ranciÈre, jacques - de uma imagem à outra deleuze e as eras do cinema

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www.intermidias.com De uma imagem à outra? Deleuze e as eras do cinema 1 Jacques Rancière Tradução de Luiz Felipe G. Soares Roma, Cidade Aberta (1945) Roberto Rossellini Haveria uma modernidade cinematográfica. Esta se oporia ao cinema clássico, aquele da ligação narrativa ou significante entre imagens, o poder autônomo de uma imagem que se marcaria duplamente: por sua temporalidade autônoma e pelo vazio que a separa das outras. Esse corte entre duas eras teria tido duas testemunhas exemplares: Roberto Rossellini, inventor de um cinema do imprevisto, opondo ao relato clássico a descontinuidade e a ambigüidade essenciais 1 Tradução para o português de Luiz Felipe G. Soares. Texto original em francês publicado em RANCIÈRE, Jacques. La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001. O texto foi escrito originalmente para uma conferência no seminário “La mirada del filosofo. Cine y pensamiento en el cambio de milenio”, organizado por Doménec Font na Residencia de Estudiantes de Madrid, no dia 20 de novembro de 2000.

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    De uma imagem outra? Deleuze e as eras do cinema1

    Jacques Rancire

    Traduo de Luiz Felipe G. Soares

    Roma, Cidade Aberta (1945) Roberto Rossellini

    Haveria uma modernidade cinematogrfica. Esta se oporia ao

    cinema clssico, aquele da ligao narrativa ou significante entre

    imagens, o poder autnomo de uma imagem que se marcaria

    duplamente: por sua temporalidade autnoma e pelo vazio que a separa

    das outras. Esse corte entre duas eras teria tido duas testemunhas

    exemplares: Roberto Rossellini, inventor de um cinema do imprevisto,

    opondo ao relato clssico a descontinuidade e a ambigidade essenciais

    1 Traduo para o portugus de Luiz Felipe G. Soares. Texto original em francs publicado em RANCIRE, Jacques. La fable cinmatographique. Paris: Le Seuil, 2001. O texto foi escrito originalmente para uma conferncia no seminrio La mirada del filosofo. Cine y pensamiento en el cambio de milenio, organizado por Domnec Font na Residencia de Estudiantes de Madrid, no dia 20 de novembro de 2000.

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    do real, e Orson Welles, inventor da profundidade de campo, opondo-se

    tradio da montagem narrativa. Teria tido tambm dois pensadores:

    Andr Bazin, teorizando nos anos 50, com armas emprestadas da

    fenomenologia e pensamentos dissimulados da religio, o advento

    artstico de uma essncia do cinema, identificada a sua capacidade

    realista de revelar o sentido escondido dos seres e das coisas sem

    lhes quebrar a unidade natural2; e Gilles Deleuze, fundando, nos anos

    80, o corte entre as duas eras sobre uma rigorosa ontologia da imagem

    cinematogrfica. s intuies precisas e s abordagens tericas do

    filsofo de ocasio que foi Andr Bazin, Deleuze estaria fornecendo seu

    fundamento slido: a teorizao da diferena entre dois tipos de

    imagem: a imagem-movimento e a imagem-tempo. A imagem-

    movimento seria a imagem organizada segundo a lgica do esquema

    sensrio-motor, uma imagem concebida como elemento de um

    encadeamento natural com outras imagens dentro de uma lgica de

    montagem anloga quela do encadeamento finalizado das percepes e

    das aes. A imagem-tempo seria caracterizada por uma ruptura dessa

    lgica, pela apario exemplar em Rossellini de situaes ticas e

    sonoras puras que no mais se transformam em aes. A partir da se

    constituiriam de forma exemplar em Welles a lgica da imagem-

    cristal, em que a imagem real no se conecta mais a uma outra imagem

    real, mas a sua prpria imagem virtual. Cada imagem ento se separa

    das outras para se abrir a sua prpria infinitude. E o que faz a ligao,

    da em diante, a ausncia de ligao, o interstcio entre as imagens

    que comanda, em lugar do encadeamento sensrio-motor, um

    reencadeamento a partir do vazio. Assim, a imagem-tempo vai fundar

    um cinema moderno, oposto imagem-movimento, que era o cerne do

    cinema clssico. Entre as duas se colocar uma ruptura, uma crise da

    2 Bazin, Andr. Lvolution du langage cinmatographique. In: Quest-ce que le cinma? Paris: Cerf, 1997, p. 78.

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    imagem-ao, ou ruptura do elo sensrio-motor, que Deleuze associa

    ruptura histrica da Segunda Guerra mundial, engendrando situaes

    que no levam mais a alguma resposta adequada.

    Embora clara dentro de seu enunciado, a diviso se torna obscura

    no momento em que se examina duas questes que ela levanta. Como

    pensar, primeiro, a relao entre um corte interno arte das imagens e

    as rupturas que afetam a histria geral? Como reconhecer, em seguida,

    dentro do concreto das obras as marcas desse corte entre duas eras da

    imagem e dois tipos de imagem? A primeira questo remete ao

    equvoco fundamental do pensamento modernista. Esse pensamento,

    em sua aparncia mais geral, identifica as revolues modernas da arte

    manifestao, dentro de cada arte, de sua essncia prpria. A

    novidade prpria ao moderno consiste ento em que o prprio da arte,

    sua essncia j ativa em suas manifestaes anteriores, conquista sua

    figura autnoma ao romper os limites da mimese que a enquadra. O

    novo assim pensado sempre j prefigurado no velho. A ruptura,

    finalmente, nada mais que a peripcia obrigatria do relato edificante

    pelo qual cada arte comprova sua artisticidade prpria ao aparecer em

    conformidade com o cenrio exemplar de uma revoluo modernista da

    arte, atestando sua essncia de sempre. Assim, para Bazin, a revoluo

    de Welles e de Rosselini apenas cumpriu com uma vocao realista

    autnoma do cinema, j atestada em Murnau, Flaherty ou Stroheim, ao

    contrrio da tradio heternoma de um cinema de montagem, ilustrado

    pelo classicismo griffithiano, pela dialtica eisensteiniana ou pelo

    espetacularismo expressionista.

