candid12 (1)

Download candid12 (1)

If you can't read please download the document

Upload: joao-guilherme-carvalho

Post on 25-Dec-2015

219 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

resumo

TRANSCRIPT

Para uma sistematizao didctica

13 Para uma sistematizao didcticadas leituras interpretativas do Frei Lus de Sousa de Almeida Garrett ** Este artigo desenvolve as reflexes contidas na comunicao apresentada ao Congresso Internacional Almeida Garrett, Um Romntico, Um Moderno, realizado na Universidade de Coimbra, de 3-5 de Fevereiro de 1999 e constitui uma republicao, levemente revista, daquele que apareceu na Revista Portuguesa de Humanidades, vol. 3 (1999), pp. 267-303. Entretanto, agradeo as oportunas observaes que me foram feitas, a nvel particular, pela Sr Doutora Oflia Paiva Monteiro (Univ. de Coimbra), que vieram enriquecer esta despretenciosa exposio didctica.

J. Cndido Martins(Univ. Catlica Portuguesa Braga)

Cada leitor, com efeito, recria a obra que l; e a perpetuidade de uma obra o que , mais o que dela foram fazendo os seus leitores (Verglio Ferreira).

1. Necessidade de contrariar um dfice interpretativo

Uma adequada e exigente leitura interpretativa do Frei Lus de Sousa, de Almeida Garrett, ao nvel do Ensino Secundrio O estudo do drama de Garrett est previsto no Programa de Portugus do 11 Ano cf. Portugus A e B (Programas), Lisboa, Ministrio da Educao, Dep. do Ensino Secundrio, 1997, pp. 44 e 108. , deve convocar, ainda que de um modo breve e articulado com as actividades de leitura analtica do texto, as principais interpretaes que a obra garrettiana foi conhecendo ao longo do tempo. Ora, parece-nos que no bem isso que se passa. De um modo geral, as edies escolares correntes da pea, bem como alguns dos textos crticos auxiliares, nem sempre prestam um bom servio como textos de apoio a professores e alunos. O que distingue estas edies de outras que, grosso modo, o texto integral da pea garrettiana precedido de uma introduo genrica, que costuma abordar os seguintes aspectos: 1) apresentao da vida e obra do escritor no seu contexto epocal, num esforo mais ou menos conseguido; 2) introduo crtica ao estudo do drama de Garrett, salientando o desenvolvimento da estrutura externa e interna da obra, a sua gnese e classificao genolgica. Isto no significa que em uma ou outra edio no encontremos textos introdutrios mais ou menos preciosos, que os professores devem conhecer, independentemente da edio recomendada ou adquirida individualmente pelos seus alunos. Uma boa edio escolar do Frei Lus de Sousa de Almeida Garrett, imagem do que neste campo especfico se faz em pases como Espanha ou Frana, deveria necessariamente contemplar determinados aspectos que, ora encontramos isolada e sofrivelmente representados em algumas das edies, ora esto simplesmente ausentes:

i) Edio escrupulosa do texto integral do drama garrettiano, com a indicao da edio que serviu de base edio escolar. Entre outros aspectos, deve conter as notas autorais (numeradas alfabeticamente, apresentadas em nota de rodap) com que o dramaturgo enriqueceu o texto da sua obra dramtica. Isso nem sempre tem acontecido at hoje, nem mostra intenes de se alterar significativamente. Dada a tendncia habitual do mercado editorial para a lei do menor esforo e do mais baixo custo, no sabemos se com a publicao da anunciada edio crtica do Frei Lus de Sousa o panorama editorial se alterar significativamente. ii) Publicao em apndice do peritexto fundamental da Memria ao Conservatrio Real, seguida do "Prlogo dos Editores" e das notas explicativas do mesmo Almeida Garrett. A anlise da conferncia que Garrett leu em 6 de Maio de 1843 absolutamente fundamental para a compreenso da obra a que se refere.iii) Elaborao de abundantes notas explicativas do texto dramatrgico, distinguidas das notas autorais. A sua funcionalidade seria relativamente alargada: dilucidao de algum vocabulrio textual; explicao de determinadas referncias histrico-culturais; reflexo de carcter estilstico-ideolgico; ligao de determinadas passagens textuais s principais leituras interpretativas da obra; referncia a manifestaes de intertextualidade homo- e hetero-autoral; etc. Alis, seria muito mais correcto e prtico que os dois tipos de notas (autorais e crticas) fossem colocadas em rodap, e no como apndice da transcrio do texto integral, como normalmente acontece. iv) Introduo de esquemas didcticos sobre alguns aspectos da estrutura da obra dramtica, tais como: configurao das personagens; marcas fundamentais do estilo; comparao da presena do gnero trgico com os traos do drama romntico; espao fsico e psicolgico; questionrios orientadores da leitura interpretativa; etc.v) Existncia de um adequado glossrio, complementar das notas explicativas, mais voltado para o vocabulrio do texto garrettiano, cada vez mais til, perante o progressivo empobrecimento lingustico-cultural dos alunos.vi) Recepo do Frei Lus de Sousa noutras culturas, literaturas e at na adaptao a outras linguagens artsticas: ainda que com brevidade, o aluno deveria tomar conhecimento da recepo crtica e literria da pea garrettiana noutros pases, atravs da publicao de estudos interpretativos; de tradues, verses ou adaptaes para outras lnguas; ou mesmo da transposio da obra para outras artes msica, pintura, cinema, etc. Destaquem-se, a ttulo de exemplo: a pera italianizante de Francisco de Freitas Gazul, Fr Luigi de Sousa, estreada em 1891; a pintura de Miguel ngelo Lupi (1826-1883); ou a moderna adaptao cinematogrfica de pea garrettiana de Antnio Lopes Ribeiro (de 1950). A este propsito, vejam-se, por ex., os trabalhos de: M Gabriela Buescu (1990-91); Andre C. Rocha (1954: 177-8); ou, mais recentemente, M Leonor M. Sousa (1993). vii) Sistematizao das principais leituras interpretativas da obra, em lugar destacado do estudo introdutrio, com a transcrio de significativas passagens textuais, ilustrativas das vrias perspectivas crticas. No nosso entender, entre as lacunas mais censurveis das vrias edies escolares, para alm das habituais repeties de edio para edio, est precisamente esta. Curiosamente, como lembra Andre Crabb Rocha (1954: 165), "as muitas explicaes de Garrett deixaram os crticos insatisfeitos, e todos se puseram em busca de outros rumos" de interpretao.

De entre as edies escolares que melhor cumprem os principais requisitos referidos, essenciais ao estudo da pea garrettiana, esto as edies organizadas por Lus Amaro de Oliveira e Maria Joo Brilhante, como pode, alis, ser percebido pela aceitao que vm conhecendo junto de professores e alunos Cf. a bibliografia final. Alm das edies citadas, refiram-se as organizadas por Augusto Csar Pires de Lima, Mrio Fiza, Feliciano Ramos ou Alfredo Pimenta. (Ao longo do texto, citaremos a pea de Garrett a partir da ed. org. por Lus Amaro de Oliveira, indicando apenas o nmero do Acto (em romano) e da Cena (em rabe).. No entanto, vrios aspectos poderiam ser melhorados, sem que isso implique necessariamente o aumento do seu nmero de pginas. No actual panorama, e pressupondo o conhecimento de alguns ensaios crticos sobre a pea garrettiana, o caminho que resta ao professor ou aluno escolher uma destas edies, completando-a com as reflexes contidas nos textos de apoio existentes, como o trabalho de Isabel Lopes Delgado (1998), ou outros de natureza similar.

2. Panormica de uma recepo interpretativa

Empenhado poltica e culturalmente num processo de renovao do teatro nacional, com Um Auto de Gil Vicente (1838), Almeida Garrett tinha fundado o teatro portugus moderno, ao gosto da nova esttica para o drama romntico. Cinco anos depois, apresenta a sua grande obra-prima teatral, um drama de inegvel fundo trgico. Recordemos algumas datas significativas do incio da apresentao e recepo pblicas do Frei Lus de Sousa quer como texto dramtico para leitura, quer como pea teatral para representao A respeito desta ambgua oscilao garrettiana, veja-se o exemplar artigo de M Joo Brilhante (1999). :

1843, 6 de Maio: apresentando publicamente, pela primeira vez, o seu Frei Lus de Sousa, o dramaturgo l uma Memria ao selecto auditrio do Conservatrio Real. Nessa ocasio, procede primeira leitura do seu mais recente drama, apresentando explicaes de natureza vria (sobre a gnese da obra, o seu estilo, o gnero literrio, etc.).

1843, 19 de Maio: Garrett faz nova leitura da pea, na intimidade da casa da sua amiga Maria Krus, ilustre dama da sociedade lisboeta, cujo salo era dos mais apreciados do seu tempo. A leitura emocionou profundamente o auditrio, levando Tefilo Braga Obras de Almeida Garrett (1963, II: 1073). a exclamar: "Como o grande orador leria a obra que sentira!" J em 1843, na Revista Universal Lisbonense, Rebelo da Silva (1909: 106) salientara o pendor trgico da obra. Por isso, naquele aditrio escolhido, aonde leu a sua pea, nem um rumor, nem um lanar de olhos se percebia. A propsito desta singular leitura, cf. ainda Jos Calvet de Magalhes (1996: 147). Com a ajuda do prprio Garrett, o representante diplomtico da Dinamarca em Portugal, Wilhelm Luckner, traduziu para alemo o Frei Lus de Sousa, cuja traduo apareceu em Frankfurt no ano de 1847. Narram ainda os bigrafos garrettianos um caso curioso: "O conde [Wilhelm Luckner] estava divorciado da mulher, que casara em Dresden, com outro homem. Enviuvando deste segundo marido, teve conhecimento da representao da pea traduzida pelo seu primeiro marido, e foi v-la. Ficou de tal maneira impressionada com a histria do drama que mandou chamar o conde, seu primeiro marido, e voltaram a casar-se" (idem, 1996: 148); o mesmo facto tinha sido recordado por F. Gomes Amorim (1884, III: 69, nota).

1843, 4 de Julho: em consequncia da anterior leitura, o drama representado, pela primeira vez, no pequeno teatro particular da Quinta do Pinheiro, para um selecto e "extasiado auditrio", o Frei Lus de Sousa iniciou uma carreira de notvel sucesso, tornando-se o indiscutvel drama da maturidade do autor. Nesta primeira representao, feita por actores amadores, o prprio Garrett desempenhou curiosamente o papel de Telmo Pais Ver F. Gomes Amorim (1884, III: 68). .

1844: ano da publicao, em livro, da 1 ed. do Frei Lus de Sousa (Lisboa, Imprensa Nacional, cujo prefcio datado de Dezembro de 1843) Nesta altura, fez-se uma edio de 15 exemplares da pea. Existe um fac-smile do Frei Lus de Sousa da edio da Quinta do Pinheiro, apresentada por M Leonor Machado de Sousa, Lisboa, Inst. da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993. Em bom rigor, esta primeira publicao constitui a verdadeira editio princeps da pea garrettiana. . Alm do relevante paratexto (prlogo e notas autorais), a edio enriquecida com um texto crtico de L. A. Rebelo da Silva, antes publicado na Revista Universal Lisbonense.

1847: primeira representao da pea no modesto Teatro do Salitre, embora censurada, j que, segundo a imprensa da poca, lhe fora amputada a ltima cena do I Acto com "ineptas tesouradas", a fim de "evitar complicaes diplomticas".

1850, 24 de Fevereiro: ocorre a representao da pea no Teatro Nacional D. Maria II, instituio que Garrett ajudara a criar.

