capital cultural na escola e suas relações com o conceito de classe social em bourdieu

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As contribuições tanto da noção de Capital Cultural de Bourdieu e da Teoria Interpretativa da Cultura de Geertz nos dias atuais. 1 Irênio Santos Nascimento Júnior 2 RESUMO: Este artigo propõe uma breve discussão sobre o conceito de capital cultural a luz de Bourdieu e uma possível relação de sua tese com a antropologia de Clifford Geertz . Apontaremos as influências de ambos na formulação de seus conceitos e, posteriormente, verificaremos como Clifford Geertz subverte a teoria antropológica na busca de uma teoria interpretativa da cultura. Apresentaremos a noção bourdiana de legitimidade, a noção de campo e os impactos do capital cultural incorporado na herança familiar e o impacto de sua teoria na escola. Palavras-Chave: Capital cultural, teoria interpretativa, arbitrário cultural, desigualdade social, poder. ABSTRACT: This article proposes a brief discussion of the concept of cultural capital the light of Bourdieu and a possible relationship of his thesis with the anthropology of Clifford Geertz. We will point out the influences of 1 Artigo solicitado pelo professor doutor em antropologia Arivaldo de Lima Alves na disciplina Teorias e Críticas da Cultura. Setembro de 2014. 2 Aluno Regular do curso de Mestrado em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia, 2014. 1

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Page 1: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

As contribuições tanto da noção de Capital Cultural de Bourdieu e da

Teoria Interpretativa da Cultura de Geertz nos dias atuais.1

Irênio Santos Nascimento Júnior2

RESUMO: Este artigo propõe uma breve discussão sobre o conceito de capital

cultural a luz de Bourdieu e uma possível relação de sua tese com a antropologia de

Clifford Geertz . Apontaremos as influências de ambos na formulação de seus conceitos

e, posteriormente, verificaremos como Clifford Geertz subverte a teoria antropológica

na busca de uma teoria interpretativa da cultura. Apresentaremos a noção bourdiana de

legitimidade, a noção de campo e os impactos do capital cultural incorporado na

herança familiar e o impacto de sua teoria na escola.

Palavras-Chave: Capital cultural, teoria interpretativa, arbitrário cultural,

desigualdade social, poder.

ABSTRACT: This article proposes a brief discussion of the concept of cultural

capital the light of Bourdieu and a possible relationship of his thesis with the

anthropology of Clifford Geertz. We will point out the influences of both in formulating

its concepts and, later, we find as Clifford Geertz subverts the anthropological theory in

search of an interpretive theory of culture. We will present Bourdieu's concept of

legitimacy, the notion of field and the cultural capital impacts incorporated into the

family heritage and the impact of his theory in school.

Key-Words: Cultural capital, interpretive theory, cultural arbitrary, social

inequality, power.

1 Artigo solicitado pelo professor doutor em antropologia Arivaldo de Lima Alves na disciplina Teorias e Críticas da Cultura. Setembro de 2014. 2 Aluno Regular do curso de Mestrado em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia, 2014.

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Page 2: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

Introdução

O estudo antropológico de Clifford Geertz e o saber sociológico de Pierre

Bourdieu aparentam convergir para um mesmo ponto no tocante ao impacto do fluxo

simbólico na sociedade e o uso que os homens fazem de sistemas simbólicos para vias

de dominação. As pesquisas de ambos confluem para a noção de que há mecanismos de

controle que estão imbricados tanto nas propriedades essenciais que formam um grupo

social quanto nos diversos tipos de vida representada ou reproduzida pelos indivíduos

que formam a sociedade.

Trataremos, em capítulos vindouros, sobre o impacto das pesquisas de Bourdieu

e de sua teoria sobre capital social como sua teoria adversa vislumbrada pelo

antropólogo Bruno Latour. A princípio, abordaremos a noção de teoria interpretativa ou

simbólica proposta por Geertz e, futuramente, sua proximidade com a teoria de

dominação simbólica de Bourdieu.

Clifford Geertz e sua Teoria Interpretativa da Cultura

Clifford James Geertz foi um antropólogo estadunidense que se destacou por sua

observação da ação simbólica no fato antropológico. Geertz é considerado um dos

principais antropólogos do século XX e o impacto de sua teoria fez nascer uma das

vertentes da antropologia contemporânea chamada de Antropologia Hermenêutica ou

Simbólica ou Interpretativa. Uma das metáforas utilizadas pelo autor para definir o que

faz a antropologia interpretativa éa da leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos. A

interpretação se dá em todos os momentos do estudo, da leitura do "texto"

cheio de significados que é a sociedade à escritura do texto/ensaio do

antropólogo, interpretado, por sua vez, por aqueles que não passaram pelas

experiências do autor do texto escrito. Todos os elementos da cultura

analisada devem ser entendidos, portanto, à luz desta textualidade imanente à

realidade cultural.3

A sua vertente interpretativa difere da visão estruturalista de Lévi-Strauss4 que

sugeria explicar o conhecimento antropológico através da unidade psíquica do 3 GEERTZ, Clifford. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013.

