caminhos sem rumo jean-luc luciani
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Caminhos sem rumo
Jean-Luc Luciani
Jullien foge de casa. Sem que os pais se apercebam, apanha um comboio
para Marselha. E tudo porque se sente órfão: obcecados pela sua dor depois
da morte prematura do outro filho, Nicollas, vítima de um condutor
embriagado, os pais de Jullien fecham-se numa letargia mórbida que os
aprisiona cada vez mais. Ignoram totalmente o filho mais novo, e este decide
partir. Para lhes provar que existe e que precisa deles…
Em Marselha, onde não conhece nada nem ninguém, Jullien vê-se
confrontado com a dura realidade da rua, com a vida dos adolescentes que
sobrevivem em bandos clandestinos, roubando, agredindo, traficando…
Abdallah, um rapaz um pouco mais velho, torna-se o seu único apoio.
Mas as leis da rua são implacáveis e dificilmente nela se sobrevive…
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Capítulo 1
O meu nome é Jullien. Jullien Thinard. Mas o meu apelido não tem importância, o
que conta é o nome próprio. Normalmente, Jullien não é assim que se escreve, a minha
mãe é que insistiu para porem dois l.
— Com duas asas1 levantarás voo mais facilmente — costumava ela dizer na
brincadeira.
Não sabia que a vida iria dar-lhe razão…
A estação é cinzenta. Ao descer do comboio, o que ressalta aos meus olhos é a
sujidade dos cais e das paredes. Até o ar é sujo. Há poeira por todo o lado; flutua numa
espécie de véu que acompanha os viajantes. Vê-se que está em obras. Abrem-
-se buracos, talvez para um parque subterrâneo ou uma estação de metro, não faço
ideia. Movimentam-se pessoas em todos os sentidos, entre um ruído incrível que se
repercute contra os tetos altos do hall. Sinto-me oprimido.
1 Em francês, o l e a palavra “asas” pronunciam-se da mesma forma. (N.T.)
A viagem até correu bem. Nenhum fiscal, nem adultos desconfiados, ou perguntas
indiscretas. Nos dias de hoje, é normal um adolescente viajar sozinho, não chama a
atenção. Tanto melhor para mim.
Sinto que as pessoas não se interessam pelos outros, parecem fechadas no seu
mundo, concentradas no seu pequeno universo. Isso não me incomoda, até me dá
jeito. Passar despercebido, desaparecer na multidão… é esse agora o meu objetivo.
Dirijo-me para a saída, o resto logo se verá. Não conheço esta cidade, sei que dei
uma cabeçada, mas nem pensar em voltar atrás. Para mim esta era a única solução.
Diante das máquinas dos bilhetes, um cordão da polícia bloqueia as saídas.
Controlam as pessoas, vasculham as bagagens — é o estúpido plano Vigipirate2.
Hesito. Os meus pais ainda não devem ter dado conta, portanto, nenhum alerta de
busca foi dado. Bem, mas um adolescente a vaguear sozinho no átrio de uma estação
pode parecer-lhes suspeito, nunca se sabe. Se caminha ao lado da linha, é suspeito; se
baixa os olhos, se se ri demasiado alto…
Eis-me a uma dezena de metros dos polícias, e a multidão arrasta-me com ela.
Começo a entrar em pânico. Penso que já lhes chamei a atenção. Que grande tolice 2 Sistema francês de alerta e segurança nacional criado pelo presidente Giscard d’Estaing em 1978. (N.T.)
deixar-me prender assim, tão depressa. De repente, apercebo-me de uma falha à
esquerda. É a minha safa. Apresso o passo, esgueiro-me pelo espaço livre e passo sem
que ninguém me incomode. O meu coração quase não aguenta. Mas afasto-me,
procurando manter a maior naturalidade possível.
Nem trinta metros andei e ei-los que se atiram a mim. São quatro, devem ter a
minha idade. Cercam-me e imobilizam-me a um canto afastado do fluxo dos
passageiros.
Um objeto pontiagudo pressiona as minhas costas.
— Se gritas, mato-te! — assobia-me uma voz ao ouvido.
Não me mexo. Não tenho medo, ainda não. Foi tudo tão rápido que mal tive tempo
de me aperceber.
— Aonde é que vais? — pergunta-me o mais alto.
Sinto os dedos a apalpar o meu blusão, certamente à procura da carteira ou de um
telemóvel. Mas não tenho nem uma coisa nem outra. Nunca tinha sido assaltado. Na
minha cidade toda a gente se conhece, não há delinquência.
Uma mão pousa sobre o estojo da minha flauta.
— O que levas aqui?
Sem tempo para responder, eis que uma outra voz se ouve atrás de mim.
— Deixa-o em paz!
Volto-me para ver quem era o meu salvador. Aparenta ser mais velho do que eu.
Tudo nele é determinação, mas nem por isso deixo de ter medo.
— Sai daqui, Abdallah! Não te metas! — diz aquele que parece ser o chefe do
bando.
Mas Abdallah não dá parte de fraco. Vira-se para a direita e aponta para os polícias
que continuam a busca.
— Queres que me ponha a gritar, Medhi, é isso que queres?
Medhi hesita, e depois faz sinal aos outros três. As mãos abrandam a pressão,
desistem.
— Havemos de ver-te de novo, Abdallah — anuncia um deles — e, dessa vez,
vamos estourar-te a cabeça.
Abdallah parece não dar importância às ameaças.
De sorriso nos lábios, segue-os com o olhar enquanto se afastam.
Aproximo-me e estendo-lhe a mão.
— Obrigado pela ajuda. Chamo-me Jullien.
— De nada. Sou Abdallah — responde ele, baixando os olhos.
— Bem, acho que os nossos caminhos se separam aqui — disse eu, apontando a
saída com o queixo. — Obrigado, mais uma vez.
Mas Abdallah segura-me pela manga.
— Espera aí. O Medhi é pior que a sarna; não desiste assim tão facilmente. Ele e os
amigos são meninos para esperarem por ti lá fora. Anda, segue-me. Sei como sair da
estação sem se ser visto.
Abdallah leva-me com ele. Percorremos um longo e estreito corredor que fede a
urina. O chão está pejado de papéis gordurosos e de pontas de cigarros. Há sujidade
por todo o lado. Tapo o nariz para poder continuar. Abdallah não parece nada
incomodado pelo cheiro. Nem pelo barulho. É que, por cima das nossas cabeças,
enormes tubos de aquecimento vomitam jatos de vapor num ruído ensurdecedor. Os
seus olhos parecem andar à caça, à espreita de eventuais perigos, e tem o corpo todo
tenso. Como as cordas de um violino.
De repente, assalta-me uma dúvida. E se Abdallah fosse cúmplice do bando de
Medhi e estivesse a afastar-me dos polícias para melhor me atacar? Mas não há outra
opção, tenho de confiar nele.
— Afinal, que estavas a fazer na estação? Vieste esperar alguém?
Abdallah baixa a cabeça e continua sempre a andar. Parece incomodado pela
minha pergunta, mas depois de um curto silêncio, lá me responde.
— Andava a limpar as moedas das máquinas. Às vezes, os passageiros esquecem-
-se de as recuperar.
Não entendo muito bem o que ele quer dizer, mas não insisto. Não quero que se
sinta incomodado. Continuamos o nosso périplo sem trocarmos a menor palavra.
Desembocamos finalmente numa via fora de serviço. Por uns momentos seguimos
pelos carris enferrujados e, depois de uma centena de metros, chegamos junto de um
muro todo rachado.
— É a antiga estação da triagem. Hoje já ninguém passa aqui.
Avalio a altura da parede. Na escola, era tudo menos dotado para o desporto.
Assusto-me.
— Não me digas que temos de saltar por cima?
— Ou isso ou o bando do Medhi. Ou a polícia — acrescenta ele num piscar de olhos
malicioso.
— Lamento, mas é demasiado alto para mim.
— Não te preocupes, há um truque — diz-me Abdallah.
Ei-lo que, de um canto escuro, puxa um contentor metálico, vira-o e encosta-o ao
muro.
— É só subires, vais ver que é fácil.
Sorrio. A parede agora já não me parece um obstáculo intransponível. Não tenho
dúvida: o meu salvador é uma mina de soluções. Saltamos o muro, um a seguir ao
outro.
— A partir de agora cada um trata de si — diz Abdallah. — Adeus!
Desta vez sou eu que o seguro pela manga.
— Espera… Não tens um lugar onde possa passar a noite? Não tenho dinheiro para
pagar um quarto.
Abdallah olha-me dos pés à cabeça. Parece perplexo.
— Andas fugido, é isso? — diz ele.
Agora é a minha vez de baixar os olhos.
— Sim.
— Há quanto tempo?
— Desde esta manhã.
Abdallah cala-se. Ei-lo de novo a observar-me. Depois de uma longa pausa, sorri.
— Não te preocupes, talvez haja uma solução. Vem comigo.
Esta deve ser a fórmula favorita de Abdallah: não é preciso preocupar-se com nada.
Há uma solução para todos os meus problemas. Sigo-o sem hesitar.
Enquanto nos afastamos pelas ruas da cidade, pergunto-lhe:
— Diz-me lá, como é que se escreve o teu nome? Com um ou com dois l?
Abdallah faz uma cara esquisita; a questão surpreende-o, é normal. Mas para mim,
é muito mais do que uma simples pergunta.
Capítulo 2
Caminhamos já há bastante tempo. De vez em quando, Abdallah vira-se para se
assegurar que não estamos a ser seguidos.
— Para onde me estás a levar?
— Para onde eu moro — responde ele, acelerando o passo.
— Sabes, não queria de modo algum incomodar a tua família.
Abdallah sorri.
— Não te preocupes, para onde vamos não incomodas ninguém! Vivo num
okupado.
— Um okupado?
— Não sabes o que é?
É claro que sei. Vi reportagens na televisão sobre o assunto, mas tenho uma noção
muito vaga.
— Sim, claro que sei o que é um okupado.
— Então, despacha-te!
Decido parar de fazer perguntas estúpidas e contento-me em seguir atrás dele.
Pouco a pouco vamo-nos afastando do centro da cidade, talvez em direção a norte. Os
bairros que atravessamos estão abandonados. As raras pessoas com quem nos
cruzamos não respiram propriamente alegria de viver.
De repente, Abdallah abranda o passo. Aponta para um velho edifício em ruínas.
— É aqui.
Estava a contar com uma coisa qualquer, mas o que vejo ultrapassa tudo. A
fachada do imóvel está coberta de grafitis, as janelas entaipadas e o passeio coberto
de lixo. Custa a acreditar que Abdallah ou quem quer que seja possa viver num lugar
destes. Mas Abdallah continua a avançar.
— Anda — diz ele. — Vem sempre atrás de mim.
À entrada do okupado, um monstro de quase dois metros de altura barra-nos o
caminho. Tem o crânio rapado, e o antebraço quase completamente coberto de
tatuagens.
— Olá, Bombers! — diz Abdallah, baixando os olhos.
— Quem é este? — pergunta o gigante referindo-se a mim, sem sequer se dar ao
trabalho de cumprimentar o meu novo amigo.
O seu olhar pousa sobre mim, encara-me de frente e depois examina-me da cabeça
aos pés. Uma verdadeira inspeção. O tipo parece uma serpente viscosa. Um arrepio
percorre-me a espinha.
— É Jullien, um amigo. Vai ficar aqui comigo por uns dias. Algum problema?
— Nenhum, desde que pagues o suplemento.
— Qual suplemento?
— O suplemento previsto. Mais trinta euros por mês.
— É injusto — protesta Abdallah. — Não vamos ocupar mais espaço. Vai partilhar o
meu quarto.
Mas o crânio rapado não quer saber de nada.
— É assim, está escrito no regulamento.
— Que regulamento? Nunca vi tal coisa!
— Bem, não vou passar uma hora a discutir contigo. Se não estás contente, vai-te
embora.
Abdallah não insiste. Vira-se para mim, hesita, depois faz-me sinal para o seguir.
Bombers não se desvia um milímetro para nos facilitar a passagem. Temos de o
contornar. Ao afastar-me, sinto o seu olhar pesar nas minhas costas.
— São cento e trinta euros que tens de pagar no início do mês — avisa ele com ares
de ameaça.
Junto-me a Abdallah no vão das escadas em ruínas.
— Que história é esta? Julguei que quem vive num okupado não tem de pagar
renda…
Enquanto íamos subindo, Abdallah explica-me que aquilo é um okupado especial.
Em troca de cento e trinta euros por mês, tem-se um quarto reservado só para nós, e
ninguém vem vasculhar nas nossas coisas quando cá não estivermos. É Bombers
quem zela pela segurança do local.
Também me explica que, no início de cada mês, a sua principal preocupação é a de
conseguir aquela quantia. Depois só pensa em comer. Diz-me que quem não paga o
aluguer é posto na rua. Mas na rua só nos resta a miséria. Tornas-te numa presa fácil
para a polícia, para bandos como o de Medhi, assaltantes, perversos, associações de
proteção de menores ou de jovens sem abrigo, e ainda de muitas outras coisas. A vida
passa a ser um inferno.
Chegados ao patamar do segundo andar, Abdallah mete as mãos no bolso, tira uma
chave e aproxima-se de uma porta toda coberta de pinturas. As minhas perguntas não
acabaram ainda.
— E o Bombers, afinal, quem é?
— É quem mete os alugueres ao bolso. A verdade é que ninguém conhece ao certo
o seu verdadeiro nome. Bombers foi a alcunha que lhe puseram por causa do blusão
preto e laranja que usa a maior parte do tempo. Além de se abotoar com o dinheiro,
não faz mais nada a não ser beber cerveja o dia inteiro. Um conselho, Jullien, não
brinques com o tipo. Bombers não tem só ar de mau, é mesmo mau. Acredita.