O austero Alexandre Herculano, que ter sido, alis, um dos primeiros ouvintes da pea, e estava tambm entre essa privilegiada assistncia da leitura garrettiana e da primeira representao de 1843, no lhe regateou elogios numa conhecida pgina dos Opsculos: "(...) um dos dramas a que no faltou seno a fortuna de ser escrito em alguma das lnguas principais da Europa, o francs ou o alemo, para ser um dos mais notveis monumentos literrios da nossa poca". O mesmo contido Herculano no esconde a emocionada admirao com que a pea foi recebida pelo selecto pblico, nomeadamente quando menciona que o Frei Lus de Sousa "fazia correr as mudas lgrimas de um auditrio extasiado, ou lhe arrancava ruidosos aplausos de entusiasmo" (Herculano, s.d.: 84). Entretanto, fazia-se uma hbil divulgao da pea na imprensa do tempo, com disfarados auto-elogios do prprio autor e alguns ataques aos poderes cabralistas que obstaculizavam a sua encenao nos teatros do Salitre (1847) e de D. Maria II (1850). Contudo, o sucesso de Frei Lus de Sousa torna-se, nas palavras de Luciana S. Picchio (1967: 104) "um xito de estima", acompanhado de "uma inegvel desorientao na plateia e na crtica". De facto, talvez possamos dizer que, ainda hoje, continua a ser mais editado (e, eventualmente, lido), do que representado como espectculo teatral. Contrariando outras declaraes, o prprio Garrett garante, de uma forma claramente mistificada, na afirmao inaugural do Prlogo dos Editores, redigido em finais de 1843 para a 1 edio da pea, que "No havia a mnima teno de entregar nunca cena Frei Lus de Sousa". A exposio das mais relevantes leituras crticas da obra pode ajudar a reflectir sobre este aparente paradoxo, suscitado pela genial grandeza e novidade da pea garrettiana. Alguns autores tentam justificar que o Frei Lus de Sousa se destinava a um pblico mais letrado do que as peas anteriores de Garrett, dramaturgo de formao clssica Autores como Andre C. Rocha (1954: 46) ou Antnio Jos Saraiva (1972b, II: 30 e 34 ss.). . Acontece, porm, que talvez o pblico do seu tempo e de geraes posteriores no tenha estado altura de compreender os significados manifestos e ocultos da grande obra do dramaturgo.Por conseguinte, e como anunciado, centremos a nossa ateno sobre uma das principais lacunas das edies escolares do Frei Lus de Sousa a ausncia de uma oportuna sistematizao das principais leituras crticas da pea garrettiana. Esta censura no significa que, num caso ou noutro, no aparea a apresentao de algumas dessas interpretaes, normalmente na introduo que precede o texto integral da pea, e de um modo nem sempre devidamente sistematizado e acessvel aos alunos. Perante este cenrio, resta aos professores e alunos completar as informaes ou sugestes crticas da edio adoptada com a leitura de outros textos crticos, publicados mais ou menos dispersamente em obras de consulta e publicaes especializadas, pelos vrios comentadores do Frei Lus de Sousa. At ao momento, creio que apenas dois ou trs autores tentaram essa meritria tarefa de sistematizao das leituras interpretativas do drama garrettiano o estudo crtico de Lucciana Stegano Picchio (1967 e 1982) e os breves artigos de sntese de Jacinto do Prado Coelho (1985) e de Oflia Paiva Monteiro (1996 e 1997).Com base na directa influncia destes trabalhos, de dimenso e importncia desiguais, til tentar mais uma vez nova sistematizao, com intuitos pedaggico-didcticos, das principais leituras crticas desta obra-prima da dramaturgia romntica. compreensvel que na exposio das vrias propostas hermenuticas, distanciadas pelo tempo e pelos mtodos terico-crticos que as enformam, existam mltiplas articulaes. Contudo, para maior clareza do processo de exposio dessas leituras crticas, opta-se pela sua clara delimitao. Naturalmente, no se far uma exposio exaustiva de todas as interpretaes que foram surgindo, mas apenas das que nos parecem mais representativas. Feitas estas justificaes preambulares, pergunta-se: quais foram, ento, as principais leituras crticas do Frei Lus de Sousa, ao longo dos cerca de cento e cinquenta anos que decorreram depois da sua publicao?

2.1. Leitura gentica: a velha questo das fontesUma das primeiras leituras crticas da pea a que procura elucidar a gnese cultural e literria da obra, atravs da indagao das suas fontes histricas e literrias, isto : onde se inspirou Garrett para conceber o enredo desta pea? Que relaes tem esta obra de fico teatral com a realidade histrica? Que obras ter lido para se informar sobre o assunto? De facto, o dramaturgo romntico inspirou-se num tema nacional, numa figura histrica para compor o seu drama. Ao dramatizar a singular existncia de Manuel de Sousa Coutinho, o dominicano Frei Lus de Sousa, insigne historiador e prosador seiscentista, Garrett habilmente conjuga informao histrica e fico imaginativa. Esta recriao, que alia a poesia tradio (palavras de Garrett) estava prescrita, alis, pela teorizao do drama romntico, tal como fora exposta, v.g., por Victor Hugo no prefcio de Cromwell (1827). As alteraes introduzidas na histria ou lenda que envolviam a conhecida figura histrica eram justificadas por T. Braga (1871: 206) "para dar vida ao drama". Uma coisa certa: os vrios textos ou obras de que Garrett se ter servido para a dramatizao do singular percurso histrico de Manuel de Sousa Coutinho pressupem um leitor bem mais culto do que o receptor de outras obras dramticas do autor No contexto da reflexo sobre as vrias fontes histrico-literrias da obra garrettiana, escreve Vasco Graa Moura (1999: 47): "Os precedentes apontados explicam a circunstncia estranha de, na pea, nunca se falar de Frei Lus de Sousa, que, como tal, nunca intervm. Uma nica vez lhe dado esse nome, j no final da pea. O ttulo da obra supe a informao ou a cultura do leitor ou do espectador, como j houve quem observasse, quanto ao que aconteceu a Manuel de Sousa Coutinho, depois de ter professado em S. Domingos sob aquele que veio a ser o seu nome religioso e literrio. As pessoas, na poca de Garrett, conheciam esse desfecho porque havia outras obras que tratavam o mesmo assunto, de resto reconduzvel ao modelo do drama de destino"..A generalidade dos organizadores das edies escolares da pea, tal como quase todos os comentadores da obra garrettiana abordaram esta questo, desde o referido historiador oitocentista e do erudito trabalho de Sousa Viterbo (1902) ou de Jaime Corteso (1915), a estudos mais recentes, como o de Antnio S. Jnior (1960) perfilham esta interpretao. O prprio Garrett foi o primeiro crtico a pronunciar-se sobre o assunto, denegando previsveis (e efectivas) acusaes de falta de originalidade criativa. F-lo no imprescindvel documento peritextual da Memria ao Conservatrio Real, ao enumerar as fontes que achou dever comunicar como remotas influncias para a revelao da sua obra, desde a distante e pitoresca representao da "comdia famosa" do teatro ambulante, na Pvoa de Varzim, s fontes histrico-literrias mais ou menos recentes. Na livre composio da sua fico dramtica, aproveitava o essencial de uma fbula trgica, mas introduzia-lhe alteraes justificveis pela economia dramtica e atmosfera romntica. No podendo ser escravo da cronologia, para Garrett, a verdade dramtica implicava uma consciente alterao da verdade histrica Entre as conscientes e justificveis alteraes da verdade factual, enumerem-se: 1) D. Madalena esperou 7 anos por notcias do primeiro marido (a que devemos somar a idade de Maria, perfazendo os 21), quando historicamente tero sido 17 ou 18 anos; 2) a mesma D. Madalena aparece em cena atemorizada com a marginalizao que se abater sobre a sua nica filha, do seu segundo casamento com Manuel de Sousa, embora saibamos que, historicamente, tinha mais trs filhas do primeiro casamento; 3) Manuel de Sousa incendeia patrioticamente o seu palcio de Almada, sabendo ns que, de facto, no ter sido por um acto de herosmo, nem ele se ter notabilizado por reaces anti-castelhanas, antes pelo contrrio; 4) por fim, a soluo religiosa fica a dever-se inesperada apario de D. Joo, quando, historicamente, a opo pela vida conventual por parte de Manuel de Sousa e da esposa no tem a ver com essa lenda de que Garrett habilmente se aproveitou. Liberdades ditadas pelo duplo objectivo de acentuar a economia dramtica da pea e usar a Histria para apresentar pedagogicamente ao povo uma lio de patriotismo. . No entanto, como sublinham vrios crticos, devemos ler com certa reserva as informaes que a crtica autoral de Garrett apresenta no captulo das fontes da sua obra. Neste sentido, so mais significativas as omisses do que as confisses de possveis influncias que o dramaturgo enumera. Esto no primeiro caso duas obras que Garrett certamente conhecia, mas no menciona: 1) o romance em prosa Manuel de Sousa Coutinho, de Paulo Midosi, publicado n'O Panorama, em 1842, por alturas da escrita da obra de Garrett, tal como foi referido pelo estudo de Andre C. Rocha (1954: 158 e ss.); 2) a comovente lenda de Frei Lus de Sousa, narrativa potica em rima oitava, do Romanceiro de Incio Pizarro de Morais Sarmento, hiptese avanada por Camilo Castelo Branco e depois apontada por Fidelino de Figueiredo, na sua Histria da Literatura Romntica, como uma das provveis influncias garrettianas Luciana S. Picchio (1967: 116) lembra-nos que j na literatura medieval de poca das Cruzadas o motivo do marido ausente do lar por longo tempo, e que no regresso encontra a esposa (que se julgara viva) novamente casada, era um tema dramtico bastante frequente. Alis, acrescentamos ns, este motivo temtico tambm no estranho ao Romanceiro tradicional, que Garrett to bem conhecia (cf. tambm Oflia P. Monteiro, 1987: 25, nota).. Deste modo, absolutamente fundamental que o professor comente com os alunos a referida passagem do texto da Memria ao Conservatrio, ficando estes inteirados do substracto cultural e literrio que ter estado na gnese da obra. Contudo, nesta leitura interpretativa, cabe tambm ao professor a importante tarefa de mostrar aos alunos que, em Literatura, nada se cria a partir do nada todo o texto/obra literria contm os seus hipotextos ou fontes inspiradoras, integrando-se numa tradio literria e cultural, de que naturalmente se alimenta em maior ou menor grau, num significante dilogo intertextual. Assim, fundamental insistir numa ideia que a tradicional, erudita e quase detectivesca crtica das fontes no valoriza devidamente a relevncia do trabalho de assimilao e transformao operado pelo escritor que cria uma obra literria, jogando habilmente com os significados, nem sempre conscientes, dessas semelhanas e afastamentos relativamente tradio literria em que se insere. nesse processo de caldeamento e de imbricao de influncias, leituras ou expectativas que reside a mestria do dramaturgo. Assim sendo, a propalada originalidade, ou a sua falta, no se mede pelo nmero de reminiscncias, de relaes intertextuais explcitas ou ocultas, mas antes pela capacidade de as harmonizar de um modo esteticamente significante no processo comunicador instaurado pela obra de arte literria.

