jean-luc nancy & jacques ranciÈre

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  • 8/13/2019 JEAN-LUC NANCY & JACQUES RANCIRE

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    INSISTNCIAS DEMOCRTICASENTREVISTA COM MIGUELABENSOUR,

    JEAN-LUC NANCY &JACQUES RANCIRE

    Realizada por Stany Grelet, Jrme Lbre Sophie Wahnich(Traduzido do francs por Vincius Nicastro Honesko)

    Natal (RN), v. 19, n. 32Julho/Dezembro de 2012, p. 517-538

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    Miguel Abensour, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancire

    Quem poderia hoje no ser democrata? A democracia, notrio, opoder do povo. Mas qual poder e qual povo? Na entrevista quesegue, aprofundando seus respectivos trabalhos, Miguel Abensour,Jean-Luc Nancy e Jacques Rancire propem trs pensamentossingulares da democracia que se juntam nisto: o povo o sujeito deuma exigncia de igualdade; seu poder no o de escolher chefes,mas o de romper com as hierarquias constitudas. A democracia no um regime poltico, mas uma prtica nunca acabada. Trs convites

    para defend-la como tal.

    Os senhores esto em dois frontes: por um lado, desviam-sedaqueles que se contentam em pensar e defender uma democraciaestatal. Por outro lado, no aceitam que se rejeite a democracia emnome da luta de classes ou da critica da dominao. Os senhorespoderiam explicitar essa posio? A maneira com a qual aelaboraram, em qual contexto intelectual?1Jacques Rancire: Essa dupla recusa da vulgata democrticadominante e da crtica marxista foi inspirada pelo meu trabalhosobre a histria do trabalho. dentro das formas de lutarepublicana trabalhadora dos anos 1830-1840 que eu encontrei omeio de sair dos impasses da crtica marxista dos direitos do homeme da democracia formal. O jovem Marx dizia: os direitos dohomem so, de fato, os direitos dos indivduos burgueses. Contra

    1 Conforme seus desejos, Miguel Abensour, Jean-Luc Nancy e Jacques Rancireresponderam por escrito e separadamente as nossas questes. (Nota dosentrevistadores)

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    isso os combates operrios opem uma lgica bem mais produtiva:esses direitos so escritos e, portanto, ns podemos dar-lhes uma

    forma de existncia concreta. Que todos os franceses sejam iguaisdiante da lei no somente a mentira que encobre a exploraocapitalista e o governo oligrquico, como tambm um fato quepodemos demonstrar para ns mesmos as consequncias,transformando uma querela sobre tarifas em forma de afirmaopblica de nossa igualdade pela greve, pela manifestao pblica emesmo pela criao de atelis em que os operrios trabalham parasi prprios. A declarao igualitria abstrata dos direitos do homem

    se ligava a questes de forma nas relaes entre patres eoperrios, como o direito de ler jornais no ateli e a obrigao de,ao adentrar um ambiente, tirar seus chapus para os patres. Aforma no , portanto, o contrrio ou a embalagem do real. A lutacentra-se na questo de saber quem domina o jogo e o que dele sepode tirar. Samos ento do dualismo do real e da aparncia emproveito de um conflito entre duas maneiras de construir o real.Parece-me, no entanto, que os frontes se deslocaram. Quase no

    existem mais pessoas para declarar o nada dos direitos formais emnome de uma hipottica democracia real. agora de um outro ladoque a democracia se v oposta a si mesma. Dizemos que o bomgoverno democrtico ameaado por uma sociedade democrticamarcada por um individualismo consumidor desenfreado demercadorias e de direitos. Isso comeou em 1975, com asadvertncias da Trilateral2 sobre os perigos que a democraciarepresenta para as democracias. Essa posio foi retomada na

    Frana pelos discursos como o de Marcel Gauchet, que fazem daaspirao pelos direitos do homem a expresso do individualismonarcisista. Ento vieram os republicanos para nos explicar que oensinamento do povo foi arruinado pela afirmao do direito livreexpresso do jovem brbaro, consumidor inculto. Alm disso, asanlises da sociedade de consumo nos moldes de Baudrillard, acrtica do espetculo de Debord, a anlise lacaniana do simbolismoetc., foram inscritos para completar o quadro da democracia como

    2A Comisso Trilateral uma fundao privada que reagrupa, a partir de 1973, aspotncias dos mundos polticos, industrial, financeiro e intelectual da Europa doOeste, Amrica do Norte e sia do Pacfico, e que colocou os quadros daglobalizao econmica atual.

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    reino do indivduo consumidor. A ressonncia desse discurso esquerda muito forte tanto mais que ele em grande medida

    obra de esquerdistas reconvertidos e seu efeito , talvez, pior doque aquele do velho discurso sobre a democracia real, na medidaem que nutre um consentimento niilista ordem existente em nomeda brutalidade geral.

    Miguel Abensour: A hiptese que proponho, a da democraciainsurgente, resulta tambm de uma luta nesses dois frontes:nenhum dos dois levam em conta a excepcionalidade da

    democracia. Eles evitam, ao mesmo tempo, interrogar-se sobre a suaverdade. Para tomar a medida dessa excepcionalidade precisosempre voltar ao nascimento grego da democracia. Pela primeira

    vez na histria do mundo homens adquiriram a possibilidade dedecidir por si mesmos em que tipo de ordem gostariam de viver,diz Christin Meier. Ora, essa ruptura revolucionria repetidadiversas vezes na histria poupa da confuso entre a democraciacom o que ela no , o governo representativo e o Estado de direito.

