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  • 7/25/2019 CAMPOS, Heber Carlos de - O Impacto Da Filosofia de Kant Sobre a Doutrina Da Revelao Em Karl Barth

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    FIDES REFORMATA XI, N 1 (2006): 25-50

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    O IMPACTODAFILOSOFIADEKANTSOBREADOUTRINADAREVELAOEMKARLBARTH

    Heber Carlos de Campos*

    RESUMO

    O autor argumenta que Barth, apesar de ter deixado o antigo liberalismoem favor da neo-ortodoxia, no abandonou todas as influncias anteriores,principalmente aquelas vindas de Immanuel Kant. Embora Barth cresse narevelao divina, sob a influncia do subjetivismo racionalista kantiano elecolocou Deus em uma esfera metafsica na qual ele no revela coisas sobresi mesmo, nem se revela em palavras, mas s pessoalmente. Barth aceita a

    revelao especial, mas nega a revelao geral, histrica e proposicional. Deuss se revela diretamente, em eventos e em presena, tanto no passado comohoje, mas no em palavras escritas. O autor conclui a sua anlise fazendo umacrtica do conceito barthiano de revelao. Segundo ele, a negao da revelaohistrica questiona a prpria realidade da encarnao do Verbo. Alm disso, anegao da revelao proposicional transforma a interpretao em revelao,torna a revelao no-fidedigna, faz com que o leitor determine o que reve-lao, nega a soberania de Deus, elimina a f na revelao, nega a inerrnciabblica e afasta o carter pessoal da revelao.

    PALAVRAS-CHAVELiberalismo; Iluminismo; Racionalismo; Kant; Barth; Neo-ortodoxia;

    Revelao; Revelao proposicional.

    * O autor ministro presbiteriano, diretor da Escola Superior de Teologia da UniversidadePresbiteriana Mackenzie e professor de teologia sistemtica no Centro Presbiteriano de Ps-GraduaoAndrew Jumper. Obteve o grau de doutorado (Th.D.) em teologia sistemtica no Concordia TheologicalSeminary, em Saint Louis, Missouri, EUA.

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    INTRODUO

    No incomum vermos telogos serem influenciados pela filosofia vigen-te em seu tempo. Em certo sentido, todos os pensadores so fruto de sua poca.Barth viveu no apogeu de uma era teolgica conhecida como Velho Liberalismo,que, por sua vez, havia sido fortemente influenciada pelo Iluminismo e peloRomantismo do sculo 19. Portanto, inicialmente, em sua teologia, Barth foifilho do liberalismo teolgico.

    No entanto, houve mudanas teolgicas em Barth durante a I GuerraMundial, quando as bombas estavam caindo perto de sua comunidade suavizinha da Alemanha. Confrontado com a dificuldade de ministrar pastoral-mente aos que sofriam com a guerra, como um liberal Barth no tinha o quedizer ao povo. Ento ele se voltou para o estranho novo mundo dentro daBblia,1com o qual ele no estava familiarizado.

    A essa altura, aps a sua virada teolgica, se algum perguntasse a Barth:Qual a fonte de seu pensamento teolgico?, certamente ele responderia:A Palavra de Deus. Ele preferia ser chamado de o telogo da Palavra deDeus, mas essa resposta podia ter uma forte conotao dialtica. Ainda queele tivesse se afastado do velho liberalismo, indo para o que conhecemoscomo neo-ortodoxia, a sua teologia foi fortemente impactada por influnciasfilosficas vindas de Immanuel Kant. O prprio Barth reconhece a influnciade Kant em seu pensamento filosfico e teolgico.2

    De qualquer forma, Barth foi protagonista de uma reao ao movimentoteolgico liberal. Todavia, mesmo tentando voltar ortodoxia j esquecida

    no tempo de sua formao, lutando freneticamente para reagir contra o libe-ralismo, ele no conseguiu fugir de todos os pressupostos ensinados na suaformao teolgica inicial. Essas influncias filosficas acabaram por afetara sua doutrina da revelao, que o tema deste artigo.

    1. KANT E A REVELAO

    1.1 O subjetivismo racionalista de Kant

    O desenvolvimento do racionalismo se deu principalmente no Iluminismodo sculo 18. O Iluminismo

    foi um movimento do comeo do sculo 18 que tentou secularizar todos os de-partamentos da vida e do pensamento humano. O Iluminismo era declaradamentenaturalista em seu carter, sendo to hostil idia de interrupes sobrenaturaisdo curso ordenado da natureza quanto de revelao sobrenatural.3

    1 Essa expresso encontrada no livro que aponta para a virada teolgica de Barth. Ver BARTH,Karl. The Word of God and the word of man. New York: Harper & Brothers, 1957, p. 28.

    2 BARTH, Karl. The Epistle to the Romans. London: Oxford University Press, 1965, p. 4 (prefcio 2 edio).

    3 PACKER, J. I. Contemporary views of revelation. In HENRY, Carl F. H.Revelation and the

    Bible: contemporary Evangelical thought. Grand Rapids: Baker, 1958, p. 91.

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    Tal movimento foi no somente uma revolta contra o poder da igreja ins-titucional, mas tambm contra a religio como tal. Essas foras do Iluminismoparecem ser ainda poderosas em nossos dias quando o secularismo avana e,por sua vez, comea a perder lugar para o misticismo.

    Immanuel Kant (1724-1804) foi o grande homem do Iluminismo, capazde entrelaar dois pensamentos opostos: o racionalismo de Descartes, Spinosae Leibniz e o empirismo de Locke, Berkeley e Hume. Segundo Packer, Kant,o grande filsofo do movimento iluminista,

    negou a real possibilidade do conhecimento factual a respeito de uma ordemsupra-sensvel, e isto pareceu selar o destino da doutrina histrica da revelao.O legado do Iluminismo para a igreja dos dias posteriores foi o axioma de quecertamente algum ensino bblico, e talvez todos eles, no so a verdade revelada;as afirmaes bblicas, portanto, no deveriam ser recebidas, exceto quando

    confirmadas pela razo.4

    Desde o Iluminismo, um novo conjunto de pressuposies dominou edeterminou o pensamento teolgico do homem moderno, e Kant teve umimportante papel na formao desse pensamento. A razo comeou a ser opadro de julgamento de todas as coisas. Kant rompeu com a tradio crist doDeus das Escrituras, e tornou o homem um ser independente e o rei supremoatravs de sua razo.

    A secularizao do pensamento humano e a secularizao da cincia moderna quefluram do Iluminismo foram tambm aplicadas teologia. As pressuposiesque excluam qualquer coisa sobrenatural estavam em funcionamento na cinciahistrica quando comeou a busca do Jesus histrico. Toda a nfase veio a cairsobre a histria como uma relao de causa-e-efeito puramente natural.5

    Nesse subjetivismo kantiano, nada estava alm da caixa fechada en-sinada pelo naturalismo. Todas as coisas da religio no podiam ser aceitasse no passassem pelo crivo da razo humana, mas uma razo humana sem ainfluncia do sobrenatural.

    No subjetivismo racionalista a base da autoridade em matria religiosanovamente repousava no prprio homem. O homem era a medida final de todasas coisas em questes da f, pois ele prova todas as cousas, sente-as, deduze-ase, assim, se torna o determinador do que a verdade. O Iluminismo, por exem-plo, cria numa verdade considerada incontestvel: no existe interferncia do

    4 PACKER, Contemporary views of revelation, p. 92.5 KLOOSTER, Fred H. The quests for the historical Jesus. Grand Rapids: 1977, p. 6. Todas as

    citaes desse livro de meu professor doravante so paginadas com base em uma traduo que fiz paraas minhas turmas de teologia no Seminrio Presbiteriano Rev. Jos Manoel da Conceio, na dcada de

    1980.

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    sobrenatural neste mundo. A razo humana era a base ltima de julgamentode todas as coisas, e se tornou o guia da verdade.

    Em 1784, quando perguntaram a Kant o que era o Iluminismo, ele res-pondeu:

    ... o Iluminismo o homem chegando idade adulta. a sada do homem daimaturidade que o fazia confiar em autoridades externas como a Bblia, a Igrejae o estado para lhe dizerem o que pensar e o que fazer. Nenhuma gerao deve-ria estar presa a credos e costumes de eras passadas. Estar preso uma ofensacontra a natureza humana, cujo destino repousa no progresso.6

    O subjetivismo racionalista rompeu totalmente com a teologia pr-ilumi-nista, que era a teologia aceita historicamente pela igreja, lanando fora todasas bases da f crist e apelando unicamente para os ditames da razo.