A porta abre-se e Abdallah desaparece. Depois inclina-se diante de mim,
convidando-me a entrar, num gesto com a mão.
— Seja bem-vindo à minha modesta casa — diz a gracejar.
O compartimento não é muito grande, vinte metros quadrados, no máximo. A um
canto há um colchão. No centro, um caixote virado faz de mesa; por todo o lado há
velas meio gastas, pousadas diretamente no chão. Num canto, um fogão a gás. A
única janela está tapada com tábuas. Todo o compartimento cheira a mofo. Sinto uma
onda de angústia subir por mim acima. Abdallah dá-me umas palmadinhas nos
ombros.
— Retrete e duche, é no patamar. Não tem eletricidade, mas quanto à água, não há
problema. Não sei como é que o Bombers se desenvencilha, mas nunca falta. Para
dormir, não te preocupes, daqui a pouco vou lá acima, ao quarto andar, buscar um
colchão.
Dou uma volta pelo compartimento. Maquinalmente, dou por mim a arrancar
pedaços de papel de parede soltos um pouco por todo o lado.
— É da humidade — suspira Abdallah. — Com o tempo, descola-se tudo.
— E isto? — pergunto, apontando para pintas negras que correm pelo chão.
— Ah, as baratas? São as minhas fiéis companheiras de quarto, mas para elas é de
graça.
Confesso que, em muitos aspetos, Abdallah deixa-me de boca aberta.
Onde irá ele buscar coragem para gracejar? Onde arranja força para viver em tais
condições?
Um autêntico mistério.
Um pouco mais tarde, enquanto cozia massa no fogão minúsculo, pressiono-o com
mais perguntas. Quero saber tudo sobre ele. Então, calmamente, Abdallah conta-me a
sua história. Como um dia desembarcou numa cidade de que nem sabia o nome, e
porque é que fugiu do seu país, Marrocos.
— Nunca conheci o meu pai, foi a minha mãe que nos criou às minhas duas irmãs e
a mim. Quando morreu, fomos separados, e eu fui para um tio que me obrigava a
trabalhar no armazém a troco de uma refeição por dia e um canto de tapete onde
dormir. Aguentei três meses, até que fugi. Por uns tempos andei com bandos nas ruas
de Casablanca até que, um dia, ouvi dizer que havia quem, de noite, saltasse as
grades do porto e embarcasse clandestinamente em cargueiros. Diziam que em terras
distantes a vida era mais fácil. Fui uma série de noites seguidas até ao porto, até que
tentei a minha sorte. Foi logo à primeira tentativa. Consegui escorregar até ao fundo
do porão e fiquei ali escondido durante toda a travessia, só com algumas bolachas
para comer e água choca para beber. Evitava adormecer para que as ratazanas não se
aproximassem de mim.
Abdallah faz uma pausa, enquanto escorre a massa por um passador em miserável
estado. Fico embaraçado, eu que saí porque julgava que vivia no inferno… Estava
longe disso. Bem longe.
— Consegui desembarcar sem ser visto e, a partir daí, tive de aprender a
sobreviver sozinho. Há oito meses que isto dura…
Abdallah para de novo. Olha-me nos olhos, como quem adivinha o meu
pensamento.
— Mas nunca roubei — e dá um suspiro. — Recuso-me a roubar. Seria uma
vergonha, se a minha mãe me visse lá do alto.
Diz-me que, para ganhar dinheiro, lava os para-brisas dos carros, abre a porta dos
correios aos clientes, vende flores nos restaurantes, e à noite vigia os carros das
pessoas que vão ao cinema… Mil trabalhitos que lhe rendem em média duzentos euros
por mês, isto, se não adoecer. Diz ter quinze anos, mas parece ter muito mais.
Reparte por igual a massa nos dois pratos e deita por cima o que resta da
manteiga.
Quanto ao queijo ralado, hesita um instante e depois desiste. Está cheio de bolor.
Há coisas na história que não batem certo. Como pôde ele aprender tão rápido a
língua francesa? Como fez para se desenvencilhar sozinho numa cidade onde não
conhecia ninguém? Muitos aspetos permanecem obscuros, mas esta tarde decido não
fazer mais perguntas. Caso contrário, até pareço um polícia a fazer interrogatórios.
Embora a massa esteja demasiado cozida e muito insossa, sabe-me mesmo bem.
Só então me dou conta de que ainda não tinha comido nada desde que saí de casa.
Observo Abdallah, parece feliz por ter companhia.
— Agora é a tua vez — diz ele de boca cheia. — Conta-me lá a tua história!
Depois do que acabo de ouvir, sinto-me um medíocre com os meus problemas
existenciais, mas Abdallah foi tão generoso comigo que, mesmo sem grande vontade,
não posso recusar-lhe explicações. Engulo uma garfada de massa e passo a contar a
minha história.
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Capítulo 3
Até há pouco tempo, tinha um irmão. Um irmão, dois anos mais velho do que eu,
que se chamava Nicollas. O nome escrevia-se com dois L, tal como o meu. É uma
espécie de tradição na nossa família. A minha mãe chama-se Allice e o meu pai
Phillippe, mas, no caso dele, foi por causa de um erro do funcionário do registo civil,
que era uma nulidade em ortografia.
O meu irmão morreu atropelado quando regressava do liceu. Caminhava
calmamente pela beira da estrada quando um carro o matou. Os polícias explicaram-
nos que o condutor estava bêbedo no momento do choque e que nem sequer se
apercebera de nada.
Eu não compreendi. Ninguém compreendeu. Como se pode tirar a vida, como se
pode despedaçar toda uma família e não se dar conta de nada? O condutor foi
condenado a uma dura pena de prisão, mas isso em nada aliviou a nossa dor. O meu
pai sempre disse que uma carta de condução é uma licença para matar. E tinha razão.
Nicollas não morreu na hora. Apesar das graves feridas, fraturas múltiplas, um
traumatismo craniano e um pulmão perfurado, lutou contra a morte. Quatro dias em
coma, quatro dias de esperança. E depois, uma manhã, Nicollas deixou de lutar.
A partir daí foi o inferno.
O silêncio abateu-se sobre a nossa casa. A dor secou os nossos corações.
Parecíamos fantasmas que se cruzavam sem dirigir a palavra uns aos outros.
A minha mãe não voltou a trabalhar. Dizia que não tinha forças. Que era preciso
dar-lhe tempo. Um mês. Ou dois. Ao princípio, o meu pai parecia mais forte do que ela
e voltou para o trabalho. Todas as manhãs me deixava diante da escola. Ficava-lhe a
caminho. Durante os dez minutos que o trajeto demorava, não dizia uma única
palavra, não falava nunca comigo. Tinha o olhar fixo na estrada. Parava junto do
portão da entrada e eu saía, também sem dizer palavra. O carro arrancava e lá me
juntava à vaga barulhenta.
À noite, depois das aulas, ia sozinho para casa. Àquela hora, o meu pai ainda
estava no escritório e a minha mãe dormia ou chorava em casa. Eu seguia pela
estrada nacional. Os carros passavam rente a mim. Pensava constantemente em
Nicollas…
Acabaria algum dia por me habituar à sua ausência? Ou teria de viver com um fan-
tasma para o resto da minha vida? A resposta aparecia pouco a pouco…e eu temia-a.
Tinha medo de não aguentar.
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A noite abateu-se sobre a cidade. Enquanto eu falava, Abdallah aproveitou para
acender algumas velas. Acabámos de comer a massa. «Não há sobremesa», prevenira-
me ele.
De repente, o cansaço derruba-me. O dia tinha sido longo e cheio de experiências
novas. Decido ficar por ali, naquela noite. Já não posso continuar com a minha história:
não tenho forças para mais.
Os meus olhos enchem-se de lágrimas e os soluços abafam-me a voz.
Abdallah faz-me compreender, com uma piscadela de olhos cúmplice, que não há
problema, já sabe quanto basta. Depois, aponta para o estojo preto que está à beira do
colchão que fora buscar para mim.
— O que é que guardas de tão precioso ali dentro?
Com a manga, limpo as lágrimas que ameaçam cair.
— É a minha flauta transversal — respondo. — Toco desde os sete anos, queres
ouvir?
Abdallah acena que sim. Então, tiro as diferentes partes da flauta, encaixo o corpo
com a cabeça e a patilha. Depois de uns momentos de reflexão, escolho interpretar o
primeiro andamento do Segundo Concerto Brandeburguês de Bach. Creio que é um
trecho que se adequa ao ambiente do serão. Levanto-me devagar e começo a tocar
suavemente. A sombra da minha flauta dança nas paredes estragadas.
Quando ouve a melodia elevar-se na noite, Abdallah sorri. Deixa-me chegar ao fim
antes de dizer:
— Palavra de honra, amigo, tocas como um deus. Em minha opinião, não teremos
que nos preocupar com o dinheiro da renda!
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Capítulo 4
Há cinco dias que cheguei a Marselha. Que vivo no edifício ocupado. Há cinco dias
que Abdallah me ensina as regras para sobreviver na rua. Dir-se-ia que sou um bom
aluno. Segundo ele, há duas regras essenciais.
Regra número um: se vires uma farda de polícia, esconde-te.
Regra número dois: se vires o bando de Medhi, esconde-te.
Estas são as duas regras essenciais, as que tens de ter sempre presentes no teu
espírito. O que tem a ver com os outros, vai-se aprendendo aos poucos, no terreno:
— Manter-se sempre discreto, evitar dar nas vistas.
— Em caso de problemas, eclipsar-se.
— Não se pôr a andar sem um fim preciso, evitar vaguear pela cidade. Chama
demasiado a atenção.
— Se um adulto te oferece ajuda quando não precisas, deves desconfiar.
— Evitar andar de metro. Se houver problema, é muito difícil escapar.
— Não se pôr a pedir num território já ocupado.
A lista é longa. E todos os dias cresce um bocadinho.
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A nossa zona está situada no centro da cidade, entre o bairro da Plaine e a praceta
Julien.
— A zona está cheia de gente com massa — assegurou-me Abdallah. — Não te
preocupes, vamos comer à farta!
Não consigo esquecer a primeira vez que tocámos na rua.
No dia a seguir à minha chegada, Abdallah levou-me para uma grande praça, onde
pululam os restaurantes. Durante o trajeto explicara-me todas as artimanhas do
peditório musical:
— Tocar músicas conhecidas, as que fazem as pessoas recordar algo.
— Sempre que possível, deslocar-se por entre as mesas, «fazer uma serenata às
senhoras».
— Nunca tocar mais de duas músicas, o que for além disso irrita os donos dos
restaurantes. Na realidade, irrita toda a gente.
— Se a receita for boa, tocar um último trecho para agradecer aos clientes.
Chegados à praça, apontou para a esplanada de um restaurante.
— Vamos começar por aquele, depois logo se verá.
Como eu hesitava, deu-me um empurrão nas costas.
— Coragem, mostra o que vales!
Juntei as peças da flauta com as mãos a tremer e comecei a tocar, tendo sempre
em mente os conselhos de Abdallah. Depois, lá foi ele pelo meio das mesas com um
copinho na mão. Eu seguia atentamente todos os seus gestos e não havia dúvida,
sabia mesmo fazer aquilo. Uma veniazinha aqui, um sorriso acolá, sempre uma
palavrinha agradável, nunca insistindo e sobretudo nunca pondo um ar miserável.
Abdallah tinha o dom de mendigar mantendo sempre a dignidade. Quando veio ter
comigo e vi o seu sorriso, percebi que a partida estava ganha.
— Genial, cinco euros e vinte! Toca lá o bónus para agradecer.
E há três dias que nos desforramos assim.
— Desde que chegaste — diz ele, acompanhando as palavras de umas pancadinhas
amigáveis nas minhas costas, — é Bizâncio todos os dias!
Vamos de vento em popa! Uma média de trinta euros por dia.
Quanto à comida, nada mal, também. No segundo dia, o dono de um restaurante
viu-me na esplanada de um café, e propôs-me tocar à noite no seu estabelecimento, a
troco de uma refeição para os dois. Em contrapartida, é proibido pedir junto dos
clientes. E discrição absoluta relativamente ao nosso contrato.
O facto de ser só eu a trabalhar à noite incomoda Abdallah.
— Não está certo seres só tu a trabalhar e eu a comer à tua custa.
Como explicar-lhe que a mim não me incomoda, que estou em dívida para com ele?
Mas tenho medo de o ofender.
— Então, o que é que propões?
— Quando tivermos dinheiro que chegue, compro um djembé e fazemos um duo.
Vamos encher-nos de milho!
Não tenho coragem para lhe fazer ver que o som possante de um djembé é
praticamente incompatível com a suavidade de uma flauta transversal. E deixo
Abdallah entregue aos seus sonhos.
Assim vão passando os dias.
De manhã, andamos lá pelo okupado a falar de umas coisas e de outras. Por volta
das dez, vamos tomar um bom pequeno-almoço num bar próximo. É um pouco caro
para o nosso orçamento, mas Abdallah acha que é importante ter a barriga cheia para
começar o dia. E assim pode ler o jornal sem ter de o comprar.
— É útil saber o que se passa na cidade — diz ele.
Lê devagar, soletra todas as palavras, mas não importa. Temos o tempo todo por
nossa conta. Pergunto-me como é que aprendeu a ler em francês em tão pouco tempo.
É outra pergunta ainda que guardo para mais tarde, outra prova de inteligência de
Abdallah, da sua capacidade de adaptação.
O patrão do bar é simpático, a nossa presença não o aborrece, e nós aproveitamos
o conforto do lugar. De qualquer modo, nada ocorre antes do meio-dia.
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Meio-dia é a hora de ir para a Plaine mendigar. Na opinião de Abdallah, meio-dia é a
melhor hora. As esplanadas estão repletas. À noite, normalmente, as pessoas comem
no interior e os donos não gostam que se incomode a clientela.