    Especifiquemos que no houve um s nascimento da democracia,mas vrios nascimentos-renascimentos, vrias rupturas com o cursodo mundo. Portanto, reconhecer que a primeira posio se enganasobre a verdade da democracia e que a segunda omite a colocaoda questo. Estamos no ponto em que, para no ocultar essaexcepcionalidade, -nos preciso qualificar a democracia parasubtrai-la s apropriaes ideolgicas que a banalizam e adesarmam, ou, para no confundi-la com suas formas

    degenerescentes. Democracia radical, democracia selvagem,democracia insurgente, tantos adjetivos como que para marcar essadiferena.Por surpreendente que possa parecer, o jovem Marx foi para mimuma ajuda preciosa nesse caminho, pois, no manuscrito de 1843, ACritica do direito pblico de Hegel, ele se colocou a questo da

    verdade da democracia, sob o nome da verdadeira democraciaque ele identifica com o desaparecimento do Estado poltico. Suacrtica a Hegel ajuda, de fato, a pensar isto: a verdadeirademocracia um agir poltico que resiste sua transfiguraonuma forma organizadora, integradora, unificadora, a forma-Estado. Essa resistncia alienao estatal permite a extenso

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    daquilo que est em jogo na esfera poltica uma experincia deuniversalidade, a no-dominao, a constituio de um espao

    pblico igualitrio conjuntamente vida do povo. Alm disso,existe, parece-me, uma continuidade subterrnea entre o Marx de1843 e o de 1871, autor do Adresse sobre a Comuna. Notando,entretanto, um deslocamento: o advento da democracia no secumpriria tanto num processo de desaparecimento do Estadoquanto no fato de que ela se constituiria numa luta contra o Estado.Segue-se uma diviso da ideia de revoluo entre a tradio

    jacobina, que visa a tomada do Estado, e a tradio comunalista,

    que trabalha para quebrar a forma-Estado para substitu-la por umacomunidade poltica no-estatal, por exemplo, uma repblica dosconselhos.

    Jean-Luc Nancy: Para seguir os termos de sua questo, eu diria queestou suspenso entre esses dois frontes: de um lado, mal vejocomo evitar a democracia estatal, cujas fraquezas (em particularaquelas da representao e da dominao dos supostos experts)

    so difceis de se reduzir, mas, de outro lado, eu sei bem quais osenormes riscos que se atribuem a regimes que gostariam deapreender com outros instrumentos questes agudas da justiasocial e da dominao tcnico-econmica. Eu s me pergunto se nspodemos, por fim, evitar tais tentativas, se a democracia estatalno se recuperaria de uma maneira ou de outra. Ora, ela somente opode fazer se tentar retomar o fundo deste problema: o que querdizer democracia? Isso o que mais me preocupa. Essa palavra,

    que parece pertencer classe dos tipos de regimes polticos,ganhou, com a idade moderna, grande amplitude e passou aesconder tambm uma polissemia. Democracia tambm onomedo surgimento do homem emancipado, autnomo, mestre domundo e de si mesmo, sujeito de uma histria capaz de conduzir aocumprimento desse homem. Demos povo, e sabemostambm quais polissemias nele podem se jogar mas, para osModernos, homem , primeiramente, todos os homens. E comisso so os homens (e com eles a natureza) inteiramente entreguesa si prprios, sem recursos tutelares, sem deus nem super-homens. preciso, portanto, pensar essa ambiguidade: a democracia polticano trouxe um programa da realizao do homem (expresso que,

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    precisamente, no tem sentido e a partir da qual preciso pensaressa ausncia de sentido).

    Suas concepes da democracia parecem implicar uma viso muitoprecisa do sentido a ser dado palavra povo... Pois os senhores nocedem, o senhores se atm a essa palavra. Povo soberano mesmo?Jean-Luc Nancy: Povo soberano, eis a questo: povo, como lhedisse h pouco, todos, no todos indistintamente, mas todoscomo singulares entre os quais somente se passa o que podemos

    nomear a vida, simplesmente, ou o sentido. Povo que se divide, quepode se excluir ou entrar em conflito consigo, obviamente, mas queexige a possibilidade de um ns: que em algum lugar um nsseja declarado, e no somente um eles. Ns sem dvidas jamaispode ser dado a no ser na fico religiosa. Mas ele pode e deveser interrogado, inquietado, perseguido... E sempre recusadoquando pronunciado por um ou alguns que a partir dele apenas seostentam. E soberano, sim: alm do qual no h nada. E que deve,

    portanto, lidar com este desafio considervel: no ter nem tutela,nem garantia, nem recurso de seu prprio ser-povo, se assimposso dizer.

    Miguel Abensour: A partir da reforma de Clstenes, o povo umsujeito poltico que se constitui por ruptura com os pertencimentosfamiliares, tribais, e que se estabelece por transferncia a um espaoe a um tempo tornados polticos. O povo o instituidor de uma

    cidade igualitria, concebida para privilegiar um centro comum, aigualdade, a simetria e a reversibilidade. A democracia , portanto,isonomia. Dessa ruptura com a naturalidade para constituir o povo,segue-se que este ltimo, enquanto ser poltico, no tem nada a vercom uma raa, nem mesmo com uma etnia, nem com um grupocomunitrio. O que descreve Michelet a respeito da festa daFederao seno o acesso a uma estranha vita nuova, umaexperincia de humanidade? As velhas muralhas se abaixam... oshomens ento se veem, reconhecem-se semelhantes... Qual aidentidade desse novo sujeito poltico? Certamente no umaidentidade substancial, mas uma identidade paradoxal, umaidentidade no idntica. Michelet ainda pensa o povo como jamais

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    coincidente consigo mesmo. Ele est tanto alm de si quanto aqumde si mesmo.