2.2. Leitura biogrfico-psicolgica: a ficcionalizao de um caso pessoalAinda preocupada com a gnese da obra garrettiana, embora de um outro ngulo, outra interpretao do Frei Lus de Sousa desenvolveu-se a partir de um ponto de vista externo ou histrico-psicolgico. Trata-se de uma leitura articulada com a perspectiva gentica antes mencionada, s que agora de uma perspectiva psicolgico-moral, e no propriamente crtico-literrio. De acordo com um mtodo psicolgico-biografista, procurou-se relacionar o contedo do drama garrettiano com as circunstncias da vida do autor, em particular com um caso pessoal de Garrett. Esta tese interpretativa foi explorada ou questionada pela generalidade dos crticos, com realce para: Tefilo Braga, George Le Gentil ou A. J. Costa Pimpo. Essas motivaes histrico-biogrficas, isto , o caso pessoal de Garrett, corrorreriam activamente para a configurao de um dos traos romnticos do drama: a fbula resultaria de uma certa confessionalidade psicolgica, inconsciente ou no.Destacada por algumas edies escolares na dicotomia realidade/fico Ver especialmente a edio didctica organizada por Lus Amaro de Oliveira (1973: 37) "Realidade ou fico na gnese do drama?". Sobre este aspecto, cf. ainda as edies de: Rodrigues Lapa (1941: XII), que se refere traduo da "angstia moral" de Garrett;o estudo de Antnio Salgado Jnior (1960: 531-2); e Oflia P. Monteiro (1987: 10-11), para quem as circunstncias biogrficas so importantes para a reconstituio do "subtexto" do drama; ou Palmira Nabais (1998: 25), que tambm particulariza a existncia de "um elemento de ordem pessoal fortemente determinante do desenlace da tragdia". A mesma equao entre realidade/fico merece o ponderado comentrio de R. A. Lawton (1966: 524 e 528), que chega a falar em dmarche instinctive. , esta interpretao clef valoriza o drama ntimo da figura de D. Madalena, que amou ilicitamente o segundo homem da sua vida, Manuel de Sousa Coutinho, estando ainda casada com o primeiro. precisamente este facto que atormenta a conscincia desta mulher, confessando-o dolorosamente ao velho Telmo Pais. O regresso inesperado, mas sempre temido, do primeiro marido (D. Joo de Portugal) desfaz a nova famlia, tornando ilegtima a filha desta relao (Maria de Noronha). Sobretudo para D. Madalena, ao crime do adultrio de pensamento, sucedeu o castigo da desagregao familiar, da morte da filha e da morte para o mundo (soluo religiosa, tipicamente romntica). luz de um biografismo algo primrio, este drama ntimo configuraria a romntica projeco do caso pessoal do prprio escritor. Separado da primeira esposa, Lusa Midosi, mas casado com ela aos olhos da Igreja, Almeida Garrett conhecera e mantivera uma relao com a jovem Adelaide Deville Pastor, de quem tivera uma filha, Maria Adelaide. Porm, esta mulher morrera inesperadamente em 1841, deixando o amargurado escritor com uma filha ilegtima nos braos, face aos olhos da sociedade conservadora do tempo. Quer na vida quer na fico dramtica, o inocente fruto de uma relao pecaminosa seria objecto de marginalizao social e condenao moral, como refere a biografia de Jos Osrio de Oliveira (1952: 122-123):

Garrett soube dar a eternidade da arte a esse drama verdico. Mas sem o saber, fez mais do que esculpir a tragdia de algumas almas humanas (...). Ps na evocao dessa tragdia a sua prpria alma porque, traando a figura de 'Maria de Noronha', que morre ao saber que filha do adultrio involuntrio da me, pensa no que sofrer Maria Adelaide quando souber que no nasceu dum casamento".

Por conseguinte, segundo esta problemtica hermenutica romntico-biografista, apontada como chave interpretativa do drama, a aflitiva situao existencial, vivida nos dois anos que antecederam a primeira apresentao da pea, teria naturalmente sugerido ou alimentado a imaginao do dramaturgo durante a composio da sua obra teatral, pretendendo com ela exorcizar publicamente a sua culpa. Conforme indicado antes, um dos primeiros autores a sugerir esta interpretao foi Tefilo Braga. Com efeito, j nos finais do sc. XIX, ao deter-se na configurao garrettiana da personagem de Maria de Norona, T. Braga acentuara esta perspectiva psicolgico-biografista, to cara ao seu mtodo histrico-crtico. Reagindo contra a excessiva sensibilidade que Camilo via no perfil da jovem Maria No cap. XVI do Amor de Perdio (Porto Ed., 1991, pp. 191-2), Domingos Botelho dialoga com a aoriana seduzida pelo seu filho, irmo de Simo. Dirigindo-se leitora sensvel, o narrador camiliano ri-se, sarcasticamente, da garrettiana morte por vergonha: "No, minha senhora; o estudante continua nesse ano a frequentar a Universidade; e, como tinha j vasta instruo em patologia, poupou-se morte da vergonha, que uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Fr. Lus de Sousa, e morte da paixo, que outra morte inventada pelos namorados"., o historiador e crtico observa no texto prefacial que escreveu para a edio da pea:

"E Maria, a dbil criana, que morre de vergonha vendo que se separam os seus progenitores, porque ainda est vivo o marido de sua me, surgia-lhe na mente, diante de sua filhinha Maria Adelaide de pouco mais de dois anos, que lhe ficara desses atormentados amores de Adelaide Deville, extinta aos vinte e dois anos. Esse pressentimento realizou-se; porque D. Maria Adelaide na adolescncia veio a saber que D. Lusa Midosi, esposa de seu pai, estava viva em Paris, vindo a confinar-se na vida domstica com a vergonha do seu nascimento" Tefilo Braga (s.d.: XX-XXI); e Almeida Garrett (1963, II: 1072). .

Esta tese biogrfico-psicolgica mais tarde aprofundada por lvaro Jlio da Costa Pimpo Ver o influente ensaio de A J. da Costa Pimpo (1972: 260 e 270. . Valorizando certas "circunstncias pessoais muito importantes" da vida de Garrett, que explicam a "filiao dramtica da figura de Maria de Noronha", este crtico defende que o drama garrettiano deve ser lido como "a transposio dramtica do seu caso pessoal". Perante a situao concreta da morte de Adelaide Pastor e da peculiar situao da filha, o desejo de suscitar a piedade e da sua reabilitao aos olhos da sociedade, "deveria ter vindo ao pensamento de Garrett, por associao espontnea". Em suma, a histria trgica do seiscentista Frei Lus de Sousa surgiria, deste modo, associada ao drama pessoal do prprio Garrett Numa narrativa assumidamente parodstica de Armando Silva Carvalho, intitulada A Vingana de Maria de Noronha (2 ed., Lisboa, Veja, 1989, pp. 119-120), que relata os preparativos de uma encenao moderna do Frei Lus de Sousa. Entre mltiplos casos de dilogo intertextual com a pea garrettiana, destaquemos a fala em que o Encenador chama a ateno dos futuros actores para esta leitura interpretativa: Documentem-se, digo eu aos actores. Toda a gente sabe que Almeida Garrett lutava com problemas de conscincia relativamente amante, Adelaide Pastor, com quem no podia casar e de quem tinha uma filha. Se Maria de Noronha anda h mais de cem anos a tossir no palco e nele acaba por morrer, isso deve-se ao facto de ter existido Maria Adelaide, filha bastarda do Visconde, rf de me a partir de Julho de 1841. . Assim se compreenderia o sacrifcio final da jovem e inocente Maria de Noronha, que suscitou vrias leituras desencontradas (cf. Arroio, 1921; e Pimpo, 1972: 272 e ss.). Com esta morte de dor e de vergonha antes da cerimnia religiosa, despertava-se o terror e a piedade, e expiava-se a culpa dos seus progenitores, atravs da noo crist de pecado e respectivo remorso (catstrofe moral). Fazendo-se eco desta interpretao psicolgica, Jacinto P. Coelho (1985: 352) escreve: "Deste modo, a pea seria um apelo pattico a favor das inocentes vtimas da moral social, bem diversa da moral crist. Pensando na filha, Garrett teria procurado ganhar para Maria a piedosa adeso dos espectadores. E essa seria, portanto, a personagem central". Conforme sugerido, esta perspectiva crtica apresenta os seus perigos redutores e no menores excessos, sobretudo depois da fortssima reaco anti-biografista dos modernos Estudos Literrios que, fundamentadamente, se desenvolveu a partir da potica formalista, passando pelo new criticism anglo-americano, e terminando no estruturalismo dos anos 60. So maiores os inconvenientes de um biografismo ingnuo do que as vantagens objectivas de, no contexto didctico, insistir demasiado nesta abordagem hermenutica do texto garrettiano. Nunca ser demais insistir na inteno verbal ou textual, em detrimento da famigerada inteno autoral. As semelhanas entre a fbula dramtica e uma fase da vida do autor so dispensveis compreenso da obra.Embora no deva ser simplesmente ignorada, j que constitui uma sintomtica leitura interpretativa na j longa histria da recepo da obra, , porm, uma ingenuidade pensarmos que Garrett precisava de uma circunstncia biogrfica para lhe aguar o engenho dramtico e o notvel instinto teatral. Em segundo lugar, cumpre observar que, na essncia de toda a obra literria, est precisamente o processo de ficcionalizao, aqui muito potencializado pela proverbial capacidade de fingimento garrettiano. Alm disso, nunca devemos descurar a importncia do "achado" garrettiano, ao escolher um enredo de exemplar tragicidade, que se adequava perfeitamente sua concepo de drama romntico. Como obra de arte literria, o Frei Lus de Sousa requer uma anlise interna, como a que foi indicada por Antnio A. Dria (1954), W. Kayser (1985) ou os crticos mais recentes, que se debruce sobre a pea enquanto objecto esttico, e no como mera projeco especular de realidades extrnsecas, por mais coincidncias que apresentem com o contedo da obra. Por outro lado, como salienta Andre C. Rocha (1957: 166), ao censurar os perigosos excessos desta leitura, no nos devemos esquecer que Garrett estaria plenamente consciente dos dividendos pblicos que retiraria de uma propositada exposio da sua vida privada. No seu notvel trabalho metacrtico, Luciana S. Picchio (1967: 107) opina que o teor do texto da Memria, primeira leitura crtica do drama, ilustrativo da "inteno artstica do poeta: inteno de genuno e exclusivo carcter literrio". Isto quer dizer que devemos perspectivar o Frei Lus de Sousa como obra de arte literria. Numa palavra, devemos "consider-la em si mesma, e no s em funo do homem ou da poca" (cf. Coelho, 1985: 352). O contrrio desta perspectiva, hoje consensual nos Estudos Literrios, a fixao na ultrapassada, ou pelo menos muito moderada, tentao psicolgico-biografista. Nesta inclinao para o circunstancialismo biogrfico, pode cair-se facilmente em irrelevantes miudezas, tais como as impensveis reminiscncias de infncia; ou valorizar curiosidades mais ou menos insignificantes, como o acidente que obrigou o dramaturgo a permanecer algum tempo em casa, tempo em que ter composto a pea em poucas semanas. Em todo o caso, abenoada canelada! A ttulo de curiosidade, recorde-se o relato de F. Gomes Amorim (1884, III: 67): "Retido em casa, pela ferida resultante de forte canelada, desde princpios de Maro at fins de Abril desse ano de 1843, comeou e concluiu o maior monumento que existe no teatro portugus Frei Lus de Sousa".