— Sabes — explica Abdallah —, as esplanadas são na rua, é um espaço público. Daí
que não nos possam proibir; são obrigados a aceitar.
Fico mesmo espantado, como é que ele sabe tudo isto?
Todos os dias mudamos de itinerário e nunca tocamos dois dias seguidos diante do
mesmo restaurante. O meu amigo acha que assim não seremos incomodados.
— Um primo ensinou-me a jogar xadrez quando eu era pequeno — conta-me
Abdallah — e dizia sempre que, se o adversário não puder prever os teus movimentos,
terá dificuldade em dar-te xeque-mate.
Fazemos uma boa equipa. O som da minha flauta é puro e o meu repertório
variado. Pelo seu lado Abdallah sabe como fazer para encorajar as pessoas a largar as
moedas. Cada um desempenha o seu papel na perfeição.
Por volta das catorze horas, as pessoas regressam ao trabalho. É o momento de
nos tornarmos invisíveis. De tarde, as ruas estão calmas e ficaríamos demasiado
expostos se deambulássemos pela cidade.
Abdallah é de uma esperteza genial. No cinema é só um bilhete para toda a tarde.
O truque é simples. Cada um compra o bilhete para a primeira sessão e,
imediatamente antes de o filme acabar, aproveitando a escuridão, eclipsamo-nos pela
saída de emergência e entramos noutra sala onde está a começar outro filme. Com
este sistema, podemos ver até quatro filmes por tarde. O único problema é nunca
ficarmos a saber completamente o final.
Ao cair da noite, vimos cá para fora e encaminhamo-nos para a rua Vian onde fica o
restaurante. Comemos por volta das sete e meia, na cozinha, com os empregados. É
sempre abundante e o pessoal é muito simpático. Dá-me a impressão que também
para eles a vida nem sempre é fácil.
O patrão está satisfeito comigo.
Toco das vinte e trinta às vinte e duas e depois volto para o okupado. Conversamos
durante uns momentos, dividimos o dinheiro que ganhámos, um terço para Abdallah,
um terço para mim, e um terço para o fundo comum. Por fim, Abdallah apaga as velas
desejando-me uma boa noite.
Infelizmente, as minhas noites nunca são boas.
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Capítulo 5
Nunca poderei esquecer a última cena, o médico interno que chega de cabeça
baixa, com ares de quem não se sente à vontade. Apercebo-me dele através da
vidraça da sala de espera do serviço de reanimação.
Eu bebia um chocolate quente e o meu pai um café. A minha mãe não tinha pedido
nada. Permanecia cabisbaixa sentada numa cadeira, fazendo lembrar uma flor
murcha. O médico anunciou-nos que o fim tinha chegado.
Ao princípio, a minha mãe não percebia, não queria perceber. Recusava a verdade,
gritava, chorava. Por fim, deixou-se abater. O meu pai ajudou-a a erguer-se. Eu estava
quieto a um canto, não ousava intervir, não sabia o que fazer, já não sabia qual era o
meu lugar. Guardava a dor mergulhada bem no fundo de mim.
No entanto, naquele instante, gostaria de a ter deixado manifestar-se, permitir-lhe
que saísse do meu corpo. Gostava de fazer como a minha mãe: perder todo o controlo,
todo o pudor. Mas não, não era capaz. Apertava os punhos com tanta força que as
unhas se espetavam nas palmas das mãos. Mas não dizia uma única palavra. Parecia
um bloco de granito. Das pedras não saem lágrimas.
Depois, os meus pais abandonaram a sala e seguiram pelo corredor, o meu pai a
apoiar a minha mãe. Esqueceram-se de mim. Eu tinha a sensação de flutuar, o meu
espírito tinha-se escapado do meu corpo e eu contemplava a cena. Era eu que estava
naquele corredor lúgubre e, ao mesmo tempo, não era eu... Nunca sentira um
abatimento tão grande. Perdido, completamente. Não passava de um fantasma, tinha-
me tornado invisível. Seguia-os três metros atrás. Atrás. Naquele momento eu não
existia. Tinha consciência disso. Toda a dor estava virada para a ausência do Nicollas.
Ausência definitiva que eles tinham de enfrentar. Do topo dos meus dezasseis anos, eu
compreendia tudo aquilo. De algum modo estava mais consciente do que eles.
O meu pai inclinou-se para a minha mãe.
— Acabou-se — murmurou. — Acabou-se.
O meu pai estava enganado. Não tinha acabado. Ainda mal tinha começado.
vvv
Lembro-me da cor das nuvens.
O céu estava pesado e o cortejo estendia-se como uma grande serpente que
desliza lentamente. Havia muita gente naquele dia. A família, os amigos, os colegas da
escola, pessoas que eu nunca tinha visto. Algumas tapavam a dor com óculos escuros.
Havia pessoas de olhos vermelhos que faziam um esforço por manter a dignidade.
Havia o ruído dos passos que ressoava no asfalto, o roçar dos invólucros dos ramos de
flores. O padre que recitava umas palavras e os mais chegados que vinham estreitar-
nos nos braços, como para absorver a nossa infinita tristeza.
Havia a minha mãe que vacilava e o meu pai que a amparava. Finalmente eu, que
não compreendia nada. Que estava só, sem o Nicollas para me dar a mão. Nunca mais.
Por fim, já nada restava. O cortejo dispersara-se como um enxame de abelhas
apanhado na borrasca. Após o enterro, voltámos para casa. Os três. Sozinhos. Os meus
pais não quiseram a companhia da família e toda a gente respeitou a vontade deles.
Como última homenagem à memória do Nicollas.
O meu pai instalou-se ao volante, a minha mãe ao lado e eu atrás. Estávamos tão
próximos e ao mesmo tempo tão distantes… Perdidos nos nossos pensamentos.
Laminados pelo desgosto. E foi assim desde o cemitério até casa. Sem trocarmos a
menor palavra.
O carro imobilizou-se diante da garagem. Abrimos maquinalmente as portas e
saímos
sem sequer nos darmos conta. A minha mãe parou no caminho ladeado de arbustos,
olhou por uns momentos as nuvens negras que bailavam por cima das nossas cabeças
e falou baixinho. Sozinha. O meu pai segurou-a pelos ombros e ajudou-a a entrar.
Desatou aos soluços. Nesse instante, um relâmpago rasgou o céu. Pouco depois, a
chuva misturou-se com as lágrimas.
Estas imagens assaltam-me todas as noites e impedem-me de dormir. Muitas
vezes, só quando os primeiros ruídos ecoam na rua é que eu, vencido pela fadiga,
acabo por adormecer.
Um pouco mais tarde, outro dia começa.
Semelhante ao anterior. E ao mesmo tempo tão diferente…
vvv
Capítulo 6
Domingo.
O pequeno-almoço é mais suculento que o habitual. Esta manhã temos direito a
croissants.
— Para nós também é domingo — diz-me Abdallah num piscar de olhos.
Só que o domingo é mais um dia de trabalho que nos espera. Quando vives na rua,
nada de fins de semana, nada de feriados, nada de folgas.
Mais tarde, quando subíamos a avenida que vai dar à Plaine, sem dizer palavra,
Abdallah entrega-me um cartão telefónico.
— O que é isto? — pergunto eu.
— Um invento muito anterior aos telemóveis — graceja o meu amigo. — As pessoas
serviam-se disto para telefonar.
— Eu sei o que é, mas o que queres que faça com ele?
— Telefona aos teus pais.
Diz aquilo com toda a naturalidade, como se estivesse a dar os bons-dias pela
manhã. Deixa-me sem escolha. Com um movimento de queixo, Abdallah indica-me
uma cabine telefónica na esquina da rua.
— Vai lá, eu espero aqui. Não tenhas receio, que eu não vou embora!
Hesito. Uma coisa é certa: há dois dias que andava a pensar naquilo e Abdallah
deve ter captado o meu pensamento. Encoraja-me com um gesto da mão. Mas já nem
sei: aquilo parece superior às minhas forças.
— Anda lá, palerma. Os teus pais devem estar mortos de preocupação.
Sem pensar mais, entro na cabine, introduzo o cartão na ranhura e marco o número
de casa. O que lhes vou dizer? Um toque. Dois toques. Olá, sou eu! O Jullien! Três
toques. Devo dizer-lhes onde estou? Prometer-lhes que volto para casa? Quatro
toques. E se não respondem? Cinco toques. E se eu sentisse que não desejam voltar a
ver-me? Seis toques. Ao sétimo toque rendo-me à evidência: não está ninguém em
casa.
Quase maquinalmente, marco o número do Willy.
Willy é o meu melhor amigo e foi ele que me deu o empurrão para sair de casa,
mesmo sem eu ter muita vontade. Quando me aconselhou a não baixar a cabeça e a
seguir o que o meu instinto me aconselhava. Tinha vontade de fugir. Fugir daquele
mundo que se tinha desmoronado à minha volta, fugir daquela família para quem eu já
não existia. Fugir. O mais longe possível. Fugir para um lugar onde pudesse sentir-me
vivo, onde me assistisse esse direito. Para qualquer lugar, bem longe dali. A centenas
de quilómetros do túmulo do meu irmão.
Lembro-me que me sentia arrastado para a morte. Que, brutalmente, as coisas
deixaram de funcionar como dantes. Há um mês que Nicollas morrera e tudo tinha
descarrilado.
Descarrilava em casa, onde o meu pai tinha metido baixa por doença. Oficialmente
para tratar da minha mãe, que definhava de dia para dia, mas a verdade é que
também ele soçobrava aos poucos. Então, os dois juntos começaram a ficar cegos e
surdos. Eu saía de manhã, voltava à noite e ninguém tinha movido uma palha.
O correio acumulava-se à entrada, ninguém o abria, parecia que a vida tinha
congelado. Os meus pais tomavam comprimidos, aqueles que os faziam parecer
legumes, a televisão ficava permanentemente ligada, não se cozinhava nada para a
refeição da noite. Muitas vezes, eu tirava uma pizza do congelador e comia sozinho
numa ponta da mesa. Eles estavam lá, algures em casa, porém a anos-luz de mim.
Também na escola as coisas descarrilavam e as minhas notas estavam em queda
livre. Dificuldade de concentração: já não tinha forças para aprender as lições. Nem
força nem vontade. Mas não era um aluno malcomportado. Chegava à sala de aula,
sentava-me ao fundo e, quando terminava, ia-me embora. Só queria que me
deixassem em paz. Já não suportava aquela comiseração que se tinha instalado à
minha volta. Eu já não era o Jullien, era aquele a quem tinha morrido o irmão. Era
aquele que tinha de ser protegido, tratado de forma especial. Só queria que me
tratassem como aos outros. Nem mais, nem menos. Não queria saber da caridade
deles, nem da compaixão.
vvv
No conservatório as coisas descarrilavam também, não havia meio de tocar fosse o
que fosse sem desafinar. A princípio, o Sr. Marin, o meu professor de flauta transversal,
não me repreendia, e eu sentia que não estava a ser tão exigente comigo como era
com os outros alunos. Olhava-me de esguelha, e também ele começava a perguntar-se
o que poderia fazer por mim. Nada, não podia fazer nada para me ajudar. Eu não
precisava de nenhuma ajuda e, de qualquer modo, também não pedia nada a
ninguém.
As coisas também descarrilavam com a Claire, a minha namorada. Mas eu não
tinha vontade de fazer qualquer esforço, de revolver céu e terra por ela. Era certo que
iria trocar-me por outro. Eu até sabia por quem. Ludovic, o futebolista do segundo C;
ao menos era um rapaz cheio de vida. Estava-me nas tintas, queria lá saber! Podia
fazer o que lhe aprouvesse. Não me dizia respeito.
Só com Willy é que as coisas continuavam bem.
Willy é o meu amigo de sempre. Tínhamo-nos tornado amigos porque o nome dele
tinha dois l. Eu achava que era um motivo mais do que suficiente. Ele também, sem
dúvida. Dizia-me:
— Não te deixes arrastar para a morte. Mostra-lhes que estás bem vivo!
Ele não tentava modificar-me. Aceitava-me como eu era. Com o meu desgosto, mas
também com o meu desejo de sobreviver a Nicollas.
E assim, na manhã em que o meu pai não teve forças para se levantar e ir levar-me
à escola, compreendi finalmente que tinha chegado o momento de reagir.
vvv
Capítulo 7
Ao segundo toque, a chamada é atendida.
— Estou!
— Willy? Sou eu.
— Jullien… És tu, Jullien?
— Olá, miúdo, como estás?
— A ti é que tenho de fazer essa pergunta!
Por um instante, imagino Willy em calções, deambulando pelo quarto a ouvir
música, a ler um livro ou saltitando pelos cerca de trinta canais de televisão que tem à
sua disposição. A milhares de quilómetros das minhas preocupações atuais. Como
poderia ele compreender o que vivi desde que cheguei a Marselha?
— Tudo bem. Sabes onde estão os meus pais? Ninguém responde lá de casa.
— Foram à missa, aliás com os meus. É às dez horas. Já te esqueceste?
— Bem, diz-lhes que estou bem, que não estejam preocupados, em breve volto a
telefonar.
— Eh! Espera aí, os teus pais lançaram um aviso de busca, diz-me ao menos onde
estás!
Desligo. Uma bola fica-me encravada no fundo da garganta. É demasiado duro! As
lágrimas andam por perto, faço um esforço para as conter. Ao sair da cabine, procuro
esconder de Abdallah a minha comoção.
— Tudo bem. Vamos trabalhar para pagar ao Bombers.
O meu amigo dá-me umas pancadinhas no ombro e seguimos juntos para as
esplanadas dos restaurantes.
