e China. O que isso revela? Antes de mais nada, a potencialidade de crescimento e inserção internacional do país. Mas revela também uma estratégia nacional a ser perseguida, para alcançar essa meta. E esta estratégia é conhecida por ser logicamente deduzida das estatísticas disponíveis: crescimento e melhor distribuição da renda, com competitividade internacional.

Quanto ao território, em extensão, apenas Rússia, Canadá, Estados Unidos e China possuem áreas maiores. A área brasileira é maior inclusive que a da União Européia: 8.511.965 km2 contra 4.324.782 km2. Entretanto, o clima de latitudes diversas, o solo fértil, a disponibilidade de água e a biodiversidade dão ao Brasil uma condição singular para o desenvolvimento da agropecuária e de todas as demais atividades relacionadas ao agronegócio. O país é um dos poucos do mundo onde é possível plantar e criar animais em áreas temperadas e tropicais. Favorecida pela natureza, a agricultura brasileira pode obter até duas safras anuais de grãos, enquanto a pecuária se estende dos campos do Sul ao Pantanal de Mato Grosso, além dos campos das (Minas) Gerais.

No que se refere à população, a última estimativa, realizada em 2008, colocava o Brasil com quase 190 milhões de habitantes. O mundo tinha alcançado 6,6 bilhões, a China, 1,322 bilhão, a Índia 1,130 bilhão, ou seja, ambos os países, somados, tinham 37% da população mundial. Os países que constituíam a União Européia somavam 490 milhões de habitantes. Depois desses, apenas os Estados Unidos (301 milhões) e a Indonésia (235 milhões) estavam com população maior. Além desses, Paquistão (165 milhões), Bangladesh (150 milhões), Rússia (141 milhões), Nigéria (135 milhões), Japão (127 milhões) e México (108 milhões) tinham povos com mais de 100 milhões de pessoas.

O mundo, em 2006, já possuía um Produto Interno Bruto (PIB), considerando a paridade do poder de compra (PPC), próximo de US$ 66 trilhões. A União Européia ultrapassava em muito pouco o PIB PPC dos Estados Unidos: US$ 13,080 trilhões contra US$ 13,060 trilhões. O PIB PPC da China já alcançava US$ 10,2 trilhões, bem acima dos de dois outros países asiáticos, o do Japão (US$ 4,2 trilhões) e o da Índia (US$ 4,1 trilhões). Depois, vinham grandes economias européias, as da Alemanha (US$ 2,6 trilhões), da Inglaterra (US$ 1,928 trilhão), da França (US$ 1,902 trilhão), da Itália (US$ 1,756 trilhão) e da Rússia (US$ 1,746 trilhão). Em anos anteriores, o PIB PPC do Brasil era maior do que o russo, o que o colocava em 9º lugar. Com menor taxa de crescimento, perdeu esse posto, por ter alcançado apenas US$ 1,655 trilhão. Mas não era, absolutamente, desprezível, pois era bem acima do PIB PPC do 11º colocado: Coréia do Sul com US$ 1,196 trilhão. Depois, países com PIB PPC acima de 1 trilhão de dólares, havia apenas o Canadá (US$ 1,181 trilhão), o México (US$ 1,149 trilhão) e a Espanha (US$ 1,109 trilhão).

A ordenação do ranking de PIB PPC até o décimo posto era justamente a mesma ordem do tamanho dos mercados consumidores, exceto pela intromissão do Brasil na 7ª colocação, no patamar dos mercados dos países europeus, considerados isoladamente. Em 2004, o mercado interno brasileiro (57,8 milhões de consumidores) superava, em

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número absoluto, os da França (53,1 milhões), Itália (52,8 milhões) e Reino Unido (50,4 milhões), países cujos PIBs por paridade de poder de compra eram superiores ao do Brasil, 10ª economia mundial.