    H a uma dificuldade. possvel que esse povo seja definido comoo conjunto de cidados, um conjunto, seno indiviso, ao menos quetenda indiviso, ou, de outro modo, como uma parte, aquela daspessoas de baixo contra as Grandes, a parte daqueles que no tmparte nenhuma e que, em nome desse erro, colocam-se como otodo? Ora, se entendemos o povo nesse segundo sentido, precisoobservar que o termo democracia, que por seu prprio nomereconhece parte de baixo um kratos sobre a parte dos Grandes,

    coloca um problema. Segundo Nicole Loraux, a palavra kratos pesada e a questo da democracia torna-se delicada, pois ter okratos, ter o acima. Como a democracia, que igualitria queinstitui uma lgica da no-dominao e disso tende ao ser an-rquica , pode acomodar-se da posse de um kratos de uma parteda sociedade sobre uma outra? De que modo a existncia dessekratos pode acompanhar uma lgica da no-dominao? suficiente dizer que essa situao indica uma tenso constitutiva e

    insupervel da democracia? suficiente invocar o fato majoritrio?Se aceitarmos a ideia da tenso, de longe mais satisfatriovoltarmos a Maquiavel, que percebendo a diviso de toda cidadehumana, nela reconhece a fonte mesma da liberdade e subsdiosadicionais ao povo de ser um guardio da liberdade muito melhordo que os Grandes.Povo soberano? Aqui ainda distines so necessrias. Soberano opovo o quanto sua instituio. Ele no recebe sua lei, sua

    liberdade e seu agir de nenhuma instncia exterior nem denenhuma transcendncia, ele recebe apenas de si mesmo. Mas, seprestarmos ateno distino de La Botie entre o todos uns experincia da separao que liga sob o signo do entre-conhecimento, da amizade, portanto, da pluralidade e o todosUm, frequente resultado de uma renncia voluntria da liberdade,sob o charme do nomeUm, a questo da soberania se complicaestranhamente. De fato, querendo-se manter a pluralidade do todosuns, a onde h ao mesmo tempo pertencimento a uma totalidadeaberta, dinmica e manuteno da singularidade dos uns, s sepode tomar distncias da ideia de soberania e a ela resistir namedida em que esta instaura o reino do Um e arruna, no mesmo

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    golpe, a desordem fraternal, a desordem enquanto recusa dasntese, portanto, da totalizao estatal.

    Jacques Rancire: De fato, eu resisto proposta de substituir otermo por um outro como, por exemplo, multides. primeira

    vista, este mais moderno e no , como povo, comprometidocom ideologias criminais. Mas justamente povo tem para mim a

    vantagem de ser um sujeito polmico. Multides define acoincidncia de uma subjetivao poltica com um modo de sercoletivo. Mas, para mim, a poltica comea quando seu sujeito se

    separa de toda coletividade formada por um processo econmico esocial. Isto , que povo um sujeito poltico na prpria medida emque um sujeito litigioso, em que a poltica sempre ope um povo aum outro. O povo o demos oposto ao ethnos isto , ao povocomo organismo coletivo. sobretudo o coletivo desses que esto amais em relao a todas as consistncias sociais. Nisso ele se ope atodas as concepes identitrias, inclusive as que querem fundar apoltica sobre o reconhecimento da multiplicidade das identidades.

    O poder do povo o poder daqueles que no so nada, ou seja, queno pertencem a nenhum grupo que tenha as qualidades que ospredestinam ao governo. Isso implica uma relao muito particularcom a soberania. Se a soberania do povo tem um sentido, o deminar o prprio conceito de soberania. A soberania do povo a docoletivo daqueles que no tm nenhum ttulo para governar. Eu mesituo, portanto, completamente fora daqueles para quem asoberania do povo a herdeira da soberania dos reis, esta que seria

    ela mesma a delegao da soberania divina, isto , para falar demodo geral, estou completamente fora do discurso teolgico-poltico.

    A democracia no um regime poltico; ela um agir que, na suaprpria manifestao, trabalha para desfazer a forma Estado, paraparar a lgica deste (dominao, totalizao, mediao, integrao)e substitui-la por sua prpria M. Abensour); ela interrompequalquer espcie de teologia poltica e no pode ser subsumida anenhuma instncia ordenadora J.-L. Nancy). Ela interrompe algica policial da distribuio dos lugares J. Rancire). Os524

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    senhores poderiam especificar o sentido e o contedo daemancipao que est em jogo?Miguel Abensour: Efetivamente a democracia no um regimepoltico. Alm de uma instituio poltica conflitiva do social, ela uma ao, uma modalidade do agir poltico, especfica naquilo emque a irrupo do demos na cena pblica, na oposio aos Grandes,luta por um estado de no-dominao na cidade. Trata-se no daao de um momento, mas de uma ao continuada que se inscreveno tempo, sempre pronta a tomar novos rumos em razo dos

    obstculos encontrados. De um processo complexo que se inventapermanentemente para melhor perseverar no seu ser e desfazer oscontra-movimentos que o ameaam aniquilar e retornar a umestado de dominao. Tal a democracia insurgente. Desse pontode vista, de 1789 a 1799, repetidamente o povo teve que irromperna cena revolucionria para proclamar sua vocao de agir aomesmo tempo contra o Estado do Antigo Regime e suassobrevivncias, e contra o novo Estado. A partir de tal perspectiva,

    as ltimas insurreies do ano III, de Germinal (abril de 1795) e,sobretudo, de Prairial (maio de 1795), so notveis. O povo invadeento a Conveno com uma dupla palavra de ordem: Po eConstituio de 1793. Associando esses dois motivos, o povoreivindicava o direito insurreio que lhe reconhecia aConstituio de 1793. O que fazia ele seno lutar para retomar opoder que lhe pertencia enquanto soberano, a saber, o poderconstituinte? Nesse evento, percebe-se bem as caractersticas da

    democracia insurgente: uma oposio brutal entre o povo e osGrandes do dia, a criao de uma situao de duplo poder, o poderpopular dos sans-culottes parisienses de um lado e o poder estataldo outro, com o projeto de substituir este por aquele. De modo maisprofundo, possvel ver o princpio que anima a Insurreio: abusca de uma ligao poltica viva, intensa, no hierrquica. A luta

    visa a preservar a potncia de agir do povo e a impedir que o quefaz ligao entre os cidados no se degenere, uma vez mais, emordem obrigatria, vertical. Basta ler o manifesto A Insurreio do

    povopara obter po e reconquistar seus direitospara ver aparecer ocontraste entre a ligao e a ordem: Os cidados e as cidads detodas as sees indistintamente partiro de todo lado para uma