    Certamente Barth no foi racionalista como Kant, nem negou a revelaodivina como Kant havia feito. Barth reagiu ao liberalismo teolgico de seusprofessores, restaurando o conceito de revelao, mas ficou preso dicotomiaestabelecida por Kant. Barth no conseguiu escapar de uma espcie de sub-jetivismo kantiano, em que a f no tem razes histricas porque Deus no serevela neste mundo fenomnico.

    1.2 A transcendncia de Deus sob a influncia de Kant

    Kant foi um dos filsofos que fizeram Barth ver a realidade do mundo

    transcendental. Da em diante, Barth passou a ver a necessidade de crer nummundo onde Deus vive e age, e formulou a sua doutrina da revelao de ummodo completamente no-cientfico, a saber, no verificvel pelos modernosmtodos de pesquisa.

    Kant cria que Deus um ser que est fora de nossos relacionamentos.Ele um ser metafsico, e o metafsico est completamente alm do escopo damente humana. Um homem pode falar do tempo e do espao (que so catego-rias da mente para Kant) e no precisa falar de coisas que no esto realmenteali ou que acontecem. A mente humana s pode conhecer as coisas que estorelacionadas a uma experincia imediata neste mundo. Deus banido do mundo

    porque ele no pertence s coisas verificveis, coisas fenomnicas. Para Kant,Deus no poderia ser conhecido pelo fato de que transcendente e de que nose revela. Ele era um desta.

    No podemos nos esquecer de que Barth foi uma cria de professores-telogos iluministas e de que a sua teologia refletiu certas tendncias do Ilu-minismo. Ele foi criado numa mentalidade iluminista, mas reagiu contra essamentalidade, abandonando vrias idias desse ambiente. Barth refletiu tendn-

    6 Citado por BROWN,Dictionary of Theology.

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    cias kantianas com respeito transcendentalidade de Deus. Em contraste comKant e com os seus professores de teologia, Barth passou a crer na revelaodivina, mas semelhana deles colocou Deus numa esfera metafsica, ondeele no tem envolvimento temporal nem histrico. Embora, segundo Barth,

    Deus se revele, ele no revela coisas de si mesmo e nem se revela em palavras,mas presencialmente. A transcendentalidade de Deus fica mantida em prejuzode seu aspecto imanente se envolvendo com o mundo que criou e agindo nahistria dos homens.

    1.3 A dicotomia de Kant entre o Nmeno e o Fenmeno

    Como Kant aplicou o seu racionalismo que acabou influenciando opensamento teolgico de Karl Barth? Kant criou dois mundos em seu pensa-mento filosfico-teolgico: 1) o mundo dos fenmenos, que percebido pela

    razo atravs dos sentidos, o mundo que pode ser atingido pela razo pura;2) o mundo dos nmenos, que o mundo de Deus, o mundo da liberdade e daimortalidade, o mundo onde a razo humana no pode penetrar, porque essascoisas pertencem razo prtica. Observe o que Kant disse sobre o nmero:

    Se, pelo termo nmeno, entendemos algo que no um objeto de nossa intuiosensria, fazendo assim uma abstrao de nosso modo de intuir, isto um n-meno no sentido negativo da palavra. Mas se ns entendemos por ele um objetode uma intuio no-sensria, uma intuio intelectual, a saber, algo que nopertence a ns, da real possibilidade da qual no temos nenhuma noo isto um nmeno no sentido positivo.7

    Por ser um ente transcendental, Deus s age na esfera do nmeno. A suaao no pode ser objeto de uma intuio no sensria, pois verificamos queKant negava qualquer possibilidade do transcendente ser conhecido. Brown,ento, tira a sua concluso:

    Se Kant est certo, no h meio de saber se tais conceitos so realmente aplicveiss coisas em si mesmas. Em ltima anlise, estas ltimas permanecem rigoro-samente incognoscveis. Se Kant era ctico quanto possibilidade de conheceras coisas materiais conforme so em si mesmas, era duplamente assim no quediz respeito a realidades que alegadamente transcendem o material.8

    Kant distinguiu a esfera numnica da esfera fenomnica, e a razo prticada razo pura. Assim fazendo, ele criou uma barreira entre as duas esferas. Omundo fenomnico no entra em contato com o mundo numnico. Deus, que do mundo numnico, fica aprisionado ali. Ele no tem contato com este mundo

    7 KANT, Immanuel. Critique of pure reason. London: J. M. Dent & Sons, 1946, p. 186-87.8

    BROWN, Colin.Filosofia e f crist. So Paulo: Vida Nova, 1983, p. 64.

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    fenomnico. Deus, portanto, permanece fora do conhecimento humano, sendoisolado na esfera numnica. Deus est l e o homem c.

    Essa distino de Kant importante para a compreenso da negao da re-velao divina em nossa histria, por parte de telogos do velho liberalismo.

    De acordo com o pensamento de Kant,

    a esfera numnica a esfera de Deus, da liberdade e da imortalidade. Somentea razo prtica ou a f tem acesso a essa esfera numnica. A esfera fenomnica,por outro lado, est aberta percepo dos sentidos e controlada pela razopura. somente com respeito a esta esfera fenomnica que as cincias estopreocupadas. A cincia natural moderna, a cincia histrica, de fato todas ascincias, esto enraizadas nesta distino kantiana das esferas numnica e fe-nomnica e das razes pura e prtica.9

    O kantismo ensinou Barth a respeito da impossibilidade de a razo huma-na cruzar as fronteiras em virtude da distino que Kant fez entre as esferas donmeno e do fenmeno. A razo trabalha somente com as coisas da esfera feno-mnica. Kant personifica a confiana no poder da razo para lidar com as coisasmateriais e a sua incompetncia em lidar com qualquer coisa alm dessas.10Kantfoi excelente em sua cuidadosa preservao dos limites da humanidade.11

    Por causa da influncia da dicotomia kantiana, Barth veio a fazer umanova abordagem noo da revelao divina. Ele bastante singular em suadoutrina da revelao. Semelhantemente aos cristos histricos, ele veio a crerna revelao sobrenatural divina; diferentemente deles, ele veio a crer numa

    revelao supra-histrica.Neste artigo afirmamos que Barth cria na revelao especial, mas que ele

    negou trs aspectos importantes para a ortodoxia crist: a revelao histrica,a revelao proposicional e a revelao geral.

    2. BARTH E A REVELAO

    2.1 Barth aceita a revelao especial, mas nega a revelaohistrica

    Na sua poca, Barth foi o grande campeo na tentativa de volta ortodoxia

    aps passar os seus primeiros anos sob a gide da teologia iluminista. Ele ficoudesapontado com a perda da noo da bondade humana e sem ao diante dasbombas da Primeira Guerra que caiam nas proximidades de Safenwil, a vilaem que era pastor. No tendo nenhuma esperana para dar ao povo a quempregava, Barth tentou se voltar para a ortodoxia, dando um salto do liberalismopara o mundo novo e estranho da Bblia.

    9 KLOOSTER, The quests for the historical Jesus, p. 6.10 BROWN,Filosofia e f crist, p. 61.11

    BARTH, The Epistle to the Romans, p. 367.

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    admirvel que Karl Barth tenha questionado e virado de cabea parabaixo a teologia liberal de sua poca, voltando a crer no fato de Deus se revelar.Ele deve ser aplaudido por ter a coragem de insurgir-se contra o status quoteolgico dominante em sua gerao. Todavia, em sua tentativa de voltar f

    ortodoxa, ele ficou no meio do caminho. Por isso, a sua teologia se encaixa noque ficou conhecido como Neo-Ortodoxia. Embora aceite a revelao divinaespecial, ele luta tremendamente para fugir da historicidade dela.

    Em virtude da distino entre o reino numnico e o fenomnico, Barthacaba fazendo uma distino entre dois termos que podem ser traduzidos emnossa lngua como histria, mas que possuem significados diferentes paraele, porque os usa para expressar a sua distino kantiana. Em alguns de seusescritos, especialmente em suaDogmtica Eclesistica, Barth usa a expressohistria geral, que a designao da palavra alemHistorie (H), a histria

    comum, onde as coisas podem ser verificveis, mensurveis, atingidas pelarazo. Ele usa tambm uma outra palavra alem, Geschichte(G) para designara histria especial, que a histria da revelao.12Empregando o termoGeschichtemuitas vezes em suaDogmtica Eclesistica, Barth o usa para dizerque a revelao histrica, espacial, temporal, mas isto no significa que Barthcr na revelao feita por Deus na histria dos homens, como a entendemos ecomo o faz a ortodoxia crist.

