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coleo TRANS

Jacques Rancire O DESENTENDIMENTOPoltica e FilosofiaTraduo Angela Leite Lopes

J g j MDiaTHqueJ 4

* MaisondeFrnce5 0 - 0 P-AaJ >

editoral34

EDITORA 34 Distribuio pela Cdice Comrcio Distribuio e Casa Editorial Ltda. R. Simes Pinto, 120 CEP 04356-100 Tel. (011) 240-8033 So Paulo - SP

Copyright 34 Literatura S/C Ltda. (edio brasileira), 1996 La msentente ditions Galile, Paris, 1995A FOTOCPIA DE Q U A L Q U E R FOLHA DESTE LIVRO ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO A U T O R .

Ttulo original: La msentente Capa, projeto grfico e editorao eletrnica: Bracher & Malta Produo Grfica Reviso tcnica: Renato ]anine Ribeiro Reviso: Geraldo Gerson de Souza

I a Edio - 1996 34 Literatura S/C Ltda. R. Hungria, 592 CEP 01455-000 So Paulo - SP Tel./Fax (011) 210-9478 Tel. (011) 832-1041

Dados Internacionais de Catalogao na Fonte (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP^ Brasil)Rancire, Jacques O desentendimento - poltica e filosofia / Jacques Rancire ; traduo de ngela Leite Lopes. So Paulo : Ed. 34, 1996 144 p. (Coleo TRANS) Traduo de : La msentente - politique et philosophie ISBN 85-7326-026-2 1. Filosofia francesa. 2. Poltica. I. Ttulo. II. Srie. 96-0595 CDD - 1(44)

O DESENTENDIMENTOPoltica e Filosofia

O DESENTENDIMENTO Poltica e FilosofiaPrefcio 9

O comeo da poltica O dano: poltica e polcia A razo do desentendimento Da arqui-poltica meta-poltica Democracia ou consenso A poltica em sua era niilista

17 35 55 71 99 123

PREFCIO

"lloicov ' LAOTTI eaxi mi TCOIOV LT aviaorri, ei |L\ avBaveiv e%si yap TODT arcopiav K A I (|)iXooorsrntcndimento

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mais como diferena de duas maneiras de se participar do sensvel: a do prazer e do sofrimento, comum a todos os animais dotados de voz; e a do bem e do mal, prpria somente aos homens e j presente na percepo do til e do nocivo. Funda-se, por a, no a exclusividade da politicidade, mas uma politicidade de tipo superior, que se perfaz na famlia e na polis. Nessa clara demonstrao, vrios pontos continuam obscuros. Sem dvida, qualquer leitor de Plato compreende que a objetividade do bem se separa da relatividade do agradvel. Mas a diviso de sua aisthesis no to evidente assim: onde est exatamente a fronteira entre a sensao desagradvel de um golpe recebido e o sentimento da "nocividade" sofrida por causa desse mesmo golpe? Dir-se- que a diferena est marcada precisamente pelo logos que separa a articulao discursiva de uma dor e a articulao fnica de um gemido. Ainda assim preciso que a diferena entre desagrado e nocividade seja sentida e sentida como comunicvel, como definindo uma esfera de comunidade do bem e do mal. O indcio que se tira da posse do rgo a linguagem articulada uma coisa. A maneira como esse rgo exerce sua funo, como a linguagem manifesta uma aisthesis compartilhada, outra totalmente. O raciocnio teleolgico implica que o telos do bem comum seja imanente sensao e expresso como "nocividade" da dor infligida por um outro. Mas como compreender exatamente a conseqncia entre o "til" e o "nocivo" assim manifestados e a ordem propriamente poltica da justia? primeira vista, o envergonhado utilitarista poderia replicar ao nobre partidrio dos "clssicos" que essa passagem do til e do nocivo justia comunitria no est to distante de sua prpria deduo de uma utilidade comum feita da otimizao das utilidades respectivas e da reduo das nocividades. A linha que separa a comunidade do Bem do contrato utilitarista parece aqui bem difcil de se traar. Faamos entretanto uma concesso aos partidrios dos "clssicos": essa linha pode e deve ser traada. S que seu traado passa por alguns desfiladeiros onde correm o risco de perder-se no s o pressuposto "utilitarista" denunciado por Leo Strauss como tambm aquele que ele prprio compartilha com os utilitaristas: aquele que assimila o logos que manifesta o justo deliberao pela qual as particularidades dos indivduos se encontram subsumidas sob a universalidade do Estado. O problema aqui no enobrecer a acepo do til para aproxim-lo da idealidade do justo, que seu fim. ver que a passagem do primei-

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ro para o segundo s se faz por intermdio de seus contrrios e que no jogo desses contrrios, na relao obscura do "nocivo" e do injusto, que reside o mago do problema poltico, do problema que a poltica formula ao pensamento filosfico da comunidade. Entre o til e o justo, a conseqncia com efeito contrariada por duas heterogeneidades. Primeiro, a que separa os termos falsamente equilibrados com os termos de "til" e de "nocivo". Isso porque o uso grego no estabelece nenhuma oposio clara desse tipo entre os termos de Aristteles, sympheron e blaberon. Blaberon tem, na verdade, duas acepes: num sentido, a parte de desagrado que cabe a um indivduo por qualquer razo que seja, catstrofe natural ou ao humana. Num outro, a conseqncia negativa que um indivduo recebe de seu ato ou, no mais das vezes, da ao de outrem. Blab designa assim, correntemente, o dano no sentido judicirio do termo, o agravo objetivamente determinvel feito por um indivduo a outro. A noo implica portanto, usualmente, a idia de uma relao entre duas partes. Sympheron, em contrapartida, designa essencialmente uma relao a si mesmo, a vantagem que um indivduo ou uma coletividade obtm ou conta obter de uma ao. O sympheron no implica pois uma relao com o outro. Os dois termos so, assim, falsos opostos. No uso grego corrente, o que habitualmente se ope ao blaberon como dano sofrido phelimn, o socorro que se recebe. Na tica a Nicmaco, o que o prprio Aristteles ope ao blaberon, como m ao, aireton, a via boa de se tomar. Mas do sympheron, da vantagem que um indivduo recebe, no se infere, de forma alguma, o dano que outro sofre. Essa falsa concluso apenas a de Trasmaco quando, no livro I da Repblica, traduz em termos de lucros e perdas sua enigmtica e polissmica frmula: a justia a vantagem do superior (to sympheron tou kreittonos). Digamo-lo de passagem: traduzir, como costume, por "interesse do mais forte" encerrar-se de cara na posio em que Plato encerra Trasmaco, pr em curto-circuito toda a demonstrao platnica, a qual joga com a polissemia da frmula para operar uma dupla disjuno: no apenas o "lucro" de um no o "dano" de outro, como, alm disso, a superioridade exatamente entendida tem sempre um s beneficirio: o "inferior" sobre o qual ela se exerce. Nessa demonstrao, um termo desaparece, o do dano. O que a refutao de Trasmaco antecipa uma plis sem dano, uma plis onde a superioridade exercida de. acordo com a ordem natural produz a reciprocidade dos servios entre os guardas protetores e os artesos provedores.

C) Desentendimento

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Pois a est o segundo problema e a segunda heterogeneidade: para Plato como para Aristteles, que a esse respeito fiel a seu mestre, o justo da polis fundamentalmente um estado em que o sympheron no tem por correlato nenhum blaberon. A boa distribuio das "vantagens" pressupe a supresso prvia de um certo dano*, de um certo regime do dano. "Que dano me fizeste, que dano te fiz?", so essas, segundo o Teeteto, palavras de advogado, perito em transaes e tribunais, quer dizer, definitivamente ignorante da justia que fundamenta a polis. Esta s comea ali onde se pra de repartir utilidades, de equilibrar lucros e perdas. A justia enquanto princpio de comunidade no existe ainda ali onde todos se ocupam unicamente em impedir que os indivduos que vivem juntos se causem danos recprocos e em reequilibrar, ali onde o causam, a balana dos lucros e das perdas. Ela comea somente ali onde se trata daquilo que os cidados possuem em comum e onde se cuida da maneira como so repartidas as formas de exerccio e controle do exerccio desse poder comum. De um lado, a justia enquanto virtude no o simples equilbrio dos interesses entre os indivduos ou a reparao dos danos que uns causam aos outros. a escolha da prpria medida segundo a qual cada parte s pega a parcela que lhe cabe. De outro lado, a justia poltica no apenas a ordem que mantm juntas as relaes medidas entre os indivduos e os bens. Ela a ordem que determina a diviso do comum. Ora, nessa ordem, a deduo do til para o justo no se faz da mesma maneira que na ordem dos indivduos. Para os indivduos, ainda se pode resolver, simplesmente, o problema da passagem entre a ordem do til e a do justo. O livro V da tica a Nicmaco d, na verdade, uma soluo para o nosso problema: a justia consiste em no pegar mais do que sua parcela nas coisas vantajosas e menos do que sua parcela nas coisas desvantajosas. Contanto que se reduza o blaberon ao "nocivo" e se identifique como sympheron essas coisas "vantajosas", possvel dar um sentido preciso passagem da ordem do til do justo: o vantajoso e o desvantajoso so ento a matria sobre a qual se exerce a

* Dano. No original, tort. Indica o dano causado a algum, com sentido no apenas fsico mas, sobretudo, jurdico. Avoir tort estar errado, no ter razo; faire tort a algum fazer-lhe mal. Numa citao de Hobbes, no ltimo captulo deste livro, a forma como o tradutor francs do sculo XVII, Samuel Sorbire, verteu o ingls "w/rowg"; conota-se, como se v, das idias de errado, torto etc. (N. do revisor tcnico)

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virtude da justia que consiste em pegar a parcela conveniente, a parcela mdia de umas e de outras. O problema, evidentemente, que com isso ainda no est definida nenhuma ordem poltica. A poltica comea justamente onde se pra de equilibrar lucros e perdas, onde se tenta repartir as parcelas do comum, harmonizar segundo a proporo geomtrica as parcelas de comunidade e os ttulos para se obter essas parcelas, as axiai que do direito comunidade. Para que a comunidade poltica seja mais do que um contrato entre quem troca bens ou servios, preciso que a igualdade que nela reina seja radicalmente diferente daquela segundo a qual as mercadorias se trocam e os danos se reparam. Mas o partidrio dos "clssicos" estaria se alegrando cedo demais em reconhecer a a superioridade do bem comum, cujo telos sobre o regateio dos interesses individuais a natureza humana traz consigo. Isso porque o fundo do problema ento se apresenta: para os fundadores da "filosofia poltica", essa submisso da lgica trocadora ao bem comum exprime-se de maneira bem determinada: ela submisso da igualdade aritmtica que preside as trocas mercantis e as penas judicirias, igualdade geomtrica que, para a harmonia comum, coloca em proporo as parcelas da coisa comum possudas por cada parte da comunidade parcela que ela traz ao bem comum. Mas essa passagem da aritmtica vulgar geometria ideal implica, ela mesma, um estranho compromisso com a empiria, uma singular contagem* das "partes" da comunidade. Para que a polis seja ordenada conforme o bem, preciso que as parcelas da comunidade estejam em estrita proporo com a axia de cada parte da comunidade: ao valor que ela traz para a comunidade e ao direito que esse valor lhe d de deter uma parte do poder comum. Por trs da oposio problemtica do sympheron ao blaberon est a questo poltica essencial. Para que exista a filosofia poltica, preciso que a ordem das idealidades polticas se ligue a uma composio das "partes" da plis, a uma contagem cujas complexidades escondem talvez um erro fundamental, um erro que poderia ser o blaberon, o dano constitutivo da prpria poltica. O que os "clssicos" nos ensinam antes de mais nada o seguinte: a poltica no se ocupa dos vnculos entre os indivduos, nem das relaes entre os indivduos e a comunidade, ela da alada de uma contagem das "par* Em francs, compte, que tambm tem o sentido de "clculo", "conta", "cmputo". (N. do revisor tcnico)