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    desordem fraternal... a fim de que o governo astucioso e prfido nopossa mais encabrestar o povo como de costume e conduzi-lo como

    uma tropa, por chefes que lhe so vendidos e que nos enganam.Tal a desordem fraternacontra o poder pastoral dos chefes. Tal a emancipao an-rquica que carrega essa forma de democracia.

    Jean-Luc Nancy: A democracia , de uma maneira em parteindependente do registro poltico (independente, por exemplo, doque era a exigncia do Terceiro-Estado ou do que exige a separaodos poderes), um outro nome da morte de Deus. Isto , de um

    recolocar em jogo de modo integral isso que quer dizer ummundo, entendido como um espao de circulao de sentido. Osentido no desce mais do cu nem a ele sobe. Talvez, alis, jamaiso tenha feito. Mas pde-se representar que ele o fazia. Acabou. Osentido est entre ns e ele no termina, no se conclui. Ele ns,nossas vidas e nossas mortes, nossas palavras e nossas maneiras,nossas obras, nossos sentimentos. A poltica inteiramente dissociadada religio e da assuno de um destino de nao (ou povo, ou

    ptria) no pode eno deve carregar o sentido. Entretanto, oque a confuso ao redor de democracia, tambm de repblica ede comunismo, pde fazer crer. O sentido carregado de outromodo: na arte, no saber, no amor, na festa, o esporte, opensamento, o que sei eu? A poltica deve se conceber como o quegarante o acesso a todas essas esferas, mas no pretende inerv-las.

    A demarcao dos papeis e das esferas muito delicada, semnenhuma dvida. Ela at mesmo infinita. Mas toda a histria das

    representaes modernas da poltica, por meio do espectro que vaidos totalitarismos aos socialismos, serviu para mostrar que nohavia nada mais apressado do que esperar a poltica como atomada de todo o sentido. Tudo, sem dvida, passa por ela, masnada nela para nem nela se deixa assumir. Essa diferena, essadiferena interna a ns, oshomens, devemos pens-la e agi-la.

    Jacques Rancire: Digamos, de incio, que o conceito essencial paramim o de emancipao. Eu tentei repensar as noes de poltica ede democracia a partir dele, mas, ento, foi esse conceito que setornou decisivo para mim, pois ele supunha um recolocar emquesto certas oposies que delimitam habitualmente o lugar da

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    poltica (a poltica contra o social ou o privado contra o pblico).Ele determinou minha separao em relao a certa viso

    arendtiana, opondo a excelncia do exerccio poltico e a liberdades formas de expanso da necessidade social. Sabe-se qual papel ospensadores de direita a ele atriburam em nosso pensamento paraestigmatizar os movimentos sociais. A emancipao a refutaoem ato dessa partilha a priori das formas de vida. o movimentopelo qual aqueles e aquelas que tinham sido localizados no mundoprivado afirmam-se capazes de um olhar, de uma palavra e de umpensamento pblicos. Isso pode comear com esses novos honestos

    trabalhadores, evocados por E.P. Thompson, que, numa noite demaro de 1792, renem-se numa taberna londrina e a fundam umasociedade com nmero de membros ilimitado para afirmar o direitode todos a eleger os membros do Parlamento. Isso comea tambmquando operrios em conflito com seus empregadores, na Paris dosanos 1830, fazem de sua greve no mais um meio de presso de umgrupo de indivduos sobre um indivduo particular, mas uma aopblica dos operrios enquanto tal; ou quando Rosa Parks, em

    1955, em Montgomery, converte um ato privado sentar-se numlugar vazio numa manifestao pblica suprimir por sua prpriaconta a repartio de assentos em funo da cor da pele. O coraoda emancipao est em se declarar capaz daquilo que certadistribuio dos lugares lhe nega a capacidade, de declarar-se capazdisso como representante qualquer de todos aqueles cujacapacidade aparentemente denegada. A emancipao funda umaideia do universal poltico no mais como aplicao da lei comum

    aos indivduos, mas como processo de desidentificao, isto , desada por quebra de certo estatuto sensvel, de certo lugar na ordemdo visvel e do dizvel, na distribuio dos lugares e dos tempos. apartir dessa desidentificao que repensei a democracia como opoder dos sem-parte, isto , daqueles que no representam nenhumgrupo, funo ou competncia particulares.

    Em que medida um oximoro falar de instituio democrtica?Jean-Luc Nancy: No h oximoro uma vez que se entendademocracia no sentido de forma ou de regime poltico: ainda queseja uma forma em perptua transformao, a ela preciso suas

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    pausas, suas marcas. H, alm disso, instituies que so muitoespecificamente democrticas: aquelas que colocam controles ou

    freios internos ao prprio sistema (conselho constitucional,conselhos, comisses ou autoridades encarregadas do respeitopela igualdade e pela justia em tal ou qual setor por exemplo,audiovisual, internet). De fato, a instituio pode tambm ser amelhor garantia contra o arbitrrio e contra todos os direitos deexceo. Mas nenhuma instituio pode ser colocada como umtemplo, ou jamais ser recolhido o verdadeiro princpio dademocracia.