    Referindo-se aos do tempo do Antigo Testamento, Barth diz que milhesde pessoas no antigo Oriente podem ter ouvido o nome Iav e uma vez ou outraviram o seu templo. Mas esse elemento histrico no era revelao...13Barthdiz que a revelao um evento histrico (G). Histrico (G) no significaalgo fixvel como histrico ou fixo como histrico. Histrico (H), portanto,no tem o significado usual de histrico (G).14Em sua dogmtica, Barthdistingue esses dois tipos de histria como sendo histria geral (H) e histriaespecial (G). Quando ele est falando de uma revelao histrica, ele no estse referindo a um evento que pode ser apreendido por um historiador comum.O observador neutro (o historiador) no pode equalizar as formas de revelao(ou os meios) com Deus. Essas formas no podem tomar o lugar de Deus, nemsubstitu-lo.

    Deus se revela ao homem nas suas contingncias histricas (G) e o homemento registra as impresses que essa revelao causou nele. Esta descriohumana das impresses considerada histrica (H), mas esta mesma histriano pode ser considerada revelao, porque a revelao no narrativa nem alguma coisa a respeito de Deus.

    12 BARTH, Karl, Church Dogmatics. Edinburgh: T. & T. Clark I\1, p. 375ss.13 Ibid., p. 373.14

    Ibid.

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    A revelao no tem evidncia histrica (H), nem data histrica (H) enem dados histricos (H). Barth no cr na historicidade da revelao porque,no seu conceito, a revelao dinmica, e no fica presa ou fixa na histria.A revelao geschichtlisch(G) e a Escritura historisch(H). Deus sempre

    se revela num evento geschichtlischde maneira especial, no-narrvel, nodetectvel pelo historiador, no mensurvel pela vista, etc. Klooster diz que

    o historiador como historiador capaz de tratar com a histria dos recipientes darevelao, mas ele incapaz de tratar com o evento da revelao. Estritamentefalando, no h nenhuma histria da revelao.15

    Os recipientes da revelao so seres histricos, mas no a revelaoem si. Quando Barth diz que a revelao atestada na Escritura um eventohistrico, ele est querendo dizer que Deus se revela a homens concretos, a

    homens reais, homens que vivem no tempo e no espao.16Todavia, essa reve-lao histrica (G), no histrica (H). Ou seja, a revelao acontece numaesfera no-verificvel, numa esfera qual os historiadores comuns no tmacesso, porque ela a presena do prprio Deus (no algo a respeito dele), queno pode ser detectado historicamente.

    2.2 Barth aceita a revelao especial, mas nega a revelao geral

    A neo-ortodoxia, que inclui Barth e Brunner, prestou um enorme servio cristandade quando se contraps s doutrinas falazes da teologia liberal. Elacausou uma reviravolta na teologia vigente na poca, encorajando os cristos acrerem novamente na revelao especial divina em Jesus Cristo e contrariandoa idia liberal de que o conhecimento de Deus surge naturalmente na conscin-cia subjetiva do homem. A neo-ortodoxia barthiana combateu especialmenteSchleiermacher, que negava a revelao divina.

    As noes da divindade defendidas por Barth com os seus pressupostoskantianos determinam o seu conceito sobre revelao geral. Barth enfatizou demaneira inequvoca, em sua teologia, o ensino sobre a transcendncia de Deus.Ele era o Totalmente Outro, aquele que est acima e alm de todas as coisas.

    Todavia, ao afirmar a real revelao sobrenatural-especial de Deus em

    Jesus Cristo, Barth no pode se conformar aos cristos ortodoxos em sua crenana revelao geral. Ele foi um dos poucos telogos que questionaram seria-mente a doutrina da revelao geral. Para ele, nenhuma revelao mediadana razo, na conscincia, nas emoes, na histria, na natureza e na culturae suas realizaes e desenvolvimentos.17As obras da natureza, a histria ou

    15 KLOOSTER, Quests for the historical Jesus, p. 26.16 A linguagem de Barth : a revelao um evento que acontece ali, somente ali, ento e somente

    ento, entre Deus e certo homem perfeitamente definido (Church DogmaticsI\1, p. 375).17

    Church DogmaticsII\1, p. 173.

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    a mente humana no podem ser veculos da revelao divina porque Deusno precisa ser mediado, j que, para Barth, a revelao o prprio Deus, noalgo a respeito dele. A revelao geral para Barth uma iluso e uma mi-ragem.18A revelao, que o prprio Deus presente, no deixa pegadas ou

    marcas na histria. Portanto, o que o homem parece ver no uma realidade,mas uma miragem.

    Barth negou que haja qualquer possibilidade de Deus ser conhecido pelosimples uso da razo, mesmo com a observao das obras da natureza, dahistria ou do governo de Deus.

    importante que se recorde que revelao para Barth algo semelhanteao prprio Deus, nunca separado dele. Portanto, ele repudia totalmente qualquerpossibilidade da elaborao de uma teologia natural. Por causa da destruio daimagem de Deus e da incapacidade da razo humana nas coisas divinas, todos

    os argumentos racionais e as provas filosficas para Deus so invlidos.19

    2.2.1 Deus se revela diretamente, no indiretamente

    Barth no aceita o fato de Deus se revelar nas obras da criao. Ele repu-dia qualquer idia da teologia natural (da Igreja Catlica e do EscolasticismoProtestante) assegurando a descontinuidade da dicotomia entre natureza egraa, razo e revelao. Aceitar a revelao natural de Deus, assim como arevelao proposicional, tornar a revelao divina algo indireto, mediado.Deus no usa nada para a revelao. Deus se auto-revela. Ele no precisa depalavras ou de atos para se revelar. Ele simplesmente se d a conhecer num

    evento-revelao que acontece em Jesus Cristo.Sob a influncia de Kant, Barth faz uma separao entre dois mundos: do

    nmeno e do fenmeno. Assim, ele no admite que Deus, na esfera numnica,se revela atravs de coisas do mundo dos fenmenos. Estes dois reinos soexclusivos: o da eternidade e o do tempo. Eles so distintos, so duas histrias:a histria de Deus e a histria dos homens. Nada relacionado ao espao fsicopode servir como um ponto de contato entre Deus e os homens, entre o Infinitoe os finitos, entre o Transcendente e o pecador. A revelao geral (ou revelaoda criao) seria um meio indireto de Deus se revelar. A revelao da criao

    teria de ser percebida pelos olhos fsicos e Barth no cr que os olhos fsicospossam perceber a revelao que est na esfera numnica. Os fenmenos po-dem ter causas numnicas, mas eles no podem revelar Deus. Seria um modoindireto, e Deus nunca se revela dessa maneira, porque ele no revela algo desi, mas a si mesmo, presencialmente.

    18 DEMAREST, Bruce A. General revelation: historical view and contemporary issues. GrandRapids: Zondervan, 1983, p. 123.

    19 Ibid., p. 122.

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    Como Criador esse Deus diferente do mundo, i.e., como Aquele que ele ,ele no pertence esfera daquilo que o homem como criatura possa conhecerdiretamente. Nem pode ele ser desvendvel para o homem indiretamente nomundo criado, porque ele o Santo que, para ser visto, mesmo que indiretamente,

    requer olhos diferentes destes que esto corrompidos pelo pecado.20

    A negao do conceito de revelao geral por Barth foi agravada peloque ele viu e experimentou na poca da Segunda Grande Guerra. Barth viveusob um terrvel regime poltico e a situao o levou a fazer comentrios quecensuravam qualquer espcie de revelao indireta. Comentando uma parteda Declarao Teolgica de Barmen em 1933, e ligando-a situao polticae religiosa da Alemanha, Barth cria que a apario de Hitler era consideradapelos religiosos daquele tempo como uma nova revelao de Deus atravs dospoderes constitudos.21A parte que Barth comentou da Declarao de Barmen

    foi a seguinte:

    Ns condenamos a falsa doutrina de que a igreja pode e deve reconhecer comorevelao de Deus outros eventos e poderes, forma e verdades, parte destanica Palavra de Deus e juntamente com ela.22

    Este foi um motivo para Barth negar a revelao indireta de Deus, isto, ele negou que Deus se revelasse no governo e na providncia atravs dehomens e das coisas criadas. Dessa forma, Barth tambm negou a revelaode Deus na conscincia, na razo, nas emoes, na cultura, na natureza e nahistria. A aceitao de outros meios de revelao indireta seria a negao darevelao de Deus em Jesus Cristo.23

    Deus, o Criador, no se revela ao homem atravs de outros meios alm doevento-Cristo, de acordo com Barth. Nenhuma pesquisa cientfica nem a histriapodem revelar alguma coisa de Deus. Deus no faz uso de meios indiretos pararevelar-se aos homens. Somente atravs da encarnao do Filho, que aconteceem cada evento da revelao, o homem pode conhecer Deus. A revelao deDeus sempre direta, presencial, teofnica. A revelao de Deus uma auto-revelao. Ele prprio o contedo da revelao. Ele nunca se revela atravs

    de meios, mas diretamente ao homem no evento-Cristo, que na linguagemde Barth Deus se revelando atravs de si mesmo.24Ele se comunica como homem histrico de um modo direto; por isso a criao no pode ser umarevelao de Deus. A revelao de Deus somente em presena.