Disponível em: http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Clifford_Geertz&oldid=36353720. Acesso em: 27 nov. 2014.

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Page 3: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

pensamento. Para o estruturalismo, a gnose origina-se de regras estruturantes na mente

humana que se organizam em pares de oposição para criar sentido à vida social. Já a

teoria disseminada por Geertz, o soslaio interpretativo, fundamenta-se na idéia de que a

percepção dos fenômenos sociais deve ter origem na observação de casos concretos,

viés empírico.

No capítulo primeiro da obra A interpretação das Culturas, intitulado Uma

Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura, Geertz sugere novos

alicerces para a composição e organização do saber antropológico, discorrendo sobre as

singularidades do fazer etnográfico, da cultura como objeto de análise da antropologia e

da composição de sua natureza enquanto conceito antropológico. O autor, em sua

reflexão inicial, questiona o conceito científico vigente que adota, de forma universal,

sua explicação para todo tipo de fenômenos sociais. Geertz refuta essa versatilidade

tutelando à Antropologia o conceito de cultura por acreditar que nem tudo que é

humano pode ser explicado pelos conceitos universais aplicados até então.Elas solucionam imediatamente tantos problemas fundamentais que parecem

prometer também resolver todos os problemas fundamentais, esclarecer todos

os pontos obscuros. Todos se agarram a elas como um "abre-te sésamo" de

alguma nova ciência positiva, o ponto central em termos conceituais em torno

do qual pode ser construído um sistema de análise abrangente.5

Com o propósito de ir além da noção estruturalista de cultura, esse “o todo mais

complexo”, o antropólogo vê na cultura o seu caráter semiótico, defendendo um novo

conceito tendo como fundamento científico a análise empírica do intelectual alemão

Max Weber6 O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo

tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max

Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele

mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise;

portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como

uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma

explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua

4 Antropólogo, professor e filósofo francês considerado fundador da antropologia estruturalista, em meados da década de 19 50.

5 GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura. In:_____. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. Cap. 1, p 9.

6 Max Weber foi um intelectual alemão, jurista, economista e considerado um dos fundadores da Sociologia e sua influência também pode ser sentida na economia, na filosofia, no direito, na ciência política e na administração.

3

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superfície. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por

si mesma uma explicação.7

Em seguida, ele explica que em antropologia o que se faz é etnografia dando

ênfase a definição de prática etnográficaEm antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os

praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a

etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode

começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de

conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa não é uma questão de

métodos. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é

estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar

genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não

são essas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o

empreendimento. O que o define é o tipo de esforço intelectual que ele

representa: um risco elaborado para uma "descrição densa", tomando

emprestada uma noção de Gilbert Ryle.8

Geertz aponta que os escritos etnográficos acabados que os pesquisadores

chamam de seus, na verdade, são “construções das construções de outras pessoas, do

que elas e seus patriotas se propõe” (GEERTZ, 1978, p. 13) não havendo nada de mal

nisso. Assim, a etnografia tem como finalidade situar o pesquisador entre os nativos,

sem necessariamente se tornar um deles, fazendo compreendê-lo que sua pesquisa

antropológica é “como uma atividade mais observadora e menos interpretativa do que

ela realmente é” (GEERTZ, 1978, p. 13). Ao observar a cultura como um texto, o autor

diz que o fazer etnográfico é um apanhado de dados intricados, heterogêneos, profundos

e multifacetadosO que o etnógrafo enfrenta, de fato — a não ser quando (como deve fazer,

naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados

— é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas

sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente

estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma,

primeiro apreender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis

de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar

informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as

linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário. Fazer a

etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um

manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas

7 Geertz, 1978. p. 10.8 Ibid, 1978. p.10.

4

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suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais

convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento

modelado.9

Portanto Geertz demonstra que as descrições etnográficas são como as

“construções de construções” dos nativos, de segunda e terceira mão, de ficções no

sentido de que são algo construído, algo modelado. (GEERTZ, 1978, p. 17). Sua teoria

colaborou para a renovação da ciência antropológica contemporânea, apontando

caminhos para a superação de uma certa tendência etnocêntrica que ainda prevalecia na

prática antropológica.

Apresentamos, até aqui, um pequeno esboço do pensamento de Clifford Geertz

que busca centralizar sua análise do comportamento humano na ação simbólica que ele

exterioriza. Sua análise teórica se aproxima bastante da teoria de Max Weber, pois o

mesmo busca captar o sentido das ações sociais nas representações que as pessoas

fazem da sociedade, do outro e de si mesmas em seus sistemas simbólicos. A seguir,

apontaremos a influência de Weber nas pesquisas sociológicas de Bourdieu acrescidas

da teoria de capital de Marx e uma possível interlocução de sua teoria com Geertz.

Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu é considerado um dos maiores sociólogos da língua francesa e,

seguramente, um dos mais importantes pensadores do século XX. Nos campos da

antropologia e da sociologia é um dos autores mais lidos no mundo e o alcance de suas

pesquisas chegam a áreas da educação, literatura, arte, linguística, política etc. Dentre as

suas maiores influências suas considerações dialogam com as teorias de Émile Durkeim,

Karl Marx e Max Weber.

Seus estudos sobre cultura apresentam traços influentes da perspectiva

durkeimiana.Sua obra edificou-se fora dos caminhos balizados pela reflexão marxista, tomando como objeto de estudo áreas consideradas menores pelo marxismo ortodoxo, como os estudos sobre cultura. Além disso, Bourdieu recusa-se a incluir a pesquisa sociológica nos engajamentos de natureza política ou ainda na elaboração de doutrinas de salvação [...]. Enfim, sua teoria da dominação simbólica, sobrevivendo à degradação do profetismo revolucionário, pode ser interpretada como um sinal que mostra que a sociologia de Bourdieu prospera numa terra estranha de solo marxista ortodoxo.10

9 Ibid, 1978. p. 13.10 BONNEWITZ, P. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Tradução de Lucy

Magalhães. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 20.5

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Já a sociologia de Marx e de Bourdieu se correlacionam na perspectiva das

mesmas pensarem a ordem social por meio do paradigma do julgo e da servidão. Porém,

enquanto as teses marxistas se debruçam sobre as relações de poder econômico,

Bourdieu viabiliza instrumentos que permitem compreender melhor a dominação

simbólica e cultural. O que justamente diferencia os olhares dos dois teóricos é que

Bourdieu promove uma ruptura com o economismo que restringe o campo social ao

campo econômico estudado por Marx. Promove rupturas com o objetivismo que leva a

ignorar as lutas simbólicas que acontecem nos diferentes campos e entre os diferentes

campos. [...] a insuficiência da teoria marxista de classes e principalmente a sua incapacidade de explicar o conjunto das diferenças objetivamente comprovadas resultam do fato de que, ao reduzir o mundo social apenas ao campo econômico, esta teoria se condena a definir a posição social em referência apenas a posição nas relações de produção econômica. Ignora, ao mesmo tempo, as posições ocupadas nos campos e nos subcampos, notadamente nas relações de produção cultural, assim como todas as oposições que estruturam o campo social e que são irredutíveis à oposição entre proprietários e não proprietários dos meios de produção econômica. Assim, ela constrói um mundo social unidimensional, organizado simplesmente entre dois blocos. 11

Já o papel das representações na análise sociológica e o conceito de

legitimidade de Weber são assimilados pela teoria bourdiana, pois é a partir desses

estudos que é possível compreender como a autoridade política se eterniza sem se

utilizar da coação. Isso é recorrente porque a legitimidade se define na qualidade

daquilo que é admitido e autenticado pelos membros de uma determinada sociedade.

Desta forma, Bourdieu busca definir os mecanismos pelos quais os subalternos aceitam

a dominação, por que a incorporam e se sentem solidários aos dominantes. É necessário

mostrar como os atores sociais fabricam a legitimidade, para se fazerem reconhecidos e

competentes, detentores do poder social.

O resultante desses diálogos com filósofos tão influentes no estudo dos

comportamentos sociais surge em um dos seus argumentos mais contundentes no qual

Bourdieu afirma que há estruturas objetivas no mundo social que podem coagir a ação

dos indivíduos e que essas estruturas são construídas socialmente. Assim, o mundo

social avaliado por ele é erigido sobre três pilares conceituais: campo, habitus e capital.

O campo representa um espaço simbólico no qual os confrontos legitimam as

representações. É o poder simbólico que classifica os símbolos de acordo com a

11 Ibid, 2003. p.20.6

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existência de um código de valores. O conceito de habitus12 reflete sobre a aptidão ou

capacidade dos sentimentos, pensamentos e conduta dos indivíduos de absorver

determinada estrutura social. E o capital personifica o acúmulo de forças que o

indivíduo pode alcançar no campo.

Segundo Bourdieu, a sociedade ocidental capitalista é um corpo social

hierarquizado, disposto sob uma divisão de poderes profundamente desigual. Sua vida

acadêmica, científica e intelectual foi pautada numa sociologia comprometida com a

denúncia dos aparelhos de dominação em uma sociedade perversa e iníqua.