    Jacques Rancire: O oximoro, para mim, ao menos na origem, aideia de democracia representativa. A regra democrtica originria o sorteio. A lgica da representao claramente oligrquica. Amonarquia feudal e, em seguida, a monarquia burguesa, foramcercadas de homens que representavam potncias sociais (anobreza, o clero, a propriedade). Tardiamente que arepresentao tornou-se representao do povo, nessa figura de

    compromisso que ns conhecemos. A noo de instituiodemocrtica designa o prprio paradoxo da poltica ou querendo-se seu artifcio. A democracia a forma de poder legtima que levaem si a refutao de toda legitimidade do exerccio do poder.Nossas instituies trazem o trao desse paradoxo. possvel diz-las democrticas, caso queira assinalar com isso a obrigao na qualelas esto de inscrever o poder de quem quer que seja e de lheconstruir formas de efetividade mnimas. Mas o funcionamento

    mesmo da mquina estatal tende continuamente a apagar esse traoe a esvaziar essas formas de toda substncia. E por isso que ademocracia deve sempre se separar da forma estatal qual seprocura reduzi-la. Ela deve ter seus rgos prprios, distintos dosrgos da representao do poder estatal.

    Miguel Abensour: A expresso Estado democrtico constituiefetivamente um oximoro. Alis, basta inverter o sujeito e opredicado para melhor medir o carter problemtico de talassociao; uma democracia estatal, uma democracia estatizada, concebvel? Mas o que vale para a instituio Estado vale para todainstituio? A representao das relaes entre a democracia e a

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    instituio apenas sob o signo do antagonismo seria umasimplificao ultrajante. Isso seria como se uma sempre se

    desdobrasse numa efervescncia instantnea, enquanto a outrapermaneceria em prol de um estatismo marmreo. Uma primeirarplica se impe: uma relao possvel entre democraciainsurgente e instituio, desde que a constituio reconhea ao povoo direito insurreio, como foi excepcionalmente o caso naconstituio de 1793.Mas isso no suficiente. Ainda preciso anotar que a relao dessademocracia com a efervescncia no a instantaneidade. Tambm

    pode ela, para salvaguardar o agir poltico do povo, voltar-se parainstituies que, no momento de sua criao, tiveram por finalidadefavorecer o exerccio desse agir. Assim, desde os acontecimentos dePrairial, a insurreio apoiou-se nas sees parisienses e nosdeputados montagnards,que a apoiaram e votaram, no dia primeirode Prairial, na Conveno invadida, pela permanncia das sees. Ademocracia insurgente pode, portanto, dar incio a uma circulaoentre o presente do acontecimento e o passado, na medida em que

    a se encontram instituies emancipadoras que so promessas deliberdade. No h, portanto, antagonismo sistemtico entre ademocracia insurgente e as instituies, uma vez que estastrabalham para esse estado de no-dominao.Uma complexidade da mesma ordem se revela ao tomarmos oproblema desde o ponto de vista da instituio. Tomemos Saint-Justnas Instituies republicanas. Ele ope as instituies s leis, com apreeminncia sendo concedida s instituies e a desconfiana

    reservada s leis suspeitas de serem opressivas. Notemos que aRepblica deve ser ento constituda por um tecido institucional,espcie de lugar primeiro que se distingue to bem tanto damquina de governo quanto das leis. Essas instituies, que tmpor finalidade ligar os cidados e as cidads por meio de relaesgenerosas, devem levar em si algo como um princpio da Repblica,como sua antecipao sob a forma da totalidade dinmica.Lembremos que Saint-Just soube expor uma especificidade dainstituio. A instituio matriz, mais do que o quadro, contm umadimenso imaginria de antecipao, que possui uma potnciaincitativa de natureza para engendrar condutas que vo na direoda emancipao que ela anuncia. nesse sentido que a instituio,

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    sistema de antecipao, diz Gilles Deleuze, ope-se lei, namedida em que traz em si um chamado de uma liberdade a outras

    liberdades. por isso que Deleuze opunha nesses termos ainstituio lei: Esta uma limitao das aes, aquela um modelopositivo de ao. ltimo ponto: existe uma incompatibilidade entrea insurgncia e a instituio no nvel da temporalidade? SegundoMerleau-Ponty, a instituio dota a experincia de uma dimensodurvel. Mas essa caracterstica equivale tanto menos a umimobilismo quanto o que pode ser percebido de uma duraocriativa, inovadora, em sentido bergsoniano, numa dimenso

    durvel. Ora, a caracterstica da antecipao da instituio trabalha,por assim dizer, a durao interiormente, de tal modo que essadimenso durvel, em vez de ser resistncia mudana, transforma-se em trampolim que permite, junto com sua estabilidade relativa,uma execuo da inveno. Se, como afirmam certos tericos, ainstituio a categoria do movimento, ela pode ento se aclimatarsem esforos temporalidade democrtica.

    Quais formas esse movimento toma? Se os senhores esto deacordo em dar um lugar central resistncia e conflitualidade,parece-nos que a emancipao , para os senhores, tanto ummovimento continuado quanto um esforo descontnuo, sincopado.Jacques Rancire: Eu no estou seguro de que preciso opor osdois. Da minha parte, insisti no fato de que a emancipao eraexatamente uma converso do corpo e do pensamento que

    comeava por uma leve subverso das atitudes ordinrias. Issocomea, em Gauny (O Filsofo plebeu), pelo olhar do carpinteiroque esquece o trabalho dos braos e transforma o lugar de trabalhoem espao de exerccio de um olhar esttico desinteressado, e elecontinua nisso por meio da elaborao de uma contra-economiadomstica que permite escapar s restries fsicas e intelectuais dadominao. Isso comea, em Jacotot (O Mestre ignorante), pelaateno do iletrado por estudar, palavra a palavra, a relao entre aprece que ele sabe de cor e o texto que lhe mostrado no papel. Aemancipao em si mesma, em ruptura com a lgica dareproduo, a criao de certa continuidade, de uma espiral que seconstri desviando-se de seu crculo. Descontnuas so as