2.3. Leitura religiosa: entre a angstia, a revolta e a esperana cristIntimamente relacionada com a interpretao precedente, est uma leitura religiosa e metafsica. A f catlica e os seus princpios morais regem as conscincias e a actuao das personagens centrais do drama, famlia honesta e temente a Deus (Memria). No faltam os cones e signos representativos da divina Providncia (a Palavra de Deus, a Cruz ou a Igreja), nem o caso dos condes de Vimioso (que tambm entraram para a vida conventual), vrias vezes convocado, verdadeiro elemento simblico de mise en abyme, com um funo pressagiadora do prprio desfecho do drama. Esta perspectiva j fora devidamente salientada por Oflia P. Monteiro, quando enfoca a dimenso religiosa como um dos elementos do trgico:

A enformar a tragdia esto, evidentemente, pressupostos religiosos profundamente ancorados na vivncia portuguesa de Seiscentos: a viso catlica da indissolubilidade matrimonial, o escrpulo de conscincias exigentes atormentadas pelo remorso do pecado, mesmo s quando praticado em esprito (1987: 25).

Nesta abordagem, enumeremos trs ideias. A primeira diz respeito angustiante conscincia do pecado, manifestada desde a cena inaugural. Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua conscincia, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. No s teme dolorosamente o regresso do seu primeiro marido, como se sente uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (conscincia de adultrio em pensamento). Depois do expressivo monlogo inicial, o velho e ciumento escudeiro que a atormenta, quer quando conversa com Maria sobre o passado e a esperana sebastianista, quer quando afronta a sua ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna De nascer em melhor estado (I, 2). Mais tarde, a prpria D. Madalena que, justamente na cena anterior apario do Romeiro, confessa ao cunhado Frei Jorge a razo da sua infelicidade, partilhando assim o conflito interior em que se debate, e que a sua conscincia crist se lhe encarrega de lembrar Relembremos a confisso sentimental desta mulher, herona mais romntica que seiscentista: Este amor, que hoje est santificado e bendito no Cu, porque Manuel de Sousa meu marido, comeou com um crime, porque eu amei-o assim que o vi... e quando o vi, hoje, hoje... foi em tal dia como hoje! D. Joo de Portugal ainda era vivo. O pecado estava-me no corao: a boca no o disse... os olhos no sei o que fizeram, mas dentro da alma eu j no tinha outra imagem seno a do amante... j no guardava a meu marido, a meu bom... a meu generoso marido... seno a grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quase que mais deve a si do que ao esposo. Permitiu Deus... quem sabe se para me tentar?... que naquela funesta batalha de Alccer, entre tantos, ficasse tambm D. Joo. (III, 10)..Dentro da mesma mundividncia religiosa, a segunda ideia a da desafiadora revolta protagonizada pela jovem Maria de Noronha nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela Igreja de S. Paulo, em plena celebrao, quando os seus pais se preparam para ingressar na vida conventual. No a prepararam para to duro golpe, nem lhe perguntaram a sua opinio. Apenas a confrontaram com aquele violento abandono, quando j se ouve o som do rgo e os frades de S. Domingos vo entoando os salmos penitenciais. Totalmente desvairada, ela interrompendo a santa cerimnia. Tenta demover os pais de to inumana resoluo, quando eles iam morrendo para o mundo, abandonando o seu antigo estado e abraando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes (Frei Lus de Sousa e Sror Madalena): Esperai: aqui no morre ningum sem mim. Que quereis fazer? Que cerimnias so estas? (III, 11). neste contexto que, perante a inabalvel resoluo dos seus pais, surge a dolorosa invectiva de Maria de Noronha, num longo e pattico monlogo, contra a falta de humanidade de um Deus justiceiro e vingador, que assim lhe rouba os seus legtimos pais: Que Deus esse que est nesse altar e quer roubar o pai e a me a sua filha? (Para os circunstantes.) Vs quem sois, espectros fatais?... Quereis-mos tirar dos meus braos? Esta a minha me, este o meu pai. Que me importa a mim com o outro? (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade para a nica vtima inocente. As razes e os valores religiosos, sobretudo a indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem crua e desumanamente as razes do corao e o fruto de uma unio apaixonada (plano humano). Por ltimo, cabe mencionar a resoluo do casal (soluo religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D. Madalena. Acolhendo resignadamente os insondveis desgnios de Deus, os dois decidem entregar-se sua omnipotente e divina Providncia. Recordando esposa o caso dos condes de Vimioso, o marido levado a reconhecer que a nica soluo (romntica) do drama familiar em que se v mergulhado com a sua esposa reside na sepultura de um claustro Madalena senhora! Todas estas coisas so j indignas de ns. At ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava na boa f e seguridade de nossas conscincias. Essa acabou. Para ns j no h seno estas mortalhas (Tomando os hbitos de cima do banco.) e a sepultura de um claustro. A resoluo que tommos a nica possvel, e j no h que voltar atrs. Ainda ontem falvamos dos condes de Vimioso... Quem nos diria... oh! incompreensveis mistrios de Deus!... nimo, e ponhamos os olhos naquela cruz! (III, 8). .O mesmo sentimento de aguda revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai. Com efeito, no incio do derradeiro Acto, aparece-nos um Manuel de Sousa profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraa, dominado apenas por um doloroso sentimento: a perdio de sua filha no abismo da vergonha, vtima inocente do drama familiar. Recebe, ento, os conselhos de resignao e acatamento dos desgnios da divina Providncia, por parte do irmo, Frei Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: E Deus h-de levar em conta essas amarguras. J que te no pode apartar o clix dos beios, o que tu padeces h-de ser descontado nela, h-de resgatar a culpa. Deus velaria paternalmente pelo seu pobre anjo: Deus, Deus ser o pai de tua filha (III, 1). Fora, alis, a prpria me, momentos antes da cerimnia religiosa, que a oferecera a Deus como uma espcie de cordeiro imolado para expiar o seu prprio pecado (Indo abraar-se com a cruz.) Oh! Deus: Senhor meu! pois j, j? Nem mais um instante, meu Deus? Cruz do meu Redentor, cruz preciosa, refgio de infelizes, ampara-me tu, que me abandonaram todos neste mundo, e j no posso com as minhas desgraas... e estou feita um espectculo de dor e de espanto para o Cu e para e a terra! Tomai, Senhor, tomai tudo... A minha filha tambm?... Oh! a minha filha, a minha filha... tambm essa Vos dou, meu Deus. E agora, que mais quereis de mim, Senhor? (Toca o rgo outra vez.) (III, 9).. A filha desonrada e perdida tinha sido tambm o motivo da exploso de dor perante a anagnrisis incompleta (II, 13) O drama ntimo de Manuel de Sousa, depois transformado em Frei Lus de Sousa, volta a inspirar outros autores, como Eugnio de Castro, em A Fonte do Stiro, texto integrado nas Obras Poticas, vol. II, Lisboa, Lumen, 1930, pp. 171-178. A nos descreve o atormentado dominicano que, j na sua velhice, perseguido por vises concupiscentes: S o ligeiro Amor no se faz velho,/ Do bero tumba dominando o homem! (p. 178). A antiga e recalcada paixo por D. Madalena irrompe num momento de devaneio, atravs do dilogo com a figura de um Stiro pago viso impura que recorda o famigerado e baudelariano poema Morte do Santo de Carlos Fradique Mendes. A violncia da separao explica que Soror Madalena tambm acalente Doces Lembranas duma vida bela/ Com as queixas da sua viuvez! (p. 177).. Depois da interrupo da cerimnia religiosa por Maria, a pea termina justamente com um sentimento misto de resignao e esperana crists: ser transitrio, o homo viator confia plenamente a sua existncia na misericordiosa mo de Deus. Todos rezam pela alma daquele anjo inocente que acaba de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: Meus irmos, Deus aflige neste mundo queles que ama. A coroa de glria no se d seno no Cu (III, 12). Ao pecado do adultrio de pensamento e ilicitude da relao matrimonial, impe-se a soluo religiosa, como forma de repor a desejada ordem moral ao crime sucede a expiao, atravs da Cruz redentora. Consuma-se, deste modo, a anunciada catstrofe do duplo e tremendo suicdio (Memria): suicdio moral dos esposos e morte fsica da vtima filha.

2.4. Leitura genolgica: a discusso do gneroOutra das primeiras leituras crticas, contempornea da prpria apresentao pblica da obra, a que se debrua sobre a classificao genolgica da pea de Garrett: quanto ao gnero literrio, o Frei Lus de Sousa um drama romntico, ou ainda a renovao da tragdia antiga? A resposta adiantada pelo prprio dramaturgo: drama de ndole trgica (hibridismo genolgico). Vejamos. Tal como em relao anterior leitura interpretativa, tambm aqui quase todos os crticos e organizadores de edies escolares da pea se detiveram sobre este assunto fulcral Uma das edies escolares que mais se detm nesta questo genolgica, reflectindo particularmente sobre os aspectos estruturantes do antigo gnero da Tragdia presentes na composio do Frei Lus de Sousa (hybris, peripcia, reconhecimento e catstrofe), e sobre o tratamento da regra das trs unidades, a organizada por J. D. Marques Mendes (1983). Veja-se ainda a orientao de Lus A. Oliveira, quando compara o desenvolvimento da tragdia clssica ao enredo da pea de Garrett, na sntese intitulada "Caracterizao literria"; ou quando esquematiza esta ltima questo "O Frei Lus de Sousa visto sob o esquema das unidades do teatro clssico" (1973: 160 e 168-9, respectivamente). O omnipresente fundo trgico da pea no est imune intromisso de um espordico "esboo cmico" (III Acto, cena VI), que no chega a constituir uma romntica hibridizao dos gneros (cf. Pavo, 1980)., desde o pronunciamento autoral do dramaturgo, passando pelo interessante comentrio de Wolfgang Kayser (1985), at mais recente e bem fundamentada problematizao terico-didctica sobre o arquitexto garrettiano, elaborada por Cristina Mello (1998). Por isso, no ser necessrio que nos detenhamos muito na abordagem deste aspecto fundamental.Como se sabe, meia dzia de anos depois de ter apresentado o primeiro drama romntico (Um Auto de Gil Vicente), apostado em ressuscitar e modernizar o teatro portugus, o prprio dramaturgo apresentou a sua insubstituvel perspectiva sobre o assunto, no importante documento peritextual da Memria ao Conservatrio Real, ao considerar que na histria em que se inspirou "h toda a simplicidade de uma fbula trgica antiga". Inspirando-se num assunto nacional, seguia os princpios da esttica romntica, evitando os excessos melodramticos do popular dramalho. Contudo, o prprio autor tem conscincia da "ndole nova" e concomitante indefinio ou ambiguidade genolgica da sua obra. A modernidade genolgica foi ressaltada desde muito cedo pela crtica literria da poca, na pena de um Lus a. Rebelo da Silva (1909: 95 e ss.), quando se menciona, por ex., a tragdia moderna.Por um lado, Frei Lus de Sousa no respeita todos os cnones potico-retricos da multissecular tragdia clssica (assunto antigo, uso do verso ou a diviso em 5 actos), sem deixar de ser uma "verdadeira tragdia". Embora optando por assunto portugus e relativamente moderno, a fbula determinada por leis superiores (religio e moral social), personagens de perfil trgico. O leitor/espectador ainda confrontado com a relativa observao da velha lei das trs unidades (aco, espao e tempo). Por ltimo, mencione-se o facto de o coro da tragdia clssica ser desempenhado ora pelo velho Telmo Pais, ora pelo dominicano Frei Jorge. Por outro, inspirando-se em temtica nacional e at em circunstncias biogrficas (ingredientes do drama moderno), a obra tambm no observa toda a moderna esttica do drama romntico, o que leva o dramaturgo a observar, com mal disfarada e conhecida ambiguidade: "s peo que a no julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composio de forma e ndole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela ndole h-de ficar pertencendo sempre ao antigo gnero trgico". A no observncia formal da rgida lei das trs unidades da tragdia antiga, parece-nos amplamente compensada pelo admirvel aproveitamento garrettiano de trs procedimentos tcnico-compositivos:

a) o desenvolvimento da estrutura interna: i) inicia-se nas primeiras cenas do I Acto, com a exposio do conflito; ii) prolonga-se at ao final do II Acto, com o adensamento e clmax dramticos; iii) j no III Acto, com a morte simblica (profisso religiosa) e a morte fsica de Maria, configura-se o desenlace trgico; b) a concentrao dramtica: i) da aco que, da exposio inicial do conflito, caminha inexoravelmente para o adensamento trgico e anagnrisis gradual, at ao desenlace final; ii) do tempo que se vai fechando gradualmente, at ao dia fatal de 4 de Agosto de 1599, 21 depois da batalha de Alccer Quibir; iii) e do espa, que se vai afunilando paulatinamente at austeridade do palcio de D. Joo de Portugal e do retrato, e, depois, da capela onde decorre celebrao religiosa final na sbria igreja de S. Domingos Vejam-se os sugestivos esquemas didcticos de Lus Amaro de Oliveira (1973: 18 e 116-7), sob o repetido ttulo de Concentrao dramtica. .c) o estilo e a arte do dilogo: a tragicicidade do drama garrettiano inquestionavelmente devedora de um estilo que prima pela sobriedade lexical e pela expressividade lingustica, ora explorando determinados recursos bem reveladores dos estados emocionais das personagens (aluses, exclamaes, reticncias, interrogaes, etc.); ora adequando, de um modo admirvel, o estilo ao momento, perfil e ideologia de cada personagem nervoso e angustiado em D. Madalena; emocionado e inquiridor em Maria; respeitoso e digno em Telmo; nobre e decidido em Manuel de Sousa Numa das suas inesquecveis epstolas, o viajado e culto Carlos Fradique Mendes queirosiano aborda o problema da vernaculidade da lngua, a pretexto da perniciosa influncia do francs sobre a lngua portuguesa, bem como a aparentemente paradoxal tese de que a beleza estilstica de um escritor no directamente proporcional sua riqueza lexical. Depois de outros exemplos ilustrativos, Ea de Queirs pe na boca de Fradique o caso paradigmtico deste drama garrettiano, apresentado como a melhor lio de como a sobriedade e simplicidade lexical podem ser genialmente postas ao servio da dramaticidade de uma obra mpar da literatura do seu tempo. Bem-aventurados os pobres de lxico! Recordemos o seu acertado juzo estilstico, descontando a ironia do contexto: Tome voc o primeiro acto do Frei Lus de Sousa, do Garrett do Garrett, que era outro pobre de lxico! A tem voc uma pura obra-prima, uma das mais belas que existem em todas as literaturas da Europa. Nada mais sbrio, mais simples, mais seco. Cada frase contm apenas as palavras necessrias e tem alm disso dentro em si todo um mundo de coisas profundas.No termina Fradique a sua lio sobre o estilo sem desafiar o seu interlocutor para um exerccio de imaginao: nas mos de um desses escritores ricos de lxico, de elocuo adornada e exuberante, o drama de Garrett, obra incomparavelmente bela, ficaria em pouco tempo irrmediavelmente transformado em uma pastelada balofa e parva!. (Ea de Queirs, Cartas Inditas de Fradique Mendes e Mais Pginas Esquecidas, Porto, Lello, 1973, pp. 83-84). .

Pode ainda dizer-se que os dois primeiros actos so de ndole mais trgica, ao passo que o terceiro e ltimo, sobretudo com a melodramtica morte de Maria, compreensivelmente mais sombrio e pattico. Nos dois primeiros, cuja sobriedade trgica culmina na anagnrisis final do II Acto, sobressai um crescente clima de medo, em que uma famlia ameaada pelo pecado e ensombrada pela figura do ausente/presente D. Joo de Portugal, encarnao de um Destino fatal; diferentemente, no terceiro, mais declamatrio, o cristianismo romntico que impe a morte de Maria, como uma espcie de expiao. Isto mesmo foi salientado, entre outros crticos, por Manuel Antunes (1987: 334):

"At aqui final do segundo acto o Frei Lus de Sousa aparece-nos como pea altamente trgica, se no sempre pelos personagens, ao menos, sem dvida alguma, pelo ambiente. No terceiro acto, porm, o clima surge-nos de drama, predominantemente de drama. De drama romntico pronunciado. Garrett sacrificou moda do tempo".

Por conseguinte, em termos de concluso didctica podemos afirmar que, para a estudada modstia crtica de Garrett, no contrariada no essencial pela crtica posterior, o Frei Lus de Sousa formalmente um drama romntico, servido por um enredo nacional de inegvel fundo trgico. Para chegar a esta reflexo, torna-se imprescindvel que o professor apresente aos alunos, de um modo breve mas ilustrativo, as caractersticas esttico-literrias que configuram o drama como um novo gnero romntico, sobretudo a partir da teorizao de Victor Hugo e de Friedrich Schiller.Em suma, no contexto da literatura europeia da primeira metade de oitocentos, como conclui M Leonor Machado de Sousa (1984: 489), com a composio de "uma tragdia de assunto ptrio", Almeida Garrett mostra o seu conhecimento sobre a literatura romntica da poca, ao mesmo tempo que confirma que "Portugal tinha tudo o que era preciso para fazer o seu prprio Romantismo: matria nacional de interesse humano e engenho culto e suficientemente criativo para trabalhar livremente e com qualidade sobre as ideias que andavam no ar".

2.5. Leitura poltico-sociolgica: relaes especularesTo importante como o tempo da intriga recriado pela pea (finais do sc. XVI e incio do sc. XVII), a poca da escrita em que o dramaturgo a compe (dcada de 1840). Neste natural jogo de espelhos, de incontestvel fundo poltico-ideolgico, foi muito grande, desde cedo, a tentao de interpretar o Frei Lus de Sousa luz do contexto epocal em que a obra foi escrita, apresentada e depois publicada. Assim, a pea configurar-se-ia como uma censura mais ou menos velada e simblica, mas nem por isso menos eficaz, da situao poltico-social portuguesa, das "violncias palatino-cabralistas" (T. Braga), vividas sob o governo conservador e autoritrio de Costa Cabral Com a introduo de Oflia P. Monteiro (1987), a edio de M Joo Brilhante (1987: 31) dos poucos trabalhos a mencionar esta leitura crtica, quando se refere importncia do peritexto garrettiano (texto da Memria, prefcio e notas autorais) como "chave de processo de interveno social, assinalando o momento da decadncia".. De uma maneira singular, e maneira das prximas Viagens na Minha Terra, a pea garrettiana constitua tambm uma forma de pronunciamento, como quase tudo o que saiu da pena do escritor.Neste enquadramento receptivo, no surpreende que a censura cabralista chegue a questionar os perigos do exaltado patriotismo da pea, amputando-lhe os actos ou falas de bravura revolucionria diante da tirania castelhana (incndio do palcio de Manuel de Sousa Coutinho), argumentando com as consequncias para as relaes diplomticas entre os dois estados peninsulares. Alis, tero sido as ideias polticas mais revolucionrias de Almeida Garrett que, exonerado dos cargos pblicos ligados directamente reforma do teatro portugus, impediram, durante algum tempo, a representao do Frei Lus de Sousa (cf. Piccho, 1967: 106). O contexto poltico-social que viu o nascimento da obra de Garrett admiravelmente traado por Oflia P. Monteiro (1987: 8), na introduo a uma das recentes edies escolares:

"Circunstncias polticas mas no s explicam a resistncia oferecida representao de Frei Lus de Sousa nos anos vizinhos da sua divulgao pela imprensa. Estava-se ento em pleno regime cabalista, ao qual Garrett j discutido homem pblico como escritor e como poltico vinha opondo corajosa crtica. Costa Cabral na pasta do Reino desde a aco revolucionria que encabeara em 1842 impusera com efeito ao Pas, restaurada a Carta Constitucional, um liberalismo de fachada, assente num autoritarismo grosseiramente pragmtico".

De acordo com o seu mtodo positivista, Tefilo foi um dos principais mentores desta interpretao poltico-sociolgica. Comentando a dose de inovao que Garrett introduz na lenda de Frei Lus de Sousa, tal como ela contada pelo erudito D. Francisco Alexandre Lobo, T. Braga (1871: 206) conclui que o dramaturgo tornou o seu perfil mais poltico. Este ponto de vista volta a ser expresso pelo historiador no prefcio para a edio da pea: "A ptria, abafada na sua autonomia pelas violncias palatino-cabralistas, ainda reviver, sentia-o. Era uma esperana, uma ansiedade messinica, que na sua forma popular tomava o aspecto de Sebastianismo" Tefilo Braga (s.d.: XXI); e Almeida Garrett (1963, II: 1072). . Esta perspectiva interpretativa poltico-sociolgica merece de Luciana S. Picchio (1967: 113) o seguinte comentrio sobre a funo poltica que T. Braga atribua ao drama de Almeida Garrett: "(...) no momento em que Portugal, em fase de involuo poltica, estava corrompendo os frutos da revoluo de 1836, o acto de revolta de um patriota como Manuel de Sousa teria podido reacender a chama revolucionria no corao dos portugueses". Como toda a interpretao alicerada em um mtodo sociolgico-positivista, esta leitura crtica, sendo legtima, no pode arvorar-se naturalmente como a grande interpretao da pea, tendo ainda o defeito congnito de todas as leituras deste tipo toma o Frei Lus de Sousa mais como documento poltico-social de uma poca, do que como monumento esttico-literrio.Ao contrrio da interpretao teofiliana, a crena sebastianista e respectiva confiana num mtico destino portugus, personificada nas personagens de Telmo Pais e da influencivel Maria de Noronha, acaba por ser a causa da tragdia familiar. Alis, tambm Jacinto do Prado Coelho (1985: 352), afastando-se criticamente da interpretao teofiliana de Sebastianismo, declara: "Do ponto de vista pedaggico, decerto Garrett, sempre atento realidade concreta, mais do que no sebastianismo de Telmo, confiava no exemplo viril de D. Manuel incendiando o seu palcio para no servir de abrigos aos opressores da ptria". Uma coisa certa, est subjacente no Frei Lus de Sousa a ideolgica explorao da similitude entre duas pocas histricas: o moderno autoritarismo cabralista, sob a aparncia de um regime liberalista, assemelha-se desptica ocupao castelhana. Neste sentido, a obra de Garrett no deixa de ser uma crtica mais ou menos velada poltica vigente, ressaltando a revolta e sublevao de um homem (Manuel de Sousa) contra a tirania de um regime imposto, e em prol do elevado valor da liberdade e da independncia ideolgica. Imagem ficcional do empenhamento poltico-ideolgico do prprio Garrett, o herosmo de Manuel de Sousa deve ser interpretado como um significativo acto de vontade, por parte de um homem que preza a liberdade contra todas as formas de tirania.