Capital cultural

Neste capítulo apresentaremos uma breve noção deste tema central na teoria

deste autor. Capital cultural é uma expressão utilizada por Bourdieu para avaliar as

situações de classe inseridas na sociedade. Por esse prisma, podemos analisar que o

capital cultural presta-se a descrever subculturas de classes ou de setores sociais. Assim,

grande parte da obra de Pierre Bourdieu destina-se à descrição acurada da cultura - seus

valores, estilos, produção dos gostos, estados funcionais, etc. – decorrentes das

condições de vida das diferentes classes, delineando as suas características, qualidades,

especificidades e cooperando para particularizar, por exemplo, a burguesia tradicional

da nova burguesia e desta da classe trabalhadora contribuindo na identificação,

principalmente, das suas peculiaridades e disparidades. Contudo, mais do que uma

subcultura de classe, o capital cultural é tido como uma ferramenta de poder tendo como

sua referencia basilar os recursos econômicos. Neste aspecto, é possível afirmar que

Bourdieu tem uma percepção relacional e sistêmica da subcultura e de toda estrutura

social. Além do capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e

títulos) existiriam, segundo o autor, outras formas básicas de cultura: o capital

econômico (renda, salário, imóveis), o capital social (relações que podem ser revertidas

em capital, ou seja, podem ser capitalizadas), o capital simbólico (prestígio, honra) que

juntos formam o espaço multidimensional das formas e relações de poder. O mundo social pode ser concebido como um espaço multidimensional que pode ser construído empiricamente, por meio da identificação por descobrir

12 A noção de Habitus remonta a história nas ciências humanas. É uma noção filosófica aristotélica que serve para designar as características da alma e do corpo adquiridas em um processo de aprendizagem. Inicialmente conhecido como hexis, no século XIII Tomás de Aquino traduz o termo para o latim como habitus (capacidade para crescer através das atividades, ou disposição durável entre potência e ação proposital). Émile Durkheim em seu livro A evolução pedagógica (1904) faz uso desse mesmo conceito para designar um estado geral, interior e profundo, dos indivíduos. Mas é no trabalho de Bourdieu que esse conceito adquire cunho sociológico preciso: o habitus é o modo pelo qual a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados.

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as principais diferenças observadas em um determinado dado universo social, ou em outras palavras, descobrindo os poderes ou formas de capital que são ou podem tornar-se eficientes, azes como em um jogo de cartas, neste universo particular, ou seja, na luta (ou concorrência), para a apropriação de bens escassos... Esses poderes sociais fundamentais são, de acordo com minhas investigações empíricas, em primeiro lugar capital econômico, em seus vários tipos, capital cultural em segundo lugar, ou melhor, o capital informacional, novamente em seus diferentes tipos, e em terceiro lugar duas formas de capital que estão fortemente correlacionados, o capital social, que consiste de recursos com base em conexões e associação a grupos e capital simbólico que é a forma que os diferentes tipos de capital adota, uma vez que são percebidos e reconhecidos como legítimos.13

Apesar desse foco multidimensional de classe social não há subordinação entre

as dimensões culturais e socioeconômicas; a cultural é expressa como outra forma de

poder que se diferencia das demais ainda que haja correlações entre as mesmas.

O conceito de capital cultural é usado por Bourdieu para assinalar todas as

formas pelas quais a cultura opera na vida dos indivíduos. Críticos e autores da obra

deste autor identificam que o capital preexiste sobre três formas: o estado incorporado, o

estado objetivado e o estado institucionalizado.

O estado incorporado efetua-se sob a forma de estruturação permanente do

organismo, tendo como elementos constitutivos os gostos, o nível de domínio da língua

culta e as informações a respeito do mundo escolar:Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do “sujeito” sobre si mesmo (fala-se em “cultivar-se”). O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se faz corpo e tornou-se parte integrante da “pessoa”, um habitus. Aquele que o possui “pagou com sua própria pessoa” e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo. Esse capital “pessoal” não pode ser transmitido instantaneamente (diferentemente do dinheiro, do título de propriedade ou mesmo do título de nobreza) por doação ou transmissão hereditária, por compra ou troca.14

Deste modo, o capital cultural no seu estado incorporado se fundamenta na

herança familiar que age de forma significativa na definição do futuro escolar dos

descendentes, já que as orientações culturais, as instruções consideradas convenientes e

legítimas, propiciam a aquisição dos conteúdos e dos códigos escolares.

No estado objetivado, o capital cultural se desenvolve por intermédio de bens

culturais – livros, monumentos, dicionários, pinturas, obras de arte, máquinas etc. Ele é

transmissível na sua materialidade. “Mas o que é transmissível é a propriedade jurídica

e não (ou não necessariamente) o que constitui a condição da apropriação específica,

isto é, a possessão dos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar

uma máquina e que, limitando-se a ser capital incorporado, são submetidos às mesmas 13 BOURDIEU, 1987. p. 3.14 Idem, 1998, p. 74-75.

8

Page 9: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

leis de transmissão.” (BOURDIEU, 1999, p. 77).