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    emergncias coletivas do poder dos homens emancipados. Jacotottinha vinte anos em 1789 e Gauny em 1830. As estratgias de

    emancipao individual que eles elaboraram foram possveis porqueos dias revolucionrios modificaram brutalmente a prpriapaisagem do possvel. E, por sua vez, essas invenes formaramhomens capazes de outras grandes afirmaes coletivas.Levando em conta as histrias singulares, samos da homonmiaentre a histria como processo de evoluo necessrio e a histriacomo narrativa sinttica de encadeamentos de causas e efeitos. Ahistria da democracia pode ser a potncia de efrao e a influncia

    de certos momentos do poder do povo, as transformaes que elesproduzem na paisagem do visvel e do possvel, as formas dememria que eles suscitam, mas tambm a maneira pela qual seubrilho se difrata nas percepes e nas atitudes novas. Isso pode ser,tomando-se as coisas por um outro vis, o tornar-se bola de neve deuma modificao singular na vida de um indivduo ou de um grupo,a maneira pela qual essa trajetria singular revela todos osconstrangimentos reais e simblicos que definem uma sujeio,

    todas as virtualidades de mundos diferentes que esboam astransgresses desses constrangimentos. assim que emA Noite dosproletrios eu tentei enquadrar toda a paisagem do que aemancipao dos operrios podia querer dizer por meio dodestino de um pequeno nmero de proletrios, reencontrando sobdiversas formas os constrangimentos da dominao e as promessasde utopia, e construindo por meio desses reencontros, ao mesmotempo, uma forma diferente de vida individual e uma imagem da

    coletividade operria emancipada. Disse, ento, que a histria deuma gerao, isto , no uma era, mas uma configurao, meioefetiva, meio ideal, de trajetrias singulares marcadas por umamesma abertura revolucionria do possvel. Tais histrias nodefinem nenhum encadeamento causal de circunstncias e deconsequncias. Elas definem construes alternativas do possvelque se inscrevem numa outra configurao do que tomamos porpresente.

    Miguel Abensour: Penso igualmente que, mais do que colocar umaalternativa entre continuidade e descontinuidade, mais justoconceber a histria da emancipao como relevante para dois

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    modelos ao mesmo tempo: indissociavelmente contnuo para seusobjetivos, descontnuo pelo seu modo de manifestao. Trata-se,

    portanto, de uma comunidade poltica fazendo-se, orientada para aigualdade e para a no-dominao. Penso a histria da liberdadesob o signo da descontinuidade, com momentos fortes deemergncia entre longas zonas cinzentas. Esses momentos so ainveno da democracia grega, a repblica romana, as repblicasitalianas da Idade Mdia e as grandes revolues modernas. Essahistria pontuada pelo que Saint-Just chama de modo magnificoprofecias da liberdade, as quais deixam traos na histria

    destinados a ser retomados e reativados sob outros nomes, soboutros motivos. Mas a histria da democracia histria complexa,catica deve levar em conta tambm tanto os grandesacontecimentos quanto os acontecimentos menores, a incontvelmultiplicidade dos atos de resistncia e de rebelio duranteperodos ditos calmos, nos quais a ordem estatal parece reinar,embora ao consultar os arquivos v-se que de um estadopermanente de intranquilidade latenteque se trata. assim que

    Jean Nicolas pode escrever no seu belo livro, A Rebelio francesa1661-1789: Entre 1660 e maio de 1789, a sociedade francesa viveusob o modo da intranquilidade, segundo ritmos desiguais, masnuma tremulao quase ininterrupta.

    Jean-Luc Nancy: Pensar a democracia sob os termos movimento eemancipao, como movimento de emancipao, no algosemproblemas. Emancipao sem dvidas uma outra grande palavra

    que mantm democracia numa outra polivalncia obscura.Emancipao de que, de quem? Dos deuses e dos tiranos, o que seentende: mas eles no cessam de voltar! Eles tm muitos avatares!Quem e o que nos tiraniza e nos coloca na idolatria ou nasuperstio? Emancipao da escravizao, da explorao, dosofrimento moral e fsico? Ns sabemos nos sujeitar a sistemasinteiros, ns sofremos de nossa prpria explorao da natureza ens sabemos muito mal como conduzir a sade de uma populaocuja maior parte passa fome e negligenciada, enquanto a outraparte est doente por tanta comida e por excesso de cuidados. Tal a verdade: emancipao um termo herdado do direito daescravido e, em seguida, do direito da autoridade paternal. Talvez

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    ele no nos seja mais conveniente. Estamos sem mestres e sem pais.Talvez, seja mais uma questo de inventar, de criar...

    Como situar, a esse respeito, os eventos de maio de 68?Jean-Luc Nancy: Precisamente, maio de 68 teria sido o primeiromomento visvel de uma crise que comeava, para alm de certomodelo social, em particular ainda vigente na Frana, e para almde certa representao da luta poltica (que nos tinha levado at aindependncia da Arglia) que comeava no para uma

    perspectiva, mas, justamente, para o desdm ou a impossibilidadede novas perspectivas, de novos projetos, programas, projees defuturo. Maio de 68 declarou uma exigncia do presente contra opassado (sem testamento, para citar ainda Char ou Arendt) etambm contra o futuro (pensado como presente futuro, projetado,para citar Derrida). O que sabemos do aqui-agora? O que sabemosde ns e no de nossos pais nem dos nossos filhos? O que sabemosde um sentido que no seja desde sempre marcado de cu ou de

    futuro? No limite, poder-se-ia mesmo dizer que 68 se declaravacontra o sentidoum pouco maneira com a qual Freud escreveque se interrogar sobre o sentido da vida j ser neurtico e pela

    vida, pela existncia, por nossa existncia somente enquantosentido. Ora, a democracia, sabendo ou no, tambm levou em siuma exigncia dessa forma. (Exigncia a respeito da qual ouso meperguntar se talvez no tenha sido melhor encontrada em outraspocas ou culturas...)

