capital social e confiança

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35 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 21, p. 35-49, nov. 2003 Bruno Pinheiro W. Reis Este artigo empreende uma discussão de natureza teórico-metodológica da problemática levantada por Robert D. Putnam em Making Democracy Work, de 1993. Perseguindo tanto sua estrutura lógica quanto afinidades analíticas com literatura anterior, o trabalho procura enfocar principalmente os significados teóricos e empíricos dos conceitos de “capital social” e “confiança”. Conclui pela identificação de uma agenda de pesquisa certamente promissora, mas patentemente “imatura”, do ponto de vista tanto da operacionalização empírica da teoria quanto mesmo da especificação analítica precisa do significado de suas categorias centrais. PALAVRAS-CHAVE: capital social; confiança; Robert D. Putnam; teoria democrática; escolha racional; pluralismo. CAPITAL SOCIAL E CONFIANÇA: QUESTÕES DE TEORIA E MÉTODO 1 I. INTRODUÇÃO Desde a publicação de Making Democracy Work, por Robert Putnam e seus colaboradores, em 1993, já se produziu extensa literatura em torno de suas principais teses; especulações em torno das relações entre conceitos até então pouco usuais na Ciência Política – como capital social, confiança interpessoal etc. – tornaram-se comuns nas salas de aula das pós-graduações mundo afora, alcan- çando até mesmo os relatórios e recomendações das principais instituições multilaterais de fomento, como o Banco Mundial 2 . Todavia, em que pesem os claros méritos do trabalho de Putnam quanto ao esforço de síntese de 20 anos dedicados a pesquisa empírica cuidadosa da vida política na península italiana, a elaboração teórica em que o trabalho pretende fundamentar suas principais conclusões ficou condenada às duas dezenas de páginas do capítulo final do livro, e – embora envolva algumas intui- ções promissoras – deixa muitas perguntas sem resposta, legando para a sua posteridade o trabalho de detalhar de maneira mais sólida a estrutura analítica do argumento. O presente trabalho pretende constituir-se em um modesto exercício de identificação de algumas questões particularmente salientes a que se tem referido certa literatura, com o intuito de contribuir para a explicitação de alguns temas que merecem pesquisa e especificação analítica mais precisa. Para tanto, após uma breve exposição do que entendo como a estrutura lógica básica da teoria esboçada por Putnam no capítulo 6 de seu Making Democracy Work, procurarei identificar algumas questões analíticas ainda em aberto na literatura quanto ao significado operacional dos conceitos de “capital social” e de “confiança interpessoal”, com o foco permanentemente voltado para as relações porventura identificáveis entre ambos. A motivação imediata do trabalho prende-se antes de mais nada a um exercício de auto- esclarecimento, mas espera-se que as questões aqui abordadas interessem também aos inúmeros colegas que hoje procuram se debruçar sobre o tema. II. FAZENDO A DEMOCRACIA FUNCIONAR? OS CÍRCULOS VICIOSOS E VIRTUOSOS DE PUTNAM Um dos paradoxos mais salientes do argumento apresentado por Putnam em seu livro de 1993 é o 1 Quero agradecer a Célia Colen, Fernando Filgueiras, Magna Inácio, Maria Aparecida Machado Pereira e Paulo Magalhães Araújo – interlocutores constantes durante o período em que o presente trabalho foi concebido – e a Fábio Wanderley Reis, que fez numerosas sugestões tópicas a uma primeira versão do trabalho, induzindo-me a um tratamento mais claro de pontos inicialmente obscuros. 2 Isso pode ser facilmente constatado com uma visita à página especificamente dedicada ao tema do capital social no portal do Banco Mundial (2003). Recebido em 9 de março de 2003. Aceito em 15 de agosto de 2003.

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Metodologias de Intervenção Social

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 21: 35-49 NOV. 2003

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 21, p. 35-49, nov. 2003

Bruno Pinheiro W. Reis

Este artigo empreende uma discussão de natureza teórico-metodológica da problemática levantada porRobert D. Putnam em Making Democracy Work, de 1993. Perseguindo tanto sua estrutura lógica quantoafinidades analíticas com literatura anterior, o trabalho procura enfocar principalmente os significadosteóricos e empíricos dos conceitos de “capital social” e “confiança”. Conclui pela identificação de umaagenda de pesquisa certamente promissora, mas patentemente “imatura”, do ponto de vista tanto daoperacionalização empírica da teoria quanto mesmo da especificação analítica precisa do significado desuas categorias centrais.

PALAVRAS-CHAVE: capital social; confiança; Robert D. Putnam; teoria democrática; escolha racional;pluralismo.

CAPITAL SOCIAL E CONFIANÇA:

QUESTÕES DE TEORIA E MÉTODO1

I. INTRODUÇÃO

Desde a publicação de Making DemocracyWork, por Robert Putnam e seus colaboradores,em 1993, já se produziu extensa literatura em tornode suas principais teses; especulações em tornodas relações entre conceitos até então pouco usuaisna Ciência Política – como capital social, confiançainterpessoal etc. – tornaram-se comuns nas salasde aula das pós-graduações mundo afora, alcan-çando até mesmo os relatórios e recomendaçõesdas principais instituições multilaterais de fomento,como o Banco Mundial2.

Todavia, em que pesem os claros méritos dotrabalho de Putnam quanto ao esforço de síntesede 20 anos dedicados a pesquisa empíricacuidadosa da vida política na península italiana, aelaboração teórica em que o trabalho pretendefundamentar suas principais conclusões ficoucondenada às duas dezenas de páginas do capítulofinal do livro, e – embora envolva algumas intui-

ções promissoras – deixa muitas perguntas semresposta, legando para a sua posteridade o trabalhode detalhar de maneira mais sólida a estruturaanalítica do argumento.

O presente trabalho pretende constituir-se emum modesto exercício de identificação de algumasquestões particularmente salientes a que se temreferido certa literatura, com o intuito de contribuirpara a explicitação de alguns temas que merecempesquisa e especificação analítica mais precisa.Para tanto, após uma breve exposição do queentendo como a estrutura lógica básica da teoriaesboçada por Putnam no capítulo 6 de seu MakingDemocracy Work, procurarei identificar algumasquestões analíticas ainda em aberto na literaturaquanto ao significado operacional dos conceitosde “capital social” e de “confiança interpessoal”,com o foco permanentemente voltado para asrelações porventura identificáveis entre ambos. Amotivação imediata do trabalho prende-se antesde mais nada a um exercício de auto-esclarecimento, mas espera-se que as questõesaqui abordadas interessem também aos inúmeroscolegas que hoje procuram se debruçar sobre otema.

II. FAZENDO A DEMOCRACIA FUNCIONAR?OS CÍRCULOS VICIOSOS E VIRTUOSOSDE PUTNAM

Um dos paradoxos mais salientes do argumentoapresentado por Putnam em seu livro de 1993 é o

1 Quero agradecer a Célia Colen, Fernando Filgueiras,Magna Inácio, Maria Aparecida Machado Pereira e PauloMagalhães Araújo – interlocutores constantes durante operíodo em que o presente trabalho foi concebido – e aFábio Wanderley Reis, que fez numerosas sugestões tópicasa uma primeira versão do trabalho, induzindo-me a umtratamento mais claro de pontos inicialmente obscuros.

2 Isso pode ser facilmente constatado com uma visita àpágina especificamente dedicada ao tema do capital socialno portal do Banco Mundial (2003).

Recebido em 9 de março de 2003.Aceito em 15 de agosto de 2003.

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fato de que a conotação voluntarista do títulooriginal (Making Democracy Work) encontra noconteúdo do livro talvez a mais enfática desau-torização a que já se atreveu a Ciência Política,quanto às perspectivas de sucesso de intervençõesvoluntárias da ação humana voltadas para melhoraro desempenho de qualquer conjunto de instituiçõespolíticas em um território dado.