    20 Church DogmaticsI/1, p. 320.21 Ibid. II/1, p. 173.22 Ibid., p. 172.23 Ibid. II/1, p. 173.24

    Ibid. I/1, p. 296.

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    Segundo o entendimento de Barth, os que aceitam, por parte da ortodoxia,a revelao geral, conforme o entendimento de Paulo em Romanos 1.18-20,vendem a sua alma ao tomismo ou ao liberalismo.25Tentando fugir da nooda revelao geral em Paulo, Barth apela para um contexto mais remoto e diz

    que Paulo est falando da revelao de Deus em Cristo, no nas obras da criao.Assim, a revelao de que Paulo fala em Rm 1.18-20 no uma revelao geralna natureza; a mensagem da revelao sobrenatural de Deus em Cristo.26Barthdiz: No podemos isolar o que Paulo diz a respeito dos pagos em Romanos1.19-20 do contexto da pregao apostlica, da encarnao do Verbo.27Dessaforma, fica explcito que Barth rejeita qualquer tipo de revelao geral na natureza,no homem ou na histrica, devido a seus pressupostos kantianos. No pensamentode Barth, diz Demarest, no h nenhuma outra fonte de conhecimento exceto oque foi dado de uma vez por todas em Jesus Cristo.28Ele ainda diz:

    claro como o cristal, ento, que no apogeu de sua carreira Barth apaixonada-mente advoga a excluso tanto da revelao geral como da teologia natural (ocorpo de verdades a respeito de Deus construdo na revelao geral).29

    Ainda que Barth fale das luzes da criao, numa tentativa de atenuar oseu azedume contra a revelao geral, ele adverte que devemos evitar o usoda expresso revelao da criao ou revelao primitiva.30Para Barth, acriao uma luminosidade, um exrcito de luzes, mas no uma revelao comotal.31 Essa percepo de Demarest justificada na afirmao de Barth:

    Uma razo pela qual devemos talvez nos abster de falar dessas luzes segurascomo revelao que nenhuma f necessria para capt-las, mas somenteuma percepo bvia e quase inevitvel, somente a boa ddiva, embora limitada,do senso comum.32

    Ento, Demarest conclui:

    Assim, ainda que Barth posteriormente na vida tenha feito concesses ao valoriluminador da criao, ele no se desviou de sua vitalcia convico de que Deusse revela aos pecadores somente atravs da Palavra em sua trplice forma.33

    25 DEMAREST, General revelation, p. 123.26 Ibid., p. 124.27 Church DogmaticsI\2, p. 306.28 DEMAREST, General revelation, p. 124.29 Ibid., p. 125.30 Church DogmaticsIV\3, p. 140.31 DEMAREST, General revelation, p. 126.32 Church DogmaticsIV\3, p. 142-43.33

    DEMAREST, General revelation, p. 126.

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    2.3 Barth aceita a revelao especial, mas nega a revelaoproposicional

    H telogos que afirmam a revelao especial-sobrenatural de Deus (Barth

    est entre eles), mas negam que Deus se revela em palavras, ou seja, negam arevelao proposicional. Essa uma expresso cunhada pelos adversrios darevelao proposicional, que dizem que Deus no se revelou em palavras (ouproposies), mas que toda a revelao divina foi dada aos homens principal-mente em atos e eventos.

    Barth lutou desesperadamente contra a sua prpria formao procedentedo velho liberalismo, crendo na revelao sobrenatural que a sua antiga f ne-gava e tentando um retorno ortodoxia crist. Ele defendeu com todas as suasforas a revelao sobrenatural de Deus. Nisto Barth est junto da ortodoxia.Mas ele no chegou onde a ortodoxia estava desde o perodo pr-moderno. Em

    contraste com os seus professores, e semelhana da ortodoxia teolgica, elefalava de um Deus transcendente e de uma revelao que vem de cima. Todavia,ao contrrio da ortodoxia crist, Barth no cria numa revelao verbal pro-posicional. admirvel que Barth tenha reagido to positivamente ao velholiberalismo e que tenha afirmado a revelao sobrenatural. Todavia, mesmoao afirmar a revelao divina, ele acabou negando a revelao proposicionalpor causa de pressupostos iluministas que ele nunca abandonou. Ele foi umdos grandes expoentes dos que criam na revelao sobrenatural, mas negavaa revelao em proposies.

    Vejamos alguns pontos da teologia de Barth que o levaram a negar aproposicionalidade da revelao.

    2.3.1 Deus se revela em eventos no em palavras

    A f histrica da ortodoxia cr que a revelao de Deus, num certo senti-do, separada dele, isto , a revelao no o prprio Deus, mas algo que elediz a respeito de si ou que outros dizem a respeito dele. Contudo, para Barth arevelao divina no separada de Deus, mas equivalente ao prprio Deus.Deus e a sua revelao no so coisas distintas, como se ensina na ortodoxiacrist. A revelao divina acontece num evento.

    Ns tnhamos em vista o Pentecoste quando chamamos a revelao umevento que do ponto de vista do homem caiu verticalmente do cu.34Nesseevento revelador que Barth chama de ineffabille, Deus alcana o homem e oencontra. Suas palavras literais so: A revelao simplesmente o Ineffabilleconfrontando o homem, chegando a ele.35Na linguagem barthiana, a Palavrade Deus (que no a Bblia, mas Jesus Cristo) equivalente ao prprio Deus

    34 Church Dogmatics, I/I, p. 330 (nova traduo).35 Ibid., p. 331.

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    no evento da revelao, que pode acontecer quando ocorre a proclamaobaseada na Escritura,36mas no somente na Escritura.

    Barth nega a revelao proposicional porque as palavras no podem seridnticas a Deus: as palavras da Escritura so o testemunho de alguma revelao

    que aconteceu no passado, mas elas em si mesmas no so revelao divina.Deus nunca revela alguma coisa de si em palavras, mas ele revela a si mesmono que ele denomina evento da revelao. Do comeo ao fim, de capa a capa,a Escritura trata do registro da revelao divina, mas ela no revelao porqueno idntica a Deus. Ainda que as palavras da Escritura sejam testemunhasda revelao passada e sejam usadas para causar a revelao no presente, elasno podem ser revelao. Elas podem apenas provocar revelao. nessesentido que Barth diz que Escritura e proclamao podem se tornar a Palavrade Deus, porque ele afirma que a revelao deve acontecer se a Escritura e

    a proclamao se tornarem a Palavra de Deus. Elas devem se tornar isso.37

    Ele diz ainda: Quando a Bblia fala de revelao, ela o faz na forma do regis-tro de uma histria ou de uma srie de histrias. Contudo, o contedo dessahistria ou de cada uma dessas histrias que a auto-revelao de Deus.38Os escritores bblicos descreveram a sua experincia, mas no descreveram arevelao divina, porque esta um evento presencial, inenarrvel e no podeser verificada historicamente.

    Deus se revela aos homens porque, por si mesmos, eles no podemconhecer nada sobre ele. Todavia, Deus se revela atravs de eventos, e esseseventos deixaram marcas nos homens. Essas marcas so as coisas que oshomens registraram nas Escrituras. Elas so histrias, mas as histrias, em simesmas, no so revelao de Deus. O contedo das histrias, que o que estpor detrs delas, ou seja, Deus, no pode ser registrado.