O Brasil era o sétimo mercado consumidor do mundo, mas tinha apenas 33% da sua população incluída nessa "sociedade de consumo", segundo o relatório State of the World 2004, elaborado pelo WorldWatch Institute, com sede em Washington. O "público consumidor" era definido pelo relatório com base na análise do consultor Matthew Bentley, do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, que definia como "classe consumidora" as pessoas com poder de compra (renda ajustada segundo preços locais) de mais de US$ 7.000, por ano. Em primeiro lugar no ranking estavam os Estados Unidos com 242,5 milhões de integrantes da "sociedade de consumo", ou 84% da população do país. A China vinha logo em seguida, com 239,8 milhões de consumidores (19% da população). Entre os dez maiores mercados, o Japão tinha a parcela mais significativa da sua população na sociedade de consumo, 95% (ou 120,7 milhões de pessoas), o que lhe garantia o quarto lugar no ranking. Outros maiores Índia (3º lugar, com 121,9 milhões de consumidores, ou 12% da população), Alemanha (5º lugar, 76,3 milhões, 92%) e Rússia (6º lugar, 61,3 milhões, 43%) também tinham mercados consumidores maiores do que o brasileiro.

Observa-se que nesse ranking dos 10 maiores mercados, englobando 62% dos consumidores no mundo, havia três patamares: o primeiro o dos Estados Unidos e China, em torno de 240 milhões, o segundo, o da Índia e Japão, a metade daquele, em torno de 120 milhões, e o terceiro, o dos países europeus, em que o Brasil se imiscuía, era ¼ daquele, ou seja, 60 milhões. Duas conclusões parciais já poderiam ser retiradas da observação desse quadro. A primeira era que o BRIC tinha potencial para crescer, incluindo o restante de sua população no mercado consumidor, muito maior do que o dos países de capitalismo maduro, que já tinham inclusão consolidada entre 84% e 95%. A outra dizia respeito à importância estratégica, para a inserção internacional e a conquista de novos mercados, da formação de blocos econômicos regionais como o formado pelos países europeus (e o MERCOSUL). Por exemplo, apenas a integração dos mercados dos quatro países europeus presentes nesse ranking já os levava para o primeiro patamar, próximo de 240 milhões de consumidores.

Quanto ao mercado externo, com a exportação crescente, nos últimos cinco anos, o Brasil manteve 1,1% de participação, embora tenha tido, recentemente, entre os 25 maiores exportadores, as maiores taxas de crescimento ao ano, atrás apenas de país exportador de petróleo como Arábia Saudita e Rússia, ou plataforma de exportação como China. Para verificar como era disputado esse mercado externo, se o Brasil conseguisse dobrar sua exportação, por exemplo, com venda futura de petróleo, alcançando 2,2% do mercado, ceteris paribus, ainda assim ele ficaria em 14º lugar, superando apenas alguns países produtores de petróleo, outros da União Européia e asiáticos “plataformas de exportação”. O maior exportador (Alemanha com mais de US$ 1 trilhão) tinha apenas 9% de participação no mercado externo. O saldo comercial brasileiro, nos anos do governo Lula, estava sendo o 6º maior no mundo, atrás apenas do superávit da Alemanha, do Japão, da Rússia, do Canadá e da Holanda.

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A dedução óbvia dessas estatísticas é que, se o superávit das transações correntes reduz o grau de vulnerabilidade externa e eleva a capacidade de importar, o decisivo para sustentar o crescimento de uma economia é o mercado interno. Quanto a ele, o Brasil tem grande potencial de ampliação. Basta continuar, durante os próximos anos (ou décadas), a política de inclusão social. O país possuía, em 2004, cerca de 58 milhões de consumidores que atraiam o interesse de grandes empresas transnacionais. Isto representava apenas 1/3 de sua população. Se mantiver, continuamente, uma política de crescimento com distribuição de renda, pelo tamanho de sua população, terá a possibilidade ser o 5º maior mercado consumidor do mundo, abaixo apenas do dos Estados Unidos, da China, do Japão e da Índia, em 2030. Essa previsão foi reafirmada por estudo, divulgado em 19/08/08, realizado por Fernando Garcia, da FGV Projetos em parceria com a consultoria Ernst & Young. As premissas baseiam-se em indicadores econômicos de 100 países nos últimos 57 anos.