O estado institucionalizado representa o capital cultural sob a forma de títulos

escolares. Para Bourdieu (1998), este capital consente no estabelecimento de taxas de

conversão entre o capital cultural e o capital econômico, o que assegura um valor em

dinheiro de determinado capital cultural. Esse capital cultural, garantido pelo diploma,

pode ser comercializado e trocado no mercado de trabalho. Compreendamos que o

diploma serve como base de comparação e o reconhecimento de determinado

certificado escolar depende do prestígio da instituição no meio social. Assim, o grau de

investimento na carreira escolar está associado ao retorno presumível que se pode obter

pelo título escolar no mercado de trabalho. A objetivação do capital cultural sob a forma

do diploma é um dos modos de neutralizar certas propriedades devidas ao fato de que,

estando incorporado, ele tem os mesmos limites biológicos de seu suporte.Um jovem da camada superior tem oitenta vezes mais chances de entrar na Universidade que o filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais de um filho de operário, e suas chances são, ainda, duas vezes superiores àquelas de um jovem de classe média. É digno de nota o fato de que as instituições de ensino mais elevadas tenham também o recrutamento mais aristocrático: assim, os filhos de quadros superiores e de profissionais liberais constituem 57% dos alunos da Escola Politécnica, 54% dos da Escola Normal Superior (frequentemente citado por seu recrutamento “democrático”), 47% dos da Escola Central e 44% dos do Instituto de Estudos políticos. 15

Segundo o autor, a exclusão constante e sucessiva das crianças menos

favorecidas é precisamente a consequência da ação do privilégio cultural de

determinadas classes em detrimento de outras. O capital cultural incorporado é essencial

na discriminação do processo escolar. [...] cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar. A herança cultural, que difere, sob os dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e, consequentemente, pelas taxas de êxito.16

Fica notório que o acesso ao regime de distribuição de diplomas e da

democratização da cultura é circunscrito aos detentores dos capitais econômico e

cultural. Infelizmente, a escola acaba fundamentando e garantindo a reprodução dessa

realidade, quando deveria fornecer ferramentas para a superação desse quadro.

Feita as devidas apresentações, o capital cultural contempla de forma

satisfatória o realce dado por Bourdieu aos intocáveis e aos pormenores da cultura de

15 BOURDIEU, 1998, p. 41.16 Ibid, 1998, p. 41-42.

9

Page 10: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

classe e, consequentemente, a atribuição do sistema escolar na valorização da cultura

dominante.

Disseminação das desigualdades sociais

Em seu livro A Reprodução, Bourdieu (1992, p. 11) conclui que os textos que o

compõe assinalam para um mesmo princípio de inteligibilidade: o “das relações entre o

sistema de ensino e a estrutura das relações entre as classes”. Para o autor a escola não

seria um campo neutro onde o conhecimento superior seria transmitido, mas, uma

entidade a serventia da procriação e legitimação da dominação exercida pelas classes

dominantes. Essa sua definição tem ligação com o conceito de arbitrário cultural17. O

arbitrário cultural nos diz que nenhuma cultura pode ser definida como superior a

nenhuma outra. Isso porque os valores que regulam cada grupo social em seus

costumes, desempenhos, condutas, procederes seriam arbitrários não encontrando

respaldo em nenhuma razão objetiva ou universal. Cada grupo vive suas ideologias,

valores, enfim, sua cultura de forma única e genuína. Assim deveria ser também na

escola. A cultura legitimada e difundida pela escola não deveria ser superior a nenhuma

outra. Porém, o que ocorre é a predominância de arbitrários culturais, transformado

assim em uma cultura legitimada, gerenciados por grupos ou classes sociais

predominantes de uma mesma sociedade. Em outros dizeres, os valores ditatoriais que

conseguem se impor como uma cultura reconhecida e validada seriam aqueles

assegurados pela classe dominante. Assim, a cultura escolar seria a cultura compelida

como legítima pelas classes dominantes.

Para Bourdieu, a forma como fundamentar uma cultura arbitrária e socialmente

imposta somente se efetiva se houver, na sua natureza basilar, dissimulação. Essa seria

uma das formas como a violência simbólica se concretiza na escola transmutada em

17 Todo sistema educacional, desta ou de outras épocas, constitui-se, segundo Bourdieu, de “atos pedagógicos” destinados a impor um conjunto de valores culturais, sempre arbitrários e injustificáveis, por meio de “violência simbólica”. As noções de “violência” e “arbitrário” estão interligadas: “A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como sistema simbólico é arbitrária na medida em que a estrutura e as funções dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna à ‘natureza das coisas’ ou a uma ‘natureza humana’.” A premissa aí oculta é que, se o sistema simbólico refletisse princípios universais, a ação pedagógica não seria violência simbólica e sim persuasão racional . Mas isso, segundo Bourdieu, jamais acontece: “Toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural.” (CARVALHO, 2009)

10

Page 11: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

classe neutra. Desta maneira, não sendo reconhecida como portadora de um discurso

abusivo, autoritário e déspota, a escola passa a reiterar e legalizar desigualdades sociais.