Partindo da familiaridade advinda de suas déca-das de experiência de pesquisa sobre a políticaitaliana, Putnam dedicou seu livro a tentar res-ponder por que, afinal, as instituições políticas dasdiversas províncias italianas podem exibirdesempenhos tão díspares de umas provínciaspara outras, já que todos os governos regionaisdispõem, afinal, de instituições políticasrigorosamente idênticas. De fato, poucas vezescientistas sociais terão tido à sua disposição umcaso tão parecido com um experimento desenhadoem laboratório: em 1970 o Parlamento italianoatribuiu autonomia política às províncias, e – nomesmo gesto – outorgou a todas as mesmasinstituições políticas, que passariam, dali em diante,a reger todos os governos regionais que então seconstituíam (PUTNAM, 1997, p. 34-41). Comesse gesto, o Parlamento inadvertidamentepropiciou aos cientistas sociais interessados nodesempenho das instituições políticas umexperimento em que se mantinham constantes asinstituições enquanto faziam-se variar (dada agrande heterogeneidade regional da sociedadeitaliana) as condições sociais e econômicas emque deveriam operar essas instituições.

O resultado – previsível – foi que, de fato, nãoobstante as instituições idênticas, os governos decertas regiões funcionaram muito melhor do queos de outras. Apoiado na elaboração de um indi-cador efetivamente complexo e abrangente de de-sempenho institucional, Putnam e seus colabora-dores saíram em busca da identificação de algumavariável sócio-cultural ou econômica cuja variaçãocorrespondesse às oscilações inter-regionais doseu índice de desempenho institucional. Encon-traram uma correlação positiva bastante boa comum índice de modernidade econômica (r = 0,77)3,mas também uma correlação positiva verda-

deiramente espantosa com um índice relativamenteidiossincrático de “comunidade cívica” (r = 0,92)4.

Durante uma primeira leitura, a sugestão deque essa correlação se mostre espúria, com ambasas variáveis oscilando conjuntamente em obediên-cia a alguma terceira, é muito forte. Particular-mente, tende a passar pela cabeça do leitor a possi-bilidade de que ambas devam-se aos níveis parti-cularmente altos de bem-estar econômico obser-váveis no Norte da Itália, que favoreceriam tantouma conduta pessoal caracterizável como “cívica”quanto o bom desempenho das instituições polí-ticas, presumivelmente abastecidas pelos recursospúblicos mais abundantes do que no Sul. Putnam,porém, reforça seu ponto ao indicar que a corre-lação entre comunidade cívica no passado e desen-volvimento econômico no presente é mais fortedo que sua recíproca (idem, p. 162-172). Cuidado-so, ele trata de testar e refutar no próprio texto acontestação óbvia segundo a qual a comunidadecívica poderia ser ela própria um subproduto, re-sultado de níveis presumivelmente mais elevadosde dinamismo econômico no Norte da Itália. Se oNorte é hoje mais rico, nem sempre foi – e, ade-mais, a correlação do desempenho institucionalcom alguns indicadores do grau de “comunidadecívica” é consistentemente mais elevada que comos indicadores de desenvolvimento econômico.Sabemos que altas correlações por si só não nosprovêem uma boa teoria e a arbitrariedade dosindicadores (principalmente os de “comunidadecívica”) aconselha-nos cautela quanto à análise einterpretação desses dados. Mas a evidência acu-mulada por Putnam desafiava com boas razõespelo menos as contestações mais elementares.

Seja como for, aqui nos interessa menos avalidação empírica das teses de Putnam do que a

3 Putnam (1997, p. 222) assim explica a sua medida: “Amodernidade econômica é aqui medida por um escore

fatorial baseado na renda per capita e no produto regionalbruto, nas parcelas da força de trabalho empregadas naagricultura e na indústria, e nas parcelas do valor adicionadocorrespondentes à agricultura e à indústria, tudo isso noperíodo 1970-77. Há uma estreita correlação entre essescomponentes (ponderação média = 0,90)”.

4 O índice de comunidade cívica adotado por Putnam(1997, p. 110) compõe-se de quatro variáveis: com-parecimento a referendos (1974-1987) e leitura de jornais(1975) com carga fatorial positiva, e voto preferencial (1953-1979) e escassez de associações desportivas e culturais(1981) com carga fatorial negativa.

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inquirição detalhada de seu conteúdo analítico5.Com efeito, para as finalidades do presente trabalhoo aspecto mais importante do livro de Putnamreside no esboço dedutivo que leva a cabo, noúltimo capítulo, sobre as razões pelas quais se dáa relação empiricamente constatada – a lógicasituacional subjacente. E isso é feito – de maneiratalvez surpreendente para os mais habituados acontraposições frontais entre explicações “cultu-ralistas” e outras “individualistas” – pelo recurso,ainda que um tanto impressionístico, a raciocíniospróprios da abordagem da “escolha racional”,incorporando sobretudo a lógica da ação coletivatal como descrita por Olson (1965) – de fato, um“dilema do prisioneiro”, no jargão da teoria dosjogos. Muito resumidamente, Putnam aponta duasdinâmicas arquetípicas para o problema dodesempenho institucional (que ele – talvez abusi-vamente – passa nesse ponto a fazer corresponderao problema hobbesiano da instauração da ordem):uma que ele chama o “círculo vicioso autoritário”e a outra, em contraste, o “círculo virtuosodemocrático”.

Na primeira, o Estado (ou seus aliados, poten-tados locais privados) garante a ordem de maneiraprecipuamente coercitiva, por meio do medo e darepressão, deixando em segundo plano a cons-trução de qualquer relação de confiança mútuadisseminada entre os habitantes. Na segunda,investe-se no estabelecimento de regras impessoaisque devem, em princípio, ser seguidas por todos,economicamente poderosos ou não. Esta últimadepende, para sua consecução eficaz, da gene-ralização da disposição de firmar compromissos eabrir mão de ganhos imediatos em favor decompensações futuras, na presunção de que aobservância universal de determinadas regrasrenderá frutos no longo prazo. O arranjo auto-ritário é um “círculo vicioso” porque o precedenteda afirmação violenta do poder inibe a disse-minação de comportamentos mais cooperativosno interior da população. A vontade do poderosode plantão prevalece em última instância, dificul-tando o estabelecimento de laços “horizontais” deconfiança mútua e tornando inúteis, por pouco

confiáveis, compromissos que envolvam compen-sações futuras. A democracia, por sua vez, cons-tituiria um “círculo virtuoso” em virtude do fatode que o acatamento de regras impessoais desolução de disputas, uma vez estabelecido, podegerar um estado de coisas no qual a violação dessasregras, mesmo que imediatamente proveitosa, podetornar-se onerosa para aquele que a pratica, emvirtude da retaliação dos demais (PUTNAM, 1997,p. 163-185)6.