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tes" da comunidade, contagem que sempre uma falsa contagem, uma dupla contagem ou um erro na contagem. Pois vejamos essas axiai, esses ttulos de comunidade, de mais perto. Aristteles enumera trs: a riqueza dos poucos (os oligoi); a virtude ou a excelncia (aret) que d seu nome aos melhores (aos aristoi); e a liberdade (a eleutria) que pertence ao povo (demos). Concebido unilateralmente, cada um desses ttulos fornece um regime particular, ameaado pela sedio dos outros: a oligarquia dos ricos, a aristocracia das pessoas de bem ou a democracia do povo. Em contrapartida, a combinao exata de seus ttulos de comunidade proporciona o bem comum. Um desequilbrio secreto perturba, no entanto, essa bela construo. Sem dvida, pode-se medir a contribuio respectiva das competncias oligrquicas e aristocrticas e do controle popular busca do bem comum. E o livro III da Poltica esfora-se por concretizar esse clculo, por definir as quantidades de capacidade poltica que so detidas pela minoria dos homens de "mrito" e pela maioria dos homens comuns. A metfora da mistura permite figurar uma comunidade nutrida pela soma proporcional das qualidades respectivas "da mesma maneira", diz Aristteles, "que uma comida impura misturada a uma comida pura torna o todo mais proveitoso que a pequena quantidade inicial" 2 . O puro e o impuro podem misturar seus efeitos. Mas de que maneira podem medir-se um ao outro em seu princpio? O que na verdade o ttulo detido por cada uma das partes? Na bela harmonia das axiai, um nico ttulo se deixa facilmente reconhecer: a riqueza dos oligoi. Mas tambm aquele que depende apenas da aritmtica das trocas. O que , em contrapartida, a liberdade trazida pelas pessoas do povo comunidade? E em que lhes prpria? E aqui que se revela o erro fundamental na contagem. Primeiro, a liberdade do demos no nenhuma propriedade determinvel mas facticidade pura: por trs da "autoctonia", mito de origem reivindicado pelo demos ateniense, impe-se esse fato bruto que faz da democracia um objeto escandaloso para o pensamento: pelo simples fato de ter nascido em tal plis, e especialmente na plis ateniense, depois que a escravido por dvidas foi abolida, qualquer um desses corpos falantes fadados ao anonimato do trabalho e da reproduo, desses corpos falantes que no tm mais valor do que os escravos e menos at, j

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Aristteles, Poltica, III, 1281 b 36.

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que, diz Aristteles, o escravo recebe sua virtude da virtude de seu senhor , qualquer arteso ou comerciante contado nessa parte da plis que se chama povo como participante dos negcios comuns enquanto tais. A simples impossibilidade, para os oligoi, de reduzir escravido seus devedores transformou-se na aparncia de uma liberdade que seria propriedade positiva do povo, como parte da comunidade. Alguns atriburam essa promoo do povo e de sua liberdade sabedoria do bom legislador, do qual Slon fornece o arqutipo. Outros imputaram-na "demagogia" de alguns nobres, que tomaram apoio na populaa para afastar seus concorrentes. Cada uma dessas explicaes j pressupe uma determinada idia da poltica. Mais, portanto, do que optar por uma ou por outra, melhor deter-se sobre o que as motiva: o n originrio do fato e do direito e a relao singular que ele estabelece entre duas palavras-chave da poltica, a igualdade e a liberdade. A sabedoria "liberal" nos descreve com complacncia os efeitos perversos de uma igualdade artificial que vem contrariar a liberdade natural de empreender e de trocar. Quanto aos clssicos, encontram, nas origens da poltica, um fenmeno de uma profundidade totalmente diferente: a liberdade, enquanto propriedade vazia, que vem colocar um limite aos clculos da igualdade mercante, aos efeitos da simples lei do deve e do haver. A liberdade vem, em suma, separar a oligarquia dela mesma, impedi-la de governar pelo simples jogo aritmtico dos lucros e das dvidas. A lei da oligarquia , de fato, que a igualdade "aritmtica" mande sem entraves, que a riqueza seja imediatamente idntica dominao. Diremos que os pobres de Atenas eram submetidos ao poder dos nobres, no ao dos mercadores. Mas precisamente a liberdade do povo de Atenas reconduz a dominao natural dos nobres, fundada no carter ilustre e antigo de sua linhagem, sua simples dominao como ricos proprietrios e aambarcadores da propriedade comum. Ela reconduz os nobres sua condio de ricos e transforma seu direito absoluto, reconduzido ao poder dos ricos, numa axia particular. Mas o erro da contagem no pra por a. No s esse "prprio" do demos que a liberdade no se deixa determinar por nenhuma propriedade positiva. Mas ele ainda no lhe absolutamente prprio. O povo nada mais que a massa indiferenciada daqueles que no tm nenhum ttulo positivo nem riqueza, nem virtude mas que, no entanto, tm reconhecida a mesma liberdade que aqueles que os possuem. A gente do povo de fato simplesmente livre como os outros.11

C) Desentendimento

Ora, dessa simples identidade com aqueles que, por outro lado, lhes so em tudo superiores que eles tiram um ttulo especfico. O demos atribui-se, como sua parcela prpria, a igualdade que pertence a todos os cidados. E, com isso, essa parte que no parte identifica sua propriedade imprpria com o princpio exclusivo da comunidade, e identifica seu nome o nome da massa indistinta dos homens sem qualidade com o nome da prpria comunidade. Isso porque a liberdade que simplesmente a qualidade daqueles que no tm nenhuma outra (nem mrito, nem riqueza) ao mesmo tempo contada como a virtude comum. Ela permite ao demos ou seja, o ajuntamento factual dos homens sem qualidade, desses homens que, como nos diz Aristteles, "no tomavam parte em nada" 3 identificar-se por homonmia com o todo da comunidade. Tal o dano fundamental, o n original do blaberon e do adikon, cuja "manifestao" vem interromper toda deduo do til para o justo: o povo apropria-se da qualidade comum como sua qualidade prpria. O que ele traz comunidade , propriamente, o litgio. Devemos entender isso num duplo sentido: o ttulo que ele traz uma propriedade litigiosa, j que no lhe pertence propriamente. Mas essa propriedade litigiosa no , apenas, a instituio de um comum-litigioso. A massa dos homens sem propriedades identifica-se comunidade em nome do dano que no cessam de lhe causar aqueles cuja qualidade ou propriedade tm por efeito natural relan-la na inexistncia daqueles que no tomam "parte em nada". em nome do dano que lhe causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade. Quem no tem parcela os pobres da Antigidade, o terceiro estado ou o proletariado moderno no pode mesmo ter outra parcela a no ser nada ou tudo. Mas tambm mediante a existncia dessa parcela dos sem-parcela, desse nada que tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade poltica, ou seja, enquanto dividida por um litgio fundamental, por um litgio que afeta a contagem de suas partes antes mesmo de afetar seus "direitos". O povo no uma classe entre outras. a classe do dano que causa dano comunidade e a institui como "comunidade" do justo e do injusto. assim que, para grande escndalo das pessoas de bem, o demos, esse amontoado das pessoas de nada, torna-se o povo, a comunidade

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Aristteles, Constituio de Atenas, II.

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Jacques Rancire

poltica dos atenienses livres, a que fala, conta a si mesma e decide na Assemblia, depois do qu os loggrafos escrevem: "Eo^e xcoT|jico": aprouve ao povo, o povo decidiu. Para o inventor de nossa filosofia poltica,* Plato, essa frmula deixa-se facilmente traduzir na equivalncia de dois termos: demos e doxa: aprouve queles que s conhecem essas iluses do mais e do menos chamadas prazer e dor; houve simples doxa, "aparncia" para o povo, aparncia de povo. Povo apenas a aparncia produzida pelas sensaes de prazer e dor manejadas pelos retricos e sofistas para adular ou assustar o grande animal, a massa indistinta das pessoas de nada reunidas na assemblia. Digamos de uma vez: o dio resoluto do antidemocrata Plato enxerga com mais justeza os fundamentos da poltica e da democracia do que os mornos amores desses apologistas cansados que nos garantem que convm amar "racionalmente", quer dizer, "moderadamente", a democracia. Pois ele enxerga o que estes esqueceram: o erro de clculo da democracia, que em ltima instncia apenas o erro de clculo fundador da poltica. H.jgoltica e no simplesmente dominao porque h uma conta malfeita nas ^FtTs^o todo. es$a impossvel equao que a frmula atribuda por Herdoto ao persa Otanes resume: "ev yap xco noXXco vi xa 7tavxa": o todo est no mltiplo 4 . O demos o mltiplo idntico ao todo: o mltiplo como um, a parte como todo. A diferena qualitativa inexistente da liberdade produz essa equao impossvel, que no se deixa compreender na diviso da igualdade aritmtica que governa a compensao dos lucros e das perdas e da igualdade geomtrica que deve associar uma qualidade a uma posio. O povo y assim, sempre mais ou menos do que ele prprio. As pessoas de bem divertem-se ou afligem-se com todas as manifestaes daquilo que para elas fraude e usurpao: o demos a maioria no lugar da assemblia, a assemblia no lugar da comunidade, os pobres em nome da plis, aplausos guisa de acordo, pedras contadas no lugar de uma deciso tomada. Mas todas essas manifes^taes de desigualdade do povo para com ele mesmo so apenas a moeda de troco de um erro de clculo fundamental: essa impossvel igualdade do mltiplo e do todo, produzida pela apropriao da liberdade como o que prprio do povo. Essa impossvel igualdade arruina, em cadeia, toda a deduo das partes e ttulos que constituem a polis.

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Herdoto, Histrias, III, 80, 30.