A alegação do autor é que, ao ocultar que a cultura escolar é a cultura das

classes dominantes, a escola disfarça e acoberta os resultados positivos que advêm da

manutenção dessas desigualdades: o da superioridade das classes dominantes e a

marginalização das outras. A reprodução dessas desigualdades seria garantida pelos

alunos que compreendem os códigos da cultura escolar por serem eles originários das

classes dominantes e a legitimação dessas desigualdades sociais sucederia,

sinuosamente, pela recusa de regalias culturais oferecidas aos filhos dessas mesmas

classes. Portanto, ser oriundo de uma classe dominante proporcionaria, a priori,

aquisição de bens culturais e linguísticos como sendo partícipe de sua própria

personalidade. Para os marginalizados, incapazes de perceberem o caráter impositivo da

cultura escolar, acreditariam que suas dificuldades escolares seriam provenientes de

uma inferioridade que seria imanente e intrínseca, e que sua superação seria limitada

intelectualmente ou por fraqueza de sua própria vontade de superar os obstáculos.

A partir dos estudos de Bourdieu podemos depreender que a escola, apesar de

ser idealizada como independente, é perpetuadora de privilégios socialmente pré-

estabelecidos. A educação formal sustenta os contrastes sociais e responsabiliza os

sucessos e fracassos dos alunos à suas capacidades cognitivas, intelectuais e subjetivas

conduzindo os indivíduos pertencentes a grupos socialmente dominantes às posições

mais lucrativas e admiradas do/pelo sistema de ensino.

O professor

O professor não foge ao processo de construção. No seu proceder , ele

apresenta, profere, julga e ensina estruturas absorvidas nos seus espaços de gênese

social. Fruto de um processo de sociabilização que o constitui como um ser em

sociedade, sua carreira escolar e vida universitária fornecem elementos suficientes de

legitimação da cultura dominante. Logo, o professor é preposto de uma classe que

impõem gostos, teorias, apreciações, elementos culturais e estéticos de um determinado

estrato social que, alunos pertencentes ao mesmo estrato, encontrarão afinidades. Então,

não é difícil deduzir que quando há compatibilidade entre alunos oriundos de uma

mesma classe e posição social o sucesso escolar é uma questão de tempo. Porém, para

aqueles que pertencem a outros estratos menos favorecidos socialmente, a esmagadora

11

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maioria, as temáticas abordadas pelo professor soam com estranhamento tornando a

disseminação do conhecimento em “algo parcial e injusto” no âmbito escolar.

Percebemos que o professor não é mais do que uma “peça na engrenagem” da máquina

social que reitera segregações. Além disso, o professor encontra-se envolvido na “trama” reprodutiva da escola. O professor é a “peça final da engrenagem” do sistema de ensino no qual este se personifica. Seu conteúdo curricular, seus métodos pedagógicos e suas expectativas em torno da aprendizagem e das disposições de seus alunos podem criar condições mais favoráveis a uns do que a outros. Ao ter de “professar” a cartilha da cultura legítima, fala a ouvidos mais apurados que outros em relação ao arbitrário cultural estabelecido. Estendendo a sua atuação discente de forma igualitária a todos os alunos a quem leciona, o professor, mesmo empenhado no trato homogêneo a todos eles, contribui para que uma trajetória escolar mal sucedida passe a ser individualizada e não atribuída a determinações sociais, pois “chances iguais” foram dadas a todos. Assim, se o sucesso escolar é tido como função da atuação da escola, cujo conhecimento veiculado tende a ser mais ou menos aprendido conforme a posição de classe dos alunos, o fracasso escolar é imputado às capacidades intelectuais daqueles estudantes pertencentes a colocações em que tal conhecimento é inexistente ou não encontra respaldo.18

Podemos deduzir, desta forma, que o professor atua como mandatário de um

poder sórdido e vil, imerso nas microestruturas formadoras da sociedade que determina

aquilo que deve ser considerado como significativo, meritório e erudito e, por

conseguinte, desconsiderando outras manifestações marginais em relação ao que é

considerado do cânone estabelecido. O educador acaba percebendo o quanto reproduz e

valida às desigualdades sociais buscando impor aos alunos saberes, aptidões,

competências e rigores que, em muitos casos, não refletem as ânsias e desejos dos

educandos na sua realidade local. Até mesmo o processo de aprendizagem19 é afetado

por essas imposições do arbitrário cultural dominante.

Em se tratando de métodos avaliativos, o uso por parte dos professores por

esses recursos e estratégias resultantes justamente de uma minoria tirana e totalitária,

converte cada vez mais contrastes sociais em dissonâncias intelectuais. Percebe-se,

atualmente, que a escola delegava o sucesso conquistado a dons individuais olvidando

18 OLIVEIRA SÁ, 2011, p.1219 Em seu artigo O professor e a reprodução de desigualdades sociais: uma leitura de Pierre

Bourdieu, Oliveira Sá (2011, p. 13 e 14) informa que “os procedimentos de aprendizagem, os quais o professor se vê encarregado de executar, acabam resultando num momento de julgamento moral dos estudantes. É cobrado deles que apresentem, com habilidade e desembaraço, aptidões discursivas e de postura, domínio textual, abundância argumentativa e letramento matemático, além do domínio da norma culta da língua portuguesa e de teorizações gramaticais. O professor se vê incumbido de exigir que seus aprendizes sejam intelectualizados, epistemologicamente curiosos, que cultivem o gosto pela leitura e pela pesquisa e que apresentem boas maneiras – espera deles conformidade com o arbitrário cultural dominante. O professor demanda entendimento e submissão a uma cultura ali consagrada como legítima, exigências que tendem a ser atendidas plenamente apenas por aqueles que foram socializados conforme esses valores”.