2.6. Leitura psicocrtica e imagtica: o conflito e a psicologia profundaMantendo algumas articulaes com outras leituras j referidas, tambm merecem realce duas anlises crticas que tm em comum uma perspectiva de tipo psicolgico, embora de uma psicologia profunda, alheia a biografismos mais ou menos superficiais, diferenciadas pelo ngulo ou mtodo crtico perfilhado. Interessa-lhes reflectir sobre a conflituosidade e fragmentao interior de algumas personagens, por um lado; e por outro, sobre a prpria expresso confessional da alma do dramaturgo. Em causa estaria a prpria dualidade do Homem, no seu conflito entre o ser e o parecer, entre o Eu profundo e o Eu de superfcie.Antnio Jos Saraiva sustenta que Telmo, verdadeira personagem central do drama, que o prprio Garrett interpretou na primeira representao, simboliza a alma profunda e fragmentada do autor, no seu aspecto mais dramtico de interioridade partida entre dois conflitos de fidelidades (culto sebstico e crena no regresso do seu amo, a par da profunda afeio por Maria), de impossvel harmonizao: "A personagem que verdadeiramente se encontra no ncleo do Frei Lus de Sousa e em quem encarna o conflito Telmo Pais" (Saraiva, 1972a, I: 77-78). Este conflito dramtico, partilhado apenas em parte por D. Madalena, deve entender-se, por conseguinte, luz de outros conflitos similares que estruturam as Viagens na Minha Terra e a figura conflituosa e dispersiva de Carlos; mas tambm as Folhas Cadas e os antitticos sentimentos do sujeito lrico.O dramatismo intensifica-se quando o velho Telmo se consciencializa da passagem do tempo, dando-se conta de que a antiga venerao ou culto por D. Joo, que vive apenas na sua "lembrana mumificada", substituda por uma sentida afeio bem real e viva pela jovem Maria de Noronha. Este o cerne do conflito interior de Telmo Pais, aquele que lhe ope a antiga "fidelidade de escudeiro" e nova afeio por Maria. Mudam-se os tempos e as circunstncias, mudam os coraes, e a pretendida coerncia de sentimentos torna-se impossvel. Perante este dilema interior, o velho aio acaba por transformar-se no anunciador da "morte do impostor" (D. Joo de Portugal). Essa morte do passado -lhe solicitada expressamente pelo antigo amo, mas esse pedido estava j entranhadamente sentido no perturbado corao de Telmo Cf. Antnio Jos Saraiva (1972b, II: 37 e ss.). Veja-se ainda Oflia P. Monteiro (1987: 2). Tambm R. A. Lawton (1966: 226 e ss.) aborda a conflituosidade interior das figuras de D. Madalena e de Telmo Pais, resultante da oposio passado/presente. . Resumidamente, o Frei Lus de Sousa pode e deve ser visto como "um drama do eu, na parte em que respeita a Telmo Pais", no sentido em que o dramaturgo ps nesta personagem "a sua experincia mais ntima", desenvolvendo a temtica da unidade e coerncia do homem, e da sua relao com o seu destino. Esta conscincia dramtica foi ainda sintetizada por Jacinto do Prado Coelho (1985: 352), para quem Telmo exprimiria

"a dor de no ser constante e inteiro no amor, a mgoa, a que se mistura algo de remorso, de viver repartido entre duas afeies inconciliveis, dois compromissos, uma para com o passado (no caso de Telmo, a fidelidade a D. Joo de Portugal) e outro para com o presente (no caso de Telmo, a entranhada estima por Maria), que o leva a desejar que o antigo amo nunca mais volte".

Por sua vez, na senda de Joo Mendes, Mrio Garcia autor de uma leitura de tipo imagtico, na esteira do mtodo crtico proposto por Gaston Bachelard e Gilbert Durand. Lendo as trs grandes obras, no domnio da prosa, do lirismo e do drama, sob a perspectiva da imagtica do fogo, visualiza em Almeida Garrett um conflito interior semelhante ao de Telmo Pais, um conflito entre o Eu social, de aparncias e disfarces, e o Eu desvelado, profundo e verdadeiro (oposio de Jung entre anima e animus da personalidade humana). O lmpido e voluntarioso Manuel de Sousa Coutinho, que incendeia heroicamente o seu palcio, impelido pela honra, representaria "o contributo para a regenerao espiritual de Garrett, atravs do sentido de paternidade" (Garcia, 1967: 3).Para Joo Mendes, na sua preenchida vida pblica, Garrett viveu um inquestionvel drama da fidelidade, entre um homem social, de aparncias e mscaras, e um homem sensvel, ntimo e real. Ora, esse conflito de fidelidade , de algum modo, projectado nas dramticas figuras de D. Madalena e de Telmo Pais, tendo sido esta ltima interpretada pelo dramaturgo na primeira representao, como j se disse. Ainda nesta viso psicocrtica, a sada para o conflito e diviso interior de Garrett residia no sacrifcio de Manuel de Sousa Coutinho: A soluo da renncia. Manuel de Sousa o Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi, por falta de coragem (Mendes, 1982: 46). Nesta figura oposta disperso do Carlos passional e infiel, Garrett despe a mscara social e encontra-se consigo prprio, embora de um modo "transfigurado e ideal", interpretao partilhada por Joo Mendes (ib.: 58), quando sustenta que o Frei Lus de Sousa a obra de acerto de Garrett com ele prprio. Apelando para uma leitura histrico-psicolgica, Manuel de Sousa simbolizaria a reabilitao de Almeida Garrett perante a sua filha Maria Adelaide e perante a sociedade. Num percurso de natureza dialctica, Manuel de Sousa simbolizaria o Garrett romntico (tese), enquanto o Carlos das Viagens na Minha Terra configuraria o homem devorado pelo amor-paixo (anttese), encontrando-se a sntese n As Folhas Cadas, entre Manuel de Sousa e Carlos (Garcia, 1967: 4). Mais do que alegoria poltica da histria (cf. Lawton, 1966: 290), o incndio da casa e o permanente estado febril de Maria de Noronha remetem para a bivalncia da imagem arquetpica do fogo: ora significando a auto-expiao de Manuel de Sousa e confisso de Almeida Garrett; ora a purificao do sangue, manifestada na febre da jovem Maria, fruto do pecado de uma relao extra-conjugal (Garcia, 1967: 7). O incndio depuador da paixo prepararia, deste modo, o desfecho religioso do drama.

2.7. Leitura mtico-cultural: o Sebastianismo e o destino portugusPor fim, voltemos ao tempo recriado pela intriga da pea e sua especular relao com a poca da escrita. muito significativa a associao do significado central do desastre da batalha fatdica no norte de frica (4 de Agosto de 1578) e a gnese do Sebastianismo com o presente da escrita da pea, como advertem vrios crticos Como lembrado, entre outros, por R. A. Lawton (1966: 301)."Frei Lus de Sousa est color tout entier par les consquences dsastreuses de la bataille d'Alccer-Quibir, et du sbastianisme qui y prend naissance".. De facto, a interpretao do Frei Lus de Sousa no pode esquecer a actuante presena do Sebastianismo e o que este mito do Desejado significava na concepo ontolgico-cultural de Portugal como nao. Para Garrett, desencantado com o rumo da nao, umbilicalmente ligado a um passado quinhentista, e vivendo sombra de uma pesada memria, o Portugal de Oitocentos s teria futuro libertando-se dessa persistente, infrutfera e mortal nostalgia passadista. Para compreendermos melhor esta abordagem interpretativa, detenhamo-nos brevemente em trs ideias interligadas na interpretao negativa do Sebastianismo: a concepo garrettiana do tempo como devir; a relevncia e significados do Sebastianismo na obra garrettiana; a pea como encenao da tragdia colectiva de um povo.As ideias que seguidamente apresentamos ganham outro significado se relacionadas com o primeiro pensamento enunciado: a concepo garrettiana do tempo como devir, que necessariamente flui, mudando os seres e as coisas, como observa Oflia P. Monteiro (1996: 217). Com efeito, as crenas sebastianistas eram sinnimo de passadismo, de estril paragem do tempo. Ao contrrio, o movimento da Histria tem um sentido projectivo, um devir que se no compadece com nostlgicos regressos ao passado. Regressar ao passado sinnimo de morte do presente e de srio comprometimento do futuro. Como vemos, o imobilismo ou passadismo sebastianista constitui uma filosofia da histria profundamente oposta ao modo como escritor concebe o tempo de um modo to manifestamente dinmico, sentimento expresso em vrias obras.Recordemos, por ex., o Cap. II das Viagens na Minha Terra, em que o narrador-viajante expe a sua filosofia interpretativa do progresso ou da marcha da civilizao, atravs dos princpios do espiritualismo/materialismo Entre outros pensamentos, o narrador declara judicioso: Mas, como na histria do malicioso Cervantes, estes dois princpios to avessos, to desencontrados, andam contudo juntos sempre, ora um mais atrs, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre./ E aqui est o que possvel ao progresso humano./E eis aqui a crnica do passado, a histria do presente, o programa do futuro.. O sentido da histria sempre com os olhos no futuro, exorcisando as fantasmagorias do passado. Saudade, gosto amargo de infelizes, s do futuro, pois as do passado consome e mata. Outra exemplar afirmao do tempo como devir o elogio garrettiano do seu grande amigo e correligionrio Mouzinho da Silveira. Incompreendido e at perseguido, a aco governativa deste poltico reformista dos tempos revolucionrios pensava o futuro, significando assim um verdadeiro ponto de viragem onde acaba o velho Portugal e de onde comea o novo. Ao fazer o balano de to profundas transformaes operadas pelo labor legislativo deste poltico, o escritor sustenta que se o presente complexo e o futuro desconhecido, qualquer nostalgia do passado se afigura impossvel e condenvel. Numa palavra, o esforo modernizador de Mouzinho no sentido da desejada transformao de um pas que se queria civilizado pode resumir-se deste modo: proscrever o passado, e indicar o futuro Almeida Garrett (1963, I: 994 e 995).. Alis, somos levados a concordar com Vasco Graa Moura (1999: 62), quando v perspicazmente no rio Tejo, que separa os dois palcios da fbula dramtica, uma surda metfora do tempo. Tambm Oflia P. Monteiro salientar a relevncia temtica do tempo na definio da tragdia que esterilmente destri uma famlia e na mundividncia crtica do dramaturgo contra certa reaco poltico-ideolgica:

Outros aspectos ainda tero ajudado a tornar perturbado Frei Lus de Sousa. Mostrar como destruidor o regresso de um vivo-morto, tecendo esse motivo com o da espera sebstica, assim classificada de deletria, era simbolicamente sugerir que a irrupo do Passado, na sua fixidez, prejudica a dinmica do Prresente, j que a vida se inscreve no tempo que flui (1997: 693).