    A partilha deleuziana da imagem-movimento e da imagem-tempo

    no escapa do crculo geral da teoria modernista. Mas a relao entre a

    classificao das imagens e a historicidade da ruptura implica numa

    figura bem mais complexa e levanta um problema bem mais radical.

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    Com efeito, no se trata mais simplesmente, em Deleuze, de se adequar

    uma histria da arte a uma histria geral. Porque nele no h

    propriamente como falar nem de histria da arte nem de histria geral.

    Para ele, toda histria histria natural. A passagem de um tipo de

    imagem a outro suspensa num episdio terico, a ruptura do elo

    sensrio-motor definido no interior de uma histria natural das

    imagens, que , em seu princpio, ontolgica e cosmolgica. Como

    pensar ento a coincidncia entre a lgica dessa histria natural, o

    desenvolvimento das formas de uma arte e o corte histrico

    demarcado por uma guerra?

    O prprio Deleuze nos adverte logo de incio: ainda que seu livro

    nos fale de cineastas e de filmes, ainda que ele comece por Griffith,

    Vertov e Eisenstein para chegar a Godard, Straub ou Syberberg, no se

    trata de uma histria do cinema. um ensaio de classificao dos

    signos, nos moldes de uma histria natural. Mas o que um signo para

    Deleuze? Ele o define assim: os signos so os traos de expresso que

    compem as imagens e no param de recri-las, port-las ou carreg-

    las pela matria em movimento.3 Os signos, portanto, so os

    compnentes das imagens, seus elementos genticos. O que, ento

    uma imagem? Uma imagem no nem o que vemos nem um duplo das

    coisas formado por nosso esprito. Deleuze inscreve sua reflexo dentro

    do prolongamento da revoluo filosfica que representa para ele o

    pensamento de Bergson. Ora, qual o princpio dessa revoluo?

    abolir a oposio entre o mundo fsico do movimento e o mundo

    psicolgico da imagem. As imagens no so o duplo das coisas. So as

    prprias coisas, o conjunto de tudo o que aparece, ou seja, o conjunto

    daquilo que . Deleuze, segundo Bergson, definir assim a imagem: o

    3 Limage-temps. Paris: Minuit, 1983 [sic], p. 49 [o livro foi lanado em Paris em 1985, N. do T.].

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    caminho pelo qual passam, em todos os sentidos, as modificaes que

    se propagam na imensido do universo.4

    As imagens, assim, so propriamente as coisas do mundo. Uma

    conseqncia se deve tirar logicamente: o cinema no o nome de uma

    arte. o nome do mundo. A classificao dos signos uma teoria dos

    elementos, uma histria natural das combinaes dos seres. Essa

    filosofia do cinema assume assim, de vez, um aspecto paradoxal. O

    cinema geralmente considerado como uma arte que inventa as

    imagens e os encadeamentos de imagens visuais. Ora, o livro afirma

    uma tese radical. No nem o olhar, nem a imaginao, nem a arte que

    constitui as imagens. A imagem no foi constituda. Ela existe por si. Ela

    no uma representao do esprito. Ela matria-luz em movimento.

    O rosto que olha e o crebro que conhece as formas so, ao contrrio,

    um anteparo negro que interrompe o movimento em todos os sentidos

    das imagens. a matria que olho, a imagem que luz, a luz que

    conscincia.

    Poder-se-ia concluir que Deleuze no nos fala, de maneira alguma,

    da arte cinematogrfica e que seus dois volumes sobre as imagens so

    uma espcie de filosofia da natureza. As imagens do cinema so ali

    tratadas como acontecimentos e agenciamentos da matria luminosa.

    Um tipo de enquadramento, um jogo de sombra e luz, um modo de

    encadeamento de planos sero ento igualmente metamorfoses de

    elementos, ou de sonhos da matria, no sentido de Gaston Bachelard.

    Ora, no bem assim. Essa histria natural das imagens em movimento

    se nos apresenta como a histria de um certo nmero de operaes e

    de combinaes individualizadas, atribudas aos cineastas, s escolas, s

    pocas. Considere-se, por exemplo, o captulo que Deleuze consagra 4 Limage-mouvement. Paris: Minuit, 1983, p. 86. (A imagem-movimento. SP: Brasiliense, 1985, p. 78. Cf. Bergson, Matria e memria. SP: Martins Fontes, 1999, p. 33. N. do T.)

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    primeira grande forma de imagem-movimento, a imagem-percepo, e,

    dentro desse captulo, a anlise que feita da teoria do cine-olho de

    Dziga Vertov. Deleuze nos diz o seguinte sobre o assunto: O que faz a

    montagem, segundo Vertov, levar a percepo s coisas, colocar a

    percepo na matria, de modo tal que qualquer ponto do espao

    perceba, ele prprio, todos os pontos sobre os quais ele age, ou que

    agem sobre ele, por mais longe que se estendam essas aes e

    reaes.5 Essa frase nos coloca dois problemas. Pode-se logo

    questionar se foi isso mesmo que Vertov pretendeu fazer. Objetar-se-ia,

    de bom grado, que sua cmera evita colocar a percepo nas coisas. Ela

    pretende, ao contrrio, conserv-la em benefcio prprio, unir todos os

    pontos do espao ao centro que ela constitui. E se destacaria a maneira

    pela qual toda imagem de Um homem com uma cmera remetida

    representao insistente do operador onipresente com seu olho-

    mquina e da montadora, cujas operaes, por si, do vida s imagens

    inertes em si mesmas. Mas se aceitamos a tese de Deleuze, o paradoxo

    torna-se ainda mais radical: Vertov, ele nos diz, leva a percepo s

    coisas. Mas por que ele precisaria lev-la at l? O ponto de partida de

    Deleuze no era exatamente que ela j estava l, que so as coisas que

    percebem, que se relacionam infinitamente umas com as outras? A

    definio de montagem aparece, ento, paradoxal: a montagem fornece

    s imagens, aos acontecimentos da matria-luz, as propriedades que j

    lhe pertencem.