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que o êxito se refere muito mais às experiências estatizadoras no cerne de famílias que

gozam de posição privilegiada. Para Bourdieu, as disposições para o sucesso tidas como

“naturais” dos filhos das classes favorecidas e a inferioridade presente em alunos das

camadas populares é fruto de um processo tirano e opressor, disfarçado e despercebido

por ambas às partes.

Podemos constatar, inúmeras vezes, que a ação pedagógica é a sobreposição de

um arbitrário cultural dominante. Ela elege e ratifica a cultura por coação, insinuação e

persuasão, procurando construir o habitus do indivíduo, aqui neste caso discentes, de

acordo com a cultura dominante. E para que isso se exerça, conta-se de uma autoridade

pedagógica em que seja permissível assegurar a sua ação através de sanções ou

naturalizando cerceamentos, intimidações e posições perversas. A ação pedagógica é

tanto mais efetiva e duradora quanto maior crédito tiver, no meio social, a instituição

por ela regulada. A ação pedagógica forma o habitus do indivíduo através de um trabalho pedagógico que como trabalho de inculcação deve durar o bastante para produzir uma formação durável; isto é, um habitus como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da AP e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado20.

A família, a escola, a religião, a mídia impressa, televisiva, eletrônica e digital

contribuem para a reprodução social das desigualdades. Mas não só eles. A ação

pedagógica, materializada nas práticas dos docentes, corrobora, também, de forma

competente para a multiplicação dessas distonias sociais.

Até meados do século XX predominava a noção que o sistema de escolarização

iria ajudar na superação do atraso econômico, na diluição do autoritarismo e dos

privilégios de uma pequena parte do corpo social buscando construir uma sociedade

mais justa, racional e democrática. Acreditava-se que, a escola sendo pública e gratuita,

o problema de acesso à educação seria resolvido, assegurando, a priori, a igualdade de

oportunidades para todos os cidadãos. Sendo assim, os indivíduos que se destacassem

por seus dons individuais ocuparia posições privilegiadas na hierarquia social já que

todos receberiam, igualmente, as mesmas possibilidades de ascensão social. Portanto, a

escola seria uma instituição neutra na qual o conhecimento seria difundindo em

processos igualitários a todos gerando a harmonia tão deseja por todos os membros da

sociedade. Pierre Bourdieu, diante da falência dessa concepção, vem propor uma

verdadeira revolução sociológica. Ele nos convida a observar que muitos dados 20 BOURDIEU; PASSERON, 1982, p. 44

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Page 14: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

apontavam para uma forte relação entre desempenho escolar e origem social. E, onde se

via igualdade de oportunidades para todos, o autor passa a deduzir que há, na verdade,

reprodução e legitimação das desigualdades sociais. Na teoria de Bourdieu a educação

perde o atributo de grande transformadora e passa a ser vista como um dos principais

canais de marginalização e manutenção de privilégios. Seu contributo é tão importante

que, mesmo depois de mais de quarenta anos de suas primeiras publicações a cerca

desse tema, ele é um dos mais importantes autores da sociologia da educação.

Bourdieu nos traz a reflexão no tocante a entendermos que o indivíduo é

definido por uma bagagem herdada socialmente. E certos componentes objetivos tais

como o capital econômico (bens e serviços), capital social (relacionamentos sociais

mantidos pela família), capital cultural institucionalizado são utilizados para se obter o

sucesso escolar. Além disso, há o capital cultural “incorporado” pelo o indivíduo que

passa a fazer parte da sua subjetividade. Elemento esse também transmitido pela

família. É por essa razão que o crítico social interpreta o capital cultural incorporado o

mais impactante na definição do destino escolar. Por isso que sua sociologia delega um

peso menor ao fator econômico em relação ao cultural e é isso que sustenta a sua tese de

desigualdade escolar. O monopólio do capital cultural beneficiaria o êxito escolar,

principalmente no que diz respeito às avaliações formais e informais.

Muito além da noção de capital cultural aqui apresentadas, Bourdieu nos

esclarece que a posição social ou o poder que suponhamos ter não resultam somente do

acúmulo de dinheiro ou da reputação construída por nossos comportamentos ou ações,

ou mesmo da nossa escolaridade mas está na associação e encadeamento que esses

elementos podem articular no transcurso da nossa estória.

Geertz, Bruno Latour para além de Bourdieu

É evidente que as noções científicas do mundo social de Bourdieu

encontrariam perspectivas díspares. Enfatizamos o contraponto do também antropólogo

e sociólogo francês Bruno Latour21. Para Latour, os eventos científicos são construídos

através de alianças e mediações sendo esta uma releitura ou adaptação dos interesses e

potenciais dos atores humanos e não-humanos22 do cientista. Para ele, um cientista

21 É um antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência e francês. É um dos fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia e desenvolvedor da Teoria ator-rede.