Não será irrelevante sublinhar que o argumentoé perfeitamente análogo à solução do dilema doprisioneiro pela reiteração infinita do jogo com baseem um comportamento tit-for-tat, tal como origi-nariamente demonstrada por Michael Taylor(1976) e experimentalmente corroborada porRobert Axelrod (1984). Nesse caso, os atoresseriam induzidos à cooperação por medo da reta-liação de seu adversário: se cada “jogador” temmotivos para esperar que seu oponente comporte-se da mesma maneira que ele próprio, então podeser racional cooperar, se cada um valorizar sufi-cientemente seus resultados futuros. Se, todavia,parte-se da situação descrita pela teoria dos jogoscomo “egoísmo universal”, ou seja, uma situaçãoem que todos adotam a estratégia inicial de nãocooperar, então a cooperação não emergirá espon-taneamente, exceto sob a condição – bastanterestritiva – de que uma população em equilíbrionão-cooperativo veja-se “invadida” por um clusterinternamente cooperativo, que mantenha poucocontato com a população majoritária (não-cooperativa), e que nesses poucos contatos dispo-nha-se a adotar uma política de retaliação (“tit-for-tat”) em relação aos não-cooperativos (ZAGA-RE, 1984, p. 58-62). Além disso, se os atoresencontram-se imersos em um ambiente em queas regras não costumam ser estáveis, tornandoplausível a possibilidade de que o “jogo” sejainterrompido a qualquer momento, então – mesmoque se parta da cooperação universal – todos serãoinduzidos a abandonar a estratégia cooperativa an-tes que seu oponente faça-o, já que existe a possibi-lidade de a retaliação ser impossibilitada pela inter-rupção abrupta do “jogo”, suspensão das regras

5 Há extensa literatura de trabalhos breves de caráterpolêmico sobre o livro de Putnam. Para ficarmos apenascom alguns que me são imediatamente acessíveis, podem-se mencionar Burkhart e Lewis-Beck (1994), Goldberg(1996), Levi (1996), Tarrow (1996), Prates (1997) eJackman e Miller (1998).

6 De maneira análoga, Wanderley Guilherme dos Santos(1993, p. 105-106) refere-se a um “jogo de espelhos” paradescrever o comportamento do “conjunto de expectativasque os indivíduos têm quanto ao governo, quanto aos seusconcidadãos e quanto a si próprios” – expectativas quecomporiam, grosso modo, a “cultura cívica” local.

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vigentes e imposição arbitrária de novas regras.

É por isso que Putnam (1997, p. 186-187)afirma que a “solução hobbesiana” – isto é, ocírculo vicioso autoritário – é não só um equilíbrioestável (ou não seria um “círculo vicioso”), mastambém mais estável que a solução cooperativado “círculo virtuoso democrático”. Isso porque ageneralização da estratégia da não-cooperaçãoincondicional sempre permanece como umapossibilidade de comportamento estável a longoprazo, uma vez alcançada – ao contrário da soluçãocooperativa, que dependerá sempre de uma taxade desconto suficientemente baixa na preferênciatemporal dos atores, de modo a permitir que elesabram mão da possibilidade de um ganho imediatoque seria propiciado pelo abandono da estratégiacooperativa, em nome de evitar-se um equilíbriopior no futuro (ou seja, a cooperação universal é,na melhor das hipóteses, um equilíbrio condi-cional). Mais importante ainda: o contexto em queestão imersos os atores deverá permitir-lhes abrirmão de ganhos imediatos com alguma segurançade que não serão impedidos de desfrutar de seusganhos esperados no futuro7.

Assim, a interpretação que Putnam empresta aseus dados corrobora fortemente a análise do dile-ma do prisioneiro realizada por Taylor. De umlado, a existência de laços de confiança mútuareforça os mecanismos de cooperação entre oshabitantes e favorece o desempenho das institui-ções políticas; esse mesmo desempenho institu-cional eficiente atua positivamente sobre o con-texto, reduzindo a incerteza e reforçando aindamais o nível de confiança e cooperação no interiorda população – esse o círculo virtuoso demo-crático. De outro lado, na ausência de formasespontâneas de cooperação, a ordem impõe-se poruma organização hierárquica vertical da autoridadee – onerosamente – pela força. As instituições,subordinadas à vontade dos poderosos do momen-to, funcionam precariamente (quando não mudamconstantemente), submergindo os atores em umelevado grau de incerteza quanto ao futuro einviabilizando qualquer disposição de abrir-se mão

de ganhos imediatos com apoio em uma presunçãode reciprocidade futura. O mau desempenhoinstitucional reafirma e reforça, assim, os traçosde desconfiança mútua disseminados no interiorda população, completando a lógica do chamado“círculo vicioso autoritário”8.

Vale a pena destacar aqui o curioso lugarocupado pela categoria “confiança” no argumentode Putnam. Em um livro abundante em evidênciaempírica, ela é elevada no último capítulo à con-dição de crucial mecanismo causal do argumento– mas ela mesma não é objeto de qualquer tentativade mensuração empírica. Não há um índice deconfiança interpessoal em Putnam. Embora seuargumento acabe alçando vôos mais altos, é precisolembrar que o propósito inicial de Putnam émodesto. Ele não está investigando, em princípio,algo genericamente descritível como “as condiçõessociais (ou culturais) da democracia” – mas simbuscando a explicação para diferenciais de desem-penho de instituições (democráticas) idênticas em

8 A aproximação aqui efetuada entre Putnam e Taylor écompatível com a importância atribuída por Margaret Levi(1990, p. 407-410) à vigência do que ela chama de“consentimento contingente” (contingent consent) naestabilidade de uma instituição qualquer. Ali, Levi ajunta àcoerção, aos “pagamentos paralelos” (side payments) e àsnormas um quarto mecanismo de indução à obediência: aobtenção de um consentimento apoiado em uma norma defairness (“justiça”). Segundo a exposição de Levi (idem, p.409-410), “[...] part of contingent consent is conditionalcooperation [...] in which low discount rates, repeatedinteractions, knowledge of others and reciprocity over timepermit the emergence of rational decisions to comply. Inthe case of formal institutions, an individual’s cooperationor compliance is conditional upon the provision of promisedbenefits by institutional managers and personnel and uponthe continued compliance of others. No one wants to be asucker. Thus, any particular individual’s decision to complyis based on confidence that others are doing their share”[“[…] parte do consentimento contingente é cooperaçãocondicional [...] em que baixas taxas de desconto, interaçõesrepetidas, conhecimento dos outros e reciprocidade ao longodo tempo permitem a emergência de decisões aquiescentesracionais. No caso das instituições formais, a cooperaçãoou aquiescência de um indivíduo é condicionada pelaprovisão de benefícios prometidos por administradores efuncionários institucionais e pela aquiescência contínua dosoutros. Ninguém quer ser um otário. Assim, qualquer decisãode um indivíduo particular em aquiescer baseia-se naconfiança de que os outros estejam fazendo sua parte” –Nota do revisor]. Não é por mera coincidência que Leviremete esta fundamentação a Michael Taylor (1987), defato fundamentalmente uma versão revista de Taylor (1976).

7 Barbara Geddes (1994, p. 29-30) também aponta osefeitos deletérios da incerteza sobre as possibilidades decooperação, sublinhando o fato de que contextos instáveiscomo os que costumam viger no Terceiro Mundo tendem aelevar significativamente o desconto de pay-offs futuros.

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contextos sociais distintos. Identifica uma variávelindependente tremendamente relevante em seu“índice de comunidade cívica”, que inclui medidasde comparecimento a referendos, leitura de jor-nais, proliferação de associações desportivas eculturais e uma proxy de identificação partidária.Especulando sobre os mecanismos que poderiamprover uma explicação da extraordinária correlaçãoencontrada, recorre à noção de “capital social”(que passa a substituir a idéia de “comunidadecívica”) e produz a conjectura de que seria aconfiança interpessoal o mecanismo por excelênciapelo qual o capital social produziria seus efeitossobre o desempenho institucional.

Mas isso é tudo, quanto à confiança. Essa últimaconjectura jamais é, ela mesma, testada empi-ricamente; sequer são sugeridas estratégias deoperacionalização empírica posterior do conceitode confiança. Essa lacuna, de resto perfeitamentecompreensível em um livro que afinal já cumpriaali a tarefa de oferecer uma resposta fundamentadapara o problema que formulara, lega para a lite-ratura posterior as tarefas da especificação con-ceitual e da operacionalização empírica dessacategoria-chave da teoria proposta por Putnam: aconfiança.