Penso nos meus pais. A participação do meu desaparecimento e a ida à igreja. É
esta a resposta em relação a Nicollas e a mim. Já não sei o que pensar. Deles esperava
algo muito diferente. Não sei bem o quê. Apenas diferente.
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As duas horas de pedincha não nos trazem grande coisa. Apenas nove euros. Mas o
tempo está desagradável e as esplanadas meio vazias.
— Não te preocupes — diz-me Abdallah ao recolher as nossas coisas. — Amanhã vai
correr melhor. Está previsto bom tempo, estava escrito no jornal.
Compreendo melhor a leitura matinal do diário. Abdallah interessa-se pela
meteorologia e pela programação das salas de cinema.
— Então, que filmes temos hoje? — pergunto eu.
Olha para mim com um ar misterioso.
— Ah, hoje não vamos ao cinema. Vamos a outro sítio. Segue-me.
Pelo caminho, intrigado, tento descobrir, mas não há nada a fazer. Depois de um
quarto de hora de marcha, Abdallah aponta para um grande edifício ao lado de um
estádio.
— Apresento-te a piscina Vallier!
— Uma piscina para quê?
— Bom, para nos lavarmos. Ontem não me atrevi a dizer-te, mas no quarto começa
a cheirar muito a pés suados.
Rio-me enquanto sigo atrás de Abdallah. É certo que desde que saí de casa não me
tenho preocupado muito com a higiene. Um pouquinho de água na cara e toca a
andar. Não tenho escova de dentes, nem champô, nem perfume… A minha roupa
começa já a ter um aspeto esquisito. Abdallah olha-me dos pés à cabeça.
— Quanto a trapos, não te preocupes. Amanhã vamos dar uma volta pelos Emaús.
Com uma dezena de euros, vais parecer um príncipe!
Quanto a isso, tenho as minhas dúvidas. Mas o otimismo de Abdallah conforta-me
o coração. Entramos no hall da piscina. Até desmaio. Dois euros por pessoa, mais um
euro pelo aluguer de uma touca de banho, praticamente tudo o que ganhámos durante
o dia.
— Não importa — murmura Abdallah ao ver a minha cara. — Vamos oferecer a nós
próprios uma tarde de descontração. É importante esquecer as preocupações.
Enquanto falava, remexia no saco de onde tirou dois calções e duas toalhas.
— Pensei em tudo. E mais ainda — diz-me ele, apontando para um aviso à entrada
das cabines. — O duche é obrigatório, não vamos decepcioná-los.
Efetivamente, o duche quente é um verdadeiro bálsamo. Ficamos ali muito tempo,
a interpelar-nos por cima da parede, a rir e a brincar como miúdos. Tenho a sensação
de voltar a viver.
— Esfrega-te bem — diz o meu amigo. — Tens de cheirar bem. Esta tarde estamos
convidados para uma festa!
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Capítulo 8
Não há raparigas na festa. Perante o meu espanto, Abdallah informa-me que,
praticamente, todos os adolescentes a viver na rua são rapazes.
— Só dez por cento é que são raparigas! — acrescenta ele com ar sério.
Faz-me rir. Onde é que ele irá buscar estes números? Será que os inventa ou leu
realmente estatísticas sobre o assunto? Não lhe peço para me revelar as fontes, pois o
mistério faz parte do encanto.
É o aniversário de Dimitri, o bósnio que vive no segundo andar do okupado. Deixou
o país por causa da guerra. Abdallah explicou-me que, para sobreviver, Dimitri
prostitui-se perto da estação de São Carlos. Esta noite festeja os seus dezassete anos e
o segundo ano de permanência em França. Todos parecem estar a divertir-se. Claro
que as bebidas e as sandes são raras, mas ninguém se importa. É um pouco como na
piscina, uma festa permite esquecer as preocupações durante algumas horas. Somos
bons a fingir.
No entanto, a maior parte dos jovens que me rodeiam são gente castigada pela
vida. Destruídos. Já perderam as ilusões, a inocência de meninos. Leio-o nos seus
olhos.
Ao lado deles, pareço uma patinha branca.
A troco de uma grade de cervejas, Bombers prometeu fechar os olhos.
— Eh! Mas cuidado, rapazes — disse ele. — Não comecem por aí à pancada, se não
os vizinhos chamam a polícia e então, ficamos todos tramados!
De qualquer modo, não é só a questão do som do rádio a pilhas que mal se ouve.
As conversas conseguem abafar a música. Chamo Abdallah pela manga.
— Devias ter-me prevenido, não tenho nenhuma prenda para o Dimitri.
— Não te preocupes, ninguém comprou nada. Basta que lhe dês uma nota de cinco
euros quando soprar as velas.
No bolo de aniversário estava espetada uma vela.
Como sugeriu Abdallah, ofereço-lhe uma nota de cinco euros. Dimitri está radiante.
Ouço o murmúrio das conversas: diferentes línguas misturadas, uma espécie de
esperanto saído direitinho da rua. Penso em Nicollas, havia de gostar deste ambiente.
Depois do bolo, os segredos viajam, e as gargalhadas tornam-se cada vez mais
numerosas. A festa acaba bastante cedo. Ninguém esquece a regra básica dos sem-
-papéis, dos clandestinos e dos fugidos: a discrição.
Alguém escreveu mesmo uma frase numa das paredes do okupado para lembrar a
senha: Incógnito, não te armes em esperto, se não é o fim. Abdallah assegura que foi
Bombers quem a escreveu. Para conservar a sua fonte de rendimento.
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Um pouco mais tarde, quando o meu amigo me deseja uma boa-noite e se apressa
a soprar a vela, peço-lhe para esperar um pouco. Não tenho vontade nenhuma de
desafiar os fantasmas da noite.
— Nunca me contaste como foi contigo ao princípio…
Abdallah hesita. Quantas recordações, nem sempre agradáveis… Mas lá ganha
coragem.
— Quando desembarquei em Marselha, passei três dias que são para esquecer, a
mendigar pão nas esplanadas dos cafés, a dormir em cima de pedaços de cartão no
meio de dois carros. Tinha um medo terrível de ser apanhado pela polícia e de ser
obrigado a regressar no primeiro avião. Nunca mais arranjaria coragem para tentar de
novo a travessia.
Abdallah faz uma pausa e depois acrescenta:
— A seguir, encontrei um rapaz chamado Karim e foi ele que me ensinou as coisas
da rua: os trabalhitos, as artimanhas, os okupados, as redes, enfim tudo. Foi graças a
ele que me safei.
— E agora, onde está o Karim?
Abdallah bloqueia. Parece que as palavras se colam no fundo da garganta. Não
deve ser fácil para ele contar-me, mas lá faz um esforço.
— Morreu, está morto. Foi encontrado apunhalado na rua Thubaneau. Era lá que
vivíamos na altura, um verdadeiro okupado de toxicodependentes e de assassinos.
— Não era como aqui?
— Aqui, paga-se um aluguer, mesmo sendo ilegal. Num verdadeiro okupado, não se
paga. Deitas uma porta abaixo e, se o compartimento estiver vazio, é a tua casa.
— Porque é que não continuaste a viver num okupado a sério? Assim não pagavas
aluguer.
Abdallah faz uma careta.
— Lá, é o inferno todos os dias. Não fazes a menor ideia. Todos tentam roubar-te,
agredir-te, ficar com o teu quarto. Se estiveres doente, tornas-te uma presa fácil. Na
verdade, é pior do que na selva. Aqui, ao menos, o Bombers obriga a manter a ordem.
Paga-se, mas estamos certos de ter sossego.
Tenho vontade de saber mais, pergunto-me se terei o direito de ir até ao fim da
minha curiosidade, mas a vontade é demasiado forte.
— E quem matou o Karim?
— Nunca se chegou a saber. Ninguém se interessou pelo caso. Para a polícia, era
um vagabundo a menos. Desconfiaram de um ajuste de contas, mas as investigações
não deram em nada. Depressa esqueceram o assunto.
Abdallah vira-se e remexe no saco.
— Olha, guardei o artigo do jornal, trago-o sempre comigo.
Estende-me um pedaço de papel amarrotado. Leio o artigo, sem grande interesse e
feito um pouco à pressa, pois até o jornalista parecia pouco interessado no assunto.
Apodera-se de mim um estranho sentimento, que tenho dificuldade em definir.
Medo, talvez?
— Não fiques assustado — deixa escapar Abdallah. — Estas coisas não vão
acontecer-te a ti. Tu só estás de passagem. Em breve vais voltar para a tua família.
Tem razão, eu não sou como os rapazes que estavam na festa esta noite.
Para mim, a rua é um parêntesis.
Pergunto a Abdallah como encara o futuro, mas não obtenho resposta.
Adormeceu. Apago a vela.
De olhos bem abertos, tento furar a escuridão que me rodeia.
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Penso nos meus pais.
Imagino-os destroçados pela angústia, sempre à espreita do menor sinal, sempre à
espera de uma carta. Como se perder um filho não fosse o bastante, tinha eu de lhes
acrescentar mais uma provação… Digo para comigo que cometi um grande erro, podia
ter reivindicado o meu lugar de forma diferente. Armar-me de paciência e esperar. Dar
às lágrimas tempo para secarem. Mas vejo e também sinto que não havia outra
solução possível. Precisavam de um choque elétrico.
Penso em Nicollas.
A correr nas praias da Córsega, ou na sua primeira festa, quando fez quinze anos.
Os nossos pais tinham ido ao cinema e a seguir ao restaurante. Prometeram não voltar
antes da uma da manhã. Foi Nicollas que insistiu para eu ficar. Enquanto dançava,
enquanto falava com os amigos, eu observava-o. Tinha orgulho nele e estava-lhe
reconhecido por permitir que participasse do seu mundo.
Era o meu irmão e amava-o de todo o coração.
Faz-me falta. Uma falta terrível.
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Capítulo 9
Conforme o prometido, no dia seguinte Abddallah vai comigo fazer compras aos
Emaús. Encontramos rostos que me são familiares. Aparentemente, todas as pessoas
da rua vão ali vestir-se. É sem dúvida uma boa solução. A maior parte tem um aspeto
semelhante: são pessoas marcadas pela vida. Andam de cabeça baixa, têm gestos
hesitantes, parecem pouco seguras. Começo a reconhecê-las…E parece que também
me reconhecem. Pouco a pouco, a rua começa a aceitar-me.
Com sete euros, compro um par de calças, um pulôver e uma T-shirt. Quanto aos
sapatos, não encontro o meu número. Como é costume, Abdallah dá-me uma palmada
nas costas, sinal de que está contente.
— Não tenhas medo, não trazem pulgas. Quanto a cuecas e peúgas, tens de
comprá-las novas. Na próxima quarta-feira, iremos ao mercado, a Belsunce.
Depois leva-me para a saída.
— Toca a andar. São horas de irmos arranjar umas moeditas.
Infelizmente, hoje a concorrência é mais forte do que o habitual. Certamente
devido ao sol que, como previra a meteorologia, vem visitar-nos.
Há os habituais. Paco, um jovem romeno, pouco mais alto que três palmos, que
massacra árias conhecidas no seu minúsculo acordeão, ou ainda Nelson, um black de
chapéu à cowboy, que toca blues enquanto recita a Bíblia e dá voltas no ar com a
guitarra. Com estes não há problema, tocamos na nossa vez. O nosso medo é que há
muitos outros que exigem uma parte do bolo. E não são só os músicos.
O movimento entre o meio-dia e as duas horas é espantoso. São os vendedores de
jornais dos sem-abrigo com o respetivo dístico, os vendedores de rosas que
normalmente andam mais à noite, os vendedores de isqueiros que se esvaziam logo
depois de acender apenas dez cigarros, os «artistas pintores» que apresentam os seus
quadros de forma agressiva, os surdos-mudos que antecedem a venda de porta-
-chaves de algumas palavritas a explicar a sua situação, quando não são os
vagabundos a mendigar moedas por entre as mesas.
É tanto que as pessoas se enervam por serem constantemente solicitadas e não
poderem comer tranquilas. Compreende-se pois que, quando chega a minha vez de
tocar, lhes custe meter a mão ao bolso. Resultado, hoje a colheita tornou a ser muito
fraca. Apenas oito euros.
— Não te preocupes — diz Abdallah para me tranquilizar. — Um dia não são dias. A
sorte há de vir outra vez ter connosco, li esta manhã no meu horóscopo.
Estou a ver que o interesse do meu amigo pelo jornal não se reduz à meteorologia
e às sessões de cinema, mas também ao horóscopo. Isto faz-me rir.
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Por causa do bom tempo, o cinema está praticamente vazio. Já conheço os dois
primeiros filmes desta tarde, vi-os há quatro dias, não têm grande interesse. São
filmes de pancadaria e tiroteio apocalíptico ao gosto de Abdallah. Mas mais uma vez
vou ficar sem saber o fim. Escapamo-nos discretamente antes de as luzes voltarem a
acender. Na obscuridade da sala, apercebo-me de que há vultos que partem em
silêncio: o truque deve ser conhecido de muita gente. O terceiro filme é novo. Também
é diferente dos que habitualmente vemos, e deixo-me cativar pela história. Pelo
contrário, como não há lutas nem perseguições, Abdallah confessa de imediato que se
aborrece.
O cenário inicial é bastante simplista: um rapaz está apaixonado por uma rapariga.
A rapariga é linda de fazer perder a cabeça, mas há um problema, tem uma doença
incurável. Para evitar ligar-se demasiado a ele, e também para que ele não se prenda
demasiado, prefere abandoná-lo sem lhe dar uma razão válida. O rapaz fica
desorientado. Mas, ao saber a verdade, o seu amor ainda se torna mais forte.
— Só no cinema é que isso acontece — sopra-me ao ouvido Abdallah.