O Desentendimento

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Ora, dessa simples identidade com aqueles que, por outro lado, lhes so em tudo superiores que eles tiram um ttulo especfico. O demos atribui-se, como sua parcela prpria, a igualdade que pertence a todos os cidados. E, com isso, essa parte que no parte identifica sua propriedade imprpria com o princpio exclusivo da comunidade, e identifica seu nome o nome da massa indistinta dos homens sem qualidade com o nome da prpria comunidade. Isso porque a liberdade que simplesmente a qualidade daqueles que no tm nenhuma outra (nem mrito, nem riqueza) ao mesmo tempo contada como a virtude comum. Ela permite ao demos ou seja, o ajuntamento factual dos homens sem qualidade, desses homens que, como nos diz Aristteles, "no tomavam parte em nada" 3 identificar-se por homonmia com o todo da comunidade. Tal o dano fundamental, o n original do blaberon e do adikon, cuja "manifestao" vem interromper toda deduo do til para o justo: o povo apropria-se da qualidade comum como sua qualidade prpria. O que ele traz comunidade , propriamente, o litgio. Devemos entender isso num duplo sentido: o ttulo que ele traz uma propriedade litigiosa, j que no lhe pertence propriamente. Mas essa propriedade litigiosa no , apenas, a instituio de um comum-litigioso. A massa dos homens sem propriedades identifica-se comunidade em nome do dano que no cessam de lhe causar aqueles cuja qualidade ou propriedade tm por efeito natural relan-la na inexistncia daqueles que no tomam "parte em nada". em nome do dano que lhe causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade. Quem no tem parcela os pobres da Antigidade, o terceiro estado ou o proletariado moderno no pode mesmo ter outra parcela a no ser nada ou tudo. Mas tambm mediante a existncia dessa parcela dos sem-parcela, desse nada que tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade poltica, ou seja, enquanto dividida por um litgio fundamental, por um litgio que afeta a contagem de suas partes antes mesmo de afetar seus "direitos". O povo no uma classe entre outras. a classe do dano que causa dano comunidade e a institui como "comunidade" do justo e do injusto. E assim que, para grande escndalo das pessoas de bem, o demos, esse amontoado das pessoas de nada, torna-se o povo, a comunidade

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Aristteles, Constituio de Atenas, II.

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poltica dos atenienses livres, a que fala, conta a si mesma e decide na Assemblia, depois do qu os loggrafos escrevem: "Eo;XCDr||iCD": aprouve ao povo, o povo decidiu. Para o inventor de nossa filosofia poltica; Plato, essa frmula deixa-se facilmente traduzir na equivalncia de dois termos: demos e doxa: aprouve queles que s conhecem essas iluses do mais e do menos chamadas prazer e dor; houve simples doxa, "aparncia" para o povo, aparncia de povo. Povo apenas a aparncia produzida pelas sensaes de prazer e dor manejadas pelos retricos e sofistas para adular ou assustar o grande animal, a massa indistinta das pessoas de nada reunidas na assemblia. Digamos de uma vez: o dio resoluto do antidemocrata Plato enxerga com mais justeza os fundamentos da poltica e da democracia do que os mornos amores desses apologistas cansados que nos garantem que convm amar "racionalmente", quer dizer, "moderadamente", a democracia. Pois ele enxerga o que estes esqueceram: o erro de clculo da democracia, que em ltima instncia apenas o erro de clculo fundador da poltica. H>jpoltica e no simplesmente dominao porque h uma conta malfeita nas prtTs~cfo>torto. esSa impossvel equao que a frmula atribuda por Hercfoo ao persa Otanes resume: "ev yap xco noXkco evi xa 7iavxa": o todo est no mltiplo4. O demos o mltiplo idntico ao todo: o mltiplo como um, a parte como todo. A diferena qualitativa inexistente da liberdade produz essa equao impossvel, que no se deixa compreender na diviso da igualdade aritmtica que governa a compensao dos lucros e das perdas e da igualdade geomtrica que deve associar uma qualidade a uma posio. O povo y assim, sempre mais ou menos do que ele prprio. As pessoas de bem divertem-se ou afligem-se com tods as manifestaes daquilo que para elas fraude e usurpao: o demos a maioria no lugar da assemblia, a assemblia no lugar da comunidade, os pobres em nome da plis, aplausos guisa de acordo, pedras contadas no lugar de uma deciso tomada. Mas todas essas manifesztaes de desigualdade do povo para com ele mesmo so apenas a moeda de troco de um erro de clculo fundamental: essa impossvel igualdade do mltiplo e do todo, produzida pela apropriao da liberdade como o que prprio do povo. Essa impossvel igualdade arruina, em cadeia, toda a deduo das partes e ttulos que constituem a polis.

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Depois dessa singular propriedade do demos, a propriedade dos aristoi, a virtude, que aparece como o lugar de um estranho equvoco. Quem so exatamente essas pessoas de bem ou de excelncia que trazem a virtude para o bolo comum, assim como o povo traz uma liberdade que no a sua? Se no so o sonho do filsofo, a conta de seu sonho de proporo transformada em parte do todo, poderiam muito bem no passar de outro nome para os oligoi, ou seja, simplesmente, os ricos. O mesmo Aristteles que se esfora, na tica a Nicmaco ou no livro III da Poltica, por dar consistncia s trs partes e aos trs ttulos, no-lo confessa sem mistrio no livro IV, ou ento na Constituio de Atenas: a polis tem, na verdade, apenas duas partes: os ricos e os pobres. "Quase em toda a parte, so os abastados que parecem ocupar o lugar das pessoas de bem" 5 . portanto aos arranjos que distribuem apenas entre essas duas partes, essas partes irredutveis da polis, os poderes ou aparncias de poder, que se deve solicitar a realizao dessa aret comunitria na qual os aristoi vo, sempre, faltar. Ser que disso se deve simplesmente entender que os eruditos clculos da proporo geomtrica no passam de construes ideais, pelas quais a boa vontade filosfica busca originariamente corrigir a realidade primria e incontornvel da luta de classes? A resposta a essa pergunta s pode ser dada em dois tempos. Antes de mais nada preciso enfatizar: foram os antigos, muito mais que os modernos, que reconheceram no princpio da poltica a luta dos pobres e dos ricos. Mas reconheceram exatamente com o risco de querer apag-la sua realidade propriamente poltica. A luta dos ricos e dos pobres no a realidade social com que a poltica deveria contar. Ela se confunde com sua instituio. H poltica quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. No h poltica simplesmente porque os pobres se opem aos ricos. Melhor dizendo, a poltica ou seja, a interrupo dos simples efeitos da dominao dos ricos que faz os pobres existirem enquanto entidade. A pretenso exorbitante do demos a ser o todo da comunidade no faz mais que realizar sua maneira a de um partido a condio da poltica. A poltica existe quando a ordem natural da dominao interrompida pela instituio de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituio o todo da poltica enquanto forma especfica de vnculo. Ela define o comum da comunidade como comu-

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Aristteles, Poltica, IV, 1294 a 17-19.

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nidade poltica, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa aritmtica das trocas e das reparaes. Fora dessa instituio, no h poltica. H apenas ordem da dominao ou desordem da revolta. essa pura alternativa que um relato de Herdoto em forma de aplogo nos apresenta. Esse relato-aplogo exemplar dedicado revolta dos escravos dos citas. Os citas, diz ele, tm o hbito de vazar os olhos daqueles a quem escravizam, para melhor submet-los sua tarefa servil, que ordenhar o gado. Essa ordem normal das coisas viu-se perturbada por suas grandes expedies. Para conquistar o pas dos medos, os guerreiros citas embrenharam-se na sia e l ficaram retidos o prazo de uma gerao. Enquanto isso, nascera uma gerao de filhos de escravos, que cresceu com os olhos abertos. De seu olhar para o mundo, haviam concludo que no tinham razes particulares para ser escravos, j que haviam nascido da mesma maneira que seus senhores distantes e com os mesmos atributos. Confirmados, pelas mulheres que ficaram em casa, nessa identidade de natureza, eles decidiram que, at prova em contrrio, eram iguais aos guerreiros. Em conseqncia, cercaram o territrio com um grande fosso e armaram-se para esperar de p firme a volta dos conquistadores. Quando estes retornaram, pensaram que facilmente esmagariam, com suas lanas e arcos, essa revolta de vaqueiros. Mas o ataque foi um fracasso. Foi ento que um guerreiro de bom conselho avaliou a situao e assim a exps a seus irmos de armas: Sugiro que deixemos aqui nossas lanas e nossos arcos e que os enfrentemos empunhando os chicotes com que fustigamos nossos cavalos. At agora, eles viam-nos com armas e imaginavam que eram nossos iguais e de igual bero. Mas, quando nos virem com chicotes em vez de armas, sabero que so nossos escravos e, compreendendo isso, cedero. 6 Assim foi feito, e com pleno xito: surpreendidos por esse espetculo, os escravos fugiram sem lutar. O relato de Herdoto nos ajuda a compreender como o paradigma da "guerra servil" e do "escravo revoltado" pde servir de negativo a toda manifestao da luta dos "pobres" contra os "ricos".

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Herdoto, Histrias, III,80,30.

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O paradigma da guerra servil o de uma realizao puramente guerreira da igualdade dos dominados com os dominantes. Os escravos dos citas constituem como acampamento militar o territrio de sua antiga servido e opem armas a armas. Essa demonstrao igualitria comea por desconcertar aqueles que se consideravam seus senhores naturais. Mas, quando estes voltam a exibir as insgnias da diferena de natureza, os revoltados ficam sem resposta. O que no podem fazer transformar a igualdade guerreira em liberdade poltica. Essa igualdade, literalmente marcada no territrio e defendida pelas armas, no cria uma comunidade dividida. No se transforma na propriedade imprpria dessa liberdade que institui o demos ao mesmo tempo como parte e como todo da comunidade. Ora, s h poltica mediante a interrupo, mediante a toro primria que institui a poltica como o desdobramento de um dano ou de um litgio fundamental. Essa toro o dano, o blaberon fundamental encontrado pelo pensamento filosfico da comunidade. Blaberon significa "o que detm a corrente", diz uma das etimologias fantasiosas do Cr atilo7. Ora, acontece mais de uma vez que essas etimologias fantasiosas acertem num n de pensamento essencial. Blaberon significa a corrente interrompida, a toro primeira que bloqueia a lgica natural das "propriedades". Essa interrupo obriga a pensar a proporo, a analogia do corpo comunitrio. Mas tambm arruina, por antecedncia, o sonho dessa proporo! Isso porque o dano no simplesmente a luta de classes, a dissenso interna a ser corrigida dando-se polis seu princpio de unidade, fundando-se a plis sobre a arkh da comunidade. a prpria impossibilidade da arkh. As coisas seriam simples demais se houvesse apenas a infelicidade da luta que ope os ricos e os pobres. A soluo do problema foi encontrada cedo. Basta suprimir a causa da dissenso, quer dizer, a desigualdade das riquezas, dando-se a cada um uma parcela de terra igual. O mal mais profundo. Da mesma forma que o povo no realmente o povo mas os pobres, os prprios pobres no so verdadeiramente os pobres. So apenas o reino da ausncia de qualidade, a efetividade da disjuno primeira que porta o nome vazio de liberdade, a propriedade imprpria, o ttulo do litgio. So eles mesmos por antecipao a unio torcida do prprio que no realmente

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Plato, Crtilo, 417 d/e.