    A resposta a essa questo me parece dupla. E essa dualidade

    corresponde a uma tenso constante do pensamento de Deleuze. De um

    lado, as propriedades perceptivas das imagens so apenas

    potencialidades. A percepo em estado de virtualidade nas coisas

    deve ser delas extrada. Ela deve ser arrancada s relaes de causa e 5 Limage-mouvement. Paris: Minuit, 1983, p. 117. (A imagem-movimento. SP: Brasiliense, 1985, p. 107.)

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    efeito, de ao e reao que marcam suas relaes, o artista institui um

    plano de imanncia onde os acontecimentos, que so efeitos

    incorpreos, se separam dos corpos e se compem sobre um espao

    prprio. Por baixo do tempo cronolgico das causas que afetam os

    corpos, aparece um outro tempo, ao qual Deleuze d o nome grego de

    aion: o tempo do acontecimento puro. O que faz a arte em geral, e a

    montagem cinematogrfica em particular, arrancar aos estados dos

    corpos suas qualidades intensivas, suas potencialidades de

    acontecimento. principalmente o que se revela no captulo da

    imagem-afeco, a teoria dos espaos quaisquer. O cineasta arranca

    dos relatos e dos personagens uma ordem de acontecimentos puros, de

    qualidades puras separadas dos estados dos corpos: por exemplo no

    assassinato de Lulu, em Pabst, o brilho da luz sobre a faca, o corte da

    faca, o terror de Jack, o estremecimento de Lulu. Ele os isola e lhes

    constitui um espao prprio, subtrado s orientaes e conexes da

    histria, subtrado, mais abrangentemente, maneira como construmos

    o espao usual de nossas percepes orientadas e de nossos

    deslocamentos acabados.

    Aqui aparece a segunda razo do paradoxo. Num certo sentido,

    no passa de uma outra forma de dizer a mesma coisa. Mas essa outra

    forma induz a uma lgica bem diferente. Se preciso dar s coisas uma

    potncia perceptiva que elas j tm, porque elas a perderam. E se

    elas a perderam, por uma razo bem precisa: porque a

    fosforescncia das imagens do mundo e seus movimentos em todos os

    sentidos foram interrompidos por essa imagem opaca que se chama o

    crebro humano. Este confiscou para si o intervalo entre ao e reao.

    A partir desse intervalo, ele se instituiu como centro do mundo.

    Constituiu um mundo de imagens para seu uso: um mundo de

    informaes sua disposio, a partir das quais ele constri seus

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    esquemas motores, orienta seus movimentos e faz do mundo fsico uma

    imensa maquinaria de causas e efeitos que devem passar dos meios aos

    fins. Se a montagem deve colocar a percepo nas coisas, essa

    operao uma operao de restituio. O trabalho voluntrio da arte

    devolve ao acontecimento da matria sensvel as potencialidades que o

    crebro humano lhes tomou para constituir um universo sensrio-motor

    adaptado a suas necessidades e submisso a seu controle. H, portanto,

    algo de emblemtico no fato de que a Dziga Vertov, o representante da

    grande vontade sovitica e construtivista de reagenciamento total do

    universo material a servio dos fins do homem, seja simbolicamente

    atribuda por Deleuze a tarefa inversa: recolocar a percepo nas coisas,

    constituir uma ordem da arte que devolve o mundo a sua desordem

    essencial. assim que a histria natural das imagens pode assumir a

    figura de uma histria da arte que abstrai em seu trabalho as

    potencialidades puras da matria sensvel. Mas essa histria da arte

    cinematogrfica igualmente a histria de uma redeno. O trabalho da

    arte em geral desfaz o trabalho comum do crebro humano, dessa

    imagem particular que se instituiu como centro do universo das

    imagens. A classificao pretendida das imagens do cinema na

    verdade a histria de uma restituio das imagens-mundos a elas

    mesmas. uma histria de redeno.

    Da a complexidade da noo de imagem em Deleuze e dessa

    histria do cinema que no uma. Essa complexidade se revela quando

    se debrua sobre as anlises que sustentam a tese e os exemplos que a

    ilustram. A imagem-tempo se situa para alm da ruptura do esquema

    sensrio-motor. Suas propriedades, portanto, j no esto presentes

    na constituio da imagem-movimento, e mais precisamente no

    trabalho da imagem-afeco que constitui uma ordem de

    acontecimentos puros, separados das qualidades intensivas dos estados

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    dos corpos? A imagem-tempo leva runa a narrao tradicional ao