    Jacques Rancire: Os acontecimentos de 68 no tm seguramenteuma significao unvoca. Os aspectos para mim dominantes so orecolocar em causa o determinismo histrico e a afirmao do quedemocracia pode significar, se levarmos a palavra a srio.Esquecemos o singular contratempo que maio de 68 representou napaisagem francesa. Sem dvidas, o contexto global da Revoluocultural chinesa e a luta anti-imperialista tiveram papel importantenas capacidades de mobilizao da juventude tanto na Franaquanto nos EUA, na Alemanha ou no Japo. Mas a sociedadefrancesa, na vspera de 68, descrevia-se em termos de reformismotriunfante: integrao da classe operria pela sociedade de

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    consumo, nova gerao estudantil desligada das ideologias dopassado, novo rosto do capitalismo, gerncias modernistas etc..

    Tudo isso foi varrido em alguns dias pela espiral de um movimentooriginalmente muito limitado. Se esse movimento recolocou emcena o cenrio revolucionrio, isso foi fora de sua temporalidadeprpria e sob o signo da distncia entre vanguarda de direito (opartido da classe trabalhadora) e fora motriz nascida do prprioacontecimento. Muito mais do que os modelos da revoluomarxista, a propagao do movimento em 68 lembra as insurreiesrepublicanas do sculo XIX: de um lado, uma des-legitimao

    massiva do poder estatal, que se transmite para toda a sociedade efaz aparecer por toda parte o arbitrrio e o intil das hierarquias e,do outro lado, as capacidades de inveno dos indivduosordinrios. No temos necessidade de autoridade, no temosnecessidade de hierarquia, podemos perfeitamente construir ummundo sem isso: isso que todo o mundo descobria ao mesmotempo e um pouco por todo lugar. As alternativas cmodas(movimento trabalhador de reivindicao contra aspiraes

    libertrias da juventude) recobriram essa experimentaodemocrtica radical.

    Miguel Abensour: Para minha gerao, maio de 68 funcionou comouma catarseem relao aos anos obscuros e sinistros da guerra da

    Arglia, como se ns pudssemos finalmente nos distanciar datortura, o cncer da democracia, segundo Pierre Vidal-Naquet. Foitambm a alegria de recuperar uma potncia de agir em unssono,

    em comum, de fazer novamente experincia da desordemfraternal, alegria reforada por uma fala generalizada; o prazer depoder denunciar em praa pblica os crpulas estalinistas. Foiuma impressionante greve operria que lembrava aqueles quetinham tendncia a esquecer de que nossa sociedade vivia sob aempresa do capitalismo, de que a questo de sua supresso secolocava para ns e de que de tal questo no podamos nosesquivar. Isto , maio de 68 um fenmeno complexo e compsito.De fato, pudemos ver coexistir um neobolchevismo, quero dizer, umneo-stalinismo, a dominao das organizaes burocrticasfrequentemente afetadas pelo culto do chefe genial e onisciente e,ao mesmo tempo, uma potncia corrente anti-burocrtica que

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    navegava entre a busca de uma democracia radical e o que eradenominado a autogesto. Duas tradies revolucionrias

    coexistiam, a jacobina, ou de modo mais preciso, a jacobina-leninista e a tradio comunalista; ao lado das organizaestrotskistas, maostas, o movimento de 22 de maro. Nessaperspectiva, seria preciso ver at que ponto os comits de ao,comparando-os em certo sentido aos clubes da Revoluo de 48,conseguiram instaurar uma crtica emancipadora da forma-partido.Uma das lies de 68, rapidamente esquecida, a reafirmao danecessidade de uma crtica inovadora dos partidos polticos,

    seguindo Simone Weil, aquela da Crtica Social, saudada por AndrBreton no texto Banir os partidos polticos. Uma outra que ademocracia parlamentar a inimiga mais formidvel da verdadeirademocracia: como prova, decididas as eleies legislativas, atorrente democrtica tambm voltou ao seu leito e o movimentoacabou.

    Para os senhores, nem tudo poltica; entretanto, os senhores sediferenciam na maneira de situar a democracia, em sua relao coma poltica. Onde hoje os senhores veem a afirmao e a experinciademocrticas, no sentido em que os senhores as entendem?Miguel Abensour: Em todo lugar onde os agentes sociais e polticosdecidem tomar suas tarefas nasmos e lutar eles prprios contra oinaceitvel, h experincia democrtica, ainda que essas lutasescapem ao controle das direes burocrticas. Podemos citar o

    movimento dos sans-papiers, as ajudas espontneas frequentementeassociativas aos imigrantes, notadamente em Calais, a luta porabrigo, os incios de desobedincia civil. Em relao a essaexperincia, duas tarefas sem impem. No exemplo de LouisJanover, denunciar os fenmenos de dissidncia fingida com maislucidez do que a de um neobolchevismo que est de volta. Alm daoposio muito fcil totalitarismo/democracia, fazer a anlise crticadas degenerescncias da democracia, sua deriva em oligarquiasautoritrias. Trs direes: crtica da representao, crtica doEstado de direito que sob a cobertura do formalismo est pronto aintegrar o que quer que seja, mesmo a tortura, crtica da

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    colonizao da vida cotidiana. A democracia deve recuperar seucarter de ruptura, de interrupo da dominao.