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prprio e do comum que no realmente comum. So simplesmente o dano ou a toro constitutivos da poltica como tal. O partido dos pobres no encarna nada mais que a prpria poltica como instituio de uma parcela dos sem-parcela. Simetricamente, o partido dos ricos no encarna nada mais que o antipoltico. Da Atenas do sculo V antes de Jesus Cristo at os governos de hoje em dia> o partido dos ricos sempre ter dito uma nica coisa que muito exatamente a negao da poltica: no h parcela dos sem-parcela. Essa proposio fundamental pode, claro, modular-se de forma diferente de acordo com o que chamamos a evoluo dos costumes e das mentalidades. Na franqueza antiga que ainda subsiste nos "liberais" do sculo XIX, ela se exprime assim: h apenas chefes e subordinados, pessoas de bem e pessoas de nada, elites e multides, peritos e ignorantes. Nos eufemismos contemporneos, a proposta enuncia-se de maneira diferente: h apenas partes da sociedade: maiorias e minorias sociais, categorias scio-profissionais, grupos de interesses, comunidades etc. H apenas partes, das quais devemos fazer parceiros. Mas, tanto nas formas policiadas da sociedade contratual e do governo de concertao, como nas formas brutais da afirmao igualitria, a proposta fundamental permanece a mesma: no h parcela dos semparcela. S h as parcelas das partes. Em outras palavras: no h poltica ou no deveria haver. A guerra dos pobres e dos ricos assim a guerra sobre a prpria existncia da poltica. O litgio em torno da contagem dos pobres como povo, e do povo como comunidade, o litgio em torno da existncia da poltica, devido ao qual h poltica. A poltica a esfera de atividade de um comum que s pode ser litigioso, a relao entre as partes que no passam de partidos e ttulos cuja soma sempre diferente do todo. esse o escndalo primordial da poltica, que a factualidade democrtica pede filosofia que considere. O projeto nuclear da filosofia, tal como se resume em Plato, consiste em substituir a ordem aritmtica, a ordem do mais e do menos que regula a troca dos bens perecveis e dos males humanos, pela ordem divina da proporo geomtrica que regula o verdadeiro bem, o bem comum que virtualmente a vantagem de cada um, sem ser a desvantagem de ningum. Uma cincia, a cincia matemtica, fornece o modelo disso, o modelo de uma ordem do nmero cujo prprio rigor provm do fato de escapar medida comum. O caminho do bem passa pela substituio da aritmtica dos comerciantes e dos trapaceiros por uma mate11

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mtica dos incomensurveis. O problema que h pelo menos um campo em que a simples ordem do mais e do menos foi suspensa, sendo substituda por uma ordem, por uma proporo especfica. Esse campo se chama poltica. A poltica existe devido a uma grandeza que escapa medida ordinria, essa parcela dos sem-parcela que nada e tudo. Essa grandeza paradoxal j bloqueou a "corrente" das grandezas mercantis, suspendeu os efeitos da aritmtica no corpo social. A filosofia quer substituir na plis e na alma, como na cincia das superfcies, dos volumes e dos astros, a igualdade aritmtica pela igualdade geomtrica. Ora, o que a liberdade vazia dos atenienses lhe apresenta o efeito de uma igualdade diferente, que suspende a aritmtica simples sem fundamentar nenhuma geometria. Essa igualdade simplesmente a igualdade de qualquer um com qualquer um, quer dizer, em ltima instncia, a ausncia de arkh, a pura contingncia de toda ordem social. O autor do Grgias emprega toda sua raiva em provar que tal igualdade nada mais que a igualdade aritmtica dos oligarcas, quer dizer, a desigualdade do desejo, o apetite desmedido que faz girar as almas vulgares no crculo do prazer que o sofrimento acompanha indefinidamente e os regimes no crculo infernal da oligarquia, da democracia e da tirania. A "igualdade" que os chefes do partido popular deram ao povo de Atenas para ele apenas a fome nunca saciada do cada vez mais: cada vez mais portos e navios, mercadorias e colnias, arsenais e fortificaes. Mas ele sabe muito bem que o mal mais profundo. O mal no essa fome insacivel de navios e de fortificaes. que, na Assemblia do povo, qualquer sapateiro ou ferreiro possa levantar-se para dar sua opinio sobre a maneira de conduzir esses navios ou de construir essas fortificaes e, mais ainda, sobre a maneira justa ou injusta de us-los para o bem comum. O mal no o cada vez mais mas o qualquer um, a brutal revelao da anarquia ltima sobre que repousa toda hierarquia. O debate sobre a natureza ou a conveno, que ope Scrates a Protgoras ou a Clicles, ainda uma maneira tranqilizadora de apresentar o escndalo. Pois o fundamento da poltica, se no natureza, no tampouco conveno: ausncia de fundamento, a pura contingncia de toda ordem social. H poltica simplesmente porque nenhuma ordem social est fundada na natureza, porque nenhuma lei divina ordena as sociedades humanas. Tal a lio que o prprio Plato d no grande mito do Poltico. intil querer buscar modelos na era de Cronos e nos sonhos nscios dos reis pastores. Entre a era de12

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Cronos e ns, a inciso do dano j est sempre passada. Quando se decide basear em seu princpio a proporo da plis, que a democracia j passou por a. Nosso mundo gira "em sentido contrrio" e quem quiser curar a poltica de seus males ter apenas uma soluo: a mentira que inventa uma natureza social para dar comunidade uma arkh. Existe poltica porque quando a ordem natural dos reis pastores, dos senhores de guerra ou das pessoas de posse interrompida por uma liberdade que vem atualizar a igualdade ltima na qual assenta toda ordem social. Antes do logos que discute sobre o til e o nocivo, h o logos que ordena e confere o direito de ordenar. Mas esse logos primeiro j est mordido por uma contradio primeira. H ordem na sociedade porque uns mandam e os outros obedecem. Mas, para obedecer a uma ordem, so necessrias pelo menos duas coisas: deve-se compreender a ordem e deve-se compreender que preciso obedecer-lhe. E, para fazer isso, preciso voc j ser o igual daquele que manda. E essa igualdade que corri toda ordem natural. Sem dvida, os inferiores obedecem na quase totalidade dos casos. Resta que por a a ordem social remetida sua contingncia ltima. A desigualdade s , em ltima instncia, possvel pela igualdade. Existe poltica quando pela lgica supostamente natural da dominao perpassa o efeito dessa igualdade. Isso quer dizer que no existe sempre poltica. Ela acontece, alis, muito pouco e raramente. O que comumente se atribui histria poltica ou cincia do poltico na verdade depende, com freqncia muito maior, de outras maquinarias, que por sua vez provm do exerccio da majestade, do vicariato da divindade, do comando dos exrcitos ou da gesto dos interesses. S existe poltica quando essas maquinarias so interrompidas pelo efeito de uma pressuposio que lhes totalmente estranha e sem a qual no entanto, em ltima instncia, nenhuma delas poderia funcionar: a pressuposio da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa, ou seja, em definitivo, a paradoxal efetividade da pura contingncia de toda ordem. Esse segredo ltimo da poltica ser enunciado por um "moderno", Hobbes, com o inconveniente de t-lo rebatizado, para as necessidades de sua causa, de guerra de todos contra todos. Os "clssicos", eles, determinam com muita preciso essa igualdade, ao mesmo tempo em que se esquivam de seu enunciado. que a liberdade deles se define em relao a um contrrio muito especfico, que a escravatu-

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ra. E o escravo , muito precisamente, aquele que tem a capacidade de compreender um logos sem ter a capacidade do logos. essa transio especfica entre a animalidade e a humanidade que Aristteles define com exatido: "o KOIVCV Xoyou TOCOUZOV oaov aiaOavecrOca aXXa /J,ri %iv": o escravo aquele que participa da comunidade da linguagem apenas sob a forma da compreenso (aisthesis), no da posse (hexis)8. A naturalidade contingente da liberdade do homem do povo e a naturalidade da escravido podem ento se dividir, sem remeter contingncia final da igualdade. Isso quer dizer, tambm, que essa igualdade pode ser colocada como no tendo conseqncias sobre algo como a poltica. a demonstrao que Plato j havia>ealizado ao fazer o escravo de Mnon descobrir a regra da duplicao do quadrado. O fato de o pequeno escravo chegar to bem quanto Scrates a essa operao que separa a ordem geomtrica da ordem aritmtica, que ele participe pois da mesma inteligncia, no estabelece em seu favor nenhuma forma de incluso comunitria. Os "clssicos" cercam pois a igualdade primria do logos sem nome-la. O que definem, em contrapartida, de uma maneira que permanecer incompreensvel aos pensadores modernos do contrato e do estado de natureza, a toro que esse princpio, que no um princpio, produz quando se efetua como "liberdade" das pessoas de nada. Existe poltica quando a contingncia igualitria interrompe como "liberdade" do povo a ordem natural das dominaes, quando essa interrupo produz um dispositivo especfico: uma diviso da sociedade em partes que no so "verdadeiras" partes; a instituio de uma parte que se iguala ao todo em nome de uma "propriedade" que no lhe absolutamente prpria, e de um "comum" que a comunidade de um litgio. Tal em definitivo o dano que, passando entre o til e o justo, probe qualquer deduo de um para o outro. A instituio da poltica idntica instituio da luta de classes. A luta de classes no o motor secreto da poltica ou a verdade escondida por trs de suas aparncias. Ela a prpria poltica, a poltica tal como a encontram, sempre j estabelecida, os que querem fundar a comunidade com base em sua arkh. No se deve entender com isso que a poltica exista porque grupos sociais entram em luta por seus interesses divergentes. A toro pela qual existe poltica tambm a que institui as clas-

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Aristteles, Poltica, I, 1254 b 22.