III. PERSEGUINDO ELOS: O ARGUMENTO DEPUTNAM E SEUS ANTEPASSADOS

Adiante voltaremos a essas categorias maisdetalhadamente. Antes, cabe descermos um poucomais atentamente sobre o conteúdo substantivoda teorização de Putnam em seus próprios termos,para apontar que o argumento apresentado – apesarda forma original que lhe é conferida e do fartorepertório de técnicas mobilizado – não chega aconstituir-se propriamente em uma inovaçãoteórica, mas antes na reafirmação de um argumentode longa tradição na Ciência Política moderna,mediante a provisão de uma alentada corroboraçãoempírica. Lembremo-nos, por exemplo, de queSamuel Huntington (1975, p. 16-17) nos anos 1960apresentava seu argumento sobre a importânciada institucionalização (comumente tido comoconservador e mesmo pouco democrático) a partirda constatação de um problema derivado daexpansão da igualdade da participação políticaquando esta se dá sem a concomitante expansãoda “arte da associação”, contrariando a máximade Tocqueville segundo a qual esta deve crescerna mesma proporção em que se expande a“igualdade de condições”.

O livro de Huntington partia da constataçãoempírica de que nos países periféricos, de mo-dernização tardia, a igualdade política (expressano direito à participação) desenvolveu-se muitomais rapidamente que as instituições políticas – oque explica seu foco sobre o problema da “institu-cionalização”, sobretudo estatal9. Mas, aindaassim, a diferença fundamental entre Putnam eHuntington é muito mais formal que substantiva,pois enquanto Putnam pergunta-se o que faz asinstituições funcionarem e encontra resposta na“arte da associação” (para usar a expressão deTocqueville), estabelecendo nexo causal entre“comunidade cívica” e desempenho institucional,Huntington pergunta-se como fazer instituições quefuncionem, e nas primeiras páginas de seu livropraticamente identifica, implicitamente, a ausênciada “arte da associação” com a fragilidade dasinstituições. Ainda que o desdobramento da suaexposição venha a qualificar esta identificação, sobo enquadramento inicial de Huntington, associar-se é institucionalizar. O raciocínio implícito é que,ao estabelecerem-se múltiplas associações “hori-zontais” no interior da população, multiplicam-seos laços de interdependência recíproca entre oshabitantes, fundamentais na produção da coor-denação de expectativas necessária para assegurar-se alguma previsibilidade no comportamento alheio– em uma palavra, criam-se as organizações, queHuntington (idem, p. 19) – em seu realismo even-tualmente autoritário – julgou mais importantes quea realização de eleições10.

Convém lembrar que também em WilliamKornhauser (1959), que igualmente se ocupou daproblemática legada por Tocqueville, era a baixadisponibilidade das não-elites que distinguia asociedade pluralista da sociedade de massa – ou

9 Robert Dahl (1997, p. 51-62) endossa o ponto no capítulosobre “seqüências históricas” de seu clássico Poliarquia.Também ali, a propósito, alude-se à confiança: em duasbreves páginas de um longo capítulo (49 páginas) dedicadoàs “crenças dos ativistas políticos” (idem, p. 147-149).Não deixa de manifestar-se naquela passagem umasuperposição entre confiança interpessoal e confiança nasinstituições: Dahl alude à Itália apenas para remeter acomentário de Joseph LaPalombara sobre a falta deconfiança dos italianos nas instituições e nos atorespolíticos. Sinal dos tempos.

10 Admita-se desde logo que, neste como em outros pontos,a estrutura analítica do argumento de Huntington permaneceum tanto ambígua, e ocasionalmente obscura. Seja como

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Mesmo que se admita a presença de algumadose de inevitável esquematismo nesse quadro,ele tem o mérito de explicitar uma lógica subjacenteà importância do associativismo autônomo noadequado funcionamento da democracia moderna,por ajudar a manter baixa a disponibilidade dasnão-elites no que toca a mobilizações orientadas“de cima” – ou, como se costuma dizer,“orquestradas” por elites. Diferentemente da visãousual da crítica “aristocrática”, para Kornhauser(idem, p. 34-35) a alta acessibilidade das posiçõesde elite não é condição suficiente (embora sejanecessária) para a emergência dos males da“política de massas” – seria igualmente necessáriaa alta disponibilidade das não-elites. Similarmente,

ao contrário do que se depreende da “críticademocrática”, uma alta disponibilidade das não-elites não seria suficiente para caracterizar umasociedade totalitária, que requereria igualmenteuma baixa acessibilidade das posições de elite.Assim, em Kornhauser obtivemos, mediante afórmula “alta acessibilidade das elites e baixadisponibilidade das não-elites”, um guia básicopara uma política pluralista que tente evitar os malesda massificação na sociedade moderna. É quasedesnecessário sublinhar, a esta altura, que Putnam(1997) produz uma enfática corroboração empíricadas conclusões de Kornhauser no que concerne aesse tópico.

Mas tanto Huntington como Kornhauserseguem de perto, nesse ponto, a melhor tradiçãopluralista da Ciência Política norte-americana – doelogio às “filiações múltiplas”. Expressamenteadvogada nos Federalist Papers, particularmenteno Artigo n. 10, sobre o problema das facções, atese da proliferação das facções foi inicialmentebrandida contra certa recepção de Rousseau eMontesquieu, para quem a sobrevivência dasrepúblicas dependeria da virtude dos cidadãos eda eliminação de todo facciosismo interno.

seja, a sociedade que se pode presumir verdadeira-mente democrática daquela que, embora mobili-zada, queda-se à mercê da condução do seu líder.Partindo da descrição da “sociedade de massas”como caracterizada por alta acessibilidade dasposições de elite e, igualmente, alta disponibilidadedas não-elites para eventual manipulação comorecurso de poder (Tabela 1), Kornhauser (1959,p. 31) distingue duas críticas opostas à sociedadede massas: uma aristocrática, como a de Ortega yGasset em A rebelião das massas (temerosa quantoà “hiperdemocracia”) e outra democrática, comoa de Hannah Arendt em As origens do totalitarismo(temerosa em relação à “tirania ilimitada”). Aprimeira crítica – aristocrática – concentrar-se-ia

na alta acessibilidade das posições de elite paraexplicar a natureza conflituosa e instável da socie-dade de massas, deixando de fazer distinção entreesta e a “sociedade pluralista”, que se caracterizariapor alta acessibilidade das elites, mas com baixadisponibilidade das não-elites. A crítica democrá-tica, por sua vez, preocupa-se sobretudo com osefeitos nefastos que a eventual fragilidade dos laçosassociativos intermediários – típica da sociedadede massas – venha a produzir no que tange à dis-ponibilidade das não-elites. Aqui, para Kornhauser,deixa-se de distinguir a sociedade de massas da“sociedade totalitária”, caracterizada por alta dis-ponibilidade das não-elites, mas baixa acessi-bilidade das elites.

TABELA 1 – TIPOS DE SOCIEDADE CONFORME A ACESSIBILIDADE DAS ELITES E ADISPONIBILIDADE DAS NÃO-ELITES

FONTE: Kornhauser (1959, p. 40).

for, observe-se que não chego a atribuir-lhe a tese de que“toda associação é uma instituição”. Minha interpretaçãoatribui-lhe uma versão mais fraca dessa relação: o que seafirma é que “associar-se é institucionalizar”, ou seja,deflagrar um processo de institucionalização, que, todavia,pode vir ou não a consumar-se. Isto é, uma associação, umavez criada, pode vir ou não a transformar-se em umaorganização adaptável, complexa, autônoma e coesa – parausar os atributos imaginados pelo próprio Huntington (1975,p. 23-36).

Disponibilidade das não-elites

Baixa Alta

Baixa sociedade comunal sociedade totalitária Acessibilidade das elites

Alta sociedade pluralista sociedade de massas

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Madison constatou rapidamente que essaeliminação seria incompatível com um governolivre – e, embora toda a tradição apelasse à virtudecomo fundamento do governo popular, o mundoque o cercava parecia muito pouco propício a talexpectativa. Como se sabe, ele veio a prescrevera solução contrária, que ditaria o tom da CiênciaPolítica do século XX: a proliferação das facções,de maneira a impedir-se que qualquer delasalcançasse posição majoritária, logrando, assim,sua neutralização recíproca11.