    2.3.2 Deus se revela em presena, no em palavras escritas

    Refletindo a distino kantiana entre nmeno e fenmeno j mencionada,Barth coloca a Escritura e a proclamao na esfera das coisas fenomnicas.Estas so temporais, tm forma e no podem ser identificadas com a revelaopresencial (ou teofnica) de Deus, nem com os seus atos. As Escrituras e a

    proclamao podem ser testemunhas da revelao passada e podem at mes-mo servir de testemunho para a revelao acontecer no presente e no futuro,mas elas em si mesmas no podem ser revelao divina. Elas so entidadesseparadas da ao presencial de Deus.

    O evento da revelao, que um encontro presencial em que os homenscontemplam Deus, uma experincia humana que produz uma linguagem

    36 Ibid., p. 330.37 Ibid., p. 305.38

    Ibid., p. 315.

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    humana.39Essa linguagem humana a Bblia, no a revelao proposicionalde Deus, apenas o testemunho da revelao divina passada.

    Nesse evento-encontro da revelao, Deus no d informao a respeitode si mesmo, mas ele se revela a si mesmo atravs de uma presena. Deus

    manifesto na vida do homem e se torna conhecido dele como Deus, o Senhor.Porm, esse encontro com o homem histrico de tal modo que Deus nopode participar da sua histria nem misturar-se com o mundo dos fenmenos.Deus se encontra com o homem numa esfera que no pode ser medida, nopode ser relatada, porque ela no temporal nem histrica. Sobre isso Barthdiz que Deus

    faz-se a si mesmo presente, conhecido e importante para eles como Deus. Navida histrica dos homens ele assume um lugar, na verdade um lugar muitoespecfico, e faz de si mesmo o objeto da contemplao humana, da experinciahumana, do pensamento humano e da linguagem humana.40

    Por interferncia divina, o encontro um evento que acontece na esfera donmeno, na Geschichte. Neste evento-encontro, a Palavra de Deus se encarna eorigina a doutrina da encarnao de Cristo, que se humilha e ao mesmo tempoexalta o homem. O resultado deste evento-encontro que o homem atesta essarevelao divina, mas as proposies da Escritura no so revelao. A revela-o presencial, quando Deus se encontra com o homem, quando o homem confrontado com a presena de Deus. A presena de Deus verdadeiramente

    uma revelao, no as palavras registradas na Escritura.Esse tipo de encontro acontece entre o Eu e o Tu. No evento-encontro,Barth diz de forma dialtica que Deus fala, o que parece implicar em palavrasque o revelam. Barth diz que Deus anuncia o seu reino... liberdade, senhorioe divindade, conceitos que, nas palavras de Barth, so

    inacessveis e desconhecidos se o prprio Deus, esse Eu, no fala nem se dirigea um Tu, de forma que, no prprio Deus, eles so o significado do evento quea Bblia chama revelao.41

    Barth ainda diz:

    ... a proclamao na igreja permanece uma entidade extremamente igual a elacomo um fenmeno, temporal como ela, todavia, diferente dela, e em ordemsuperior a ela. Essa entidade a Santa Escritura.42

    39 Ibid., p. 315.40 Ibid.41 Ibid., p. 307.42

    Ibid., p. 113.

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    Segundo o entendimento de Barth, Deus no pode estar presente emcoisas fenomnicas. As Escrituras e a proclamao so duas entidades seme-lhantes porque elas so fenomnicas, ainda que as Escrituras tenham para aigreja uma importncia ligeiramente superior proclamao. As Escrituras

    so a proclamao escrita da igreja e a proclamao hoje deve estar baseadanessa proclamao escrita.43Quando a proclamao se torna uma verdadeiraproclamao, ento ela a Palavra de Deus pregada. Barth diz que assim averdadeira proclamao significa a Palavra de Deus pregada.44Todavia, aspalavras usadas para a proclamao e as palavras retiradas da Escritura noso revelao. Demarest diz que no ato da auto-revelao Deus no revelaverdades objetivas formais, mas o seu prprio Eu.45

    A proclamao baseada nas Escrituras pode dar lugar a uma ao pre-sencial de Deus, que vem da liberdade de Deus. A Escritura pode se tornar aPalavra de Deus por um livre ato de Deus, e no porque ela em si mesma oregistro da revelao divina. A Escritura uma linguagem humana a respeitoda revelao passada e ela pregada com a esperana de que a revelao possaocorrer no presente. Mas quando ocorre o ato revelador-presencial de Deus, aspalavras da proclamao da Escritura no so simplesmente uma linguagemhumana a respeito de Deus, mas a prpria linguagem de Deus.46 nesse sentidoque a Bblia se torna a Palavra de Deus. Quando h a linguagem de Deus, en-to, as palavras no so alguma coisa fenomnica, mas elas se tornam parte daesfera numnica, onde os atos de Deus acontecem. Somente quando o eventopresencial-revelador acontece que a Bblia se torna Palavra de Deus.

    Deveria ser lembrado que a revelao de Deus no pode ser registrada.A Bblia est na esfera fenomnica, ainda que o seu contedo tenha sido aexperincia daqueles que tiveram contato com a Palavra de Deus (que o Cris-to-evento-revelacional) e, por essa razo, Deus no pode ficar entre capas.Deus se apresenta a ns atravs de sua prpria presena no evento-Cristo, queassume a nossa humanidade.

    Barth diz que a lei de Deus (que a Escritura)

    a impresso da revelao divina deixada para trs no tempo, na histria e nasvidas de homens; ela uma poro de escria de carvo que marca um milagre

    ardente que aconteceu, uma cratera em extino revelando o lugar em que Deushavia falado, uma lembrana solene da humilhao atravs da qual alguns ho-mens foram compelidos a passar, um canal seco que numa gerao passada e sobdiferentes condies tinha sido enchido com a gua viva da f e da percepoclara, um canal formado de idias, concepes e mandamentos...47

    43 Ibid., p. 125.44 Ibid., p. 102.45 DEMAREST, General revelation, p. 125.46 Church DogmaticsI/I, p. 104.47 BARTH, The Epistle to the Romans, p. 65.

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    A lei de Deus em forma escriturstica uma expresso fenomnica doevento revelador que tem uma causa transcendental. Ela o efeito da aodivina, embora ela no seja revelao. Os homens que possuem a lei de Deusso estampados com a impresso do Deus verdadeiro e desconhecido, porque

    eles possuem a forma de uma religio tradicional e herdada.48Deus se tor-nou revelado a eles e eles registraram a impresso que essa revelao causouneles, mas eles no poderiam registrar a revelao em si mesma porque ela presencial, o prprio Deus sendo manifestado.

    Kant havia dito que em nossa representao geral de todas as idiastranscendentais, ns as consideramos sob condies fenomnicas.49Ora, noentendimento geral de Barth, a Escritura seria uma representao fenomnica,uma impresso da revelao divina. De acordo com o pensamento de Barth, aBblia no pode ser revelao divina porque ela, ao tratar das idias transcen-dentais ou ao falar das coisas numnicas, o faz de um modo fenomnico. ABblia matria, ela tem forma e ocupa espao, ela surgiu no tempo e na histriados homens. Deus, de acordo com Barth, extremamente transcendental e nopode, de modo algum, estar restrito ao papel, s condies fenomnicas.

    A confrontao revelacional de Deus com os homens no pode estar presaentre as capas de um livro. A experincia humana tem sido sempre uma tenta-tiva de colocar algo que pertence esfera numnica numa esfera fenomnica,de acordo com o raciocnio de Barth. Por esta razo Barth, sob a influncia daperspectiva kantiana, nega qualquer envolvimento da revelao divina como tempo, o espao e a histria, a saber, nega qualquer vinculo da revelao

    divina com a esfera fenomnica.O mesmo pode ser dito a respeito da proclamao que baseada na Escri-

    tura. Ela a linguagem a respeito de Deus dirigida aos homens. A proclamao,em si mesma, no a Palavra de Deus porque ela possui as mesmas condiesfenomenais da Bblia. Por divina interferncia, a proclamao pode ocasionaro evento-Cristo, que o encontro de Deus com o homem numa esfera num-nica. Quando a proclamao se torna verdadeira proclamao, ento a Bblia,na linguagem de Barth, se torna a Palavra de Deus.50

    Todavia, nunca devemos nos esquecer de que na teologia de Barth a re-velao na verdade no difere da pessoa de Jesus Cristo, e tambm no difere

    da reconciliao que aconteceu nele.51Ela no contm em si mesma qualquerinformao que possa ser registrada, porque o evento, quando registrado, saida esfera numnica. Pannenberg, um simpatizante da neo-ortodoxia, tambmentendeu a mesma coisa a respeito de Barth. Ele diz: A revelao no Deus

    48 Ibid.49 KANT, Critique of pure reason, p. 315.50 Church DogmaticsI/I, p. 123ss.51

    Ibid., p. 134.