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ses como diferentes de si mesmas. O proletariado no uma classe mas a dissoluo de todas as classes, e nisso consiste sua universalidade, dir Marx. Devemos dar a esse enunciado o seu pleno carter genrico. A poltica a instituio do litgio entre classes que no so verdadeiramente classes. Classes "verdadeiras", isso quer dizer quereria dizer partes reais da sociedade, categorias que correspondem a suas funes. Ora, vale para o demos ateniense, que se identifica comunidade inteira, o mesmo que vale para o proletariado marxista, que confessa ser exceo radical comunidade. Um e outro unem em nome de uma parte da sociedade o puro ttulo da igualdade de qualquer um a qualquer um, atravs do qual todas as classes se disj ungem e a poltica existe. A universalidade da poltica a de uma diferena a si de cada parte e a do diferendo como comunidade. O dano que institui a poltica no primeiramente a dissenso das classes, a diferena a si de cada uma que impe prpria diviso do corpo social a lei da mistura, a lei do qualquer um fazendo qualquer coisa. Plato tem para isso uma palavra: polypragmosyn, o fato de fazer "muito", de fazer "demais", de fazer qualquer coisa. Se o Grgias a interminvel demonstrao de que a igualdade democrtica no passa de desigualdade tirnica, a organizao da Repblica , por sua vez, uma caa interminvel a essa polypragmosyn, a essa confuso das atividades que destruiria toda repartio ordenada das funes da polis e faria passarem as classes umas pelas outras. O livro IV da Repblica, no momento de definir a justia a verdadeira justia, a que exclui o dano , nos adverte solenemente: essa confuso "causaria polis o maior dano e com razo que passaria por ser crime maior." 9 A poltica comea por um dano maior: a suspenso posta pela liberdade vazia do povo entre a ordem aritmtica e a ordem geomtrica. No a utilidade comum que pode basear a comunidade poltica, como tambm no o enfrentamento e a composio dos interesses. O dano pelo qual existe poltica no nenhum erro pedindo reparao. E a introduo de um incomensurvel no seio da distribuio dos corpos falantes. Esse incomensurvel no rompe somente a igualdade dos lucros e das perdas. Ele arruina tambm por antecipao o projeto da polis ordenada segundo a proporo do cosmos, baseada na arkb da comunidade.

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Plato, Repblica, IV, 433 c.

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O DANO: POLTICA E POLCIA

A bela deduo que vai das propriedades do animal lgico para os fins do animal poltico esconde ento uma falha. Entre o til e o justo, h o incomensurvel do dano que sozinho institui a comunidade poltica como antagonismo de partes da comunidade que no so verdadeiras partes do corpo social. Mas, por sua vez, a falsa continuidade do til ao justo vem denunciar a falsa evidncia da oposio to incisiva que separa os homens dotados de logos dos animais limitados unicamente ao instrumento da voz (phon). A voz, diz Aristteles, um instrumento destinado a um fim limitado. Serve aos animais em geral para indicar (semainein) a sensao que tm de dor e agrado. Agrado e dor situam-se aqum da diviso que reserva aos humanos e comunidade poltica o sentimento do proveitoso e do nocivo, logo a comunho do justo e do injusto. Mas, dividindo to claramente as funes comuns da voz e os privilgios da palavra, pode Aristteles esquecer o furor das acusaes lanadas por seu mestre Plato contra o "gordo animal" popular? O livro VI da Repblica se compraz em nos mostrar esse gordo animal respondendo s palavras que o adulam com o tumulto de suas aclamaes, e s que o irritam com o alarido de sua reprovao. Eis por que a "cincia" daqueles que se apresentam sua volta consiste s em conhecer os efeitos de voz que fazem o gordo animal grunhir e os que o deixam calmo e dcil. Assim como o demos usurpa o ttulo da comunidade, a democracia o regime o modo de vida em que a voz que no apenas exprime mas tambm proporciona os sentimentos ilusrios do prazer e do sofrimento usurpa os privilgios do logos que faz reconhecer o justo e ordena sua realizao na proporo comunitria. A metfora do gordo animal no uma simples metfora. Ela serve rigorosamente para prostrar na animalidade esses seres falantes sem qualidade que introduzem a perturbao no logos e em sua realizao poltica como analogia das partes da comunidade. A simples oposio entre os animais lgicos e os animais fnicos no pois, de forma alguma, o dado sobre o qual se funda a poltica. Ela , ao contrrio, uma aposta do jogo do prprio litgio que institui11

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a poltica. No mago da poltica, h um duplo dano, um conflito fundamental e nunca considerado como tal em torno da relao entre a capacidade do ser falante sem propriedade e a capacidade poltica. Para Plato, a multiplicidade dos seres falantes annimos chamada povo prejudica toda distribuio ordenada dos corpos em comunidade. Mas inversamente "povo" o nome, a forma de subjetivao, desse dano imemorial e sempre atual pelo qual a ordem social se simboliza rejeitando a maioria dos seres falantes para a noite do silncio ou o barulho animal das vozes que exprimem satisfao ou sofrimento. Isso porque, antes das dvidas que colocam as pessoas de nada na dependncia dos oligarcas, h a distribuio simblica dos corpos, que as divide em duas categorias: aqueles a quem se v e a quem no se v, os de quem h um logos uma palavra memorial, uma contagem a manter , e aqueles acerca dos quais no h /ogos, os que falam realmente e aqueles cuja voz, para exprimir prazer e dor, apenas imita a voz articulada. H poltica porque o logos nunca apenas a palavra, porque ele sempre indissoluvelmente a contagem que feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emisso sonora ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto uma outra apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta. o que conta um pensador francs do sculo XIX ao reescrever o relato feito por Tito Lvio da secesso dos plebeus romanos no Aventino. Em 1829, Pierre-Simon Ballanche publica na Revue de Paris uma srie de artigos sob o ttulo de "Frmula geral da histria de todos os povos aplicada histria do povo romano". sua maneira, Ballanche estabelece um vnculo entre a poltica dos "clssicos" e a dos "modernos". O relato de Tito Lvio encadeava o fim da guerra contra os volscos, a retirada da plebe para o Aventino, a embaixada de Mennio Agripa, a fbula que o celebrizou e a volta dos plebeus ordem. Ballanche censura ao historiador latino sua incapacidade de pensar o acontecimento a no ser como revolta, um levante da misria e da clera que institui uma relao de foras privada de sentido. Tito Lvio incapaz de conferir sentido ao conflito porque incapaz de situar a fbula de Mennio Agripa no seu verdadeiro contexto: o de uma querela sobre a questo da prpria palavra. Centralizando seu relato-aplogo nas discusses dos senadores e nos atos de palavra dos plebeus, Ballanche efetua uma reencenao do conflito na qual toda a questo consiste em saber se existe um palco comum onde plebeus e patrcios possam debater sobre alguma coisa.12

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A posio dos patrcios intransigentes simples: no h por que discutir com os plebeus, pela simples razo de que estes no falam. E no falam porque so seres sem nome, privados de /ogos, quer dizer de inscrio simblica na plis. Vivem uma vida puramente individual, que no transmite nada, a no ser a prpria vida, reduzida a sua faculdade reprodutiva. Aquele que no tem nome no pode falar. Um erro fatal faz o deputado Mennio imaginar que da boca dos plebeus sassem palavras, quando logicamente s poderia sair rudo. Possuem a palavra como ns, ousaram eles dizer a Mennio! Foi um deus quem fechou a boca de Mennio, quem ofuscou seu olhar, quem fez zumbir seus ouvidos? Ser que foi tomado de uma vertigem sagrada? [...] ele no soube responder-lhes que tinham uma palavra transitria, uma palavra que um som fugidio, espcie de mugido, sinal da necessidade e no da manifestao da inteligncia. So privados da palavra eterna que estava no passado, que estar no futuro.1 O discurso que Ballanche atribui a pio Cludio apresenta perfeitamente o argumento da querela. Entre a linguagem daqueles que tm um nome e o mugido dos seres sem nome, no h situao de troca lingstica que possa ser constituda, no h regras ou cdigo para a discusso. Esse veredito no reflete apenas a obstinao dos dominantes ou sua cegueira ideolgica. Exprime estritamente a ordem do sensvel que organiza sua dominao, que essa prpria dominao. Antes de ser um traidor da sua classe, o deputado Mennio, que pensa ter ouvido os plebeus falarem, vtima de uma iluso dos sentidos. A ordem que estrutura a dominao dos patrcios no conhece logos que possa ser articulado por seres privados de logos, nem palavra que possa ser proferida por seres sem nome, por seres dos quais no h contagem. Diante de tal situao, o que fazem os plebeus reunidos no Aventino? No armam trincheiras, a exemplo dos escravos dos citas. Fazem o que para estes era impensvel: instituem uma outra ordem, uma

Ballanche, "Formule gnrale de tous les peuples applique 1'histoire du peuple romain", Revue de Paris, setembro de 1830, p. 94.1

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outra diviso do sensvel, constituindo-se no como guerreiros iguais a outros guerreiros, mas como seres falantes repartindo as mesmas propriedades daqueles que as negam a eles. Executam assim uma srie de atos de palavra que mimetizam os dos patrcios: proferem imprecaes e celebram apoteoses; delegam um dos seus para ir consultar seus orculos; outorgam-se representantes rebatizando-os. Em suma, comportam-se como seres que tm nomes. Descobrem-se, ao modo da transgresso, como seres falantes, dotados de uma palavra que no exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligncia. Escrevem, diz Ballanche, "um nome no cu": um lugar numa ordem simblica da comunidade dos seres falantes, numa comunidade que ainda no tem efetividade na civitas romana. O relato nos apresenta essas duas cenas e nos mostra, entre as duas, observadores e emissrios que circulam num nico sentido, claro: so patrcios atpicos que vm ver e ouvir o que se passa nessa cena, inexistente por direito. E observam este fenmeno incrvel: os plebeus transgrediram, pelo fato, a ordem da cidade. Deram-se nomes. Executaram uma srie de atos de palavra que ligam a vida de seus corpos a palavras e a usos das palavras. Em suma, na linguagem de Ballanche, de "mortais" que eram, tornaram-se "homens", quer dizer, seres que empenham em palavras um destino coletivo. Tornaram-se seres passveis de firmar promessas e de estabelecer contratos. A conseqncia disso que, quando Mennio Agripa conta seu aplogo, escutam-no educadamente e agradecem, mas para pedir-lhe, depois, um tratado. Ele protesta, dizendo que isso logicamente impossvel. Infelizmente, diz Ballanche, seu aplogo tinha, num nico dia, "envelhecido de um ciclo". A coisa simples de formular: se os plebeus podiam compreender seu aplogo o aplogo da necessria desigualdade entre o princpio vital patrcio e os membros executantes da plebe , que j eram, necessariamente, iguais. O aplogo quer dar a compreender uma diviso desigualitria do sensvel. Ora, o senso necessrio para compreender essa diviso pressupe uma diviso igualitria que destri a primeira. Mas somente o desenvolvimento de uma cena de manifestao especfica confere, a essa igualdade, efetividade. Somente esse dispositivo mede a distancia do logos a si mesmo e faz efeito dessa medida, organizando um outro espao sensvel em que se verifica que os plebeus falam como os patrcios e que a dominao destes no tem outro fundamento que .1 pura contingncia de toda ordem social.