O Brasil era o quinto destino favorito para IED (Investimento Estrangeiro Direto), segundo pesquisa da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) com executivos de algumas das principais companhias multinacionais do mundo (FSP: 05/10/07). O país foi apontado por 13% dos entrevistados como um dos cinco países em que suas empresas pretendiam realizar investimentos entre 2007 e 2009. O Brasil ficou atrás de China, Índia, EUA e Rússia. O crescimento do mercado local (29%) e o seu tamanho (24%) eram os dois principais atrativos para investir no Brasil, segundo os entrevistados que escolheram o país. A qualidade da mão-de-obra ficou em terceiro lugar, com 10%. Cenário parecido tinha-se em relação aos demais membros do BRIC – grupo que, além do Brasil, contava com Rússia, Índia e China. Em todos esses países, o tamanho e o crescimento do mercado local foram os dois principais atrativos de investimento.

Tudo isso reforça o que dissemos antes: alcançar essa economia de escala, seja microeconômica, seja macroeconômica, deve ser a meta de todos os empresários no Brasil, tanto do setor produtivo, quanto do setor financeiro. Aliás, os primeiros sentiram antes a necessidade de serem competitivos, segurando preços e ampliando quantidade vendida. Agora, com ampliação da escala do mercado de crédito, os próprios bancos já começam a sentir que a política de repasse automático do aumento de custo de captação para seus preços, isto é, para as taxas de juros do crédito, não é a melhor conduta para o sistema financeiro.

O ponto-chave do sucesso da política de expansão do crédito popular, na última fase da história bancária brasileira, foi a conquista de maior capacidade competitiva por parte dos bancos líderes de mercado levar a que eles buscassem incorporar uma massa popular como seu cliente. Dessa maneira, ganharam escala (barateando custos relativos), internalizaram o multiplicador monetário (ganhando poder de comando de decisões) e diversificaram riscos (sob garantias e precificados). A terceira perspectiva para o futuro dos negócios bancários no Brasil sugere, então, a manutenção dessa política.

No recente caso brasileiro de expansão do crédito popular, recorreu-se, principalmente, às seguintes modalidades com garantia: o crédito em consignação, o crédito com penhor e o crédito com alienação fiduciária. No primeiro, há a garantia de

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desconto dos juros e amortizações diretamente da folha de pagamento dos salários ou dos benefícios previdenciários. No segundo, algum objeto valioso, por exemplo, uma jóia, o garante. No terceiro, a propriedade definitiva sobre o bem, seja imóvel, seja automóvel, só é transferida ao final do pagamento, ficando ele sujeito a uma fácil recuperação jurídica em caso de inadimplência do devedor.

Financiamento à construção de habitações populares, efetivando-se contratos de alienação fiduciária e mercado de securitização (sob adequada avaliação de risco), teria muita perspectiva futura nas políticas de crédito executadas pelos bancos. Constitui uma típica política de crescimento da renda e do emprego com distribuição de maior poder aquisitivo para a população carente de moradias próprias. Basta lembrar o poder de compra que se disponibiliza no orçamento doméstico, quando uma família realiza “o sonho da casa própria” e deixa de pagar aluguel. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2002-2003, o setor de habitação, por exemplo, respondeu por 35,5% do gasto total das 48,5 milhões de famílias. Além disso, abre a possibilidade para uma ascensão social, inclusive porque passa a possuir uma garantia patrimonial para tomar novos empréstimos e até mesmo começar novos empreendimentos.