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    tornando conhecido certo conjunto de verdades enigmticas, mas, como KarlBarth colocou, a auto-revelao de Deus.52A revelao a presena deDeus, da prpria pessoa de Deus. Embora Barth diga que a revelao divinaseja um discurso, o verdadeiro contedo desse discurso no so palavras

    que podem ser registradas, reproduzidas, mas um evento majestoso, inefvel,no qual o prprio Deus se revela presencialmente ao homem.

    2.3.3 Deus se revela no presente, no somente no passado

    De acordo com Barth, Deus, que o contedo da revelao, revela-senum evento que acontece no presente, e no somente no passado, como ensinaa ortodoxia crist. Os partidrios da ortodoxia crist, segundo Barth, cremnuma revelao esttica, que permaneceu na histria de atos passados, umarevelao que era possvel de ser registrada porque, segundo eles, a revelaono idntica a Deus. Para Barth, entretanto, Deus continua a se revelar nopresente, aqui e agora. A Bblia se torna a Palavra de Deus de vez em quandoe isso no tem nada a ver com a experincia humana, mas com a liberdade dagraa de Deus.53Barth diz que a revelao

    no um evento que meramente aconteceu e que agora um fato passado dahistria. A revelao de Deus , naturalmente, passada. Mas ela tambm umevento que acontece no presente, aqui e agora.54

    Embora o evento da revelao seja singular, ele pode se repetir na vidado homem. Deus, em sua graa, pode se revelar diretamente e presencialmenteaos homens quando h uma proclamao baseada na Escritura. A Palavra deDeus pode se encarnar na pregao da Escritura e, ento, o evento da revelaoacontece.

    Deus livre e no est preso a fatos histricos do passado. A revelaode Deus no esttica, mas dinmica, sempre acontecendo de acordo com oseu senhorio.

    CONCLUSES

    (1) Negando a historicidade da revelao divina, Barth retira da f crist

    as suas razes histricas. Nesse sentido, a f crist tem conotaes altamentedocticas, apoiadas na no-historicidade da revelao. O prprio Verbo Divino(Palavra de Deus), em virtude da negao da revelao na histria pressupostapor Barth, no se encarnou no sentido em que os cristos histricos entendema histria. Ele se encarna, mas no num ponto fixo da histria, sendo a suaencarnao repetida cada vez que o elemento da revelao acontece. Por essa

    52 PANNENBERG, Wolfhart.Revelation as history. London: Macmillan, 1968, p. 4.53 Church DogmaticsI/I, p. 131.54

    Ibid. II/1, p. 262.

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    razo, o Jesus de Nazar que apareceu na histria (H) apenas ilustrativo doCristo da f que se revela na histria (G). Retirando essa raiz histrica, a nossa fir ficar apoiada num subjetivismo em que predomina a noo de vcuo. Fazerteologia sem que a revelao seja histrica fazer teologia num vcuo.

    (2) Negando a revelao natural, Barth tambm retira da historia a reve-lao divina. Quando ele nega a revelao geral, ele est negando que Deus serevela nas obras da criao, no prprio homem e tambm nos atos da histria,especialmente os atos redentores de Deus. Essa negao evidentemente umgrande perigo para a f crist, que fica apenas com uma revelao doctica,sem qualquer conotao com o aqui e o agora.

    (3) Negando a proposicionalidade da revelao, Barth (assim como ou-tros), causa srios danos doutrina da revelao. Das trs negaes estudadasneste artigo, a negao da proposicionalidade da revelao tem sido a mais

    sria para o cristianismo histrico, porque toca no cerne da doutrina crist darevelao que est evidenciada nas Escrituras. Portanto, altera em muito oconceito de revelao em toda a histria da igreja crist.

    Conclumos este artigo fazendo uma anlise um pouco mais profunda dosprincipais danos causados pela negao da revelao proposicional.

    1. Quando negamos a revelao proposicional, acabamostransformando a interpretao em revelao

    A idia, no final das contas, que, ao negar que Deus se revela em pala-vras, esses telogos tomam as palavras resultantes da nossa interpretao dos

    atos de Deus e as consideram revelao de Deus.O que os escritores da Bblia fizeram? Eles viram os atos de Deus, deram

    a sua interpretao dos mesmos, puseram essa interpretao em palavras e essaspalavras resultantes da hermenutica humana so consideradas revelao. Naverdade, elas no so palavras de Deus, mas palavras de homens elevadas categoria de revelao divina porque elas interpretam atos divinos. Todavia,elas em si mesmas no so revelao divina.

    O pensamento de Hodgson em algum sentido reflete o pensamento deKarl Barth que diz que a Escritura o testemunho da revelao passada. Em

    outras palavras, porque Hodgson

    confina a revelao a atos e faz da Bblia meramente um testemunho dos atos eno ela mesma uma parte da revelao, ele chega a concluses erradas que soevidentes. Em seu entender, a palavra de Deus uma srie de atos divinos, dosquais a Bblia d testemunho... a revelao de Deus dada em atos; as doutrinasda f so formuladas pela reflexo sobre a importncia daqueles atos.55

    55 KNOX, D. B. Propositional revelation, the only revelation. Disponvel em: http://www.acl.asn.au/dbk_revelation.html. Acesso em maio de 2004.

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    A posio dos que negam a revelao proposicional leva conclusode que as cartas de carter mais teolgico do Novo Testamento no podemser revelao porque elas no esto interpretando diretamente nenhum ato darevelao divina. Ainda mais, algumas afirmaes feitas por Jesus sobre Deus

    no so revelao divina porque no esto explicando nenhum ato divino. Porexemplo, quando Jesus disse que Deus esprito e importa que seus adorado-res o adorem em esprito e em verdade (Jo 4.23), isso no pode ser revelaodivina, porque Jesus no est interpretando um ato de Deus, mas somenteconceituando Deus. importante que vejamos as conseqncias de se crer narevelao como sendo unicamente os atos de Deus, no as suas palavras.

    2. Quando negamos a revelao proposicional, tornamos arevelao no-fidedigna

    Se as palavras registradas nas Escrituras Sagradas no so palavras deDeus, mas meramente um testemunho que os escritores deram da revelao deDeus em atos, a autoridade da Escritura perde totalmente a sua fora. Ela setorna apenas um testemunho falvel de homens falveis que emitiram os seusconceitos sobre os atos de Deus de acordo com a sua prpria tica.

    Se isto assim, eu no posso confiar na Bblia, porque ela perde a autori-dade de ser Palavra de Deus para ser palavra de homens a respeito da revelaodivina. Se a revelao um conjunto de impresses humanas a respeito doque Deus fez no passado, e das experincias que os homens tiveram no passado,ento ela no um livro confivel.

    Pode haver uma grande distncia entre a ocorrncia do evento e a in-terpretao do mesmo. Como podemos ter a certeza de que o observador doevento ou aquele que ouviu falar sobre o evento est sendo fiel ao que real-mente aconteceu? Ainda que ele estivesse presente no momento do evento,as palavras dos autores bblicos seriam falveis. Isto porque no teriam a aosobrenatural do Esprito Santo, que lhes d as Palavras de Deus para que elesexpressem perfeitamente o que Deus quer que escrevam. Como podemos con-fiar na ao dos escritores que esto descrevendo conforme as suas prpriaspalavras, sem que estas sejam realmente as palavras infalveis que receberam

    de Deus? No podemos confiar nas palavras da Bblia se Deus no o autorltimo das palavras ali registradas.

    A dicotomia entre o evento e a interpretao do evento, com a escolha do primeirocomo o elemento importante, ou na verdade como o nico elemento que compea revelao, leva, como devia ser esperado, ignorncia da interpretao dadana Bblia em favor de qualquer interpretao que se recomende ao leitor.56

    56 Ibid.

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    No final das contas, a Escritura s teria alguma confiabilidade se a inter-pretao do autor bblico estivesse em conformidade com a opinio daquele queo l. Todavia, a Escritura no possui autoridade de per si, porque as palavras aliregistradas no so revelao proposicional de Deus. Na verdade, uma pessoa

    pode desprezar a interpretao dos autores bblicos tentando ir direto aos atosreveladores de Deus. Se uma pessoa no aceita a interpretao dos fatos, elaquerer interpret-los melhor que os autores bblicos e conseqentemente aBblia perde toda a sua fora, porque ela simplesmente o testemunho quehomens falveis deram dos atos reveladores de Deus no passado.