Penso em Claire. Será que já me trocou por Ludovic ou estará desesperada por
causa do meu desaparecimento?
Inclino-me mais para a primeira hipótese.
Depois de uma cena um pouco longa, em que o rapaz vai visitar a rapariga que
está hospitalizada, Abdallah adormece com a cabeça apoiada no meu ombro. Não
quero acordá-lo, por isso evito fazer movimentos bruscos. Quero oferecer a mim
próprio um prazer: conhecer o fim da história. Gosto, pela primeira vez, de um filme
escolhido por Abdallah. Sorrio interiormente ao pensar que o meu amigo foi iludido
pelo título: O último Combate.
No final, a rapariga morre e o rapaz, inconformado, vai embora, à chuva. Há uma
sequência de imagens com o túmulo da rapariga, e depois, lentamente, imagens do
tempo em que eram felizes. E, finalmente, o genérico ao som de violinos. Choro.
Acendem-se as luzes e Abdallah acorda em sobressalto. Lá se vai a última sessão,
pois temos de sair mais cedo. Lá fora, o meu amigo pergunta-me:
— Então, como é que acaba?
— A rapariga morre e o rapaz fica só.
— Só no cinema é que isso acontece — acrescenta, levantando o colarinho.
Capítulo 10
Eles estão ali. Cercam-nos. Surpreenderam-nos quando subíamos a rua Curiol.
Reconheço algumas cabeças que vi na estação no dia em que cheguei a Marselha. É o
bando de Medhi. Demasiado tarde para escaparmos. Abdallah enfrenta-os com
coragem.
— Medhi, deixa-nos em paz. Não temos nada que te interesse.
— Ai não? E isso? — pergunta Medhi, apontando para o estojo da minha flauta
transversal.
— Para que queres isto? Não sabes tocar.
O grupo ri em coro. Olho à nossa volta, apertando instintivamente o estojo contra o
peito. A rua está quase deserta.
— Quem é que falou em tocar? Quero-a para vender — diz Medhi, dando estalidos
com os dedos.
É o sinal do ataque. Tudo é muito rápido, não vejo ninguém vir direito a mim.
Alguém me empurra por detrás e fico estatelado no chão. De imediato Medhi aproveita
para me dar um pontapé na cara. Sinto uma dor atroz. Largo o estojo para me
proteger. Ouço Abdallah a berrar junto de mim. Mais alguns golpes e, por fim, ouço-os
a afastar-se.
Não sei quanto tempo fico caído na rua. As minhas têmporas latejam e o sangue
escorre pelo lado esquerdo da cara. Dói-me o maxilar. Ergo-me com dificuldade e vejo
tudo às voltas. Abdallah está no chão a gemer, segurando a barriga com as mãos.
Aproximo-me, na esperança de que não tenha nada de grave.
— Como te sentes?
— Filhos da mãe! Seis contra dois!
— Consegues levantar-te?
Apoiado no meu ombro, lá consegue pôr-se de pé.
— E a flauta?
— Levaram-na!
Abdallah faz uma careta, mas não diz nada. Vê-se que a agressão não estava
prevista no horóscopo. Parece abalado como se antevisse já as consequências da
perda da nossa principal fonte de receita. Por agora não penso nisso. Tudo o que sinto
é culpa pelo que acaba de acontecer. Fui a causa de estarmos mais cedo na rua.
— Não podemos andar por aqui — consegue ele articular, mesmo assim. — Vamo-
-nos safar daqui! Se a polícia aparece, estamos tramados.
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Avançamos lentamente e, apesar do nosso estado, ninguém se preocupa connosco.
Abdallah aperta as costas com as mãos. Parece estar muito mal. Caminha dobrado e
tem de se apoiar em mim para retomar o fôlego. Quanto a mim, tenho a sobrancelha
ligeiramente aberta e um galo do tamanho de um ovo de pomba no alto da cabeça,
que está a ganhar proporções assustadoras.
Ao subirmos uma rua muito inclinada, Abdallah começa a ficar pálido. Pede para se
sentar por uns momentos. Vê-lo neste estado deixa-me de rastos.
— Bem, basta de asneiras! É melhor chamar um táxi e irmos às urgências. Podes
ter uma fratura ou, na pior das hipóteses, uma hemorragia interna.
Abdallah segura-me pela manga.
— Isso não! Não te preocupes, dentro de três dias já estarei melhor.
Mas, pela primeira vez, o otimismo do meu amigo não me convence. Isto por causa
dos espasmos que acompanham cada uma das suas frases. Por agora decido não lhe
revelar que o dinheiro se foi com a flauta. Tinha-o escondido no estojo…
— Achas que está fora de questão irmos fazer queixa por agressão e roubo?
— Nem penses em tal.
Já sabia a resposta: pôr os pés numa esquadra da polícia ou num hospital
significaria o fim da aventura. Para ambos.
Depois de uma hora a andar, quando normalmente não precisávamos mais de vinte
minutos, chegamos finalmente ao okupado. Quando Bombers nos vê, não esboça o
menor gesto para nos socorrer. Pelo contrário, desvia a cabeça e tira a cápsula a uma
lata de cerveja, arrotando ruidosamente. Subir as escadas é muito penoso para
Abdallah. Coloco-o devagar em cima de um colchão. Está cada vez pior e não sei o que
fazer para o aliviar.
— Chama-se ao menos um médico!
Abdallah abana penosamente a cabeça.
— Os médicos já não vêm aos okupados… Demasiadas agressões….
É evidente, como é que não pensei nisso? Dou voltas ao quarto: pareço um animal
na jaula. Já não sei o que fazer, passam-me mil ideias pela cabeça. Começo seriamente
a entrar em pânico.
— Tem calma — murmura Abdallah. — Trata das tuas feridas, bebe um copo, mas
por favor, fica calmo!
Tem razão. Como sempre. Resolvo seguir os seus conselhos.
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Passo água pela cara e, num pedaço de espelho partido, avalio os estragos. Parece
menos grave do que aquilo que tinha imaginado. A ferida na sobrancelha já não sangra
e o meu galo estabilizou. Procuro uma pomada para lhe pôr mas não a encontro. Não
me atrevo a ir pedir aos outros ocupantes. Talvez eu esteja errado. Haverá verdadeira
solidariedade entre as pessoas que vivem na rua?
Troco de camisola, pois a que trago está cheia de sangue. Respiro fundo por uns
instantes e procuro recuperar a calma. Arrumo o quarto e, pouco a pouco, a
tempestade que se tinha levantado na minha cabeça acalma. Entretanto Abdallah
adormeceu. Ponho-lhe a mão na testa, está quente. Estendo-me no meu colchão,
também preciso de recuperar forças. Não consigo adormecer. Fico de olhos abertos,
fixos no teto. Recordo o dia da minha saída de casa.
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Era uma segunda-feira. De manhã.
O meu pai achou que não havia necessidade de estar a levantar-se para ir levar-
-me ao liceu. Para mim isso foi um sinal. Um aviso. Se eu não reagisse, as coisas iriam
piorar. Fui a pé para a aula de flauta, uma aula que eu tinha precisamente antes da de
matemática.
De repente, a vontade foi mais forte. Dirigi-me ao centro da cidade, com a flauta no
estojo e a pasta ao ombro. Não sabia o que ia fazer. Ir sempre em frente? Pôr-me à
beira da estrada e levantar o dedo polegar? Entrar no primeiro autocarro que
passasse? Sem dar por mim, estava diante da estação do caminho-de-ferro. Quando
entrei, reparei que era hora de grande afluência. As pessoas iam para o trabalho,
parecia um formigueiro barulhento. Ainda bem, assim passaria facilmente
despercebido.
Era preciso encontrar um destino. Uma vez mais deixei-me levar…
Quando no painel das partidas apareceu a palavra “Marseille – 09,15”, senti que
era para lá que devia seguir. Uma cidade que tem dois l no nome era feita para mim.
Era como um apelo, um convite. É claro que não tinha dinheiro para o bilhete, mas a
minha hesitação durou pouco. Entrei discretamente na última carruagem e sentei-me
diante de uma senhora idosa com ar simpático. Não estava nada nervoso; se
aparecesse o fiscal, o mais que poderia acontecer era mandar-me sair na próxima
paragem. Não tinha importância.
Acomodei o estojo entre os joelhos, encostei a cabeça à janela e fiquei a ver a
paisagem desfilar a toda a velocidade. Parece que, quando estamos a morrer, vê-se a
vida a desenrolar de forma acelerada. Terá o Nicollas passado por isso? Ou será que a
morte o ceifou demasiado depressa?
Os meus pais iriam ficar preocupados com a minha ausência.
Mas eu já não podia mais.
Tinha de tomar uma atitude. Era a minha única forma de lhes provar que
continuava vivo. E de o provar a mim próprio…
Deixei-me embalar pouco a pouco pelo comboio. Lentamente, as minhas pálpebras
foram-se fechando e, daí a nada, estava a dormir…
vvv
Capítulo 11
Esta manhã, às oito horas, Abdallah acorda e tem finalmente ares de estar melhor.
Os dois últimos dias foram medonhos. Dominado pela febre, tinha momentos de
delírio em que se exprimia em árabe. Eu não sabia se era uma reação às agressões
recebidas ou uma infeção mais grave. A minha margem de manobra para o socorrer
era reduzida, para não dizer nula. Às vezes, um ou outro residente passava a saber
notícias. Metia a cabeça na abertura da porta e fazia invariavelmente a mesma
pergunta:
— Então? Como está?
Eu sossegava-os, procurando não criar problema algum. Só queria uma coisa: que
aquele pesadelo acabasse. Fiquei junto dele tentando reconfortá-lo, acalmá-lo, pondo--
lhe uma luva fria na testa que escaldava. Abandonava-o só quando ia à mercearia do
fundo da rua, que está aberta vinte e quatro horas por dia, e onde os produtos custam
o dobro. Também tive de ir à farmácia da esquina comprar medicamentos para a
febre. Sem receita e sem cartão da Segurança Social, tive, é claro, de me contentar
com uma caixa de aspirina. Para tudo isto recorri à caixa comum e o nosso pecúlio
está quase a zero. Ainda não disse nada a Abdallah. Mas isso não é o mais grave.
vvv
O que me preocupa, de facto, é que me sinto dominado por uma sensação até
agora desconhecida. Uma espécie de angústia que aumenta à medida que o tempo
passa, um sentimento de solidão absoluta, um pânico muito forte que se vai instalando
em mim.
Tenho medo. Medo que Abdallah morra. Como Nicollas.
Sinto-me perdido. Longe da minha família, a centenas de quilómetros de qualquer
rosto familiar, numa cidade hostil, sem dinheiro. Durmo num prédio ocupado, em cima
de um colchão no chão, ao lado de um rapaz que mal conheço.
Mas o que é que se passou comigo?
Sair de casa teria sido de facto a melhor solução?
Um monte de questões invade-me e procuro as respostas na escuridão da noite.
Ontem à noite, a angústia era demasiado forte, apertava-me a garganta. Sentia
dificuldade em respirar. Peguei no cartão telefónico que estava no bolso do casaco de
Abdallah e fui à cabine mais próxima. Entrei. O pesadelo podia acabar rapidamente.
Bastava telefonar aos meus pais e eles viriam logo buscar-me. E tudo voltaria a ser
como dantes. Quer dizer, quase. Mas, no momento de marcar o número, no momento
de me decidir realmente a voltar para casa, não fui capaz de abandonar Abdallah.
Agora, não. Assim não.
E, naquela manhã, o milagre aconteceu. Abro os olhos e Abdallah está sentado no
colchão, descontraído. Um leve sorriso ensombra-lhe o rosto cansado.
— Então, como te sentes?
— A tempestade já passou — diz ele num suspiro.
— Tens fome? Queres que te prepare o pequeno-almoço?
— Sim, morro de fome.
Quando há fome, é bom sinal. Significa que a máquina precisa de carburante.
Abdallah está curado, um pouco graças a mim. As minhas ideias negras desaparecem
num instante. Ponho-me aos saltos.
— Dá-me cinco minutos. Trago-te dois croissants e preparo-te uma caneca de
chocolate quente.
De repente noto que está alguém atrás de mim. Volto-me. Bombers fixa-me com o
seu olhar vazio. E ao mesmo tempo, terrivelmente preocupante.
— O que queres?
— É o dia da renda — diz numa voz monocórdica.
vvvCapítulo 12
Fico furioso.
— Este tipo é nojento!
Bombers não quer saber de nada. Dá-nos uma hora para juntarmos cento e trinta
euros.
— E quando voltar, se não tiverem o dinheiro, vão para a rua imediatamente —
ameaçou. — Isto aqui não é o Exército da Salvação!
Abdallah tenta acalmar-me.
Momentos antes, tinha-me dito que o dinheiro se fora, na luta.
— Pela primeira vez que o levei comigo… No caso de haver alguma coisa nos
Emaús que me agradasse. Foram-me aos bolsos, aqueles sacanas!
Também eu tive de lhe confessar o roubo do meu dinheiro.
— Estava no estojo da flauta — expliquei, pouco orgulhoso de mim.
Resultado, restam-nos apenas trinta e dois euros do fundo comum.
— Desta vez estamos mesmo mal! — diz Abdallah.
— Isto não vai ficar assim, vou denunciar o Bombers à polícia.
A minha última frase pelo menos serviu para fazer sorrir Abdallah. Tem razão: o
que acabo de dizer é um absurdo. Uma vez mais deixo-me dominar pela raiva e digo o
que me vem à cabeça. Apesar de tudo, a gentileza de Abdallah impera e, para evitar
que me sinta totalmente ridículo, dá-me uma explicação lógica.
— A polícia não faz nada. O Bombers é um dos iscos preferidos aqui no bairro. Em
troca, eles fecham os olhos ao seu negociozinho. Só irias criar-nos problemas.