Somando-se a essa política de crédito imobiliário a do financiamento ao consumo e aos estudos (crédito educativo consignado a futuro), a economia brasileira acabará ganhando escala suficiente para se constituir aqui o 5º maior mercado consumidor do mundo. Então, a população hoje carente estará totalmente inclusa nesse mercado. Alcançar essa meta deve ser a contribuição social dos bancos no Brasil!

Na verdade, o financiamento dessa expansão do mercado consumidor brasileiro não é uma meta estranha às atividades bancárias. Trata-se apenas de acrescentar à palavra-de-ordem “conheça seu cliente” o reforço: “e cresça com seu cliente”!

Dependendo da continuidade de governos democráticos populares, há perspectiva de o país continuar, durante os próximos anos (ou décadas), a política de inclusão social. Antes, o Brasil estava entre os países (africanos em sua maioria) com pior distribuição de renda do mundo. A herança maldita que tinha em comum com esses países era a colonização, a escravidão e as ditaduras: causas históricas da tragédia social brasileira.

Entretanto, aqui ainda há esperança, porque houve mobilidade social entre gerações. PASTORE & SILVA (2000) revelam que, no século passado, quase 2 em cada 3 brasileiros chegaram a uma situação social melhor do que a de seus pais, isto é, a da geração anterior. O Brasil, com 63% de mobilidade, se colocava bem em relação aos demais países estudados em comparações internacionais.

De modo geral, a maioria subiu pouco e uma minoria subiu muito na escala social. A maior parte da população passou de um estrato social baixo para outro imediatamente superior. A menor parte saltou vários degraus na escala social; entre estes brasileiros, destacavam-se os que possuíam talentos pessoais nas artes e nos esportes. A conjugação desses movimentos provocou extensão da estrutura social e, portanto, acentuação da desigualdade.

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O grosso da mobilidade ascendente foi na base da pirâmide social, mesmo porque grande parte dos pais era de origem rural, o status social considerado mais baixo. A partir desse status, toda e qualquer movimentação dos filhos, inclusive a migração para cidades, representou ascensão social. A abertura de oportunidades profissionais impulsionou grande quantidade de indivíduos a atingir situação social mais alta do que a de seus pais.

Em novo estágio histórico, há possibilidade de continuar a mobilidade social. Entre os fatores atuais, destaca-se o aumento do tempo de estudo. Ao contrário de outros países, quase 3/4 da população ainda exerce ocupações manuais, sendo ¼ dos indivíduos no estrato mais baixo (ocupações manuais rurais) e 2/4 nos estratos manuais urbanos. Quando o país completar a massificação do ensino, inverterá essas posições através da abundância de trabalhadores intelectuais e da escassez de trabalhadores manuais, diminuindo o leque salarial e, portanto, melhorando a distribuição de renda.

Outros fatores de mobilidade social são a elevação da escolaridade feminina e o ingresso da mulher no mercado de trabalho, elevando a renda da família. O controle da natalidade é conseqüência natural de maior nível educacional, e diminui a taxa de fecundidade. Menos filhos resultam em maior renda per-capita familiar.

Quanto ao empreendedorismo, há mais de 3 milhões de empresas formais sem empregados, ocupando quase 4.300.000 proprietários ou sócios. Pesquisa do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), que mede as taxas de empreendedorismo mundial, aponta que, em 9º no ranking mundial, o Brasil está entre os principais países empreendedores. A taxa de empresas iniciais (TEA) média brasileira (12,8%), nos últimos seis anos de participação do Brasil na pesquisa, permanece sistematicamente acima da média mundial de 9,1%. É equivalente a 15 milhões de empreendimentos, sendo 53% deles por oportunidade e o restante por necessidade.