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O Senado romano, no relato de Ballanche, animado por um Conselho secreto de velhos sbios. Estes sabem que, quando acaba um ciclo, quer isso nos agrade, quer no, ele est acabado. E concluem que, j que os plebeus se tornaram seres de palavra, nada mais h a fazer, a no ser falar com eles. Essa concluso est em conformidade com a filosofia que Ballanche retoma de Vico: a passagem de uma era da palavra a outra no uma revolta que se possa reprimir, uma revelao progressiva, cujos sinais se reconhecem e contra a qual no se luta. Mas o que nos importa aqui, mais do que essa filosofia determinada, a maneira como o aplogo situa a relao entre o privilgio do logos e o jogo do litgio que institui a cena poltica. Antes de qualquer medida dos interesses e dos ttulos de tal ou qual parte, o litgio refere-se existncia das partes como partes, a existncia de uma relao que as constitui como tais. E o duplo sentido do logos, como palavra e como contagem, o lugar onde se trava o conflito. O aplogo do Aventino permite-nos reformular o enunciado aristotlico sobre a funo poltica do logos humano e sobre a significao do dano que ele manifesta. A palavra por meio da qual existe poltica a que mede o afastamento mesmo da palavra e de sua contagem. E a aisthesis que se manifesta nessa palavra a prpria querela em torno da constituio da aisthesis, sobre a diviso do sensvel pela qual corpos se encontram em comunidade. Vamos entender aqui diviso * no duplo sentido da palavra: comunidade e separao. a relao de ambas que define uma diviso do sensvel. E essa relao que est em jogo no "duplo sentido" do aplogo: o que ele faz entender e o que necessrio para entend-lo. Saber se os plebeus falam saber se existe algo "entre" as partes. Para os patrcios, no h cena poltica j que no h partes. No h partes j que os plebeus, no tendo /ogos, no so. "A desgraa de vocs no serem", diz um patrcio aos plebeus, "e essa desgraa inelutvel."2 esse o ponto decisivo que se v obscuramente designado na definio aristotlica ou na polmica platnica, mas claramente ocultado, em contrapartida, por todas as concepes cambistas, contratuais ou comunicacionais da comunidade poltica. A poltica primeiramente o conflito em torno da existncia de uma cena comum, em torno da existncia e a qualidade daqueles que esto ali* Em francs, partage, que tem as duas conotaes apontadas acima. (N. do revisor tcnico)2

Ballanche, op. cit., p. 75. 11

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presentes. preciso antes de mais nada estabelecer que a cena existe para o uso de um interlocutor que no a v e que no tem razes para v-la j que ela no existe. As partes no preexistem ao conflito, que elas nomeiam e no qual so contadas como partes. A "discusso" do dano no uma troca sequer violenta entre parceiros constitudos. Ela diz respeito prpria situao de palavra e a seus atores. No h poltica porque os homens, pelo privilgio da palavra, pem seus interesses em comum. Existe poltica porque aqueles que no tm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais que o prprio enfrentamento, a contradio de dois mundos alojados num s: o mundo em que esto e aquele em que no esto, o mundo onde h algo "entre" eles e aqueles que no os conhecem como seres falantes e contveis e o mundo onde no h nada. A facticidade da liberdade ateniense e o extraordinrio da secesso plebia encenam, assim, um conflito fundamental, que ao mesmo tempo marcado e abortado pela guerra servil da Ctia. O conflito separa dois modos do estar-junto humano, dois tipos de diviso do sensvel, opostos em seu princpio e no entanto entrelaados um no outro nas contagens impossveis da proporo, assim como nas violncias do conflito. H o modo de estar-junto que situa os corpos em seu lugar e nas suas funes segundo suas "propriedades", segundo seu nome ou sua ausncia de nome, o carter "lgico" ou "fnico" dos sons que saem de sua boca. O princpio desse estar-junto simples: d a cada um a parcela que lhe cabe segundo a evidncia do que ele . As maneiras de ser, as maneiras de fazer e as maneiras de dizer ou de no dizer a remetem exatamente umas s outras. Os citas, ao furar os olhos daqueles que tm de executar com as mos a tarefa que lhes mandada, do o exemplo selvagem disso. Os patrcios, que no podem ouvir a palavra daqueles que no podem t-la, fornecem a sua frmula clssica. Os "polticos" da comunicao e da sondagem que, a cada instante, do a cada um de ns o espetculo inteiro de um mundo que se tornou indiferente e a contagem exata daquilo que cada classe de idade e cada categoria scio-profissional pensam do "futuro poltico" de tal ou qual ministro poderiam ser considerados uma frmula moderna exemplar disso. H portanto, de um lado, essa lgica que conta as parcelas unicamente das partes, que distribui os corpos no espao de sua visibilidade ou de sua invisibilidade e pe em concordncia os modos do ser, os modos do fazer e os modos do dizer que convm a cada12

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um. E h a outra lgica, aquela que suspende essa harmonia pelo simples fato de atualizar a contingncia da igualdade, nem aritmtica nem geomtrica, dos seres falantes quaisquer. No conflito primrio que pe em litgio a deduo entre a capacidade do ser falante qualquer e a comunidade do justo e do injusto, deve-se ento reconhecer duas lgicas do estar-junto humano que geralmente se confundem sob o nome de poltica, quando a atividade poltica nada mais que a atividade que as divide. Chamamos geralmente pelo nome de poltica o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregao e o consentimento das coletividades, a organizao dos poderes, a distribuio dos lugares e funes e os sistemas de legitimao dessa distribuio. Proponho dar outro nome a essa distribuio e ao sistema dessas legitimaes. Proponho cham-la de polcia. Sem dvida, essa designao coloca alguns problemas. A palavra polcia evoca comumente o que chamamos baixa polcia, os golpes de cassetete das foras da ordem e as inquisies das polcias secretas. Mas essa identificao restritiva pode ser considerada contingente. Michel Foucault mostrou que, como tcnica de governo, a polcia definida pelos autores do sculo XVII e XVIII estendia-se a tudo o que diz respeito ao "homem" e sua "felicidade" 3 . A baixa polcia apenas uma forma particular de uma ordem mais geral que dispe o sensvel, na qual os corpos so distribudos em comunidade. E a fraqueza e no a fora dessa ordem que incha em certos estados a baixa polcia, at encarreg-la do conjunto das funes de polcia. Prova disso, a contrario, a evoluo das sociedades ocidentais que faz do policial um elemento de um dispositivo social, em que se entrelaam o mdico, o assistencial e o cultural. O policial est fadado nesse contexto a tornar-se conselheiro e animador tanto quanto agente da ordem pblica e sem dvida at o seu nome ser trocado um dia, nesse processo de eufemizao pelo qual nossas sociedades revalorizam, ao menos em imagem, todas as funes tradicionalmente desprezadas. Utilizarei portanto a partir de agora a palavra polcia e o adjetivo policial num sentido amplo, que tambm um sentido "neutro", no pejorativo. Nem por isso estou identificando a polcia quilo que designado pelo nome de "aparelho de Estado". A noo de aparelho de

Michel Foucault, "Omnes et singulatim: vers une critique de la raison politique", Dits et crits, t. IV, pp. 134-161.3

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Estado encontra-se de fato ligada pressuposio de que Estado e sociedade se opem, sendo o primeiro figurado como a mquina, o "monstro frio" que impe a rigidez de sua ordem vida da segunda. Ora essa figurao j pressupe uma certa "filosofia poltica", isto , uma certa confuso da poltica e da polcia. A distribuio dos lugares e funes que define uma ordem policial depende tanto da suposta espontaneidade das relaes sociais quanto da rigidez das funes de Estado. A polcia , na sua essncia, a lei, geralmente implcita, que define a parcela ou a ausncia de parcela das partes. Mas, para definir isso, preciso antes definir a configurao do sensvel na qual se inscrevem umas e outras. A polcia assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divises entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; uma ordem do visvel e do dizvel que faz com que essa atividade seja visvel e outra no o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como rudo. , por exemplo, uma lei de polcia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espao privado no regido pelos modos do ver e dizer prprios do que se chama o espao pblico, onde o ter parcela do trabalhador estritamente definido pela remunerao de seu trabalho. A polcia no tanto uma "disciplinarizao" dos corpos quanto uma regra de seu aparecer, uma configurao das ocupaes e das propriedades dos espaos em que essas ocupaes so distribudas. Proponho agora reservar o nome de poltica a uma atividade bem determinada e antagnica primeira: a que rompe a configurao sensvel na qual se definem as parcelas e as partes ou sua ausncia a partir de um pressuposto que por definio no tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa ruptura se manifesta por uma srie de atos que reconfiguram o espao onde as partes, as parcelas e as ausncias de parcelas se definiam. A atividade poltica a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinao de um lugar; ela faz ver o que no cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde s tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que s era ouvido como barulho. Pode ser a atividade dos plebeus de Ballanche que fazem uso de uma palavra que "no tm". Pode ser a desses operrios do sculo X I X que colocam em razes coletivas relaes de trabalho que s dependem de uma infinidade de relaes individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como "espao pblico" as vias de comunicao

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urbanas. Espetacular ou no, a atividade poltica sempre um modo de manifestao que desfaz as divises sensveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposio que lhe heterognea por princpio, a de uma parcela dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em ltima instncia, a pura contingncia da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe poltica quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogneos. O primeiro o processo policial no sentido que o tentamos definir. O segundo o processo da igualdade. Entendamos provisoriamente sob esse termo o conjunto aberto das prticas guiadas pela suposio da igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante e pela preocupao de averiguar essa igualdade. A formulao dessa oposio exige algumas precises e acarreta alguns corolrios. Antes de tudo, no faremos da ordem policial assim definida a noite onde tudo se eqivale. A prtica dos citas de furar os olhos de seus escravos e a das estratgias modernas da informao e da comunicao que, ao contrrio, abrem infinitamente os olhos, prendem-se ambas polcia. No tiraremos de forma alguma a concluso niilista de que uma e outra se eqivalem. Nossa situao em tudo melhor que a dos escravos dos citas. H a polcia menos boa e a melhor no sendo a melhor, alis, a que segue a ordem supostamente natural das sociedades ou a cincia dos legisladores, mas a que os arrombamentos da lgica igualitria vieram na maioria das vezes afastar de sua lgica "natural". A polcia pode proporcionar todos os tipos de bens, e uma polcia pode ser infinitamente prefervel a uma outra. Isso no muda sua natureza, que a nica coisa aqui que est em questo. O regime da opinio sondada e da exibio permanente do real hoje a forma comum da polcia nas sociedades ocidentais. A polcia pode ser doce e amvel. Continua sendo, mesmo assim, o contrrio da poltica, e convm circunscrever o que cabe a cada uma delas. assim que muitas questes tradicionalmente repertoriadas como questes sobre as relaes da moral e da poltica s tratam, a rigor, das relaes da moral e da polcia. Saber, por exemplo, se todos os meios so bons para assegurar a tranqilidade da populao e a segurana do Estado uma questo que no depende do pensamento poltico o que no significa que no possa fornecer o lugar de uma interveno transversal da poltica. assim tambm que a maior parte das medidas que nossos clubes e laboratrios de "reflexo poltica" imaginam para mudar ou renovar a poltica aproximando o cida11