Inteirados desta mundividncia, que parte da homologia entre a decadncia do passado (final de Quinhentos) e a do presente (anos de 1840), devemos ler ideologicamente a pea de Garrett como uma das obras literrias que se inspiraram num mito colectivo, inserindo-a assim, embora de um modo peculiar, no rico intertexto e interdiscurso literrio e cultural do Sebastianismo No incio do sc. XIX, com as invases francesas, mais um momento de crise do poder poltico e da identidade nacional, recrudesceram as crenas sebastianistas. O mesmo tinha ocorrido anteriormente com a entrada dos castelhanos na cena poltica portuguesa. Contudo, a reaco anti-sebstica no se fez esperar. Jos Agostinho de Macedo, em Os Sebastianistas, Reflexes sobre esta ridcula seita (Lisboa, 1810), ainda desculpa a proliferao da seita nos anos que se seguiram ao desaparecimento do jovem rei D. Sebastio, mas ridiculariza, de uma perspectiva racionalista, os excessos das ideias sebastianistas na sociedade portuguesa. Sebastianismo no passava de uma infundada crena de um povo de ignorantes, face do outros povos mais evoludos. Na sua stira s seitas sebastianistas, e sucessivas interpretaes do mito do Encoberto, conclui Macedo que o crente no sebastianismo era um mau cristo, mau vassalo, mau cidado e o maior de todos os tolos (cf. Pires, 1982: 90-93).. Mesmo alguns crticos que destacam a verdade biogrfico-confessional do drama garrettiano, logo acrescentam uma outra interpretao que a complementa e ultrapassa: "Mas acima de tudo, nessa pea deixa gravado o drama inteiro dum povo, como n' Os Lusadas ficou inscrita a sua glria" Jos Osrio de Oliveira (1952: 123). . Neste contexto, recordemos alguns dados muito significativos a respeito das crenas sebastianistas. O primeiro intrnseco obra e diz respeito funda crena sebstica do velho Telmo Pais. Amigo de Lus de Cames, o aio fiel acredita no regresso do seu velho amo, D. Joo de Portugal, que acompanhara o jovem rei D. Sebastio nefasta batalha. Ao comunicar estas crenas jovem e influencivel Maria de Noronha, Telmo Pais desperta gradualmente o terror em D. Madalena de Vilhena, logo a partir da cena II do I Acto. Como sabemos, ao longo da pea, so vrias as referncias expressas mtica figura de D. Sebastio. Comeam no primeiro dilogo entre Telmo e D. Madalena, que censura ao velho aio as suas crendices sebsticas: (...) mas as tuas palavras misteriosas, as tuas aluses frequentes a esse desgraado rei D. Sebastio, que o seu mais desgraado povo ainda no quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade! (I, 2). Prosseguem as crenas sebastianistas na entusiasmada fala de Maria de Noronha, que, para grande aflio da me, acredita piamente no regresso do desejado monarca: (...) o outro, o da ilha encoberta onde est el-rei D. Sebastio, que no morreu e que h-de vir um dia de nvoa muito cerrada... Que ele no morreu; no assim, minha me? (I, 3). Perante o raciocnio oposto da me, a jovem mostra-se convicta porta-voz do Sebastianismo e contra-argumenta:

Voz do povo, voz de Deus, minha senhora me: eles que andam to crentes nisto, alguma coisa h-de ser. Mas ora o que me d que pensar ver que, tirado aqui o meu bom velho Telmo (Chega-se toda para ele, acarinhando-o.), ningum nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse o nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastio. Meu pai, que to bom portugus, que no pode sofrer estes castelhanos, e que at s vezes dizem que de mais o que ele faz e o que ele fala, em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastio... ningum tal h-de dizer, mas pe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo e carrancudo: parece que o vinha afrontar, se voltasse, o pobre do rei. (I, 3).

Depois das vrias referncias ao Sebastianismo, o segundo dado para sublinhar o significado da dependncia do palcio do primeiro marido, mais concretamente no "salo antigo, de gosto melanclico e pesado", onde existiam os vrios retratos existentes. De acordo com o importantssimo texto disdasclico que antecede o II Acto, destacavam-se, pela sua singular localizao, os retratos de trs figuras simblicas (D. Sebastio, Cames e D. Joo de Portugal), que merecem, sucessivamente, a curiosa e entusiasmada ateno de Maria, que, em dilogo com Telmo Pais, tambm alude s profecias sebsticas:

"Olha: (designando o de el-rei D. Sebastio) aquele do meio, bem o sabes se o conhecerei; o do meu querido e amado rei D. Sebastio. Que majestade! que testa aquela to austera, mesmo dum rei moo e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou a srio o cargo de reinar, e jurou que h-de engrandecer e cobrir de glria o seu reino! Ele ali est... E pensar que havia de morrer s mos de mouros, no meio de um deserto, que numa hora se havia de apagar toda a ousadia reflectida que est naqueles olhos rasgados, no apertar daquela boca!... No pode ser, no pode ser. Deus no podia consentir em tal" (II, 1) Ora, destacam alguns intrpretes garrettianos, esta descrio ecfrstica (representao verbal de uma representao pictrica), que nos feita do retrato de D. Sebastio pela boca da empolgada Maria de Noronha, constituiria um exemplo da profunda impresso que um retrato histrico do infeliz monarca causara em Almeida Garrett. Sobre o admirado retrato de D. Sebastio, leia-se a interessante nota autoral de Garrett. J o minucioso bigrafo F. Gomes Amorim (1881, I: 556) anotara a importncia deste retrato na prpria gnese do Frei Lus de Sousa: "Talvez que revolvendo j na mente os primeiros lineamentos da mais perfeita de todas as suas obras teatrais, ia muitas vezes em Angra contemplar um retrato de D. Sebastio, que estava no palcio do governo, antigo colgio de jesutas. Esse retrato passava por ser o mais autntico, e tradio que fora para ali mandado pelo prprio retratado. To gravado o trouxe Garrett na memria, que por ele fez depois a descrio que ps na boca da filha de Manuel de Sousa Coutinho". Na mesma linha, observou Tefilo Braga: "Na sua passagem como soldado da Expedio liberal na ilha Terceira, teve ocasio de ver o retrato autntico do rei D. Sebastio no Colgio dos jesutas de Angra, ao qual fora oferecido, e essa impresso deu-lhe a ressurreio de uma poca" (Braga, s.d.: XX; e Garrett, 1963, II: 1072). .

A segunda ideia enunciada diz respeito ao natural conhecimento da literatura sebstica por parte de Almeida Garrett, com destaque para As Profecias do Bandarra (1845). Reactualizando comicamente o Sebastianismo, o dramaturgo concebe-o nesta pea, luz da tradio sebstica, como o mito imperial que deu corpo nostalgia de uma idade de ouro A propsito desta singular reinterpretao do mito, veja-se o estudo de Helena Barbas (1994: 137-197), intitulado "Mito Imperial e Sebastianismo em As Profecias do Bandarra de Almeida Garrett".. Esta pequena pea cmica inspira-se nas Trovas atribudas ao sapateiro de Trancoso, texto que conheceu vrias edies, nomeadamente uma em Londres, no ano de 1815. O tratamento cmico do mito no elide a tragdia de um povo que inventou "quimeras para se consolar na desgraa", acreditando no regresso do "santo rei" num "dia de nvoa muito cerrada...", como se afirma no Frei Lus de Sousa. Com a perda do jovem monarca, Portugal afunda-se numa poca de inrcia e de brumas, espera de um refundador e herico rei-salvador, sobretudo em momentos de profunda crise poltica Na viso interpretativa de Oliveira Martins no Portugal Contemporneo, a tomada do poder por D. Miguel foi vista como uma espcie de regresso do mtico D. Sebastio. Curiosamente, tambm na Cidade e As Serras, Ea de Queirs descrever o regresso de D. Miguel a Portugal como a apario do S. Miguel e Messias, que, segundo a perspectiva do av de Jacinto, salva a Nao da Carta constitucional e do Liberalismo, restaurando o governo absolutista. De facto, com a morte de D. Joo VI, em 1826, coloca-se o problema da sucesso. D. Pedro est no Brasil como imperador, desde 1822. Exilado em Viena desde a "Abrilada (1824), D. Miguel decide regressar e tomar o poder. Quando entra em Lisboa em 22 de Fevereiro de 1828, recebido em apoteose, como nos descreve o historiador oitocentista. Visto como o "salvador na hora prpria", D. Miguel a encarnao do sebastianismo, do Messias salvador. Este D. Miguel era o rei salvador, o chefe predestinado da contra-revoluo e, na interpretao de Oliveira Martins, a personificao do Encoberto, que vinha "esmagar o drago revolucionrio" e libertar Portugal dos "malhados" do Liberalismo, apostado em defender o Trono e o Altar (cf. Pires, 1982: 94-96). .Por conseguinte, nesta abordagem crtica, mais do que meras personagens de um drama familiar, na pea Garrett temos seres simblicos, representativos do destino colectivo portugus, num dado momento da sua histria. Neste contexto, uma derradeira leitura situa-se ao nvel mitolgico, recuperando o significado dos temas da Saudade e do Sebastianismo para uma nova e renovadora interpretao do Frei Lus de Sousa. Em certo sentido, trata-se de uma leitura que parte do enfoque poltico-sociolgico de T. Braga, ultrapassando as suas naturais limitaes, atravs da projeco numa dimenso ideolgica e mtico-cultural. Numa interpretao colectiva e trgica, D. Sebastio foi, de facto, a anunciada maravilha fatal da nossa idade (Cames) e dos tempos futuros.Para o historiador-ensasta Oliveira Martins, tal como para Garrett, o Sebastianismo constitua o mito da nossa decadncia, leitura que marcou a recepo do mito sebstico na modernidade: "O Sebastianismo era pois uma exploso simples de desesperana, uma manifestao do gnio natural ntimo da raa, e uma abdicao da histria. Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a histria, desfeito em sonho; envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperana messinica" Histria de Portugal, 15 ed., Lisboa, Guimares ed., 1968, p. 374. . O Sebastiansimo era o mito da nossa fraqueza e compensao, o mito da nossa fuga da realidade. Depois da eufrica embriaguez quinhentista, fomo-nos atolando numa disfrica decadncia e hoje somos ningum. Tomando a forma de religo da nossa identidade colectiva, o Sebastianismo no foi mais do que uma "forma epigonal do nosso patriotismo".Esta tese de Oliveira Martins, cujo dramtico pessimismo partilhado no essencial pela sua gerao, foi modernamente sintetizada por A. Machado Pires (1982: 14): "O sebastianismo um mito, um refgio para a realidade dos acontecimentos, uma afirmao de esperana nacionalista ligada tradio; fora a revoluo liberal, que, rompendo a tradio, desferira um golpe mortal no sebastianismo". O Sebastianismo foi a nossa forma de afirmao de f patritica em pocas de profunda crise poltica, como a da perda da independncia. Idntica interpretao volta a ser exposta pelo historiador oitocentista no Portugal Contemporneo:

O Frei Lus de Sousa a tragdia portuguesa, sebastianista. O fatalismo e a candura, a energia e a gravidade, a tristeza e a submisso do gnio nacional esto ali. No clssico nem romntico: trgico (...). Num momento nico de intuio genial, Garrett viu por dentro o homem e sentiu o palpitar das entranhas portuguesas. Que ouviu? Um choro de aflies tristes, uma resignao heroicamente passiva, uma esperana vaga, etrea, na imaginao de uma rapariga tsica e no tresvario de um escudeiro sebastianista" Cf. Portugal Contemporneo, II, 10 ed., Lisboa, Guimares Ed., 1996, p. 115. .

A partir desta tese de Oliveira Martins, que concebia o Frei Lus de Sousa como a tragdia portuguesa do Sebastianismo, e da ideia de conflito interior formulada por Antnio Jos Saraiva, outra comentadora garrettiana, Maria de Lourdes Cidraes Vieira (1990: 388), centra a interpretao da obra no campo mtico-simblico: "o sebastianismo , indiscutivelmente, a armadura que estrutura e organiza a mensagem". Situa-a entre a rica tradio sebstica, que vai das vises do Bandarra caricaturadas por Garrett n 'As Profecias do Bandarra Cf. Gomes Amorim (1884, III: 532-533). Mensagem de Fernando Pessoa, passando pela singular viso do Quinto Imprio do Pe. Antnio Vieira. O mito do Encoberto perspectivado, negativamente, como sinnimo de paragem no tempo, de irrealidade, de sacrifcio do heri na catstrofe final. O regresso do (falso) D. Sebastio, na figura de D. Joo, implica a alterao do rumo da histria e o aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do Portugal morto e sebstico se define como Ningum Como demonstra Vasco Graa Moura (1999: 56), Garrett coloca uma genial coloquialidade ao servio da intriga de profundo desenvolvimento trgico, com uma leitura subentendida, mas inegvel o sonho de grandeza conduziu Portugal ao pesadelo da desgraa nacional, a um certo sentimento de falncia e de finis patriae, nomeadamente quando perspectiva pessoanamente o destino de Portugal, "este lgubre pas que j no nada nem ningum, nem tem sabido s-lo, da dominao filipina aos sobressaltos e sucessivos afundamentos do Constitucionalismo".. O Portugal do futuro no pode alimentar-se de estreis utopias passadistas. nesta "implcita condenao da expectativa sebstica" (Picchio, 1967: 117), que radica o aproveitamento mtico do dramaturgo:

"Assim Almeida Garrett vem colocar-se do lado daqueles que, antes ou depois dele, fizeram o processo do sebastianismo, vendo, na persistncia do mito do Desejado, uma v utopia, uma moral doentia e passiva ou uma forma alienatria de justificar novas ou antigas formas de poder" (Vieira, 1990: 389).