Repetindo, o financiamento da casa própria é também fator de mobilidade social: na geração anterior a 1970, o Sistema Financeiro de Habitação era muito pouco desenvolvido. Depois, houve um surto relativamente curto. Graças às medidas empreendidas pelo Governo Federal, atendendo reivindicações antigas do setor, após 2004, o Brasil passou a viver uma nova fase no crédito imobiliário e no setor habitacional. No total, têm sido alcançados os maiores valores da história do país. Isso impulsionará a mobilidade social das famílias brasileiras.

Se o Brasil melhorou, significativamente, nos últimos anos, ainda há substanciais fossos: social, setorial e internacional. O país não aparece bem no ambiente institucional, em direitos de propriedade, proteção intelectual, diversidade de fundos públicos, confiança pública em políticos, eficiência em gastos do governo, tributação, etc. Mas, por outro lado, o país se apresenta bem em capacidade empresarial e inovação. Há parte da economia brasileira que está integrada à rede mundial econômica, tem de competir com os melhores do mundo, desenvolveu sofisticação e é forçada pela globalização a inovar. Mas há também outra parte em que não se faz reformas institucionais necessárias: há regulação excessiva, falta de confiança nos políticos, desperdício de recursos públicos, particularmente, no Poder Judiciário. O fardo político-burocrático impede muitas firmas brasileiras de operar no mercado internacional.

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Depois da democratização do país, passou a ocorrer progresso social mais contínuo. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) foi concebido para mostrar tendências nessa avaliação no longo prazo. Ele é indicador com várias dimensões que não respondem a políticas de curto prazo. Isso é particularmente o caso da taxa de alfabetização de adultos e da expectativa de vida no nascimento. Por esta razão, é fortemente recomendado que os indicadores sejam comparados em um período de médio a longo-prazo. No caso do Brasil, pode-se afirmar que a evolução dos indicadores de desenvolvimento humano mostra alta consistência entre 1990 a 2005. Durante este período, a expectativa de vida cresceu mais que cinco anos e meio (de 66,1 para 71,7 anos), o PIB per capita PPC cresceu por volta de um sexto (de US$ 7.219 para US$ 8.402) e as taxas de alfabetização dos adultos cresceu quase sete pontos percentuais. No entanto, foi a taxa combinada de matrícula que cresceu mais – 20 pontos percentuais: de 67,3% para 87,5%. O resultado cumulativo destas mudanças foi a progressão mais harmônica do desenvolvimento humano no Brasil. Ao ingressar no grupo de países de alto desenvolvimento humano (IDH 0,800), o Brasil marca o início, mesmo que simbólico, de uma nova trajetória e de um novo conjunto de aspirações.

7.4.4. Janela de oportunidade histórica

Neste último tópico, vamos desdobrar o argumento de que os aspectos positivos do desenvolvimento no Brasil do agronegócio (exportação), da urbanização (acesso a educação e saúde), da sociedade de consumo (mobilidade social) e da inserção internacional (atração de investimentos) têm de colaborar para superar os aspectos negativos: emigração da população rural, favelização, insegurança pública, exposição a choques externos. Esses descompassos entre o progresso econômico-financeiro e o social podem exigir tempo considerável para serem superados. Porém, sem ufanismo, mas com o realismo do entendimento que a história de uma nação é feita de erros e acertos, retrocessos e avanços periódicos, alternância democrática no poder político, a Nação brasileira poderá avançar muito nas próximas décadas, diminuindo bastante do seu atraso social. As tendências demográficas e a estratégia de manter um crescimento médio anual em torno de 5%, durante pelo menos as três primeiras décadas do milênio, podem levar a um salto na qualidade de vida no país proporcionalmente similar ao que teve na melhor fase da sua história econômica e social: o período 1950-1980, o da industrialização nascente e das cidades habitáveis.

José Eustáquio Diniz ALVES, Professor do Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), escreveu um pequeno artigo (6 páginas), intitulado “O Bônus Demográfico e o Crescimento Econômico no Brasil”, com grandes idéias a respeito do futuro do país. Ele mostra que “a demografia pode ser o grande fator propulsor do crescimento nas três primeiras décadas do novo milênio. Do ponto de vista demográfico, a situação brasileira é mais favorável agora do que há cinco décadas atrás”.