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do do Estado ou o Estado do cidado oferece, na verdade, poltica sua mais simples alternativa: a da simples polcia. Pois uma figurao da comunidade prpria polcia aquela que identifica a cidadania como propriedade dos indivduos passvel de se definir numa relao de maior ou menor proximidade entre o seu lugar e o do poder pblico. Quanto poltica, ela no conhece relao entre os cidados e o Estado. Ela conhece apenas dispositivos e manifestaes singulares pelos quais s vezes h uma cidadania que nunca pertence aos indivduos como tais. No se deve esquecer tambm que, se a poltica emprega uma lgica totalmente heterognea da polcia, est sempre amarrada a ela. A razo disso simples. A poltica no tem objetos ou questes que lhe sejam prprios. Seu nico princpio, a igualdade, no lhe prprio e no tem nada de poltico em si mesmo. Tudo o que ela faz dar-lhe uma atualidade sob a forma de caso, inscrever, sob a forma de litgio, a averifiguao da igualdade no seio da ordem policial. O que constitui o carter poltico de uma ao no seu objeto ou o lugar onde exercida mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguao da igualdade na instituio de um litgio, de uma comunidade que existe apenas pela diviso. A poltica encontra em toda parte a polcia. Ainda se deve pensar esse encontro como encontro dos heterogneos. Deve-se para isso renunciar ao benefcio de alguns conceitos que asseguram por antecipao a passagem entre os dois campos. O conceito de poder o primeiro desses conceitos. Foi ele que permitiu, outrora, que uma certa boa vontade militante assegurasse que "tudo poltico", j que por toda parte h relaes de poder. A partir disso podem separar-se a viso sombria de um poder presente em toda parte e a todo instante, a viso herica da poltica como resistncia ou a viso ldica dos espaos de afirmao criados por aqueles e aquelas que viram as costas poltica e a seus jogos de poder. O conceito de poder permite concluir de um "tudo policial" um "tudo poltico". Ora, a conseqncia no boa. Se tudo poltico, nada o . Se ento importante mostrar, como Michel Foucault o fez magistralmente, que a ordem policial se estende para muito alm de suas instituies e tcnicas especializadas, igualmente importante dizer que nenhuma coisa em si poltica, pelo nico fato de exercerem-se relaes de poder. Para que uma coisa seja poltica, preciso que suscite o encontro entre a lgica policial e a lgica igualitria, a qual nunca est preconstituda.12

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Nenhuma coisa ento por si poltica. Mas qualquer coisa pode vir a s-lo se der ocasio ao encontro das duas lgicas. Uma mesma coisa uma eleio, uma greve, uma manifestao pode dar ensejo poltica ou no dar nenhum ensejo. Uma greve no poltica quando exige reformas em vez de melhorias ou quando ataca as relaes de autoridade em vez da insuficincia dos salrios. Ela o quando reconfigura as relaes que determinam o local de trabalho em sua relao com a comunidade. O lar pde se tornar um lugar poltico, no pelo simples fato de que nele se exercem relaes de poder mas porque se viu argudo no interior de um litgio sobre a capacidade ds mulheres comunidade. Um mesmo conceito a opinio ou o direito, por exemplo pode designar uma estrutura do agir poltico ou uma estrutura da ordem policial. E assim que a mesma palavra opinio designa dois processos opostos: a reproduo das legitimaes de Estado sob a forma de "sentimentos" dos governados ou a constituio de uma cena em que se arma o litgio desse jogo de legitimaes e de sentimentos; a escolha entre respostas propostas ou a inveno de uma questo que ningum se colocava. Mas preciso acrescentar que essas palavras podem tambm designar, e designam na maioria das vezes, o prprio entrelaamento das lgicas. A poltica age sobre a polcia. Ela age em lugares e com palavras que lhes so comuns, se for preciso reconfigurando esses lugares e mudando o estatuto dessas palavras. O que habitualmente colocado como o lugar do poltico, ou seja, o conjunto das instituies do Estado, justamente no um lugar homogneo. Sua configurao determinada por um estado das relaes entre a lgica poltica e a lgica policial. Mas tambm, claro, o lugar privilegiado onde sua diferena se dissimula na pressuposio de uma relao direta entre a arkb da comunidade e a distribuio das instituies, das arcbai que efetuam o princpio. Nenhuma coisa em si poltica, pois a poltica s existe por um princpio que no lhe prprio, a igualdade. O estatuto desse "princpio" deve ser precisado. A igualdade no um dado que a poltica aplica, uma essncia que a lei encarna nem um objetivo que ela se prope atingir. E apenas uma pressuposio que deve ser discernida nas prticas que a pem em uso. Assim, no aplogo do Aventino, a pressuposio igualitria deve ser discernida at no discurso que pronuncia a fatalidade da desigualdade. Mennio Agripa explica aos plebeus que eles so apenas os membros estpidos de uma plis cujo corao so os patrcios. Mas, para ensinar-lhes assim seu lugar, deve11

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pressupor que os plebeus entendam seu discurso. Deve pressupor essa igualdade dos seres falantes que contradiz a distribuio policial dos corpos colocados em seu lugar e estabelecidos em sua funo. Concedamos, de antemo, aos espritos ponderados, para os quais igualdade rima com utopia enquanto desigualdade evoca a sadia robusteza das coisas naturais: essa pressuposio mesmo to vazia quanto eles a descrevem. No tem por si mesma nenhum efeito particular, nenhuma consistncia poltica. Pode-se at duvidar de que chegue um dia a ter esse efeito e essa consistncia. Melhor ainda, os que levaram essa dvida a seu limite extremo so os partidrios mais resolutos da igualdade. Para que haja poltica, preciso que a lgica policial e a lgica igualitria tenham um ponto de encontro. Essa consistncia da igualdade vazia s pode ser ela mesma uma propriedade vazia, como o a liberdade dos atenienses. A possibilidade ou a impossibilidade da poltica joga-se a. E tambm a que os espritos ponderados perdem seus referenciais: para eles, so as noes vazias de igualdade e de liberdade que impedem a poltica. Ora, o problema estritamente o inverso: para que haja poltica, preciso que o vazio apoltico da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa produza o vazio de uma propriedade poltica como a liberdade do demos ateniense. uma suposio que se pode rejeitar. Analisei num outro trabalho a forma pura dessa rejeio na obra do terico da igualdade das inteligncias e da emancipao intelectual, Joseph Jacotot 4 . Ele ope radicalmente a lgica da pressuposio igualitria da agregao dos corpos sociais. Para ele sempre possvel fazer prova dessa igualdade sem a qual nenhuma desigualdade pode ser pensada, mas sob a estrita condio de que essa prova seja sempre singular, que seja a cada vez a reiterao do puro traado de sua verificao. Essa prova sempre singular da igualdade no pode consistir em nenhuma forma de vnculo social. A igualdade vira seu contrrio, to logo ela quer inscrever-se num lugar da organizao social e estatal. assim que a emancipao intelectual no pode institucionalizar-se sem tornar-se instruo do povo, isto , organizao de sua minoria perptua. Assim, os dois processos devem continuar absolutamente estranhos um ao outro, constituindo duas comunidades radicalmente diferentes, mesmo que sejam compostas pelos mesmos indivduos, a comunidade das inteli-

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J. Rancire, Le Maitre ignorant, Fayard, 1987.

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gncias iguais e a dos corpos sociais agregados pela fico desigualitria. Eles nunca podem entrelaar-se, a no ser transformando a igualdade em seu contrrio. A igualdade das inteligncias, condio absoluta de toda comunicao e de toda ordem social, no poderia causar efeito nessa ordem pela liberdade vazia de nenhum sujeito coletivo. Todos os indivduos de uma sociedade podem ser emancipados. Mas essa emancipao que o nome moderno do efeito de igualdade nunca produzir o vazio de alguma liberdade pertencente a um demos ou a qualquer outro sujeito do mesmo tipo. Na ordem social, no poderia haver vazio. H apenas o pleno, apenas pesos e contrapesos. A poltica no , assim, o nome de nada. No pode ser outra coisa seno a polcia, isto , a denegao da igualdade. O paradoxo da emancipao intelectual nos permite pensar o n essencial do logos com o dano, a funo constitutiva do dano para transformar a lgica igualitria em lgica poltica. Ou a igualdade no causa nenhum efeito na ordem social. Ou causa efeito sob a forma especfica do dano. A "liberdade" vazia que faz dos pobres de Atenas o sujeito poltico demos no outra coisa seno o encontro das duas lgicas. No outra coisa seno o dano que institui a comunidade como comunidade do litgio. A poltica a prtica na qual a lgica do trao igualitrio assume a forma do tratamento de um dano, onde ela se torna o argumento de um dano principiai que vem ligar-se a tal litgio determinado na diviso das ocupaes, das funes e dos lugares. Ela existe mediante sujeitos ou dispositivos de subjetivao especficos. Estes medem os incomensurveis, a lgica do trao igualitrio e a da ordem policial. Fazem-no unindo ao nome de tal grupo social o puro ttulo vazio da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa. Fazem-no sobre-impondo ordem policial que estrutura a comunidade uma outra comunidade que s existe por e para o conflito, uma comunidade que a do conflito em torno da prpria existncia do comum entre o que tem parcela e o que sem parcela. A poltica assunto de sujeitos, ou melhor, de modos de subjetivao. Por subjetivao vamos entender a produo, por uma srie de atos, de uma instncia e de uma capacidade de enunciao que no eram identificveis num campo de experincia dado, cuja identificao portanto caminha a par com a reconfigurao do campo da experincia. Formalmente, o ego sumf ego existo cartesiano o prottipo desses sujeitos indissociveis de uma srie de operaes implicando a produo de um novo campo de experincia. Toda subjetivao11

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poltica se parece com essa frmula. Ela um nos sumus, nos existimus. O que significa que o sujeito que ela faz existir tem nem mais nem menos que a consistncia desse conjunto de operaes e desse campo de experincia. A subjetivao poltica produz um mltiplo que no era dado na constituio policial da comunidade, um mltiplo cuja contagem se pe como contraditria com a lgica policial. Povo o primeiro desses mltiplos que desunem a comunidade dela mesma, a inscrio primria de um sujeito e de uma esfera de aparncia de sujeito no fundo do qual outros modos de subjetivao propem a inscrio de outros "existentes", de outros sujeitos do litgio poltico. Um modo de subjetivao no cria sujeitos ex nihilo. Ele os cria transformando identidades definidas na ordem natural da repartio das funes e dos lugares em instncias de experincia de um litgio. "Operrios" ou "mulheres" so identidades aparentemente sem mistrio. Todo mundo v de quem se trata. Ora, a subjetivao poltica arranca-os dessa evidncia, colocando a questo da relao entre um quem e um qual na aparente redundncia de uma proposio de existncia. "Mulher" em poltica o sujeito de experincia o sujeito desnaturado, desfeminizado que mede a distncia entre uma parcela reconhecida o da complementaridade sexual e uma ausncia de parcela. "Operrio", ou melhor "proletrio", da mesma forma o sujeito que mede a distncia entre a parcela do trabalho como funo social e a ausncia de parcela daqueles que o executam na definio do comum da comunidade. Toda subjetivao poltica a manifestao de um afastamento desse tipo. A bem conhecida lgica policial que julga que os proletrios militantes no so trabalhadores mas desclassificados, e que as militantes dos direitos das mulheres so criaturas estranhas a seu sexo tem, afinal de contas, fundamento. Toda subjetivao uma desidentificao, o arrancar naturalidade de um lugar, a abertura de um espao de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque o espao de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausncia de parcela. A subjetivao poltica "proletria", como tentei mostr-lo em outro local, no nenhuma forma de "cultura", de ethos coletivo que ganharia voz. Ela pressupe, ao contrrio, uma multiplicidade de fraturas que separam os corpos operrios de seu ethos e da voz que supostamente exprime sua alma, uma multiplicidade de eventos de palavra, quer dizer, de experincias singulares do litgio em torno da palavra e da voz, em torno da diviso do sensvel. A "tomada da palavra" no conscincia e expresso de12