    Jacques Rancire: Parece-me que hoje possvel distinguir oselementos sob duas formas principais. De um lado, no sentido derefutar as barreiras que separam os que so daqui e os que so deoutro lugar, portanto, na luta contra as leis inquas e todas asformas de represso que, de fato, criam populaes de segundaclasse. De outro lado, nas tentativas mltiplas de fazer viverassociaes, rgos de informao, fruns de discusso ou atelis de

    criao fora dos modelos hierrquicos e mercantis. Essas duasformas comportam ao mesmo tempo seus riscos ou seus limites. Deum lado, h o risco de transformar a parte dos sem-parte emcombate contra a excluso, de pensar a luta a partir de um outrodefinido por suas privaes mais do que a partir de um quem quer que seja definido por suas capacidades. Do outro lado, h o riscode perder um sentido poltico global da democracia e umapercepo global do fortalecimento e da conjuno em um grau

    sem precedentes dos poderes oligrquicos. por isso que creionecessrio hoje reformular a radicalidade democrtica do poder dequem quer que seja na sua formulao terica e nas suasconsequncias prticas. E, de maneira correlata, creio necessrioproceder a um reexame da tradio crtica e descobrir tudo o quenumerosas formas de denunciao crtica do sistema dominante defato trazem lgica desse sistema.

    Jean-Luc Nancy: Tento fazer com que essa distino que afirmoentre poltica democrtica e democracia como nome, digamos,porta-trecos [fourre-tout], valha para a abertura de uma grande

    virada antropolgica e, se posso dizer, metafsica. A esfera polticapela qual tudo deve transitar, mas na qual nada pode se concluir,permite o acesso a outras esferas que so aquelas em que h, seposso dizer, cumprimento no presente: a arte, o amor, opensamento, mesmo o saber no seu ato puro, cumprem-se,eventualmente sem durar, ou entrando numa outra durao queno a das esperas, das previses etc.. Todo o sentido assim: osentido sensvel, a sensao, a sensualidade, o sentimento, asensibilidade, o sentido de uma ideia ou de uma palavra, o

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    sentido de um encontro, isso se cumpre. Isso se cumpreinfinitamente na sua finitude ou no seu prprio findar um canto,

    um gesto, um sopro, uma obra talvez, mas no foradamente.Sofremos por perder isso de vista observando uma poltica que nosconduziria para um cumprimento final. Ns erramoscorrelativamente ao compreender como esses toques, s vezes quaseinsensveis de sentido, podem circular entre ns.Se ns encontramos as justas demarcao e emaranhamentodessasduas ordens (a poltica no tudo, mas deve poder velar por tudo,ao mesmo tempo em que nada mais tudo, e nisso que ainda

    seria preciso muito refinar e especificar), progrediremos talvez parao que pode nos querer essa democracia, que talvez no diganadamais do que uma mutao completa da civilizao. Isso no virsem tocar tambm a ordem econmica e a ordem tcnico-cientfica.Ora a democracia recobre com seu prestgio emancipador o fatode que seus termos fundamentais a saber, liberdade, igualdade,fraternidade e justia so uma carga metafsica considervel, masso tambm considerados como evidncias: liberdade de cada um

    limitada pela do outro, igualdade, fraternidade ou solidariedade detodos, por definio, e, por fim, justia para cada um. Como se nssoubssemos o que so cada um e todos, onde comea e ondetermina um indivduo, uma pessoa... Na verdade, ns nela nosengajamos sem olhar muito para uma ontologia do indivduo,desligada de tudo e indivisvel nessa separao a partir de que nstornamos necessria a questo: como, portanto, indivduos podemse reunir?

    Mas no vimos que o indivduo uma pressuposio frgil epouco consistente. Ns no vimos porque ele foi produzido numtempo em que a civilizao fazia uma escolha fundamental: ela noremetia mais s marcas dadas (a hierarquia, a fidelidade, diversasfiguras da comunidade) mas ela escolhia, inconscientemente, umareferncia de valor que era o valor no dado, e no incomensurvel,mas por se produzir e comensurvel: o valor da riqueza e dainveno (velocidade, potncia, preciso) ambas ligadas a seuconhecimento enquanto capacidades de auto-expanso ou deproduo indeterminadas. Isso mais tarde foi nomeadocapitalismo e tcnica.

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    Assim, liberdade, igualdade etc., foram desde o incio ascaractersticas de um sujeito do valor que, ele prprio, tornou-se o

    valor. O indivduo abstrato apenas a imagem no fundo muitoconfusa do agente de um tal processo: a (re-)capitalizaoindefinida tanto da riqueza quanto dos savoir-faire. O dinheiro, ostransistores, as matrias plsticas ou os semicondutores, as

    velocidades e as potncias so livres, iguais, solidrias entre elas.Quanto justia, no fundo esse mesmo processo... Em outrostermos, a toda essa escolha profunda da civilizao quedemocracia nos remete: saberemos reintroduzir outra coisa alm

    do valor intercambivel e auto-expansivo, seja o dinheiro, apreciso, a velocidade ou o indivduo?

    NB: A entrevista foi originalmente publicada na revista Vacarme(n48, vero de 2009) e est disponvel no endereo:

    http://www.vacarme.org/article1772.html

    Sugestes de leituraABENSOUR, Miguel. La Dmocratie contre ltat, Marx et lemoment machiavlien. Paris: ditions du Flin, 2004; Hannah

    Arendt contre la philosophie politique? Paris: Sens et Tonka, 2006.NANCY, Jean-Luc. La Communaut dsoeuvre. Paris: ChristianBourgois, 1990; Vrit de la dmocratie. Paris: Galile, 2008.RANCIRE, Jacques. La Msentente, politique et philosophie. Paris:Galile, 1995; La Nuit des proltaires, archives du rve ouvrier.Paris: Hachette Pluriel, 2005 (1 edio 1981).