Pelo exposto por esse demógrafo, percebe-se que “as condições sócio-demográficas da população brasileira são mais favoráveis no período 2000-2030 em relação ao período 1950-1980”. Essas mudanças, cujo impulso decisivo veio da alteração

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Fernando Nogueira da Costa. Brasil dos Bancos. Capítulo 7 – Brasil dos Bancos. 325

no papel da mulher na sociedade contemporânea, poderão ser um fator decisivo para o avanço das condições econômicas e sociais do Brasil do século XXI.

Devido à “era do feminismo”, após a descoberta da pílula anticoncepcional e a revolução nos costumes, nos anos 60, o país recebeu uma “herança bendita” com uma situação extremamente favorável pelo lado demográfico. ALVES chamou a atenção para essa situação. “O quadro populacional do Brasil nas três primeiras décadas do século XXI favorece o crescimento econômico. É o chamado ‘bônus demográfico’ que representa uma janela de oportunidade decorrente da mudança da estrutura etária da pirâmide populacional. Em qualquer país, a transição demográfica só acontece uma vez e somente uma vez se pode utilizar o ‘bônus demográfico’. (...) A situação interna é favorável, pois estamos com uma população mais preparada em termos de idade, de saúde, de educação, de habitação, etc. para promover o avanço do país. O Brasil do início do século XXI passa por uma combinação entre uma estrutura demográfica e uma estrutura social que realçam uma proporção da população em idade onde o retorno social e econômico das pessoas é maior. Este fato favorece a poupança e o investimento, tanto das famílias quanto da sociedade. Em síntese, a população não é um entrave, mas sim um fator impulsionador do take off do desenvolvimento. Se o PIB crescer 5% ao ano, entre 2000 e 2030, teríamos o mesmo crescimento da renda per capita do período de ouro de 1950 a 1980”. Em outras palavras, bastará que a economia cresça 5% ao ano para ter a mesma melhoria per capita que antes exigia 7%.

Para ele, “a hora é agora. Após o ano de 2030, as condições demográficas vão ficar menos favoráveis, devido ao crescimento das taxas de dependência [número de dependentes (crianças e idosos) para cada 100 pessoas em idade de trabalhar] e ao envelhecimento populacional. Contudo, se o país aproveitar bem o ‘bônus demográfico’, existente no período 2000-2030, certamente as condições para enfrentar o futuro vão ficar mais favoráveis. O futuro se constrói no presente. Infelizmente a população brasileira tem sido tratada mais como um problema do que como uma solução. Entretanto, o Brasil não pode perder essa oportunidade e os cidadãos não podem permitir que os dirigentes do país desperdicem o inédito e excepcional bônus demográfico”.

O Brasil fechou o século XX com a terceira maior taxa anual de crescimento econômico do mundo, 4,5%, atrás de Taiwan e Coréia do Sul. No período de 1900 a 1973, com 4,9%, ficou em 1º lugar no ranking mundial. Na “era neoliberal”, na década de 90, caiu para 93º lugar, com taxa de 2,4% de crescimento anual, por isso ficou naquele terceiro posto. A construção da Nação com uma melhor qualidade de vida não é inatingível, basta aproveitar o bônus demográfico, retomando e sustentando taxa média anual de crescimento econômico já alcançada recentemente.

O país readquiriu as condições macroeconômicas necessárias para se lançar em um plano de aceleração econômica. A contribuição dos Bancos do Brasil para o Brasil dos Bancos já foi apresentada. O crédito e o crescimento configuram “mão-dupla”: quanto maior for o crescimento econômico, maior será a demanda efetiva de crédito; quanto mais a oferta de crédito multiplica o crescimento da renda, maior será a capacidade de pagamento dos clientes dos bancos. Bancos e Brasil se reforçam.