    expulsar todas as formas convenientes da relao entre situao

    narrativa e expresso emocional, para resgatar as puras potencialidades

    possudas pelos rostos e pelos gestos. Mas essa potncia do virtual,

    prpria imagem-tempo, j dada pelo trabalho da imagem-afeco,

    que resgata as qualidades puras e que as compe dentro do que

    Deleuze chama os espaos quaisquer, os espaos que perderam o

    carter de espao orientado por nossas vontades. Os mesmos exemplos

    servem igualmente para ilustrar a constituio dos espaos quaisquer da

    imagem-afeco e aquela das situaes ticas e sonoras puras do

    espao-tempo. Considere o exemplo de um representante exemplar da

    modernidade cinematogrfica, que tambm um terico notvel da

    autonomia da arte cinematogrfica, Robert Bresson. Ele aparece em

    dois lugares significativos nas anlises de Deleuze. No captulo da

    imagem-afeco, sua maneira de constituir os espaos quaisquer

    oposta quela de Dreyer. Enquanto Dreyer teve necessidade de grandes

    planos de Joana dArc e seus juzes para resgatar as potencialidades

    intensivas da imagem, Bresson colocava essas potencialidades no

    prprio espao, nas maneiras de conect-los, de refazer as relaes

    entre o tico e o ttil. A anlise do cinema de Bresson opera, em suma,

    uma demonstrao anloga quela feita a propsito de Vertov: o

    trabalho de restituio imagem de suas potencialidades j est na

    obra de todos os construtores da imagem-movimento. Ora, a anlise

    dedicada a Bresson em A imagem-tempo, sob o ttulo O pensamento e

    o cinema retoma essencialmente os termos da passagem dedicada a

    Bresson sob o ttulo A imagem-afeco. Exatamente as mesmas

    imagens so analisadas no livro I como componentes da imagem-

    movimento e, no livro II, como princpios constitutivos da imagem-

    tempo. Parece, assim, ser impossvel separar no cineasta exemplar da

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    imagem-tempo as imagens-tempos dotadas de propriedades opostas

    quelas das imagens-movimentos.

    Pode-se assim perfeitamente concluir que a imagem-movimento e

    a imagem-tempo no so, de forma alguma, dois tipos de imagens

    opostas, correspondentes a duas eras do cinema, mas dois pontos de

    vista sobre a imagem. Mesmo tratando de cineastas e de filmes, A

    imagem-movimento analisa as formas da arte cinematogrfica como

    acontecimentos da matria-imagem. Mesmo retomando as anlises de A

    imagem-movimento, A imagem-tempo analisa as formas enquanto

    formas do pensamento-imagem. A passagem de um livro a outro no

    define a passagem de um tipo e de uma era da imagem cinematogrfica

    a um outro, mas a passagem a um outro ponto de vista sobre as

    mesmas imagens. Entre a imagem-afeco, forma da imagem-

    movimento, e o opsigno, forma originria da imagem-tempo, no

    passamos de uma famlia de imagens a uma outra, mas sobretudo de

    um lado a outro das mesmas imagens, da imagem como matria

    imagem como forma. Passaramos em breve das imagens como

    elementos de uma filosofia da natureza s imagens como elementos de

    uma filosofia do esprito. Filosofia da natureza, A imagem-movimento

    nos introduz, pela especificidade das imagens cinematogrficas, ao

    infinito catico das metamorfoses da matria-luz. Filosofia do esprito, A

    imagem-tempo nos mostra, atravs das operaes da arte

    cinematogrfica, como o pensamento oferece uma potncia prpria

    medida desse caos. O destino do cinema e do pensamento no ,

    com efeito, perder-se, sob algum dionisismo simplificador, na infinita

    entre-expressividade das imagens-matria-luz. reintegr-la na ordem

    de sua prpria infinitude. Essa infinitude aquela do infinitamente

    pequeno que se iguala ao infinitamente grande. Isso encontra sua

    expresso exemplar na imagem-cristal, no cristal do pensamento-

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    imagem que conecta a imagem presente com a imagem virtual, que

    lhes diferencia em sua prpria indiscernibilidade, qual pertence a

    indiscernibilidade entre o real e o imaginrio. O trabalho do pensamento

    devolver ao todo a potncia do intervalo, confiscada pelo

    crebro/anteparo. E devolver o intervalo ao todo criar um outro todo a

    partir de uma outra potncia do intervalo. Ao intervalo-anteparo,

    perdendo a entre-expressividade das imagens e impondo sua lei a seus

    livres movimentos, ope-se o cristal-intervalo, germe que semeia o

    oceano entenda-se que ele cria um novo todo, um todo dos

    intervalos, dos cristais solitariamente expressivos que nascem da vida e

    pairam por ali. As categorias prprias, segundo Deleuze, imagem-

    tempo falso raccord, falso movimento, corte irracional designariam

    ento menos as operaes identificveis a isolar duas famlias de

    imagens do que a maneira pela qual o pensamento se iguala ao caos

    que o provoca. E a ruptura do elo sensrio motor, processo que no se

    encontra na histria natural das imagens, exprimiria de fato essa

    relao de correspondncia entre o infinito o caos da matria-

    imagem e o infinito o caos prprio do pensamento-imagem. A

    distino das duas imagens seria propriamente transcendental e no

    corresponderia a qualquer ruptura identificvel na histria natural das

    imagens ou na histria dos acontecimentos humanos e das formas da

    arte. As mesmas imagens de Dreyer ou de Bresson, de Eisenstein ou

    de Godard so analisveis em termos de imagem-afeco ou de

    opsigno, de descrio orgnica ou de descrio cristalina.

    Esse ponto de vista seria largamente justificado. No entanto

    Deleuze no nos permite adot-lo. bem verdade, diz ele, que a

    imagem-movimento constitua j um todo aberto da imagem. Mas esse

    todo era ainda governado por uma lgica de associao e de atrao

    entre as imagens, concebida sobre o modelo da ao e da reao. Em

  • Jacques Rancire Intermdias 8

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    compensao, na imagem-tempo e no cinema moderno, cada imagem

    sai efetivamente da vida e para ela retorna, se bem que agora o

    interstcio, a separao entre as imagens, que assume um papel

    decisivo. No h somente dois pontos de vista sobre as mesmas

    imagens. H de fato duas lgicas da imagem que correspondem s eras

    do cinema. Entre as duas, h uma crise identificvel da imagem-ao,

    uma ruptura do elo sensrio motor. E essa crise ligada Segunda

    Guerra mundial e apario concreta, entre as runas da guerra e a

    profuso de vencidos, espaos desconexos e personagens atormentados

    em situaes diante das quais eles no tm reao.