Podemos assim dizer que o incndio da casa de Manuel de Sousa, alm de viril acto de patriotismosimboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espao para uma famlia assombrada pelo passado, isto , uma nao que vivia sombra de mitos, sonhos ou utopias. O regresso ao velho palcio de D. Joo de Portugal s pode representar um anacrnico e impossvel regresso trgico ao passado. A Histria no pode regredir e imobilizar-se num pretrito mtico. O Portugal moderno tem de, edipianamente, matar o velho pai, para mudar o rumo da sua histria, como tenta fazer o Carlos das Viagens na Minha Terra. Nem que para isso tenha de se imolar pelo sacrifcio da prpria vida, como o faz, voluntariosamente, Manuel de Sousa No contexto desta interpretao crtica, recomendam-se vivamente duas leituras literrias, que tm de comum o sugestivo retrato do Portugal defunto, depois da tragdia de Alccer-Quibir. Primeiro, um interessantssimo captulo de Oliveira Martins, no seu dramtico Cames. Os Lusadas e a Renascena em Portugal (4 ed., Lisboa, Guimares Ed., 1986 [1 ed., 1872], pp. 90-96). As terrveis calamidades que assolavam Lisboa e o territrio nacional eram vistas como um castigo da decadncia do Imprio e um negro pressgio das tentativas de D. Sebastio para reconquistar o norte de frica, como uma espcie de guerra santa expiatria. [Veja-se, por ex., uma crnica desta poca, como o Memorial de Pero Roiz Soares, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1953 (leitura e reviso de M. Lopes de Almeida), pp. 90-91 et passim: repetidas descries e referncias a misteriosos acontecimentos ou sinais da Natureza (tremores de terra, fogos, cometas, sinais do cu, etc.), ocorridos antes da jornada do norte de frica, so interpretados como pressgios de futuros castigos que se avizinhavam para Portugal.] Por isso, a Lisboa que Cames encontrou no regresso ptria, , na viso de Natlia, uma cidade decadente e nocturna, uma necrpole empestada pelos cadveres. Os Lusadas apresentam-se, anterianamente, como uma epitfio da decadncia do imprio portugus.A segunda leitura recomendada seria o 18 Quadro da pea de Natlia Correia, Erros Meus, M Fortuna, Amor Ardente (Lisboa, O Jornal, 1991, pp. 225-232), inspirada na vida e obra de Lus de Cames. Esta obra teatral termina justamente com o retrato de um pas rfo, j doente de Sebastianismo, uma Nao de luto com uma tripla morte: primeiro, morre (ou desaparece) o jovem monarca D. Sebastio e a maior parte da nobreza que o acompanhou na funesta jornada de frica; depois, morre Cames, pobre e incompreendido, velho e j doente, julgando-se mesmo co-responsvel da tragdia colectiva, por ter incitado o sugestionvel rei com o seu canto pico; por fim, morre Portugal, que perde a sua independncia em favor da coroa de Castela..Aprofundemos um pouco esta reflexo detendo-nos na segunda ideia anunciada: o Frei Lus de Sousa como tragdia colectiva de um povo. Partindo a ideia nuclear de que a pea garrettiana uma obra poltica, e no um drama sentimental, Eduardo Loureno (1974: 109) afirma que j no faz sentido ler a obra de Garrett como "tragdia sentimental e psicolgica", perspectiva hoje "quase ininteligvel" e pouco consistente Curiosamente, num curioso dilogo intertextual, uma personagem feminina do mais recente romance de Vasco Graa Moura (A Morte de Ningum, Lisboa, Quetzal, 1998, p. 130) tem a tentao de ridicularizar o aspecto trgico e melodramtico da morte anunciada, a pretexto da similitude com a reconstituio de um enredo de tipo policial que andava a fazer para um estudo sobre a guerra colonial portuguesa: "O tempo dos Manuis de Sousa Coutinho passou h muito. O das romagens Terra Santa, tambm. J tem barbas brancas e venerveis como as do prprio Romeiro. E chega de Alcceres-Quibir como pano de fundo!". A somar a este comentado paralelo, deve acrescentar-se o simbolismo das coincidncias onomsticas, j que nesta narrativa hbrida, misto de escrita diarstica e troca epistologrfica, no faltam um Manuel conturbado e uma Madalena infiel. . Contudo, continua a afirmar-se como admirvel tragdia inconsciente de um destino colectivo. Neste mbito, o sentido das personagens e da fbula trgica reside na sua inegvel carga simblico-ideolgica. O drama de Garrett fala de Portugal, num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. um pas que vive um presente hipotecado, sombra de um obcecado sentimento de saudade passadista e sebastianista. Neste sentido, uma pea assombrada, habitada por dois fantasmas um quase fantasma (D. Joo de Portugal) e um outro fantasma mtico (D. Sebastio). O simbolismo alegrico que une os dois personagens est bem representado no nome do primeiro: o primeiro nome (D. Joo) remete-nos para alguns monarcas da Histria de Portugal; e no sobrenome (de Portugal), est cristalizado o prprio nome da Nao, num momento crucial da sua Histria. preciso matar ou exorcizar o passado, para que Portugal possa ter futuro:

"Um s personagem tem os ps no presente por t-los no futuro, mas os restantes fantasmas acabam por convert-lo em Frei Lus de Sousa, em cronista encerrado entre os quatro muros, entregue evocao desse passado que o devorou vivo. o duplo de Garrett que por sua vez escrever o Frei Lus de Sousa para mostrar como tambm ele no tem presente ou s o tem sob a forma dessa escrita atravs da qual o presente todos os presentes manifesta a sua intrnseca e irremvel irrealidade" (ibidem: 109).

Nesta interpretao, em lugar de um sentimento religioso de pecado, fala-se de uma culpabilidade metafsica, personificada em D. Joo de Portugal, a figura que simboliza um Portugal sem presente, sonmbulo e doente de Sebastianismo. Nesta ordem de ideias, a jovem e regeneradora Maria de Noronha representa o sacrifcio necessrio para exorcizar os fantasmas do passado, e definir o futuro de Portugal. S assim teria sentido o absurdo castigo-expiao de Maria, culpada de no ter culpa, que morre, romanticamente, de excesso e de vontade. Assim sendo, mais do que drama romntico, como prope uma interpretao literria, o Frei Lus de Sousa deve ser lido, em termos mtico-culturais, como o drama do anacronismo de Portugal (ibidem: 111). Poucos anos depois, em 1978, o brilhante ensasta Eduardo Loureno (1982: 86-92) aprofunda esta ideia. No conhecido ensaio O Labirinto da Saudade (Psicanlise Mtica do Destino Portugus), retoma a tese de que, a partir de Almeida Garrett, a Literatura Portuguesa oitocentista comea a pensar Portugal, a constituir-se como uma interrogao do nosso destino colectivo. interessante anotar que esta problematizao do modo de ser portugus seja aqui feita a partir do duplo e simblico espao da casa-palcio e da igreja-convento De facto, significativo que algumas das obras de fico que pensam Portugal, sobretudo a partir da literatura romntica, tenham como imagem simblica central a metfora da casa, como manifesta alegoria da casa portuguesa ou Nao desde o Frei Lus de Sousa, passando pela obra de Ea de Queirs (Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires), at literatura contempornea, com A Casa Grande de Romariges, de Aquilino Ribeiro, A Torre de Barbela, de Ruben A., ou A Quinta das Virtudes, de Mrio Cludio, entre outras obras. A este propsito, revelam-se muito sugestivos os ensaios coligidos no recente volume organizado por Jorge Fernandes da Silveira, Escrever a Casa Portuguesa (Ed. da Univ. Federal de Minais Gerais, 1999). : "O drama de Garrett fundamentalmente a teatralizao de Portugal como povo que s j tem ser imaginrio (ou mesmo fantasmtico) realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na Histria, objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trgicos" (ibidem: 92).Neste propsito de autognose, Garrett tocou na ferida da fragilidade ntica da Ptria-Nao, na doentia fixao sobre a possibilidade de regresso dos vencidos ou dos mortos-vivos de Alccer Quibir. Neste sentido, o conflito particular ou o drama humano e familiar do Frei Lus de Sousa mais no do que uma poderosa metfora do nosso devir colectivo:

"Quem responde pela boca de D. Joo (de Portugal...), definindo-se como ningum, no um mero marido ressuscitado fora de estao, a prpria Ptria. O nico gesto positivo, redentor, do seu heri (Manuel de Sousa Coutinho) deitar fogo ao Palcio e enterrar-se fora do mundo, da Histria. Interpretou-se ( superfcie) o Frei Lus de Sousa em termos de puro melodrama psicolgico, de pura contextura romntica o que tambm , naturalmente, mas o autntico trgico que nele existe de natureza histrico-poltica, ou, se se prefere, simblico-patritica" (ibidem: 92).

Por conseguinte, pela boca do velho Romeiro, fantasma de um outro fantasma (D. Sebastio), Portugal inteiro que se auto-interroga, olhando no espelho da sua identidade, e no se encontrando. O velho Portugal j no se rev na nova ordem estabelecida, nem facilmente reconhecido pelos seus mais fiis seguidores (Telmo Pais). Ontologicamente, Portugal esfumou-se nas quentes areias de Alccer Quibir, perdeu irremediavelmente a sua identidade, at sua refundao em 1640. O Portugal herico, aventureiro e cavaleiresco estava definitivamente defunto. Dessa morte simblica, que implicou o sacrifcio de vidas mais ou menos inocentes, nascia um Portugal novo.

3. Desafios de uma pluralidade interpretativa

A pluralidade de abordagens crticas do Frei Lus de Sousa constitui a mais elucidativa ilustrao da natureza pluri-significativa de uma obra de arte, mas tambm da relevncia da sucesso histrica de vrias leituras, como nos advertira a esttica da recepo. Como um prisma (comparao de Luciana S. Picchio), a obra pode e deve ser lida de vrios ngulos, que foram variando com o evoluir do tempo e dos diferentes horizontes de expectativa dos seus leitores. Tambm Mrio Garcia (1967: 4) insiste na renovada fruio esttica e interpretativa da obra, quando afirma: "O Frei Lus de Sousa s ganha em ser lido muita vez, e, sinal exacto de uma grande obra, sempre se encontra nele aquele momento de paz e sinceridade, no meio de um sofrimento fatdico que perpassa pela nobre figura de Manuel de Sousa". Talvez possamos sistematizar as vrias perspectivas crticas antes enumeradas, num esquema necessariamente simplificador, mas que facilita a visualizao das mais significativas propostas de leitura hermenutica da pea garrettiana:

InterpretaesIdeias nucleares1. Leitura histrico- gentica Fontes histrico-literrias da pea, reconhecidas autoralme