    3. Quando negamos a revelao proposicional, somos ns quedeterminamos o que revelao

    Se a revelao est no evento ao invs de estar na interpretao, ns

    que determinamos o que revelao e o que no . Knox registra o fato de queem suas reflexes sobre o Antigo Testamento, o Padre Kelly tinha um modode ir diretamente ao evento sem mesmo observar a interpretao dada peloprofeta ou pelo historiador proftico.57Knox ento observa:

    Se a revelao est no evento antes que na interpretao, a revelao se tornaigual a um nariz de cera que moldado de acordo com o capricho de cada ho-mem. Na verdade, se a revelao somente um evento, ento no h nenhumarevelao no sentido de um conhecimento dado por Deus.58

    O que precisamos entender que as palavras de Deus registradas nasEscrituras que do significado aos eventos. So as palavras de Deus queinterpretam os eventos. Deus realiza os eventos e os interpreta. Os eventos emsi mesmos, sem as palavras do prprio Deus sobre eles, no revelam nada deDeus. Para que um evento seja considerado revelador, ele deve ser interpretadopelo prprio Deus. Temos que crer nos eventos operados por Deus que so re-velao quando interpretados por ele mesmo. Esta a revelao proposicional.Se as palavras da Escritura so meras palavras de homens que interpretam oseventos de Deus, so os homens que determinam o que revelao. Para osprofetas que viam as operaes divinas e os sonhos e vises que ele dava, a

    palavra do Senhor no era o evento em si, mas a interpretao do evento quelhes havia sido dada pelo Esprito, quando este lhes punha na boca as palavrasque eles deviam registrar. O mesmo pode ser dito a respeito dos atos realizadospor Jesus Cristo. Se no houvesse as palavras de Deus para explicar os atos deCristo, eles no revelariam nada. A vida, morte e ressurreio de Jesus Cristo,que so os eventos supremos para a nossa redeno, perderiam o seu carter

    57 Ibid.58

    Ibid.

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    revelador se no existissem as palavras interpretativas dadas pelo prprioSenhor atravs dos seus apstolos. Essas palavras (ou proposies) que soa revelao, no os eventos em si mesmos.

    As proposies dadas por Deus que do significado aos eventos, sendo

    reveladoras. A revelao essencialmente proposicional. Do contrrio, oshomens que determinaro o que revelao.

    4. Quando negamos a revelao proposicional, negamos a soberaniade Deus

    Quando negamos a revelao proposicional, estamos afirmando que Deusno pode manifestar-se verbalmente aos homens, eliminando assim a sobera-nia divina sobre o mundo e sobre o que ele quer que os homens saibam. Deuscontrola igualmente todos os eventos que acontecem no mundo, mas nem todo

    evento revela igualmente Deus. H algumas operaes especiais de Deus nasquais ele explica o que faz, mostrando aspectos do seu carter ou revelandoalguma coisa sobre ns prprios. Todavia, como j dissemos, um evento no revelador em si mesmo sem as palavras explicativas do prprio Deus.

    Pelo fato de Deus controlar todas as aes no mundo, e de at ser con-corrente nelas, ele levou reis a fazerem muitas coisas em cumprimento do seudecreto, e disps deles segundo a sua vontade. Todos esses atos, nos quais oshomens so os personagens principais, Deus estando por trs de tais atos, soreveladores quando explicados por Deus. Se Deus soberano para realizar osatos, ele tambm o para interpret-los para que os homens possam conhecer

    a verdade sobre eles de maneira confivel.O grande problema hoje que a teologia moderna (fruto de movimentos

    filosficos como o Iluminismo) tem negado a soberania divina. Se a negam,acabam negando o direito que ele tem de falar aos homens, trazendo enormesprejuzos para o conceito de uma revelao divina proposicional.

    Deus soberano para realizar atos e tambm para interpret-los confia-velmente. Alan Richardson disse:

    A revelao se deve a uma dupla forma da atividade de Deus: Deus controla

    os eventos histricos que constituem o meio da revelao e tambm inspira asmentes dos profetas, capacitando-os assim a interpretar os eventos corretamente.Ele guia o processo; ele guia as mentes dos homens; a interao entre o processoe as mentes que so igualmente guiadas por ele a essncia da revelao. 59

    A soberania de Deus no pode deixar de ser levada em conta quandotratamos da revelao divina. Deus Senhor dos seus atos e Senhor do registro

    59 RICHARDSON, Alan. Christian apologetics, p. 146 (citado por D. B. Knox, Propositionalrevelation, the only revelation).

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    dos mesmos. Dessa forma podemos crer nos atos soberanos de Deus que soreveladores dele por causa das palavras que ele prprio soberanamente deixaescritas atravs da instrumentalidade dos autores humanos.

    A interpretao que os autores bblicos do dos eventos divinos tambm

    soberana. Essa interpretao vinda da soberania divina que consideramosser a infalvel revelao proposicional.

    5. A negao da revelao proposicional elimina o elemento f narevelao

    Se no cremos na revelao proposicional, ento estamos dizendo queno devemos confiar naquilo que os profetas disseram sobre o fato de Deus sedirigir a eles em palavras nos sonhos, nas vises ou em teofanias. Se ficarmoscom a tese em pauta, ento os profetas so mentirosos e o nosso elemento de

    f fica totalmente esvaziado. No possvel confiar no que eles dizem daspalavras de Deus.Se Deus se revela apenas em eventos, e no em palavras, no podemos

    dizer que cremos em Deus, porque no h como dizer que cremos em Deus seno crermos no que ele diz. Ainda que se argumente que Deus se revelou emeventos, no podemos crer nos eventos de Deus porque eles podem no tersido confiavelmente interpretados.

    Se Deus no se revela proposicionalmente, a noo de f em Deus ficatotalmente esvaziada, e o conceito de f fica altamente prejudicado. Todavia,se Deus o prprio intrprete de seus atos, ento eu posso confiar nas pala-

    vras que Deus disse atravs dos autores humanos. Todavia, se Deus no ointrprete de seus prprios atos, ento eu no posso confiar que a Escritura o registro da revelao proposicional. William Temple, afirmando o contrriodo que acabamos de afirmar, disse:

    ...a f que os seus primitivos seguidores tinham de que haviam encontrado asalvao no consistia na aceitao de proposies a respeito dele nem mesmona aceitao do que ele ensinou em palavras a respeito de Deus e do homem,embora isto certamente estivesse includo, mas na confiana pessoal em suapresena pessoal, amor e poder.60

    Se isto assim, como que podemos confiar em Deus? Como sabemosda presena dele, do seu amor e do seu poder? S podemos nos certificar dis-to atravs de palavras ditas ou inspiradas por ele prprio, palavras essas queso dignas de confiana. No podemos confiar num ser que no se expressaem palavras. A presena de Deus est em toda parte, e tambm o seu poder e

    60 TEMPLE, William.Nature, man and God, p. 311 (citado por D. B. Knox, Propositional reve-lation, the only revelation).

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    amor, mas essas coisas no fazem os homens confiarem nele, porque no sepode confiar naquilo que no dito.

    por essa razo que as palavras ditas pelos profetas eram tidas por elescomo palavras de Deus sobre a interpretao dos eventos que eles viam e ou-

    viam nos sonhos e vises. Quando confiamos em Deus estamos dizendo queconfiamos no que ele diz. A f no pode ser exercida seno em proposies.As pessoas que testemunharam os atos de Jesus Cristo no criam nos atos, masnaquilo que ele falava na explicao de seus atos. verdade que eles criam namiraculosidade e na sobrenaturalidade de seus atos, mas no sem as proposiesestabelecidas por ele. A idia de Cristo era que cressem nele e nas suas palavras,porque no faz sentido crer nele sem crer no que ele disse. Os seus discpulosviram tudo o que ele fez (seu poder, seu amor, etc.), mas todas as suas obrasforam aceitas atravs de suas palavras a respeito delas. No poderiam crer em