— E os outros ocupantes não podem ajudar-nos? Vamos pedir ao Dimitri.
Abdallah abana a cabeça com ar resignado.
— Estás a sonhar, meu amigo. Na rua cada um cuida de si.
De novo a angústia.
Apetece-me apertar o cachecol em redor do pescoço até sufocar.
— Então, o que é que fazemos?
Abdallah ergue-se com dificuldade. Começa a juntar os seus haveres.
— Vamos embora. É a única coisa a fazer.
— Não podemos fazer um acordo? Podemos pagar-lhe em prestações…
Abdallah suspira. Num gesto cansado, empilha no fundo de um saco os seus parcos
haveres.
— Estás a delirar ou quê? Acredita no que te digo, quando o Bombers cá voltar, vai
trazer um taco de basebol nas mãos.
— Mas isso é uma estupidez! Para onde é que vamos?
— Não te preocupes, havemos de encontrar uma solução.
Desta vez estou demasiado aterrado para confiar no meu amigo.
— Sim, preocupo-me e bem. Já não temos dinheiro, não temos onde dormir, nem
forma de ganharmos a vida…
Abdallah fixa em mim os seus olhos tristes.
— Jullien, não és obrigado a ficar comigo. És livre.
— E tu, como te vais desenvencilhar?
É a segunda vez que consigo arrancar-lhe um sorriso.
Devo ter vocação para comediante.
— Olha, meu amigo, lembra-te disto: há meses que ando a penar, conheço mil
truques para sobreviver…
Dou-me conta de que estou a inverter os papéis. É Abdallah que me protege e não
o contrário. Embora a minha flauta encantada nos tenha permitido conhecer melhores
dias, sem ele aqui eu não sou nada! Não passo de uma presa para os abutres. Um
simples inseto que pode ser esmagado com a biqueira do sapato.
Agora, é a vez de, em silêncio, juntar as minhas coisas.
Dez minutos depois, abandonamos o okupado. Sinto-me vazio, humilhado. O
sentimento de injustiça que me invade parece não afetar Abdallah. Deduzo que já
passou por momentos piores e que, para ele, esta desventura não passa de uma
ninharia.
Enquanto subimos a avenida sem trocar a menor palavra, ergo os olhos para o céu.
Pesadas nuvens negras agrupam-se, ameaçadoras.
Prontas a rebentar.
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Capítulo 13
Chove sem parar durante dois dias. Abdallah diz que é raro, na região. A culpa é da
falta de sorte, do destino… Para mim, a culpa é de Nicollas, que não tinha o direito de
me deixar só, dos meus pais, que se esqueceram de mim, de Medhi e do seu bando. A
culpa é da minha estupidez, da minha inconsciência.
Depois de abandonarmos o okupado, guardamos os nossos sacos num cofre da
estação de Saint Charles.
— De mãos vazias passamos mais despercebidos.
Passamos o dia inteiro a vaguear pelos hipermercados. Pelo menos, está quente e
não nos molhamos. Lemos bandas desenhadas, ouvimos discos ou então fingimos
querer comprar alguma coisa. Acabamos sempre por ser notados pelos vigilantes, que
nos mandam embora. Basta mudar de híper e a cena repete-se. Andamos nisto até à
hora de encerrar.
Depois, Abdalah leva-me a comer. Há uma distribuição diária de comida ao ar livre
para os mais pobres. Ao chegarmos ao Jardim Stalingard, já a fila de espera se estende
por várias dezenas de metros.
— Dura todo o inverno — explica-me Abdallah. — Estás a ver a mulher que está a
servir as pessoas? Chama-se Janine, tratamo-la por Mãe Janine. É ela que trata de
tudo, cozinha durante o dia e, à noite, cá está ela, faça o tempo que fizer. Dá-te de
comer com um sorriso nos lábios, e reconforta os mais desesperados. Aquela mulher,
acredita no que te digo, é uma santa.
Entramos na fila. Observo as pessoas à minha volta. Mete medo tanta miséria!
Pergunto-me o que faço eu ali…porque é que imponho a mim próprio aquela prova? O
que é que eu quero experimentar?
— Eh, não adormeças, pá!
Uma mão empurra-me pelas costas. Avanço a arrastar os pés. Estou cansado.
— Põe-te ao lado de um adulto — aconselha-me Abdallah. — Assim, julgam que
estás com ele e ninguém se atreve a passar-te à frente.
Escapo-me para junto de um homem de cara inchada. Tresanda a álcool. Nem
sequer olha para mim. Tapo o nariz para não desmaiar. Com o prato cheio, afastamo-
nos para debaixo do toldo de uma cervejaria. A chuva acalmou.
— O que tem de bom aqui é que ninguém te pergunta nada — diz-me Abdallah. —
Dão-te a comida e mais nada. E se a polícia aparece, podes eclipsar-te rapidamente.
Não o contradigo, mas não estou a ver o que pode haver de bom na nossa situação.
Comemos uma sopa morna num prato de plástico, debaixo de chuva, a tremer de frio,
preocupados em saber onde vamos passar a noite. Devemos ter conceitos de
felicidade muito diferentes… Vejo-o molhar o seu naco de pão e, de repente, uma
tristeza imensa apodera-se de mim. Não sei bem porquê. Basta uma multiplicidade de
pequenos acontecimentos para tornar a vida demasiado dura de suportar. O Sr.
Calguier, o nosso professor de Francês do décimo ano, dizia que a vida, sem uma certa
dose de melancolia, era insuportável.
Naquela altura, eu não concordava com ele. Hoje já não tenho a certeza de nada.
Tenho vontade de chorar. Controlo-me. Abdallah olha para mim e sorri. Não encontro a
força necessária para lhe devolver o sorriso. Mais tarde, lá encontramos refúgio no vão
de uma escada. A artimanha é fácil. Colocamo-nos junto de um edifício e, quando
alguém entra, bloqueamos a porta antes que esta se feche completamente.
Depois, basta ser discreto e instalar-se fora do alcance dos olhares. Camuflamo-nos
num canto do patamar, debaixo das escadas. Para evitar ser visto e posto na rua,
deve-se entrar o mais tarde possível e pôr-se a andar ao raiar da aurora.
O segundo dia é semelhante ao primeiro. Os mesmos gestos, a mesma errância, o
mesmo vazio à nossa volta. Tenho dificuldade em controlar os meus pensamentos. À
noite, pelo contrário, temos menos sorte. Não há meio de conseguirmos um recanto
quente. Em desespero de causa, abrigamo-nos debaixo do alçado de uma loja. Durmo
uma ou duas horas. Não mais.
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Esta manhã, Abdallah foi pedir um pedaço de pão à esplanada de um café e o
empregado foi simpático, deu-nos o cacete inteiro. Foi uma autêntica festa.
Há cerca de uma hora que o mistral sopra em rajadas e me faz gelar os ossos. A
minha roupa não teve tempo de secar. Tenho a sensação de estar sentado num banco
de gelo. As pessoas com quem me cruzo são pinguins equipados para resistir ao mau
tempo, mas eu não. Tendo em conta os olhares que nos lançam, é evidente que não
nos enquadramos assim tão bem na paisagem, como Abdallah me quer fazer crer.
— Temos de fazer qualquer coisa — articulo eu a bater os dentes. — Se
conseguíssemos um quarto de hotel para nos lavarmos, descansar um pouco e
sobretudo secar a roupa…
Abdallah lança-me um olhar alucinado.
— Estás doido ou quê? Nem penses desbaratar assim os últimos cêntimos!
Aponta para o céu com o dedo a tremer.
— Olha, o vento afasta as nuvens. Esta tarde já podemos trabalhar. Não te
preocupes, que as coisas vão melhorar.
Já nem forças tenho para me preocupar.
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Capítulo 14
O condutor acena desesperadamente.
É claro que não me quer a “limpar” o para-brisas com a água que apanhei da
valeta. Compreendo-o perfeitamente. Ao longo da avenida Plombières, em todos os
semáforos há “limpadores”. Com muita sorte, em trezentos metros, um para-brisas é
lavado pelo menos quatro vezes. Daí a exasperação bem visível do dono do Twingo
verde pálido. Com uma agravante: os limpadores anteriores terem aldrabado o
serviço... O vidro está cheio de riscos negros, de sujidade pegajosa, diria que só por
milagre é que ele consegue ver o suficiente para seguir viagem.
O semáforo passa a verde e a vaga de carros escoa. Continuei sem ganhar um
cêntimo. Abdallah aproxima-se com ar furioso.
— Jullien, és parvo, ou quê? Já te expliquei! Não ligues às reações, começas o teu
trabalho e mais nada. No fim, sentem-se na obrigação de te dar a moeda.
Lentamente, ponho no chão o material de limpeza comprado naquela manhã e
afasto-me de mãos nos bolsos.
— Lamento, Abdallah, mas não sou capaz. Tocar nas esplanadas dos cafés, ainda
vá! Mas isto está acima das minhas forças. Espero por ti naquele café. Tenho de
pensar…
Sento-me afastado da porta, ao fundo da sala, para sentir o máximo de calor.
Peço um chocolate, e depois tento encontrar uma solução.
Abdallah podia vir viver algum tempo para nossa casa.
Podíamos ajudá-lo a regularizar a sua situação em França.
Será que os meus pais estariam de acordo? Só há uma maneira de o saber.
Aproximo-me do balcão.
— Desculpe, dá-me licença que faça um telefonema?
O empregado parece surpreendido.
— Essa agora — exclama ele. — É a primeira vez que vejo um jovem sem
telemóvel!
Com um gesto lá me indicou um aparelho fixado numa parede coberta de anúncios.
— Pode ir, vou ligar o contador. É para Marselha?
— Não, é para fora.
O rapaz volta a hesitar. Olha-me dos pés à cabeça. O seu olhar vai até à porta e
volta ao interior da sala. Acaba de compreender quem sou. Um “limpador”, como
tantos outros.
— Tens com que pagar?
Noto a mudança de tratamento amável do “você” para a forma agressiva do “tu”,
mas não digo nada. Limito-me a agitar uma nota de dez euros. A última.
— Está bem, podes ir!
Enquanto marco o número, revejo o meu pai a explicar-me que não valia a pena
insistir; eu não precisava de telemóvel. Devia ser o único aluno do liceu a não ter
telemóvel.
Um, dois, três toques e finalmente alguém atende.
— Está?
— Jullien, és tu?
É a voz da minha mãe. Pouco falta para desatar a chorar. Sinto falharem-me as
poucas forças que ainda tenho. As pernas mal se aguentam…
— Sim, sou eu.
— Jullien, Deus seja louvado! Onde estás?
Silêncio. Tenho um nó na garganta e as palavras têm dificuldade em sair. Ouço a
minha mãe chamar pelo meu pai.
— Phillippe, anda cá depressa, é ele! Por amor de Deus, Jullien, onde estás?
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Apetece-me responder-lhe que o amor de Deus nada tem a ver com a minha saída,
eu só procurava o amor deles. Há barulho no bar e ouço mal. No entanto, sinto passos
a aproximar-se e a voz do meu pai a pedir à minha mãe que lhe passe o telefone.
— Jullien, é o teu pai, estamos mortos de preocupação. Porque fizeste isso?
— Para existir, pai, simplesmente para existir…
As palavras saíram de roldão, como o fluxo de uma torrente retida numa barragem
demasiado tempo e, com ele, as lágrimas. Todo o meu corpo é agitado por soluços.
Viro as costas à sala, pois o que está a acontecer só a mim diz respeito.
— Acho que percebemos a mensagem, Jullien. Podes voltar para casa. Onde estás?
Queres que te vá buscar?
Hesito. Se digo que sim, se revelo o nome da cidade, amanhã estou em casa. Mas
antes preciso de falar a Abdallah daquela ideia maluca que tive. Que irão pensar os
meus pais? Que estou à procura de um substituto do meu irmão? Talvez ainda seja
demasiado cedo para lhes propor acolherem um estranho na família.
Volto-me.
Lá fora está Abdallah a ser insultado por um condutor que se excedeu.
A escolha está feita. Limpo os olhos à manga do casaco.
— Ainda não, pai, dentro em breve… Não se preocupem, que estou bem. Um beijo.
Volto a telefonar daqui a alguns dias.
— Jullien, espera…
Mas já estava a desligar. Tenho de dosear os gastos e a comunicação. Com o
dinheiro que resta, compro barras de chocolate, vamos precisar de energia para
enfrentar este longo dia de trabalho.
Junto-me a Abdallah, no passeio.
Estendo-lhe uma barra de chocolate. O meu amigo agarra com hesitação.
— Então, o que decidiste?
Baixo-me para pegar no material de limpeza. Finjo refletir.
— O que decidi… Bem… quero entrar para o livro dos recordes.
— Ah? E vai ser um recorde de quê?
— O número de para-brisas limpos numa hora!
Abdallah desata a rir.
— Muito bem, amigo, aceito o desafio! Tenho a certeza que vou ganhar-te!
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E ei-lo a atirar-se para um carro parado no sinal vermelho.
A condutora põe a cabeça de fora e ordena-lhe que não toque no para-brisas.
Mas Abdallah não liga ao que a senhora diz. Como se fosse surdo, lança o jacto de
modo a desenhar a forma de um coração que derrete os mais recalcitrantes. Desta vez
não teve êxito. Mal o sinal passa a verde, a condutora arranca, furiosa, fazendo chiar
os pneus. Abdallah fica plantado à beira da estrada, de mão estendida.
— Olha lá, ó parceiro, esta não conta. Só são contabilizadas as lavagens pagas.
Olho para o céu. As nuvens afastam-se. Abdallah estende os braços para as
gaivotas que dão voltas sobre as nossas cabeças. Dirige-lhes uma oração.