    Essa historicizao declarada retoma evidentemente o paradoxo

    inicial. Como uma classificao entre os tipos de signos pode ser

    dividida em duas por um acontecimento histrico exterior? A histria,

    tomada como dado inicial no comeo de A imagem-tempo, pode fazer

    outra coisa alm de sancionar uma crise interna da imagem-movimento:

    uma ruptura interna ao movimento das imagens, indiferente em si aos

    problemas da poca e aos horrores da guerra? precisamente essa

    crise que Deleuze pe em cena no ltimo captulo de A imagem-

    movimento. O ponto alto de sua dramaturgia se situa na anlise do

    cinema de Hitchcock. Se Hitchcock serviu como exemplo privilegiado,

    porque de algum modo seu cinema sintetiza toda a gnese da imagem-

    movimento. Ele integra todos os seus componentes: os jogos de

    sombras e luzes, formas de imagem-percepo trazidas pelo

    expressionismo alemo; a constituio de espaos quaisquer onde as

    qualidades puras (por exemplo o branco de um copo de leite em

    Suspeita [Suspicion, 1941] ou de um campo de neve em Quando fala o

    corao [Spellbound, 1945]) constituem um plano de acontecimentos; a

    imerso desses espaos quaisquer nas situaes determinadas; a

    constituio de um grande esquema de ao fundado sobre o ciclo

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    ao/situao/ao. A integrao de todos esses elementos definem o

    que Deleuze chama de imagens mentais: Hitchcock, diz ele, filma as

    relaes. O objeto de seu cinema so os grandes jogos de equilbrio e

    desequilbrio que se constrem em torno de algumas relaes

    paradigmticas como a relao inocente/culpado ou a dramaturgia da

    troca de crimes. Esse cinema marca assim um trmino da constituio

    da imagem-movimento: uma integrao de seus elementos. Mas de

    acordo com a lgica do trabalho da arte, esse triunfo deveria tambm

    significar o trmino de seu movimento de restituio imagem-matria

    de suas potencialidades intensivas, que se opera atravs de cada um

    desses tipos de imagens cinematogrficas. Ora, esse triunfo nos

    apresentado por Deleuze como um esgotamento. O coroamento da

    imagem-movimento tambm o momento em que ela entre em crise,

    onde o esquema que liga situao e reao se quebra, levando-nos a

    um mundo de sensaes ticas e sonoras puras. Mas como se manifesta

    essa ruptura? Ela o faz, na anlise de Deleuze, pela situao de

    paralisia, de inibio motora: em Janela indiscreta [Rear Window,

    1954], o caador de imagens Jeff, vivido por James Stewart, sofre de

    paralisia motora: a perna dentro do gesso, ele nada mais pode fazer

    alm de ser voyeur daquilo que se passa do outro lado da praa. Em Um

    corpo que cai [Vertigo, 1958], o detetive Scotie, vivido pelo mesmo

    James Stewart, paralisado pela vertigem, incapaz de perseguir por

    sobre os telhados o bandido que ele investiga, ou de subir ao topo da

    torre onde se perpetra o crime maquiado de suicdio. Em O homem

    errado [The Wrong Man, 1956], a mulher do falso culpado, vivida por

    Vera Miles, vtima de psicose. A bela mecnica da imagem-ao

    provoca assim as situaes de ruptura sensrio-motora que pem em

    crise a lgica da imagem-movimento6.

    6 Cf. Limage-mouvement. Paris: Minuit, 1983, p. 270-277. (A imagem-movimento. SP:

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    Essa anlise estranha primeira vista. A paralisia desses

    personagens define com efeito um dado ficcional, uma situao

    narrativa. E no se v em que seus problemas motores ou psicomotores

    impedem as imagens de se encadear e a ao de avanar. Que Scottie

    esteja sujeito vertigem, isso no paralisa em nada a cmera, que

    nisso, ao contrrio, encontra a ocasio de realizar um truque

    espetacular mostrando James Stewart pendurado na calha sobre um

    abismo vertiginoso. A imagem, nos diz Deleuze, perdeu seu

    prolongamento motor. Mas o prolongamento motor da imagem de

    Scottie suspenso no vazio no uma imagem de Scottie tentando se

    reestabelecer para voltar ao telhado. uma imagem que liga esse

    acontecimento quilo que ficcionalmente se segue, ao plano seguinte,

    que nos mostra um Scottie j fora do caso, mas tambm, e sobretudo,

    grande maquinao narrativa e visual que sua incapacidade revelada

    vai promover: Scottie vai ser manipulado na preparao de um falso

    suicdio que um crime verdadeiro. A vertigem de Scottie no impede

    nada; ao contrrio, favorece o jogo das relaes mentais e das situaes

    sensrio-motoras que vo se desenvolver em torno das questes:

    quem a mulher que Scottie est encarregado de vigiar? Qual a

    mulher que cai da torre? E como ela cai: suicdio ou assassinato? A

    lgica da imagem-movimento no de modo algum paralisada pelo

    dado ficcional. preciso ento considerar que essa paralisia simblica,

    que as situaes ficcionais de paralisia so tratadas por Deleuze como

    simples alegorias para emblematizar a ruptura da imagem-ao e seu

    princpio: a ruptura do elo sensrio-motor. Mas se preciso alegorizar

    essa ruptura sob a forma de emblemas ficcionais, no ser porque

    impossvel encontr-la como diferena efetiva entre dois tipos de

    imagens? No ser porque o terico do cinema tem necessidade de

    Brasiliense, 1985, p. 245-252.)