Em um contexto como esse, será incumbênciado governo atuar, por meio do monopólio do usolegítimo da força, como mediador em últimainstância dos acordos, costumes e valores oriundosda livre interação e cooperação – e, naturalmente,também dos conflitos – entre os indivíduos egrupos diversos na sociedade. Ele permanece, dequalquer maneira, sendo ator crucial para ofuncionamento das instituições, isoladamente delonge o mais importante, poderosamente capaz deinfluenciá-las – para melhor ou pior – tanto noseu formato quanto no seu desempenho. Pois ésomente ao constituir a forma legal que lhepermitirá desempenhar seu papel de fiador dosacordos firmados no interior da sociedade que ogoverno propriamente institucionaliza essesacordos; transforma acordos circunstanciais ouformas momentâneas de cooperação em insti-tuições propriamente ditas.

A alusão ao papel desempenhado pelo Estadonessa problemática permite trazer à baila um últimoantecessor da contribuição de Putnam que nosparece merecer menção. Trata-se de GabrielAlmond (1966) e sua abordagem abertamentefuncionalista do estudo comparativo da política,particularmente bem-vinda se se têm em menteas dificuldades que enfrentavam em seu tempo astentativas de generalizarem-se seqüênciashistóricas típicas para o processo de construçãodo estado nacional12. Pois, adotando um marcoparsoniano de referência teórica geral, Almondrelega a segundo plano considerações históricas

(diacrônicas) para deter-se nas condiçõeshipotéticas de operação do subsistema político nointerior da sociedade como um todo. Aqui, maisque sua descrição do “interior” do sistema políticopor suas “funções de conversão” de inputs emoutputs13, interessam-nos suas consideraçõessobre o desempenho do sistema político em seuambiente a partir da distinção entre cinco“capacidades” (capabilities) a serem desenvolvidaspelo sistema: extrativa, reguladora, distributiva,simbólica e responsiva. Excetuada a capacidaderesponsiva, que se define pela relação entre outputsdo sistema e os inputs recebidos de seu ambiente,as outras quatro “capacidades” relativas ao desem-penho do sistema político dizem respeito especi-ficamente a outputs (ALMOND, 1966, p. 109).Como seria de esperar-se, essas “capacidades”correspondem em larga medida às “crises” do de-senvolvimento político identificadas na colabora-ção com Lucien Pye nas pesquisas então pa-trocinadas pelo Social Science Research Council(SSRC)14. Mas a elaboração particular de Almondpermite-nos manejar mais facilmente determinadasrelações lógicas entre os componentes analíticosdo sistema, livres de considerações muito detalha-das – necessariamente em alguma medida arbitrá-rias – sobre “crises” ou “seqüências” históricasefetivamente ocorridas aqui ou ali (ainda que Al-mond pretenda, sim, estabelecer uma seqüênciade desenvolvimento típica). Dessa forma, aseqüência das crises que se encontra idealmente– ainda que de maneira um tanto forçada –

11 Para uma breve exposição do teor do “Federalista” n.10, pode-se recorrer a Fernando Limongi (1989, p. 252-255).

12 É numerosa a bibliografia relevante produzida porAlmond, sendo particularmente célebre Almond e Powell(1966). Aqui me apóio, todavia, em Almond (1966), emque se apresentam resumidamente alguns dos temas centraisdaquele livro.

13 Almond (1966, p. 104) sugere uma classificação dasfunções de conversão em seis tipos: “(1) the articulation ofinterests or demands, (2) the aggregation or combination ofinterests into policy proposals, (3) the conversion of policyproposals into authoritative rules, (4) the application ofgeneral rules to particular cases, (5) the adjudication ofrules in individual cases, and (6) the transmission ofinformation about these events within the political systemfrom structure to structure and between the political systemand its social and international environments” [“(1) aarticulação de interesses ou demandas; (2) a agregação oucombinação de interesses em propostas de políticas; (3) aconversão de propostas de políticas em regras dotadas deautoridade; (4) a aplicação de regras gerais a casos parti-culares; (5) a adjudicação das regras em casos individuais e(6) a transmissão da informação sobre esses eventos nosistema político de estrutura para estrutura e entre o sistemapolítico e seus ambientes social e internacional” – N. R.].

14 São vários os livros sobre “desenvolvimento político”publicados sob os auspícios do Social Science ResearchCouncil durante os anos 1960. Um volume-síntese do pro-grama de pesquisa pode ser encontrado em Binder (1971).

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esboçada nos trabalhos da série do SSRC sobredesenvolvimento político pode encontrar nostrabalhos de Almond uma correspondência maisfundamentada em considerações sobre a maneiracomo a capacidade do sistema político dedesempenhar determinadas funções condiciona ounão sua capacidade de cumprir outras funções.Assim, por exemplo, Almond pôde substituir aseqüência das “crises” pela postulação daanterioridade lógica da capacidade extrativa frenteàs demais (ou, melhor dizendo, pela postulaçãoda dependência de todas as demais capacidadesem relação à extrativa), bem como condicionar acapacidade distributiva à capacidade reguladora:“What we have said about political capabilitiessuggests a logic of capability analysis. An extractivecapability implies some regulation and distribution,though these consequences may be unintended. Aregulative capability implies an extractive capability,if only to gain the resources essential to regulation;and it is difficult to conceive a regulative capabilitywhich would not in some way affect thedistribution of values and opportunities. They arenot only logically related. They suggest an orderof development. Thus political systems which areprimarily extractive in character would appear tobe the simplest ones of all. They do not requirethe degree of role differentiation and specializedorientations that extractive-regulative systems orextractive-regulative-distributive ones do.Regulative systems cannot develop withoutextractive capabilities; thus the development of theone implies the development of the other.Increasing the extractive capability implies anincrease in the regulative capability, as when, forexample, political systems move from intermittentcollection of tribute or raids to some form ofregularized taxation. Similarly, a distributivesystem implies an extractive capability, andobviously can reach a higher distributive level if itis associated with a regulative capability as well”15

(idem, p. 108).

Mas além das “capacidades” relacionadas aodesempenho do sistema, é igualmente relevante

sua capacidade de gerar apoio, que Almond chama“the support aspect of capability”16. Almond nãoo afirma nesses termos, mas a capacidade de gerarapoio caracteriza-se, inversamente às demaiscapacidades, como um output da população emresposta a inputs fornecidos pelo sistema político.Pela relação entre o que o sistema políticoefetivamente obtém comparativamente àquilo queele demanda da população. Nas palavras de Almond(idem, p. 111), “[…] the support aspect ofcapability has to be measured [...] in terms of theresources delivered in relation to the resourceslevied, the obedience accorded in proportion tothe obedience required, the allocations acceptedin relation to the allocations imposed, theresponsiveness of the population to symbolicoutputs in relation to that which is expected”17.

Constituindo, segundo Almond (idem, p. 111-112), uma “reserva” de autoridade do sistema, essacapacidade de gerar apoio pode em princípio sertomada como base empírica aproximada da noçãode “cultura política”, caracterizada a partir dasdiferentes propensões de diversos estratos dapopulação a apoiar seu sistema político (“supportpropensities”).