— Sujem, gaivotas, sujem quanto puderem os para-brisas das pessoas honestas,
deem-nos a oportunidade de provarmos que somos os melhores limpadores do mundo!
Agora é a minha vez de desatar a rir.
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Capítulo 15
— Tens fome? — pergunta-me Abdallah enquanto conta pela segunda vez a receita
do dia.
— Tenho a barriga a dar horas. Estou esfomeado. Sonho com uma sandes de carne
assada com batatas fritas, bem regada com molho branco.
— Está decidido: duas sandes! — diz ele a rir.
Pelo caminho, Abdallah põe sobre os meus ombros o seu braço reconfortante.
— Que pesca, meu amigo! Nunca tinha visto um limpa-vidros tão eficiente como tu.
— Que pena não poder registar o meu recorde!
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A noite desce lentamente sobre a cidade. Sentados num banco em frente do velho
porto, contemplamos o espetáculo magnífico que se oferece aos nossos olhos. O céu
em fogo, vermelho cor de sangue. Os barcos a baloiçar e o vento que se infiltra nas
adriças dos veleiros produzem um concerto único de estranhas sonoridades, um
assobiar permanente que se mistura com o sussurro das ondas do mar.
— Pelo menos é gratuito — diz Abdallah a rir, ao terminar a dose de batatas fritas.
— As pessoas que ficam embasbacadas diante da televisão não veem nada disto.
Concordo. Sinto-me satisfeito, descontraído, em harmonia com a terra inteira.
Infelizmente, quando se vive na rua, a realidade tem a tendência deplorável para se
apoderar da face visível da vida à velocidade de um Fórmula 1….
— Onde é que vamos dormir esta noite? — pergunto, ao engolir o último pedaço da
sandes.
Abdallah reflete por uns instantes.
O mistral levanta-se. Está fora de questão passar mais uma noite fora.
— Vamos para a estação. Sei onde se pode passar a noite sem problemas.
Pelo caminho, explica-me o plano.
— Vamos procurar um comboio no fim de linha que não saia durante a noite. Uma
carruagem que esteja aberta e passamos a noite deitados nos bancos em relax, ali no
quentinho.
Aparentemente, Abdallah está certo do seu plano.
Aposto que já usou esta estratégia mais vezes.
Mas a certeza do meu amigo não consegue dissipar completamente a minha
inquietação. À minha chegada, a estação não me deixou grandes recordações…
— Tens a certeza de que não corremos riscos?
— Riscos sempre há. Pode-se ser apanhado por outros mais velhos que já estejam
lá instalados, e também há a polícia ferroviária. Se te agarrem, levam-te logo. E da
polícia vais logo para o centro de detenção de Arenc. E voltas para a tua terra.
Expulsam-te no prazo de uma semana.
Vejo que está a delirar.
— Não no teu caso, Abdallah, a lei diz que não te podem expulsar se não fores de
maior idade. Falámos disso nas aulas.
Não me responde, mas acelera o passo.
— Vamos depressa, não podemos chegar demasiado tarde. Se não, arriscamo-nos a
que a estação esteja deserta e a sermos vistos pelos vigilantes, que nos afastam logo
à entrada. Não gostam de ver vagabundos a passear no cais.
Chegamos à estação de Saint-Charles.
As nossas sombras alongam-se sobre o mármore das estátuas que ladeiam as
escadas. Uma centena de degraus para subirmos. Prosseguimos em passo cadenciado.
— Abdallah, posso perguntar-te uma coisa?
— Pergunta lá…
— Há quanto tempo vives aqui?
Abdallah fica a pensar.
— Creio que há oito meses, talvez mais…
Recupero a respiração e lanço a segunda pergunta. Aquela que verdadeiramente
me interessa.
— Então como é que fazes para falares tão bem o francês? É impossível aprender
uma língua em tão pouco tempo…
Abdallah para a meio da subida. Ainda nos faltam subir cerca de cinquenta
degraus. Fixa em mim os seus olhos negros.
— É que não te contei tudo…
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Capítulo 16
O comboio parece vazio. O silêncio reina no vagão. De longe, chegam até nós
anúncios de partidas e chegadas. As cortinas estão fechadas e mal vejo a silhueta de
Abdallah na penumbra. O seu tom de voz parece agora mais suave. Mais brando.
— A verdade é que, quando cheguei a Marselha, fui de imediato referenciado por
uma associação de ajuda a jovens errantes. Estão muito bem informados, têm grupos
de colaboradores que fazem giros pelos bairros onde há clandestinos. Se fores menor,
tomam-te a seu cargo e ocupam-se de ti. Até te dão algum dinheiro todas as semanas.
A mim, puseram-me numa família de acolhimento, e frequentei aulas numa classe
especial de sete alunos apenas. Foi lá que aprendi a falar francês. Os educadores
diziam que, se eu dominasse o francês, até poderia fazer estágios para tirar uma
profissão e obter licença de residência. E, com a licença, pode-se ficar tranquilo,
permanecer legalmente em França.
— Então porque não continuaste?
— Houve um problema…
Espero pela continuação das revelações, mas nada sai. O silêncio alonga-se… O
meu braço direito enche-se de formigueiro e mudo de posição. Viro-me de costas.
— Que problema, Abdallah?
— Ao fim de três meses, a pessoa que partilhava o meu quarto na família de
acolhimento foi-se embora e veio um novo locatário.
— Não estou a ver o problema...
— Era o Medhi — revela a voz cansada de Abdallah.
Deixo mais uma vez instalar-se o silêncio.
Se Abdallah quiser ficar por aqui, não insistirei.
Mas a sua voz ecoa na noite.
— O Medhi tinha sempre os bolsos cheios de notas, sapatilhas novas e roupa de
fazer inveja. Dizia que, para ele, a associação era só um disfarce: durante o dia
portava-se bem, ia à escola, em suma, era cumpridor! Mas, à noite, quando os
educadores julgavam que estava sossegado, a dormir, o Medhi saía e tratava dos seus
negócios.
Nova paragem, nova pausa. Novo silêncio. Sinto-me um pouco perdido, preciso que
Abdallah me dê mais pormenores.
— Explica-me, que tipo de negócios?
— O Medhi traficava droga, comprimidos também, era uma autêntica farmácia
ambulante.
— E tu… denunciaste o seu tráfico aos educadores?
— Eu fiz pior…
Abdallah inspira profundamente. A sua voz surge de novo hesitante na
obscuridade, mistura-se às lágrimas que devem brotar dos seus olhos negros.
— Eu, ao ver aquele dinheiro todo… Ao fim de algum tempo, deu-me voltas à
cabeça….
De repente, percebi. Mas, desta vez, Abdallah não para. Agora que está lançado,
desbobina a história completa. Irá aliviá-lo seguramente.
— Comecei a fazer como o Medhi, nem sequer foi ele que me levou. Eu é que fui
pelos meus próprios pés pedir para entrar na negociata.
— E depois, o que é que se passou?
— Um dia, o Medhi foi apanhado pela polícia e começou a dizer alguns nomes.
Cheio de medo, fugi. Como se fosse um ladrão…
— …
— E a partir de então tem sido um martírio.
— Foi nessa altura que conheceste o Karim?
— Sim, o resto já tu conheces.
— O que é que te impede de voltar a ver os educadores da associação e de lhes
contar tudo? Deverão compreender, não? Todos temos direito a uma segunda
oportunidade.
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Abdallah assoa-se ruidosamente. Parece afogar-se no seu próprio desespero.
— Não, é demasiado tarde. Traí a confiança que depositaram em mim. Tenho muita
vergonha. E depois, passaram-se tantas coisas…Não posso voltar a viver numa família
de acolhimento. Acredita no que te digo, Jullien. Deixei a sorte passar-me ao lado.
Volta a calar-se. Os meus olhos habituam-se à escuridão da carruagem e vejo
Abdallah sacudir a cabeça para a direita e para a esquerda. Depois, deita-se de lado e
larga uma última frase:
— E dizer que vendi droga! Sou a vergonha da minha família!
Não sei o que dizer para o reconfortar. Abdallah fica só com o seu desgosto. O
silêncio instala-se definitivamente. Fecho os olhos. Devagar. A fadiga apodera-se de
mim. Deixo Abdallah entregue aos seus remorsos. Refugio-me no mundo dos sonhos.
Por agora.
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Capítulo 17
Abandonamos a carruagem aos primeiros raios da aurora. A noite foi calma e
recuperamos forças. Abdallah já planificou a manhã.
— Lavamo-nos nos quartos de banho da estação e depois vamos ao mercado Belle-
-de-Mai ver se há fruta para apanhar.
Vem-me à memória o filme de Agnès Varda que projetaram no início do ano, no
cineclube da escola: Les Glaneurs et la Glaneuse3. O retrato das pessoas que vivem
dos restos. Se algum dia imaginava que também eu havia de andar ao mesmo…
Descemos a rua. Vislumbra-se um belo dia.
3 Les Glaneurs et la Glaneuse (Os Respigadores e a Respigadora), é um documentário francês de 2000 de Agnès Varda. Concorreu ao prémio do Festival de Cannes de 2000, ganhando reconhecimento internacional nos anos seguintes. (N.T.)
Viro-me para o meu amigo.
— Sabes, em breve volto para casa. Com certeza dentro de alguns dias …
Abdallah não fica surpreendido.
— Eu já sabia, Jullien. O teu lugar não é na rua.
Como é hábito, sossega-me com uma pancada amiga nas costas. Aproveito para
dizer o que me anda às voltas na cabeça de há uns tempos para cá.
— Podias vir comigo. Os meus pais aceitarão certamente fazer um pedido de
adoção para facilitar o teu pedido de asilo, uma coisa deste género…
Um sorriso tímido acaba de surgir nos contornos dos seus lábios.
— Estás a sonhar, Jullien. Só nos filmes é que acontecem essas histórias.
Insisto. Quero agarrar-me ao meu sonho.
— Não custa nada tentar.
Abdallah varre as minhas últimas ilusões com um gesto de mão.
— É simpático da tua parte, mas nem penses nisso. Vamos mas é procurar comida.
Por agora ponho de parte a ideia. Voltarei à carga um pouco mais tarde.
Abdallah tem ar de quem está convencido de que a minha proposta é de loucos,
mas eu sou muito teimoso. Hei de convencê-lo. Depois, será preciso convencer os
meus pais, o que não vai ser fácil. Mas estou firmemente decidido a fazer tudo para
que o aceitem. Tudo pelo Abdallah.
Porque um dia me deu a mão, e chegou a vez de eu lhe dar a minha.
Desta vez sou eu que lhe dou uma palmada nas costas e o levo atrás de mim.
Seguimos o caminho para a praça do mercado. O sol brilha sobre as nossas cabeças.
Um sol radioso que aquece os corações e os faz bater com mais força.
vvv
Duas horas da tarde.
Estamos em frente de uma loja de artigos usados. A montra está suja, no entanto,
ao pôr as mãos em pala sobre os olhos, distingo nitidamente o que há no interior.
— Digo-te que é a minha. Conheço-a bem.
Dei por ela quando subíamos para o centro da cidade. Um autêntico golpe de sorte.
Desviei a cabeça no momento em que passávamos diante da loja. Tenho a certeza de
que é ela. É a minha flauta.
— Anda, vamos entrar. Vou pedir ao proprietário que ma devolva.
Mas Abdallah recusa seguir-me, parece preocupado.
— Não vás, Jullien. Tem cautela!
Não me deixo afetar pela sua preocupação. A minha decisão está tomada.
— Aquele objeto pertence-me. Só quero recuperá-lo. Nada mais.
Empurro a porta e uma campainha dá sinal.
Aparece um homem por detrás de uma cortina. A camisola completamente
manchada de nódoas de gordura, a barba mal feita, os cabelos desgrenhados.
— Em que posso ser-lhe útil, jovem? — pergunta-me ele a palitar os dentes.
— É por causa da flauta transversal que está na montra.
— Um ótimo negócio — diz ele, sempre a avançar para mim. — Duzentos euros
apenas. Por este preço é dada.
— Não vim para a comprar, esta flauta pertence-me…
O comerciante para. Observa-me por detrás dos óculos de hastes retorcidas.
— Roubaram-ma na rua, há dias. Tenho a certeza que a pessoa que lha vendeu é
um rapaz alto, moreno, de cabelos encaracolados. Chama-se Medhi.
O homem tira os óculos num gesto lento e limpa-os ao pulôver.
Deixa aparecer a barriga. Peluda, repugnante.
— E como é que provas que esta flauta é tua? Tens um certificado de compra, um
talão da garantia? Um talão da caixa, talvez?
— Não, mas dou-lhe a minha palavra, não sou mentiroso.
Volta a pôr os óculos e sorri, mostrando os dentes amarelos da nicotina. Ri-se com
ar de troça.
— Desaparece antes que eu me zangue!
De repente, um estrondo causa-nos um sobressalto medonho. Viro-me para ver o
que se tinha passado. Abdallah atirara um bloco contra a montra, que voou em
estilhaços. Apodera-se da flauta e deita a fugir a toda a velocidade.
Sem demora, escapo-me também. Atrás de mim, a voz do comerciante profere
ameaças. Não faço caso, corro e rio.
O meu coração palpita; estou vivo.
vvv
Encontro-me com Abdallah numa rua afastada dali. Encostado à parede, tenta
recuperar o fôlego. Dobro-me, com as mãos nos joelhos, também à procura dele...
Rimos em uníssono.
— Foi o maior medo da minha vida, Abdallah. Devias ter-me prevenido!
— Improvisei. De qualquer modo era a única solução, ele nunca iria dar-ta.
Com as mãos a tremer, entrega-me a flauta.
— Lamento, mas esqueci-me do estojo.
Agarro-a com avidez. Devo parecer um náufrago que descobriu uma boia de
salvação em pleno oceano.