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    achar uma encarnao visvel de uma ruptura puramente ideal? A

    imagem-movimento est em crise porque o pensador tem necessidade

    de que ela esteja em crise.

    Por que ele tem essa necessidade? Porque a passagem do infinito

    da matria-imagem ao infinito do pensamento-imagem tambm uma

    histria de redeno. E essa redeno sempre contrariada. O cineasta

    devolve a percepo s imagens ao lhes arrancar do estado de corpos e

    lhes colocar no plano puro dos acontecimentos. Ele lhes d, assim, um

    encadeamento-em-pensamento. Mas esse encadeamento sempre, ao

    mesmo tempo, uma reimposio da lgica do anteparo opaco, da

    imagem central que interrompe o movimento em todos os sentidos das

    outras e que lhes reordena a partir dele mesmo. O trabalho de

    restituio sempre um movimento de nova captura. Deleuze quer,

    ento, paralisar essa lgica de encadeamento mental das imagens,

    assumindo o risco de dar, para isso, existncia autnoma s

    propriedades fictcias dos seres de fico. Assim, ao cineasta

    manipulador por excelncia, ao criador que concebe um filme como uma

    composio estrita de imagens ordenadas para orientar e desorientar

    os afetos do espectador que Deleuze aplica seu tratamento. Ele

    retorna contra Hitchcock a paralisia ficcional que o pensamento

    manipulador do cineasta imps a seus personagens para seus fins

    expressivos. Retorn-la equivale a transform-la conceitualmente em

    paralisia real. Significativamente, a mesma operao que Godard

    pratica sobre suas imagens do mesmo Hitchcock, uma vez que nas

    Histria(s) do cinema ele subtrai aos encadeamentos dramtico-

    funcionais do cineasta os planos de objetos o copo de leite em

    Suspeita, as garrafas de vinho do Interldio [Notorious, 1946] ou as

    lunetas do Pacto sinistro [Strangers on a Train, 1951], que ele

    transforma em naturezas mortas, em cones auto-suficientes. Por vias

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    diferentes, Deleuze e Godard se atribuem a mesma tarefa: paralisar o

    cinema de Hitchcock, isolar suas imagens, formar seus agenciamentos

    dramticos em momentos de passividade. E atravs de Hitchcock, de

    maneira mais geral, ao cinema que eles atribuem a tarefa de

    passivizar, de se afastar do despotismo do diretor para ser devolvido,

    segundo Deleuze, ao caos da matria-imagem ou, segundo Godard,

    impresso das coisas sobre um anteparo transformado em vu de

    Vernica.

    Aqui se toca no apenas no cerne da relao singular de Deleuze

    com o cinema, mas mais profundamente no cerne do problema que o

    cinema impe ao pensamento em funo do lugar muito particular que

    ocupa naquilo que se costuma chamar de modernidade artstica e que

    eu prefiro chamar de regime esttico da arte. O que ope esse regime

    ao regime representativo clssico com efeito uma idia diferente do

    pensamento sobre a obra na arte. No regime representativo, o trabalho

    da arte pensado sobre o modelo da forma ativa que se impe

    matria inerte para submet-la aos fins da representao. No regime

    esttico, essa idia de imposio voluntria de uma forma a uma

    matria recusada. A potncia da obra passa a se identificar a uma

    identidade dos contrrios: a identidade do ativo e do passivo, do

    intencional e do no-intencional. Eu evocaria mais claramente o projeto

    flaubertiano, que resume a idia de modo mais abrupto. O romancista

    se prope fazer uma obra que s repousa sobre ele mesmo, quer dizer,

    sobre o estilo do escritor, liberado de todo sujeito, de toda matria,

    afirmando unicamente seu poder absolutizado. Mas o que deve produzir

    esse estilo soberano? Uma obra liberada de todo trao da interveno

    do escritor, que tenha a indiferna, a passividade absoluta das coisas

    sem vontade nem significao. No se trata simplesmente da expresso

    de uma ideologia do artista. um regime de pensamento da arte que

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    exprime tambm uma idia do pensamento. No se trata mais da

    faculdade de imprimir sua vontade nos objetos. Trata-se da faculdade

    de se igualar a seu contrrio. Essa igualdade de contrrios era, na poca

    de Hegel, a potncia apolnea da idia que sai dela mesma para se

    tornar a luz do quadro ou o sorriso do deus de pedra. De Nietzsche a

    Deleuze, ela se torna, ao contrrio, a potncia dionisaca pela qual o

    pensamento abdica dos atributos da vontade, perde-se na pedra, na cor

    ou na lngua e iguala sua manifestao ativa ao caos das coisas.

    Viu-se o paradoxo do cinema em relao a essa idia da arte e do

    pensamento. O cinema , por seu dispositivo material, a encarnao

    literal dessa unidade dos contrrios, a unio do olho passivo e

    automtico da cmera com o olho consciente do cineasta. Os tericos

    dos anos 20 se apoiavam nisso para fazer a nova arte idntica a uma

    lngua prpria, ao mesmo tempo natural e construda, das imagens. Mas

    eles menosprezaram o fato de que a prpria automaticidade da

    passividade cinematogrfica atrapalhava a equao esttica. Ao

    contrrio do romancista ou do pintor, que ele mesmo o agente de seu

    tornar-se passivo, a cmera no tem como no ser passiva. A

    identidade dos contrrios foi dada a priori. O olho do realizador que

    dirige o olho mecnico destina desde j seu trabalho ao estado desses

    pedaos de celulide inertes aos quais s o trabalho de montagem dar

    vida. essa matriz dupla que Deleuze de fato teoriza na idia de um

    esquema sensrio-motor: graas ao dispositivo mecnico, a identidade

    do ativo e do passivo se investe de toda potncia de um esprito que

    coordena o trabalho de um olho soberano e de uma mo soberana. De

    novo, ento, se reinstaura a velha lgica da forma que conforma a

    matria. No limite, o olho do cineasta no tem necessidade de olhar

    para a objetiva da cmera. Ora, esse limite, h precisamente um

    cineasta que o atinge. Hitchcock se gaba de no jamais ter olhado na

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    cmera. O filme est em sua cabea: os afetos puros extrados dos

    estados das coisas so determinados de uma s vez como os afetos

    funcionais destinados a produzir o espanto ou a angstia do espectador.