Para Almond, a análise das “capacidades” dosistema político poderia ajudar a preencher o hiatoexistente entre os estudos “científicos” e os

15 “O que dissemos sobre capacidades políticas sugereuma lógica da análise de capacidades. Uma capacidadeextrativa implica alguma regulação e distribuição, emboraessas conseqüências possam ser não-intencionais. Umacapacidade regulatória implica uma capacidade extrativa,quando nada para ganhar os recursos essenciais à regulação;e é difícil conceber uma capacidade regulatória que não

afete, de alguma forma, a distribuição de valores eoportunidades. Elas estão relacionadas não apenaslogicamente. Elas sugerem uma ordem de desenvolvimento.Assim, sistemas políticos de característica primariamenteextrativa pareceriam ser os mais simples de todos. Eles nãorequerem o grau de diferenciação de papéis e de orientaçõesespecializadas que os sistemas extrativo-regulatórios ou osextrativo-regulatório-distributivos requerem. Sistemasregulatórios não podem desenvolver-se sem capacidadesextrativas; assim, o desenvolvimento de um implica odesenvolvimento do outro. Aumentar a capacidade extrativaimplica um aumento da capacidade regulatória, como quando,por exemplo, sistemas políticos passam da cobrançaintermitente de tributos ou da rapinagem para alguma formade taxação regularizada. Similarmente, um sistemadistributivo implica uma capacidade extrativa, e obviamentepode alcançar um nível distributivo mais alto se estáassociado também a uma capacidade regulatória” [N. R.].

16 Algo como “aspecto de apoio da capacidade” [N. R.].

17 “[…] O aspecto de apoio da capacidade tem que sermedido […] em termos dos recursos entregues em relaçãoaos recursos tributados, a obediência acordada em proporçãoà obediência requerida, as alocações aceitas em relação às a-locações impostas, a responsividade da população aos pro-dutos simbólicos em relação àquela que é esperada” [N. R.].

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normativos do sistema político, ao acrescentar o“what” ao “who” e ao “how” típicos da CiênciaPolítica do século XX – ou seja, ao acrescentar“substância” às discussões de procedimento queocuparam o núcleo da Ciência Política contem-porânea. Ao fazer isso, o sistema de Almondincorpora uma inequívoca dimensão normativa àanálise, sem renunciar à investigação empírica dascondições práticas de funcionamento do sistemapolítico. E aqui Almond parece tocar rapidamenteem um ponto que pode ter implicações importantespara o presente trabalho. A especificação de umelenco de tarefas a serem desempenhadas pelosistema político a partir de uma definição, maisabrangente (de natureza parsoniana), da própria“função política” coloca-nos diante da necessidadede reconhecer que sistemas diferentes desempe-nharão diferentemente suas funções – e, talvez,que alguns sistemas desempenharão suas funçõesde maneira mais eficaz ou mais eficiente queoutros. Se essa empreitada é bem-sucedida, issopossibilitará à Ciência Política, em princípio, esta-belecer uma conceituação universalmente válidade “desenvolvimento político” (ou, se se quiser,de um indicador operacional mais modesto, o “de-sempenho institucional”), que possa funcionarcomo referência normativa, sem estar atada à pre-sunção de que esse desenvolvimento necessaria-mente se dê. Persistiria o risco de fracasso dosistema, de incapacidade de desempenhar suasfunções, de decadência política – enfim, da suces-são relativamente imprevisível de eventos histó-ricos. Mas a Ciência Política poderia dispor deum critério teoricamente informado para a análise(e, inevitavelmente, para a avaliação) comparativade diferentes casos empíricos.

Se voltarmos agora a Putnam, poderemosconstatar que, em termos analíticos, o que ele fazé identificar na existência de uma “comunidadecívica” e na disseminação da cooperação e daconfiança mútua no interior da população o maiseficaz e importante componente daquilo queAlmond chamou de “the support aspects ofcapability”, que configurariam aquela espécie de“reserva” do sistema político, ao determinar o seu“potencial de apoio” (“support potential”). Putnamidentificou, sob o rótulo da civic community, umconjunto de características mensuráveis, presentesna sociedade, capaz de expandir formidavelmenteo potencial de apoio de um sistema político, deexpandir o “retorno” esperável pelo sistema a partirde suas próprias iniciativas. Efetivamente, as

preocupações de Putnam dirigem-se precisamentepara a agenda de pesquisa que Almond (idem, p.112) propôs então: “The system reserve componentof capability is an aspect of political culture, the‘support propensities’ which are distributed amongthe various strata of the population, and the variousroles of the political system. We have to estimatethe content of this reserve, its magnitude, and itsmobility, if we are going to be able to explain andpredict political performance”18.

Claramente Almond esperava ter proporciona-do, a partir do seu esquema conceitual, uma baseempírico-analítica para manejar-se o sempreescorregadio conceito de “cultura política”. EPutnam é certamente um capítulo relevante dahistória desse conceito19. Infelizmente, se Putnamestiver correto, a magnitude dessa “reserva” serámuito mais rígida no tempo do que se esperarianos anos 1960. De qualquer modo, tendo em vistao marcante conteúdo simultaneamente empíricoe normativo do trabalho de Putnam (e inde-pendentemente da avaliação que se faça quanto àsperspectivas da pesquisa futura em torno do temada cultura política), as afinidades aqui esboçadasentre Putnam e Almond tornam particularmentepersuasiva a rápida menção feita por Almond àspossibilidades de preenchimento do hiato entreestudos normativos e “científicos” da política apartir do estudo das capabilities.

IV. AS HESITAÇÕES DO CAPITAL SOCIAL

A face mais flagrantemente normativa da “for-tuna crítica” do argumento de Putnam materializa-se na abundante literatura recente sobre “capitalsocial” e – principalmente – na sua elevação a va-riável-chave para identificar as potencialidades deimplementação bem-sucedida de políticas e pro-gramas públicos em contextos variados. Contudo,o conceito permanece insatisfatoriamente vago,portador de ambigüidades importantes que proble-matizam sua operacionalização teórica.

18 “O componente de reserva sistêmica da capacidade éum aspecto da cultura política, as ‘propensões de apoio’que são distribuídas entre os vários estratos da populaçãoe os vários papéis do sistema político. Temos que estimaro conteúdo dessa reserva, sua magnitude e sua mobilidade,se desejamos estar aptos a explicar e predizer o desempenhopolítico” [N. R.].

19 Cabe mencionar, contudo, a forte crítica de JamesJohnson (2003) à maneira, digamos, “subconceitualizada”como toda a tradição da ciência política americana nasúltimas décadas aborda o tema da cultura política.

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Preliminarmente, é necessário sublinhar que –a despeito da enorme popularização do conceitoque produziu – o estudo de Putnam não é sobrecapital social, que desempenha ali o papel de umaespécie de coadjuvante que rouba a cena nosmomentos finais do filme. Pois – a julgar peloíndice remissivo da edição brasileira (PUTNAM,1997) – o capital social só faz sua entrada no livrona página 177, quando Putnam aponta-o comoelemento facilitador da cooperação voluntária,decisiva para a instauração dos círculos virtuososfavorecedores do bom desempenho institucional– esta sim a variável dependente fundamental detodo o estudo. A partir desse ponto (ou seja, pelasúltimas 18 páginas do livro), a alusão ao capitalsocial – com sua evocação econômica – substituicom aparente vantagem as ressonâncias poten-cialmente chauvinistas e autoritárias da alusão a“comunidades cívicas” que permeara todo o livroaté ali. Contudo, o conceito de capital social per-manece surpreendentemente impreciso durante to-da a exposição do capítulo final – pois Putnamjamais o define. Feita a alusão inicial ao capitalsocial, tudo o que se segue é, inicialmente, umaremissão à exposição do conceito feita por JamesColeman (apud PUTNAM, 1997, p. 241, n. 20) eoutros autores, seguida por uma enumeração umtanto vaga de atributos do capital social, que jamaischega perto de uma definição.

Vejamos como Putnam (1997, p. 177) dirige-se ao conceito: “Aqui o capital social diz respeitoa características da organização social, como con-fiança, normas e sistemas, que contribuam paraaumentar a eficiência da sociedade, facilitando asações coordenadas [e passa a citar Coleman (1990,p. 302)]: ‘Assim como outras formas de capital,o capital social é produtivo, possibilitando a reali-zação de certos objetivos que seriam inalcançáveisse ele não existisse [...]’”.