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um si mesmo que afirma o seu prprio. Ela ocupao do lugar onde o logos define outra natureza que a phon. Essa ocupao pressupe que destinos de "trabalhadores" sejam de uma maneira ou de outra desviados por uma experincia do poder dos logoi na qual a revivescncia de antigas inscries polticas pode combinar-se com o segredo descoberto do alexandrino. O animal poltico moderno antes de tudo um animal literrio, preso no circuito de uma literariedade que desfaz as relaes entre a ordem das palavras e a ordem dos corpos que determinavam o lugar de cada um. Uma subjetivao poltica o produto dessas linhas de fratura mltiplas pelas quais indivduos e redes de indivduos subjetivam a distncia entre sua condio de animais dotados de voz e o encontro violento da igualdade do logos5. A diferena que a desordem poltica vem inscrever na ordem policial pode portanto, em primeira anlise, exprimir-se como diferena entre uma subjetivao e uma identificao. Ela inscreve um nome de sujeito como diferente de toda parte identificada da comunidade. Esse ponto pode ser ilustrado por um episdio histrico, uma cena de palavra que uma das primeiras ocorrncias polticas do sujeito proletrio moderno. Trata-se de um dilogo exemplar, ocasionado pelo processo movido em 1832 contra o revolucionrio Auguste Blanqui. Instado pelo presidente do tribunal a declinar sua profisso, ele responde simplesmente: "proletrio". A essa resposta o presidente objeta de pronto: "Isso no profisso", para logo ouvir o acusado replicar: " a profisso de trinta milhes de franceses que vivem de seu trabalho e que so privados de seus direitos polticos" 6 . O que faz o presidente permitir que o escrivo anote essa nova "profisso". Nessas duas rplicas pode-se resumir todo o conflito entre a poltica e a polcia. Tudo a se liga dupla acepo de uma mesma palavra, profisso. Para o promotor, encarnando a lgica policial, profisso significa ofcio: a atividade que situa um corpo em seu lugar e em sua funo. Ora, est

5 Que ao mesmo tempo a perda, a passagem-para-alm, no sentido do Untergang nietzschiano, foi o que tentei mostrar em La Nuit des proltaires, Fayard, 1981. Sobre a lgica dos acontecimentos de palavra, permito-me remeter tambm a meu livro Les Noms de Vhistoire, Le Seuil, 1992. Essa noo me parece ter relao com o que Jean-Luc Nancy pensa sob a noo de "tomada de palavra" em Le sens du monde, Galile, 1993. 6 Dfense du citoyen Louis-Auguste Blanqui devant la Cour d'assises, Paris, 1832, p. 4.

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claro que proletrio no designa nenhum ofcio, quando muito um estado vagamente definido de trabalhador braal miservel que, de qualquer forma, no se ajusta ao acusado. Mas, como poltico revolucionrio, Blanqui d mesma palavra uma acepo diferente: uma profisso uma confisso, uma declarao de pertencimento a um coletivo. S que esse coletivo tem uma natureza bem particular. A classe dos proletrios na qual Blanqui faz profisso de alinhar-se no de forma alguma identificvel a um grupo social. Os proletrios no so nem os trabalhadores braais, nem as classes laboriosas. So a classe dos incontados que s existe na prpria declarao pela qual eles se contam como os que no so contados. O nome proletrio no define nem um conjunto de propriedades (trabalhador braal, trabalho industrial, misria etc.) que seriam igualmente detidas por uma multido de indivduos, nem um corpo coletivo, que encarna um princpio, do qual esses indivduos seriam os membros. Ele pertence a um processo de subjetivao que idntico ao processo de exposio de um dano. A subjetivao "proletria" define, numa sobre-impresso em relao multido dos trabalhadores, um sujeito do dano. O que subjetividade no nem o trabalho nem a misria, mas a pura contagem dos incontados, a diferena entre a distribuio desigualitria dos corpos sociais e a igualdade dos seres falantes. Essa tambm a razo pela qual o dano exposto no nome de proletrio no se identifica de forma alguma figura historicamente datada da "vtima universal" e a seu pathos especfico. O dano exposto pelo proletariado sofredor dos anos 1830 tem a mesma estrutura lgica que o blaberon implicado na liberdade sem princpios desse demos ateniense que se identificava insolentemente ao todo da comunidade. Simplesmente essa estrutura lgica, no caso da democracia ateniense, funciona sob sua forma elementar, na unidade imediata do demos como todo e como parte. A declarao de pertencimento proletrio, em contrapartida, explicita o afastamento entre dois povos: o da comunidade poltica declarada e o que se define por ser excludo dessa comunidade. "Demos" o sujeito da identidade da parte e do todo. "Proletrio", ao contrrio, subjetiva essa parcela dos sem-parcela que torna o todo diferente de si mesmo. Plato insurgia-se contra esse demos que a contagem do incontvel. Blanqui inscreve, sob o nome de proletrios, os incontados no espao em que so contveis como incontados. A poltica em geral feita desses erros de clculo, obra de classes que no so classes, que inscrevem sob o nome parti12

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cular de uma parte excepcional ou de um todo da comunidade (os pobres, o proletariado, o povo) o dano que separa e rene duas lgicas heterogneas da comunidade. O conceito de dano no se liga pois a nenhuma dramaturgia de "vitimizao". Faz parte da estrutura original de toda poltica. O dano simplesmente o modo de subjetivao no qual a verificao da igualdade assume figura poltica. H poltica por causa apenas de um universal, a igualdade, a qual assume a figura especfica do dano. O dano institui um universal singular, um universal polmico, vinculando a apresentao da igualdade, como parte dos sem-parte, ao conflito das partes sociais. O dano fundador da poltica portanto de uma natureza muito particular, que convm distinguir das figuras s quais se costuma assimil-lo, fazendo assim desaparecer a poltica no direito, na religio ou na guerra. Distingue-se antes de mais nada do litgio jurdico passvel de se objetivar como relao entre partes determinadas, regulvel por procedimentos jurdicos apropriados. Isso se deve simplesmente ao fato de que as partes no existem anteriormente declarao do dano. O proletariado no tem, antes do dano que seu nome expe, nenhuma existncia como parte real da sociedade. Assim, o dano que ele expe no poderia ser regulado sob a forma de um acordo entre partes. Ele no pode ser regulado porque os sujeitos que o dano poltico pe em jogo no so entidades s quais ocorreria acidentalmente esse ou aquele dano, mas sujeitos, cuja prpria existncia o modo de manifestao desse dano. A persistncia desse dano infinita porque a verificao da igualdade infinita e porque a resistncia de toda ordem policial a essa verificao principiai. Mas, mesmo esse dano que no solucionvel, nem por isso intratvel. Ele no se identifica nem com a guerra inexpivel nem com a dvida irresgatvel. O dano poltico no se regula por objetivao do litgio e compromisso entre as partes. Mas tratado por dispositivos de subjetivao que o fazem consistir como relao modificvel entre partes, como modificao mesmo do terreno no qual o jogo jogado. Os incomensurveis da igualdade dos seres falantes e da distribuio dos corpos sociais medem-se um ao outro e essa medida influencia essa prpria distribuio. Entre a regulao jurdica e a dvida inexpivel, o litgio poltico revela um inconcilivel que, entretanto, tratvel. S que esse tratamento ultrapassa todo dilogo de interesses respectivos como toda reciprocidade de direitos e de deveres. Ele passa pela constituio de sujeitos especficos que assumem o dano, conferem-lhe uma figura, inventam suas

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formas e seus novos nomes e conduzem seu tratamento numa montagem especfica de demonstraes: de argumentos "lgicos" que so ao mesmo tempo reagenciamentos da relao entre a palavra e sua contagem, da configurao sensvel que recorta os campos e os poderes do logos e da phon, os lugares do visvel e do invisvel, e articula-os na repartio das partes e das parcelas. Uma subjetivao poltica torna a recortar o campo da experincia que conferia a cada um sua identidade com sua parcela. Ela desfaz e recompe as relaes entre os modos do fazer, os modos do ser e os modos do dizer que definem a organizao sensvel da comunidade, as relaes entre os espaos onde se faz tal coisa e aqueles onde se faz outra, as capacidades ligadas a esse fazer e as que so requeridas para outro. Ela pergunta se o trabalho ou a maternidade, por exemplo, so assunto privado ou assunto social, se essa funo pblica implica uma capacidade poltica. Um sujeito poltico no um grupo que "toma conscincia" de si, se d voz, impe seu peso na sociedade. E um operador que junta e separa as regies, as identidades, as funes, as capacidades que existem na configurao da experincia dada, quer dizer, no n entre as divises da ordem policial e o que nelas j se inscreveu como igualdade, por frgeis e fugazes que sejam essas inscries. assim, por exemplo, que uma greve operria, na sua forma clssica, pode juntar duas coisas que no tm "nada a ver" uma com a outra: a igualdade proclamada pelas Declaraes dos Direitos do Homem e um obscuro tpico de horas de trabalho ou de regulamento da oficina. O ato poltico da greve , ento, construir a relao entre essas coisas que no tm relao, fazer ver junto, como objeto do litgio, a relao e a no-relao. Essa construo implica toda uma srie de deslocamentos na ordem que define a "parte" do trabalho: ela pressupe que uma multiplicidade de relaes de indivduo (o empregador) a indivduo (cada um dos seus empregados) seja posta como relao coletiva, que o lugar privado do trabalho seja posto como pertencente ao campo de uma visibilidade pblica, que o prprio estatuto da relao entre o rudo (das mquinas, dos gritos ou dos sofrimentos) e a palavra argumentativa que configura o lugar e a parcela do trabalho como relao privada seja reconfigurado. Uma subjetivao poltica uma capacidade de produzir essas cenas polmicas, essas cenas paradoxais que revelam a contradio de duas lgicas, ao colocar existncias que so ao mesmo tempo inexistncias ou inexistncias que so ao mesmo tempo exist