    Jesus sem que tivessem conhecimento de quem ele era e do que fazia. A f emDeus foi uma experincia religiosa resultante de uma revelao que foi dadaproposicionalmente e da qual eles se apropriaram. A f deve ser resultante darevelao divina, porque no podemos, segundo Paulo, crer naquele de quemnada ouvimos. Contudo, a experincia religiosa que os discpulos tiveram (ens tambm temos) deve ser baseada na revelao divina, sendo conformada aela e julgada por ela, a fim de que essa experincia seja considerada verdadeira,produto de um genuno conhecimento de Deus. Knox diz que a revelao o teste e o critrio de tal experincia religiosa... e a revelao que forma esseteste consiste nas palavras da Escritura e nas proposies que elas formam.61Por que muitos no passado creram ser terem visto? Porque eles confiaramnaquilo que lhes foi dito, e o que lhes foi dito era digno de confiana porqueeram proposies reveladas por Deus. Knox afirma:

    A negao da revelao proposicional torna a f crist impossvel na sua ex-presso mais plena e mais profunda de confiana, porque impossvel confiarabsolutamente a menos que tenhamos a segura Palavra de Deus; tal negaorestringe o cristianismo a uma religio de obras, i.e., a seguir e obedecer a JesusCristo da melhor maneira que podemos. Alm disso, a negao da revelaoproposicional torna o senhorio de Cristo impossvel de uma percepo real,

    porque somente pelo cetro de sua palavra que ele pode exercitar esse senhorioabsoluto sobre as conscincias e desejos dos homens, que seu por direito. Poressa razo errado prestar obedincia absoluta a uma ordem incerta ou colocarconfiana absoluta numa promessa incerta.62

    61 KNOX, Propositional revelation, the only revelation.62 Ibid.

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    6. Quando negamos a revelao proposicional certamente negamosa inerrncia das Escrituras

    Casserley, um professor de teologia, tem uma afirmao que ilustra este

    ltimo ponto sobre a conseqncia da negao da revelao proposicional:Geralmente, a concepo bblica de revelao no proposicional, mas his-trica. O Deus da Bblia tornado conhecido, ou antes, faz-se a si mesmoconhecido, no em palavras, mas em eventos. A Bblia no uma srie deproposies salvadoras... mas um registro proposicional de eventos salvadores.Sua real linguagem, como inevitvel quando a linguagem humana se v como problema de descrever algo singular, parcialmente adequada e parcialmenteinadequada.63

    Esse raciocnio de Casserley coerente com a sua crena. Se a revela-

    o no proposicional, certamente as palavras da Bblia no so adequadasquando descrevem os atos de Deus. No conceito desse professor h erros naEscritura. Por que h erros na Bblia? Porque ela o registro falvel feito porseres humanos falveis, pois o que eles registraram no a Palavra de Deus,mas impresses que eles tiveram dos atos que Deus realizou. Logo, se a Bblia o registro humano, as palavras registradas so inadequadas e podem mostrardistores prprias da natureza humana cada.

    Portanto, se essas palavras podem ser inadequadas, a conseqncia l-gica que no podemos confiar nelas. Todavia, embora esse professor (assim

    como outros) negue a revelao inerrante, possvel mostrar a falsidade dessaassertiva. Knox sugere a seguinte idia:

    Se quando o relgio marca quatro horas eu afirmo o relgio est marcandoquatro, eu fiz uma afirmao proposicional que verdadeira se as palavrassignificam alguma coisa, e essa verdade permanece caracterstica da proposio,mesmo que: (a) o meu ouvinte me oua erroneamente por causa de surdez; (b)ele deixe de saber o que significo por falta de conhecimento da minha lnguaou (c) no haja ningum presente para me ouvir.

    Ento, ele tira a sua concluso de maneira incontestvel:

    Se possvel para qualquer ser humano fazer uma proposio completamenteverdadeira que um fato revelacional para aqueles que tm ouvidos para ouvir, uma grande impiedade dizer que Deus no pode assegurar que os seus servosassim o faam, se ele o quer; e no fazer somente essa proposio verdadeira,mas uma srie inteira delas dentro das pginas da Bblia, e excluir dentre elasquaisquer proposies errneas, se ele quer. Que Deus de fato tem feito assim

    63 CASSERLEY, J. V. Langmead, The Christian in philosophy, p. 190, citado por Knox, Propo-sitional revelation, the only revelation (grifos acrescentados).

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    deve ser crido por todos os que do crdito ao ensino e atitude de Cristo, deseus apstolos e da totalidade da Escritura com referncia ao carter da Escri-tura Sagrada.64

    Portanto, todos quantos crem em Cristo Jesus tm de necessariamentecrer na infalibilidade de suas palavras. Todos que crem no Pai de Jesus Cristotm de crer na inerrncia da revelao proposicional que ele nos d.

    altamente inconsistente aceitar a autoridade de Cristo, dos apstolos e daEscritura em geral com respeito a Deus e sua relao com a criao, ao mesmotempo em que rejeitamos essa autoridade com respeito relao de Deus comparte dessa criao, a saber, as palavras da Escritura.65

    7. Quando negamos a revelao proposicional negamos o carter

    pessoal da revelao divina

    Alguns telogos modernos fazem uma anttese entre revelao pessoal eproposicional, argumentando que se a revelao fosse proposicional ela noseria pessoal, e que, visto que ela pessoal (Deus revelando-se a si mesmo), elano pode ser proposicional (Deus falando alguma coisa de si mesmo).66

    verdade que existe um relacionamento pessoal entre Deus e os ho-mens. Por esta razo duas pessoas se comunicam em palavras. Deus semprecomunicou a pessoas alguma coisa de si prprio. Pessoal e proposicional no

    se excluem.O relacionamento pessoal entre Deus e o homem cresce exatamente como aamizade dos homens a saber, atravs da conversao; e conversar significafazer afirmaes informativas, e afirmaes informativas so proposies.67

    Portanto, quando no cremos na revelao proposicional ns desperso-nalizamos a revelao. Packer cita F. I. Anderson, que afirma:

    Menosprezar as proposies porque elas so impessoais destruir as relaeshumanas ao desprezar o meio normal como ocorrem. A bem-aventurana de ser

    amado diferente das palavras sobre o amor, mas a proposio Eu te amo um meio indispensvel e muito bem-vindo para a consumao do amor narealidade. Todavia, na teologia moderna ns temos um Deus-amante que nofaz nenhuma declarao.68

    64 KNOX, Propositional revelation, the only revelation.65 Ibid.66 PACKER, J. I. God has spoken. Downers Grove: InterVarsity Press, 1979, p. 52.67 Ibid.68 Ibid.

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    Negar a revelao em proposies negar o carter pessoal da revelaodivina. No existe noo real de relacionamento interpessoal sem comunicaoverbal. Amizade sem conversao uma contradio de termos. Um homemcom quem eu nunca falo nunca ser meu amigo. Essa coisa impossvel.69A

    Escritura Sagrada deixa claro que o

    relacionamento entre Deus e os seus amigos humanos se tornar perfeito um diaquando, alm de ouvirem a sua voz, eles o vero face a face. Agora vemos comopor espelho, obscuramente; mas ento veremos face a face (1Co 13.12).

    Os defensores da idia de que o contedo da revelao o prprio Deus,e no as suas palavras, tm dificuldade com a idia de a revelao ser propo-sicional. Geralmente, os de tendncia barthiana que fazem essa distino,eliminando, assim, a proposicionalidade da revelao em favor do seu carter

    pessoal. Todavia, as duas coisas, pessoalidade e proposicionalidade, podemandar juntas. Alis, devem andar juntas, pois a negao da ltima nega o carterpessoal das relaes.

    ABSTRACT

    The author argues that Barth, although he left the old liberalism in favorof neo-orthodoxy, did not abandon all previous influences, especially thosereceived from Kant. Though Barth believed in special revelation, under theinfluence of Kantian rationalistic subjectivism he placed God in a metaphysical

    realm in which God does not reveal things about himself, nor reveals himselfin words, but only personally. Barth accepts special revelation, but deniesgeneral, historical, and propositional revelation. God only reveals himself di-rectly, in events and in presence, both in the past and today, but not in writtenwords. The author concludes his analysis by offering a critique of the Barthianconcept of revelation. In his view, the denial of historical revelation challengesthe very reality of the incarnation of the Word. Besides, the denial of propo-sitional revelation transforms interpretation in revelation, makes revelationuntrustworthy, makes the reader determine what is revelation, denies Godssovereignty, suppresses faith in revelation, denies the inerrancy of Scripture,and questions the personal character of revelation.

    KEYWORDS

    Liberalism; Enlightenment; Rationalism; Kant; Barth; Neo-orthodoxy;Revelation; Propositional revelation.

    69 Ibid., p. 51.