Seguem-se exemplos e mais exemplos, tantocitados de Coleman quanto concebidos pelo pró-prio Putnam. Mas, para além do fato de não che-garmos a ter uma definição propriamente dita, avaga enumeração de atributos do capital social pecapor admitir dentro dela fenômenos de natureza fun-damentalmente distinta: “confiança, normas e siste-mas” admitem qualquer coisa sob o seu guarda-chuva. Mais precisamente, englobam simultanea-mente tanto variáveis “estruturais” quanto “atitu-dinais”, formando uma caixa-preta conceitual cujosignificado teórico preciso dentro da explicaçãodada por Putnam para o desempenho institucional

torna-se difícil de especificar.

Essa distinção não é uma questiúncula irre-levante, típica de escolasticismo acadêmico.Edwards e Foley (2001) e Foley, Edwards e Diani(2001) fazem-nos ver que, conforme carac-terizamos o capital social como uma disposiçãoatitudinal individualmente identificável ou como umatributo sócio-estrutural dependente do contexto(como a existência efetiva de redes de interaçãoque venham a facilitar ações coletivas no interiordo grupo), a natureza do argumento varia bastante– e muito especialmente o lugar nele ocupado porsua variável-chave, a confiança. No primeiro caso(fortemente sugerido pela maneira como Putnam(1997) inicialmente expôs seu argumento), a con-fiança interpessoal vê-se promovida a um parâ-metro exógeno do sistema, constituindo-se em va-riável independente, principal explicação do “mon-tante” de capital social disponível. Essa seria aversão propriamente “culturalista” do argumento.No segundo caso, se concebemos o capital socialcomo variável “sócio-estrutural”, atinente ao con-texto, então se torna endógena a confiança inter-pessoal, que passa a ser variável dependente nomodelo. Ainda capaz de produzir um efeito defeedback sobre o capital social, certamente, e deajudar a constituir círculos virtuosos ou viciososde cooperação ou conflito, mas agora atuando noargumento como resposta relativamente indiretaa um input organizacional do contexto social emque operam as pessoas.

De fato, estudo de natureza empírica conduzidopor Lúcio Rennó (2001) encontrou pouca corro-boração para a hipótese da confiança como variávelindependente. Ao contrário, encontram-se indíciosde que ela seja resultado de variáveis sócio-es-truturais – particularmente a previsibilidade docomportamento alheio, tipicamente embutida naaplicação consistente de sanções e recompensasdiversas. Esse resultado, a confirmar-se, endossaa concepção inicial do próprio James Coleman,que, segundo observa Andrew Greeley (2001, p.236-239), favorecia explicitamente uma concepção“estrutural” (ou “relacional”) do capital social, oque de resto é a única opção que permite plenaexploração da analogia econômica que o conceitoincorpora (LIN, 2001, p. 3-18).

Mas se concebemos o capital social não comoatitude individual, mas como um atributo dasociedade, dependente do contexto em que operamos indivíduos, então se impõe reconhecer a

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“neutralidade” moral do capital social, no sentidode que sua presença facilita a realização de objetivospelos atores, sejam esses objetivos moralmenteou socialmente desejáveis ou não: assim, a presen-ça da máfia ou a constituição de uma organizaçãocriminosa controlada por traficantes de drogassignificam uma expansão do estoque de capitalsocial. Mais genericamente, a presença de assime-trias sociais pode significar que a constituição dedeterminadas formas de capital social potencializeseus efeitos ao propiciar oportunidades de açãoque sejam assimetricamente aproveitadas. MichaelSchulman e Cynthia Anderson (2001) apontampara essa possibilidade, ilustrada a partir do estudodo caso de uma comunidade têxtil do sul dos Esta-dos Unidos, onde se constitui o que eles deno-minam como “capital social paternalista”. O pontorelevante aqui deriva da possibilidade de que asidentidades e solidariedades parciais, e os esforçoscorrespondentes de organização, devem inevitavel-mente ser vistas como fontes de capital social, in-dependentemente do fato de que podem compro-meter o potencial de apoio geral para o sistemapolítico, o governo etc. Essa é uma implicação deadotar-se de uma concepção estrutural do capitalsocial que é expressamente endossada por várioscolaboradores do volume organizado por Edwards,Foley e Diani (2001) – e que recupera o sentidooriginal que foi atribuído ao conceito por seus for-muladores iniciais, Pierre Bourdieu (1986) e JamesColeman (1988).

Se isso é assim, então ganha relevância crucialnão apenas a identificação da presença ou ausênciade redes interativas propiciadoras de capital socialno interior de uma dada sociedade, mas sobretudosua tipificação e contextualização – tarefarelativamente negligenciada desde que Tocquevilleidentificou na “arte da associação”, enunciada demaneira genérica, o germe fundamental da Amé-rica democrática. E, de fato, a literatura recentecomeça a experimentar alguns passos nessadireção. Dietlind Stolle e Thomas Rochon (2001)procuram especificar mais precisamente a teoriado capital social ao explorar os impactos quediferentes tipos de associação produzirão sobre odesenvolvimento de capital social público20. Suapresunção é que, por exemplo, associações orienta-

das para atividades de “rent-seeking” serão menospropensas a alimentar laços comunitários de reci-procidade que associações de proteção das escolasou dos parques públicos de uma dada localidade.A hipótese básica subjacente ao raciocínio – preli-minarmente corroborada pelos dados apresentados– é que a variável crucial para determinar-se oimpacto potencial de uma dada associação sobreo capital social público será a inclusividade da as-sociação: operacionalmente, o grau de diversidadede seus membros (idem, 2001, p. 144).

Aparentemente, haverá várias maneiras de pro-curar-se incorporar os matizes envolvidos na in-vestigação do papel das associações na operaçãoda democracia (WARREN, 2001). Para além dostipos de associação identificados segundo a natu-reza do issue tratado e a heterogeneidade social deseus membros, como em Stolle e Rochon (2001),diversas variáveis podem em princípio ser consi-deradas: permitindo-me simplesmente mencionaro que me vem à mente de maneira bastante ime-diata, pode-se distinguir entre associações de filia-ção voluntária e compulsória, assim como por seuprocesso de constituição – se “espontâneo” ouinduzido a partir de elites externas ao grupo. Sejacomo for, a consideração de todos esses matizesna análise da relação entre capital social e demo-cracia recomenda-nos cautela ao tomarem-se indi-cadores nacionais (ou regionais) de capital socialapoiados na agregação de dados de surveys emgrandes “médias” – pois, como lembram-nos Fo-ley, Edwards e Diani (2001, p. 267-270), a adoçãode tal procedimento pode-nos levar a perder devista as complexidades envolvidas no problema.

V. DESCONFIANDO DA CONFIANÇA

Isso nos traz de volta à consideração do papelda confiança no argumento sobre os impactospolíticos do capital social. A categoria-chave doraciocínio sugerido por Putnam para conferirplausibilidade analítica à sua explicação dodesempenho institucional tem recebido atençãocrescente na literatura – um processo amplificadoapós o sucesso do trabalho de Putnam (1997),certamente, mas que o antecedeu pelo menos notrabalho seminal de Diego Gambetta (1988),referência importante para o próprio Putnam.

No contexto do Brasil, todavia, ganhairrecusável saliência o tratamento que é dado àconfiança pela Pesquisa Mundial sobre Valores(World Values Survey), coordenado por RonaldInglehart a partir da Universidade de Michigan.

20 “Capital social público” é atributo genérico de umasociedade, para além de qualquer grupo específico dentrodela (STOLLE & ROCHON, 2001, p. 143-144).