22 Uma analogia próxima para não-humanos seria “natural”, em oposição às pessoas, ou humanos. Porém, para Latour “o natural” também é uma construção, assim como “o social”. Evita,

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envolvido na construção de um fato científico alia-se a outros atores humanos

traduzindo o que dizem ou que querem, e logicamente traduzindo as ações dos atores

não-humanos dentro daquilo que ele considera aproveitável. Entendamos que os atores

humanos são os elementos agenciadores da construção e os não-humanos os agenciados.

Para Bourdieu essa noção coloca agenciadores e agenciados num mesmo patamar de

hierarquia social, o que ele considera inaceitável.

Um outro elemento diferenciador entre os sociólogos é a noção de natureza.

Para Latour a sociedade e a natureza são constructos sociais enquanto que para

Bourdieu vivemos em um binarismo global, sociedade/natureza. Para Bourdieu a

natureza é anterior aos fatos por considerar a realidade como uma construção coletiva

cabendo ao homem a negociação do que é conhecimento e verdade. "Collins tem o grande mérito de lembrar que o fato é uma construção coletiva

e que é na interação entrem quem apresenta o fato e quem o reconhece e tenta

replicá-lo para o falsificar ou confirmar que se constrói o fato comprovado e

certificado, e de mostrar que processos análogos aos que descobri no domínio

da arte se observam também no mundo científico"23

Bourdieu critica a visão de Latour que considera a realidade como um texto,

justamente a visão teórica de Geertz que vimos anteriormente, uma visão semiológica.

Já Latour considera que o conhecimento científico nada mais é que uma outra forma de

discurso, inundado de elementos específicos assim como qualquer outra forma de

discurso social, impregnado de características especificas colocando-os num mesmo

patamar hierárquico. Ele considera que o discurso científico comporta objetos avaliados,

agrupados e catalogados, podendo ser, futuramente, revertido em caso de incerteza do

leitor. Dessa forma, o discurso científico nada mais é que uma construção literária assim

como todas as outras realidades sociais.

Entendemos que a abordagem teórica sobre cultura de Bourdieu tem marcas

indeléveis na contemporaneidade. Sua sociologia reflexiva, desenvolvida a partir dos

conceitos de habitus e campo, demonstram que as práticas munidas de motivação e

interesse agem dentro de campos sociais específicos havendo uma relação dinâmica

entre esses dois campos da ação social. Assim, as práticas sociais são envolvidas tanto

por relações sociais objetivas quanto interpretações subjetivas do mundo.

Fundamentado sobre o prisma da produção do gosto, Bourdieu desenvolveu a teoria de

que, indivíduos enquanto seres sociais na sua busca por posição elaboram disposições

portanto, utilizar o termo “natural’ substituindo-o por “não-humanos”. LORENZI, Bruno......23 BOURDIEU, 2004, p. 36.

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Page 16: Capital Cultural Na Escola e Suas Relações Com o Conceito de Classe Social Em Bourdieu

resultantes de estruturas sociais marcadas por relações de poder e desigualdade entre as

classes. No seu estudo empírico mais famoso, o sociólogo francês mostra como

práticas culturais determinadas, associadas à aquisição do gosto, podem ser

compreendidas a partir da disputa por capital cultural pelos diversos

membros da sociedade, e, a partir do resultado desta disputa, hierarquias

sociais são reproduzidas.

Já Clifford Geertz coloca em questão o caráter objetivo nas ciências sociais e

aprofunda a sua analise considerando a ação social como partícipe da dimensão cultural.

Assim aCultura deixou de ser apenas o conjunto de normas e valores de uma

sociedade para representar uma complexa rede signos, símbolos e mitos

capazes de dar orientação a qualquer esfera da vida, seja ela econômica,

política, social ou cultural.

Percebemos que tanto Bourdieu quanto Geertz desbancam a teoria da

neutralidade do observador porque ambos acreditavam que era preciso uma descrição

máxima em detalhes do papel do ator social, desnudando suas reais intensões revelando

o peso e o fluxo do discurso social, carregado de significados e poderes, que tanto

poderia servir para o deslocamento do olhar do pesquisador com vias de manter a sua

crítica social carregada de pré-conceitos quanto para exercitar a sua prática do exercício

de poder.

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

RECONHECIDA PELA PORTA MINISTERIAL Nº 909 DE 31-07-95

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – DEDC18

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CAMPUS II – ALAGOINHAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

CAPITAL CULTURAL, ESCOLA E A DISSEMINAÇÃO DAS

DESIGUALDADES SOCIAIS SEGUNDO PIERRE BOURDIEU.

Irênio Santos Nascimento Júnior

ALAGOINHAS - BAHIA

SETEMBRO/2014

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