— Ora bem, parece que as coisas se endireitam! — digo com uma piscadela de
olhos.
vvv
Capítulo 18
A noite desce sobre a cidade. Uns deixam o trabalho e regressam a suas casas,
outros passeiam o cão ou deambulam em torno dos alfarrabistas. Gosto desta
atmosfera de fim de dia. É um mundo que vai deitar-se e outro que desperta, dois
mundos que se cruzam.
Caminhamos para os lados da Plaine à espera que abra o restaurante da rua Vian.
Há vários dias que o dono está sem notícias nossas, mas Abdallah acha que vai ser
compreensivo e me vai deixar voltar a tocar no estabelecimento. Encanta-nos a
perspetiva de uma boa refeição.
Escuto Abdallah a sonhar acordado. Sonha ter as suas economias, um quarto
reservado no okupado, refeições quentes e abundantes, sonha que, a pedir, vai ganhar
muito dinheiro. O encanto da minha flauta mágica entra de novo em ação. Não digo
nada, limito-me a ouvi-lo. Deixo-o voar. Porém, quando nadamos em felicidade,
deixamos de estar vigilantes. Não nos apercebemos dos maus golpes que nos
espreitam e que acabam sempre por nos atingir. Necessariamente.
vvv
Uma vez mais, não os sentimos aproximar-se. Autênticos fantasmas. E mais uma
vez já é tarde para fugirmos. Ficamos encurralados numa rua estreita. Mas hoje não é
tão fácil como da última vez, estou decidido a fazer-lhes frente.
Revejo M. Levy a deslocar-se no estrado e a dirigir-se à turma numa voz firme:
— Meus meninos, um homem, ao longo da vida, pode perder muitas coisas, mas,
quando perder a autoestima, então aí, de facto, já nada lhe resta.
Juro! Medhi nunca me roubará a minha honra. Antes morrer.
— Porque é que te encarniças assim contra nós? Não fazemos nada de mal, apenas
queremos ganhar alguma coisa para comer…
Abdallah tenta acalmá-lo, mas Medhi está furioso.
— Ai sim? Vocês não fizeram nada? E a montra partida? O meu recetador ficou
doente por causa disso. Se não lhe levar a flauta, tenho de lhe devolver o dinheiro que
me deu!
— Mas…
— Cala a boca, Abdallah! Passa para cá essa flauta sem mais histórias ou então,
juro-te, vamos estoirar-vos aos dois!
Pelo tom de voz, concluo que não é possível qualquer discussão. Abdallah também
percebeu isso, e cerra os punhos. Aperta-se o círculo à nossa volta. Resolvo não
esperar pelo assalto. Numa das nossas discussões, Abdallah ensinou-me que, no jogo
do xadrez, a melhor forma de defesa é o ataque. Penso que isso também se deve
aplicar na luta de rua.
Pego na flauta por uma das extremidades e faço-a voltear à maneira de um chicote.
Os nossos agressores recuam, e hesitam.
— De que estão à espera, seus palermas! — grita-lhes Medhi. — Deem cabo deles!
— Porque é que não avanças, tu, aí? Seis contra dois é fácil, um contra um é mais
difícil…
Medhi fulmina-me com o olhar.
Atrevi-me a pôr em causa a sua autoridade diante dos outros, não tem outra opção.
Mergulha para mim de cabeça baixa. A flauta fere-o no queixo e ele estatela-se no
meio da rua. Ninguém mais se mexe. Todos ficam à espera do que se segue. Espero
que tenha percebido a mensagem e que não vá insistir.
Aqui é que eu me engano redondamente.
Ao contrário de mim, Medhi nada tem a perder. É isso que o torna perigoso.
Levanta-se a cambalear com a boca a escorrer sangue. Cospe um pedaço de dente.
— Filho da mãe, vou dar cabo de ti!
Ao dizer estas palavras, tira do bolso uma navalha de ponta e mola, e solta-lhe a
lâmina, pressionando o botão.
— Isto começa a ficar feio, rapazes, vamos embora!
vvv
Os membros do grupo desatam a fugir, mas Medhi nem pensa duas vezes. Vem
para mim com a lâmina apontada e os olhos injetados de sangue.
— Não te faças de parvo, Medhi, vais arrepender-te! — grita-lhe Abdallah, tentando
interpor-se.
— Tu não te metas! Nunca me arrependo do que faço.
— Matar alguém é muito grave, não é a mesma coisa que roubar por esticão!
Medhi para, mantém os olhos fixos em mim, mas fala a Abdallah.
— Não vai ser a primeira vez, já dei cabo do teu amigo Karim, que também teve o
descaramento de me ferir!
A revelação de Medhi paralisa Abdallah. Fica sem voz. Antes de eu ter tempo para
esboçar o menor gesto de defesa, Medhi atira-se a mim.
Espeta a lâmina no mais fundo da minha barriga.
— Adeus, até sempre! — diz-me ele ao ouvido antes de se escapar.
Com os dedos tento deter o sangue. Caio de joelhos. Ouço um grito dilacerante,
depois a voz de Abdallah que pede ajuda. Que grita.
Mas a minha flauta está no chão. Toda retorcida.
Há pessoas que se agitam à minha volta. Braços que me agarram. Sinto um frio
imenso e as imagens desfilam a toda a velocidade. De repente, dou-me conta: vou
morrer. Curiosamente, não sinto medo, quase me sinto aliviado. Descontraio-me,
deixo-me flutuar. Sinto-me a partir.
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Capítulo 19
A sala é branca. Desinfetada e impessoal. Faz-me lembrar aquela onde Nicollas
passou as últimas horas de vida. Imagino que todos os quartos do hospital devem ser
semelhantes. A minha mãe dorme no único sofá que existe. O meu pai preferiu ir
descansar num hotel próximo. O ecrã da televisão passa imagens cujo sentido não
capto. A minha refeição do meio-dia está pousada no carrinho, não lhe toquei. Não
tenho fome. Não tenho vontade de nada.
Já lá vão três dias.
Três dias em que não estou morto.
A ferida não era grave, nenhum órgão vital fora atingido, explicou-me depois no
hospital o médico interno que estava de serviço. No entanto, estava a esvair-me em
sangue. Um médico que passava pôs-me uma compressa e deteve a hemorragia até
chegarem os primeiros socorros.
Viver ou morrer dependeu disto. De muito pouco.
Depois é tudo muito rápido. Os bombeiros, as urgências, Abdallah que não me larga
a mão, a intervenção cirúrgica, o acordar um tanto difícil, a polícia, as perguntas, a
chegada dos meus pais, os reencontros. Tudo como num sonho. Ou antes, um
pesadelo. A margem entre os dois é estreita.
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Treze horas.
A minha mãe ressona levemente. Observo-a com ternura. As provações por que
acaba de passar sulcaram-lhe o rosto. As novas rugas até nem lhe ficam mal.
A enfermeira passa a tirar a temperatura. Não deixa de me fazer um sermão.
— Não tocou na comida mas, na sua idade, é preciso comer. É importante para
recuperar forças!
Diz isto num tom neutro, quase maquinal. Depois sai como entrou. Como um robô.
Este lugar parece-me sinistro, tenho a impressão que vou abafar. Lá fora as
pessoas manifestam-se, lá fora tudo é menos triste, lá fora a vida fervilha, aspira-nos a
cada instante.
Os dias são longos. Parece que nunca mais chegam ao fim. Passo horas deitado de
costas. À espera. Evito os movimentos bruscos para os pontos não rebentarem. Olho
para a televisão sem um verdadeiro interesse. Saltito ao acaso, de canal em canal.
Não consigo fixar a atenção por mais de cinco minutos seguidos. De vez em quando,
passam polícias pelo quarto. Respondo o melhor que posso às suas questões. Pedem
sempre novas informações, mais pormenores. De resto, falo muito com os meus pais,
esforço-me por lhes explicar as razões que me levaram a sair de casa, o que estava a
correr mal. Atentos, procuram compreender.
Por vezes o telefone toca. São pessoas de família que querem saber notícias
minhas. A minha mãe atende e tranquiliza-as.
vvv
Não voltei a ver Abdallah desde que me levaram para a urgência. Esteve sempre a
meu lado; chorava e recusava separar-se de mim. Uma enfermeira lá conseguiu
convencê-lo; falando-lhe calmamente, fê-lo desistir e levou-o para o corredor. Diante
da porta, voltou-se e os nossos olhares cruzaram-se.
É a última imagem que guardo dele.
A de um rapaz banhado em lágrimas. Um rapaz perdido.
Ontem, um polícia disse-me que Abdallah tinha sido transferido para o centro de
detenção d’Arenc. Segundo ele, iam fazer-lhe uma radiografia ao pulso para avaliarem
a idade verdadeira.
— É o processo legal — disse o polícia perante o meu espanto. — Se se confirmar
que é menor, como ele afirma, poderá permanecer em França, caso contrário será
expulso.
Pergunto pela minha flauta.
Ninguém sabe.
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Capítulo 20
Passou um mês desde a agressão.
Voltei ao ponto de partida: o regresso a casa.
Volto à minha vida de outrora. As aulas, as lições de música, os serões diante da
televisão, as refeições três vezes por dia, o duche à minha vontade, a água quente, a
eletricidade e muitas outras coisas.
Hoje, sei apreciar o conforto. Antes, não.
Agora sou para os meus colegas um animal estranho: todos conhecem a minha
história, a imprensa regional fez dela um grande alarde. Para eles sou aquele que
quebrou a amarra, o tipo que não suportou a morte do irmão, e que fez sei lá o quê.
Sem dúvida que há um pouco de verdade em tudo isso. Sinto estranhamente que a
vida ficou parada, à espera do meu regresso. As pessoas com quem me cruzo,
encontro-as no mesmo lugar de outrora, vejo-as fazer os mesmos gestos, ouço-lhes os
mesmos discursos. Estátuas que desconhecem a sua condição.
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Este tempo assemelha-se ao que se seguiu à morte de Nicollas. Sinto-me
espectador do mundo que me rodeia, observo-o sem chegar a fazer parte dele.
Todas as terças-feiras de tarde vou à consulta de um psicólogo. A sua ajuda é
preciosa. Depressa me apercebi que não ia ser fácil passar de ano. Além da minha
longa ausência, tenho dificuldades de concentração. Creio que vou reprovar.
Por enquanto, sempre que nos vemos, Willy mantém-se um pouco distante. Acho
que tudo o que me aconteceu em Marselha lhe mete medo. Não quer saber de nada.
Está aborrecido comigo por não o ter posto ao corrente do meu projeto de fuga. Como
convencê-lo de que nada do que aconteceu foi programado? Deixo-lhe a porta aberta
para voltar quando quiser. Se for um verdadeiro amigo, há de compreender e vai
perdoar-me.
Como eu previa, Claire anda agora com Ludovic. Apoia-o nos jogos de futebol da
equipa. Não me perguntou nada sobre a minha ausência. Por vezes as pessoas são tão
previsíveis …. Os meus pais compraram-me outra flauta. Parece-me que tem um som
diferente, mas o Sr. Marin diz que isso não se deve à flauta: foi a minha sensibilidade
que mudou, e o meu sopro tornou-se mais dilatado. Deve ter razão.
Pouco a pouco a vida vem ao de cima.
Os meus pais retomaram o trabalho. Estão mais atentos, fazem-me perguntas
sobre o que se passa na escola. Estamos a aprender a encontrar-nos. Criamos novos
laços. Não é fácil, mas vale a pena tentar. É certo que, às vezes, à noite, uma onda de
tristeza cai sobre eles. Assim, sem mais... Mas as coisas vão andando: fazem um
esforço. Perceberam que eu estou cá e que preciso do amor deles. Mas não são os
únicos a sofrer com a ausência de Nicollas. Como eles, também eu tento aceitar este
vazio. Tudo correrá bem, se todos, em conjunto, decidirmos continuar a viver.
A minha ferida na barriga cicatriza depressa. A minha avó diz que o tempo que
passa tudo cura. Ainda não estou lá muito certo disso…
Tive notícias de Marselha.
A polícia acabou por deter Medhi. Os meus pais participaram dele. Será julgado
dentro de algumas semanas. Tenho de ir depor, mas não tenho medo. Espero esse
momento com serenidade. Não o odeio, quero apenas que se faça justiça. Abdallah
deverá também testemunhar, talvez por isso é que ainda não o expulsaram. Pela
radiografia do pulso o meu amigo tem mais de dezoito anos. Mas continua a negar.
Há dois dias, um polícia voou para Marrocos para esclarecer melhor a questão.
Abdallah disse-me que isso não adiantava, porque a mãe nunca se dera ao trabalho de
declarar o seu nascimento. Entretanto, foi colocado num lar, sob controlo judicial. Sou
eu quase sempre que telefono, em média uma vez por dia. De preferência à noite.
Falei aos meus pais do assunto da adoção, mas o processo é muito complicado.
Ainda não me deram a resposta. De qualquer forma, se Abdallah for mesmo
considerado maior, tal não será possível. Sinto a falta dele e, às vezes, tenho mesmo a
sensação de ter perdido um segundo irmão. Mas Abdallah está vivo, e há sempre
esperança.
vvv
“Temos de nos agarrar aos nossos sonhos — dizia-me com frequência Nicollas —
porque só eles podem tornar-se realidade.”
A vida tem de continuar. A vida vai continuar.
Ah, já me esquecia…
Há uma rapariga do 11º A que se ri para mim sempre que nos cruzamos nos
corredores do liceu. Nunca a tinha visto. A família acaba de arranjar casa no bairro
Jaurés. Chama-se Adelline. Tal como eu, também ela escreve o primeiro nome com
dois L.
Jean-Luc LucianiDeux ailes dans le dos
Paris, Rageot-Éditeur, 2004(Tradução e adaptação)