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Em parte por limitações próprias a um questionáriode survey restrito a questões atitudinais, ali aconfiança é tratada de maneira muito simples, pelasrespostas a uma questão dicotômica em que oentrevistado opta entre declarar de um modo geralse se pode ou não confiar na maioria das pessoas.Sua simplicidade suscita uma variedadeproblemática de interpretações possíveis, mas seuinteresse entre nós decorre do fato de que o Brasiltem resultado ser uma espécie de campeão mundialda desconfiança, com um consistente padrão derespostas em que mais de 90% da população optapor responder que não se pode confiar na maioriadas pessoas (INGLEHART, 1997, p. 174, 359).

É verdade que em um dado como esse aconfiança apresenta-se como uma caixa-pretaconceitual, passível de variadas interpretações. Estáimplícita na rationale da pergunta a concepção daconfiança como um atributo individual queresponde de maneira relativamente previsível (e,em princípio, relativamente homogênea) a certosestímulos do contexto social em que operam essesindivíduos, acabando por configurar uma“síndrome” coletiva a partir da qual se identificariaum indicador de certa “cultura política” específica,favorável ou não à boa operação das instituiçõespolíticas naquela dada sociedade. É claro que issopassa ao largo dos variados sentidos que a alusãoà confiança no contexto do survey podem evocarno entrevistado: para além do problema – em simesmo exasperantemente complexo – deproduzirem-se traduções “confiáveis” de umquestionário de survey em pesquisas comparativasinternacionais (BEHLING & LAW, 2000), JoãoFeres Jr. e José Eisenberg (no prelo) propiciam-nos alentada discussão dos labirintos semânticosem que nos enredamos ao passarmos da palavrainglesa trust, de raiz germânica, para a portuguesa“confiança”, com origem na latina fides. Seriapossível acrescentar ainda ressonâncias da palavrainglesa people, presente na formulação original daquestão, que também significa “povo” – comconotações drasticamente distintas da alusão emportuguês às “pessoas”. Seja como for, no entanto,um resultado empírico consistentemente replicadodeve poder ser explicado. E o padrão de respostasobservado no Brasil para questões de confiança éfortemente atípico também quando comparado aoutros países latinos – e tem resistido às tentativasde replicação realizadas até aqui.

Em todo caso, é fato que o conceito deconfiança comporta matizes pelo menos tão

relevantes quanto aqueles que dizem respeito aocapital social. Recentemente, Susanne Lundåsen(2002) levou a cabo um levantamento detalhadodos múltiplos significados que o termo compor-ta21. Ali se identificam pelo menos 15 significadosdistintos para confiança interpessoal, que Couche Jones (apud Lundåsen, 2002, p. 310) sin-tetizaram em três níveis fundamentais: “confiançageneralizada” (voltada para a “natureza humana”,a humanidade como um todo), “confiança rela-cional” (voltada para pessoas específicas, “conhe-cidos”) e “confiança na rede” (nível intermediário,voltado para redes sociais ou familiares). Parecebastante evidente que Putnam (1997) pensa naconfiança generalizada em sua teoria: ela seriagerada e realimentada pelas redes horizontais decooperação recíproca disseminadas no interior deuma população. Sua carência entravaria processoscooperativos espontâneos que de outra maneirapoderiam vir a desonerar as instituições políticas,favorecendo seu desempenho.

Desse ponto de vista, talvez fosse de esperar-se uma forte correlação entre confiança inter-pessoal (“generalizada” ou “na rede”) e confiançanas instituições. Contudo, não é o que se observa.Kenneth Newton (1999), ao contrário, constataque elas relacionam-se fracamente, e Foley,Edwards e Diani (2001, p. 269) acrescentam queisso sequer chega a ser surpreendente, tendo emvista os problemas de natureza estatísticaprovocados pela utilização de médias nacionais.Contudo, não obstante a pertinência das pon-derações levantadas, que efetivamente reco-mendam pesquisa empírica mais detalhada, é justoadmitir que o mecanismo pelo qual Putnam vinculaa confiança interpessoal ao desempenho insti-tucional não necessariamente passa pela misturade ambos comportada na confiança nas insti-tuições. Conforme já foi apontado aqui em variadaspassagens, o mecanismo apóia-se em uma dinâ-mica social virtuosa que facilitaria a operação dasinstituições políticas, em princípio de maneiralargamente independente da opinião que oscidadãos mantivessem acerca de seu governo oude suas instituições. Deve-se admitir, a propósito,que cidadãos “cívicos”, confiantes uns nos outros,poderão tender a cultivar em relação às suasinstituições uma atitude vigilante e crítica, de

21 Sou grato a Maria Aparecida Machado Pereira porchamar minha atenção para o trabalho de Lundåsen.

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efeitos potencialmente corrosivos quanto a indica-dores de “confiança institucional”. Ronald In-glehart (1997, p. 293-323) concilia em termosanálogos a decadência da confiança nos governose nas instituições políticas registrada no Ocidentedurante as últimas décadas com sua postulaçãode uma “mobilização cognitiva” que resultaria emum paralelo aumento da intervenção direta doscidadãos em assuntos públicos22. E Russell Hardin(1999) traça distinção cuidadosa entre confiançano governo e confiança individual induzida porbom governo, antes de problematizar ricamenteos significados possíveis do ato de confiar-se eminstituições ou organizações, e de se perguntar se-riamente até que ponto a confiança em governosé sequer desejável. Sob essa perspectiva, é impos-sível recusar liminarmente a pergunta sobre atéque ponto a presença de “capital social” e “con-fiança” (interpessoal ou nas instituições) não po-deria eventualmente ser vista como manipulaçãoideológica bem-sucedida.

V. NOTAS FINAIS: RUMO A UMA TEORIAOPERACIONALIZÁVEL?

Ao cabo, resta a percepção de uma agenda depesquisa certamente promissora, mas patente-mente “imatura”, do ponto de vista tanto da ope-racionalização empírica da teoria quanto mesmoda especificação analítica precisa do significadode suas categorias centrais. E aqui parece operarum curioso paradoxo. Se o “capital social” apareceinicialmente como um conceito “guarda-chuva”um tanto vago e aparentemente intratável, suaorigem em categoria analítica de significadorazoavelmente preciso e – sobretudo – largatradição em economia (“capital”) parece propiciar-lhe uma pista por onde uma teorizaçãominimamente sistemática pode avançar. O recentetrabalho de Nan Lin (2001) constitui certamenteum passo encorajador nessa direção. Infelizmente,temo que talvez o oposto dê-se com o papelreservado à confiança nessa problemática. De usocorrente na vida cotidiana de povos do mundotodo, e (por isso mesmo) de enorme podersugestivo na exposição original do argumento dePutnam, receio que a precisão analítica do lugarda confiança no argumento venha a ser irre-mediavelmente comprometida pela polissemia emque se enreda – particularmente quando, diferen-temente do que se passa com o capital social, nãoresistimos à tentação de alcançá-la por meio deperguntas diretas, talvez excessivamente simples,em nossos surveys atitudinais. Será crucial, talvez,para a preservação de seu papel em uma teoriaempírica da democracia, mostrarmo-nos capazesde traduzir o que esperamos da confiança empadrões comportamentais observáveis.

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Bruno Pinheiro W. Reis ([email protected]) é Doutor em Ciência Política pelo InstitutoUniversitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e Professor do Departamento de Ciência Políticada Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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22 Reis e Castro (2001) depararam-se com resultado quepode ser interpretado de modo análogo: se a propensão aendossar normas éticas socialmente estabelecidas – comosolidariedade e altruísmo – aumenta com a sofisticaçãopolítica, por outro lado aumenta igualmente a propensão aum comportamento oportunista diante de circunstânciasdesfavoráveis. Ou seja, o “cívico” e o “cínico” não sãonecessariamente duas pessoas, mas a mesma: o indivíduomais sofisticado tende tanto a vocalizar mais prontamentea norma coletivamente aceita quanto a fexibilizar a suaaplicação a partir de uma avaliação lúcida do seu contexto.

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