    Hitchcock encarna uma certa lgica do cinema que retoma inteiramente

    a esttica do passivo e do ativo para construir a soberania de um

    crebro central. por isso que Deleuze o pe em cena, no fim de A

    imagem-movimento, na posio do demiurgo vencido pelo autmato

    que criou, afetado na volta da paralisia que ele lhe havia conferido.

    A ruptura do esquema sensrio-motor no aparece, de modo

    algum, como um processo que se possa designar atravs de caracteres

    precisos na constituio de um plano ou na relao entre dois planos.

    Sempre, com efeito, o gesto que libera as potencialidades as encadeia

    de novo. A ruptura est sempre ainda por vir, como um suplemento de

    interveno que ao mesmo tempo um suplemento de desapropriao.

    Um dos primeiros exemplos da imagem-cristal significativo quanto a

    isso. Deleuze a reconhece no filme de Tod Browning, Linconnu [The

    Unknown, 1927]7. Ora, bem difcil designar, nos planos ou nos

    raccords desse filme, os traos marcantes da ruptura do encadeamento

    sensrio-motor, a infinitisao do intervalo e a cristalizao do virtual e

    do real. Toda a anlise de Deleuze se sustenta sobre o contedo

    alegrico da fbula. O heri do filme com efeito um homem sem brao

    que executa um nmero de circo: ele lana punhais com os ps. Essa

    enfermidade lhe permite ao mesmo tempo desfrutar a intimidade da

    amazona do circo, que no suporta as mos dos homens. O nico

    problema, que logo descobrimos, que a enfermidade simulada:

    para se esconder da polcia que o heri adota essa identidade. Temendo

    que a amazona percebesse e o abandonasse, ele toma uma deciso

    radical: faz com que seus braos sejam amputados. A histria terminar

    7 Limage-temps, op. cit., p. 97.

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    muito mal para ele, tendo os traumas da amazona, nesse meio tempo,

    encontrado abrigo entre os braos do valento do circo. Mas o

    importante para ns no reside na infelicidade do heri. Reside na

    alegoria que constitui essa forma radical de ruputra do elo sensrio-

    motor. Se Linconnu emblematiza a imagem-cristal, figura exemplar da

    imagem-tempo, no por alguma propriedade de seus planos e de seus

    raccords. porque ele alegoriza uma idia do trabalho da arte como

    cirurgia do pensamento: o pensamento criativo deve sempre se auto-

    mutilar, livrar-se de seus braos, para contrariar a lgica segundo a qual

    ele retira sem cessar das imagens do mundo a liberdade que ele lhes

    restitui. Livrar-se dos braos quer dizer desfazer a coordenao do olho,

    que mantm o visvel a sua disposio, e da mo, que coordena as

    visibilidades sob o poder de um crebro que impe sua lgica

    centralizadora. Deleuze subverte a velha fbula do cego e do paraltico:

    o olhar do cineasta deve tornar-se ttil, deve se identificar a um olhar

    do cego que tateia para coordenar os elementos do mundo visvel. E ao

    contrrio a mo que coordena deve ser a mo de um paraltico. Ela deve

    ser tomada pela paralisia do olhar que s pode tocar as coisas

    distncia, jamais conseguindo peg-las.

    A oposio entre a imagem-movimento e a imagem-tempo

    assim uma ruptura fictcia. Sua relao parece bem mais com uma

    espiral infinita. A atividade da arte deve sempre se transformar em

    passividade, se reencontrar ainda nessa passividade, e se inverter

    novamente. Se Bresson se encontra ao mesmo tempo na anlise da

    imagem-afeco e entre os heris da imagem-tempo, porque seu

    cinema encarna mais que qualquer outro essa dialtica que est no

    cerne dos livros de Deleuze, encarna mais profundamente uma forma

    radical do paradoxo cinematogrfico. O cinema bressoniano

    constitudo, com efeito, por um duplo reencontro do ativo com o

  • Jacques Rancire Intermdias 8

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    passivo, do voluntrio com o involuntrio. A primeira liga a vontade

    soberana do cineasta a esses corpos filmados que ele chama de

    modelos, para lhes opor tradio do ator. O modelo aparece de uma

    s vez como um corpo inteiramente submisso vontade do autor. Este

    lhe exige que reproduza as palavras e os gestos que ele lhe indica,

    jamais jogando, jamais encarnando o personagem como o faz o ator

    tradicional. O modelo deve se comportar como autmato e reproduzir

    em tom uniforme as palavras que aprende. Mas a lgica do autnomo se

    volta ento: ao reproduzir mecanicamente, sem conscincia, as

    palavras e os gestos ditados pelo cineasta que o modelo vai habit-los

    de sua prpria verdade interior, que lhes vai dar uma verdade que ele

    mesmo ignorava. Mas essa verdade, o cineasta ignora ainda mais, e os

    gestos e palavras que ele imps de forma tirana ao modelo produziro

    ento um filme que ele no podia prever, que pode contrariar

    totalmente o que ele tinha programado. O autmato, diz Deleuze,

    manifesta o impensvel no pensamento: no pensamento em geral, mas

    ao mesmo tempo no seu e tambm, e sobretudo, no do cineasta. Tal o

    primeiro reencontro da vontade e do acaso. Mas h o segundo: essa

    verdade que o modelo manifesta, a sua revelia e revelia do cineasta,

    vai lhe escapar de novo. Ela no est na imagem que ele ofereceu

    cmera. Ela est no agenciamento das imagens que a montagem

    realizar. O que o modelo forneceu apenas a substncia do filme,

    uma matria-prima, anloga ao espetculo do visvel diante do pintor:

    as fatias de natureza, diria Bresson. O trabalho da arte coordenar as

    fatias de natureza para exprimir sua verdade, para lhes dar vida, como

    acontece com as flores japonesas.8

    Assim, o afastamento entre o que o olho mecnico devia captar e

    o que captou fica conjurado e parece se perder na igualdade indiferente

    8 Bresson, Robert. Notes sur la cinmatographie. Paris: Gallimard, 1988.

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    das fatias de natureza que o artista deve juntar. No , ento, mais

    uma vez, a velha tirania da forma intencional sobre a matria passiva

    que se reproduz? Essa questo sustenta as anlises que Deleuze dedica

    a Bresson. Ele leva ao cerne dessas anlises a questo da mo que

    emblematiza o trabalho de montagem, quer dizer, a relao entre a

    vontade do artista e o movimento autnomo das imagens. Bresson, ele

    nos diz, constri um espao hptico, um espao do toque subtrado ao

    imperialismo tico, um espao fragmentado em que as partes se

    justapem mo por toques. A montagem a obra da mo que toca,

    no da mo que pega. E ele d um exemplo, ainda uma vez alegrico,

    ao falar de uma cena de Pickpocket [1959], onde o espao construdo

    pelas mos dos batedores de carteira que passam o dinheiro roubado.

    Mas essas mos, ele diz, no pegam, elas apenas tocam, roam o objeto

    do roubo. Esses batedores de carteira que no pegam o que roubam

    mas se contentam em toc-lo para dar continuidade a um espao no

    orientado so evidentemente parentes daquele falso aleijado que se

    transforma em doente de verdade. Mas sem dvida Au hasard,

    Balthazar [1966] que ilustra melhor essa dialtica. Porque o filme nada

    mais que uma longa histria de mos. Esta comea no primeiro plano

    com as mos da garotinha que toca o asno, e se transforma de repente

    em mos que pegam e arrastam esse asno que duas crianas querem

    ter como brinquedo. Ela continua pelas mos da criana que batiza o

    asno Balthazar, depois por aquelas que sobrecarregam o asno, que lhe

    batem e chicoteiam. E o asno , desde sempre, o smbolo da

    passividade. o animal que recebe os golpes. E o que far Balthazar

    at a prova de fogo que o matar no fim do filme, num caso de

    contrabando que termina mal. Nesse meio tempo, um outro jogo de

    mos se instala: o jogo do desejo do vagabundo Grard, que quer a

    jovem Marie do modo como as duas crianas queriam o asno, e que

    conduz sua caa a uma perfeita coordenao do olho e da mo. Essa

  • Jacques Rancire Intermdias 8

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    mo se aproveita da noite para se apoderar da mo de Marie pousada

    sobre o banco do jardim. Mas tarde ela desliga o carro da garota para

    imobiliz-la e faz-la sentir o poder do olhar que previamente a

    submete, antes que a mesma mo avance contra seu peito e em torno

    de seu pescoo. Mais tarde haver a mo da bofetada que obrigar

    Marie, revoltada, a reencontrar seu patro, e depois a mo de um

    moleiro, que vir se colocar sobre a de Marie, marcando para ela

    novamente sua dependncia.

    Todo o filme , portanto, a histria de duas presas, o asno e a

    garota, sob o julgo daqueles que afirmam seu poder pela coordenao

    do olhar com a mo. Como ento no ver uma alegoria como a de

    Deleuze? Grard, o vagabundo, , em suma, o perfeito diretor

    hitchcockiano: passa seu tempo montando armadilhas, como provocar

    acidentes ao derramar o leo sobre a calada, fazer o carro de Marie

    parar tendo Balthazar como isca, ou transformar o vagabundo Arsne

    em assassino ao faz-lo crer que os policiais vinham prend-lo e dar a

    ele uma pistola. Sem cessar ele estabelece com suas mos e suas

    palavras uma certa visibilidade que deve produzir os movimentos que

    ele deseja e permitir de novo gestos de captura. Grard assim a

    alegoria do mau cineasta, aquele que impe ao visvel a lei de sua

    vontade. Mas o paradoxo evidentemente que esse mau cineasta se

    parece estranhamente com o bom. A sua me, que lhe pergunta o que

    ela v de bom em Grard, Marie responde: isso que se sabe porque

    se ama? Ele me diz: Venha. Eu vou. Faa isso! Eu fao. Mas a

    igualdade de tom com a qual o modelo, Anne Wiazemsky, diz essas

    palavras acusa o parentesco entre o poder do caador Grard e o do

    diretor Bresson. Este tambm diz a seus modelos: Diga isso, e eles

    dizem. Faam aquilo, e eles fazem. A diferena, pode-se dizer, que

    Anne Wiazemsky, ao fazer o que Bresson quer, faz tambm outra coisa,

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    alm do que ele quer, produz uma verdade inesperada que o contraria.

    E a direo, por Bresson, das armadilhas do diretor Grard deve fazer

    a diferena entre as duas direes. Mas essa diferena joga sempre

    com o limite do indiscernvel. E essa indiscernibilidade um caso de

    jogos de mos. Bresson constri espaos hpticos, justapostos a mo,

    nos diz Deleuze. Este designa desse modo a fragmentao dos planos

    caracterstica do cinema de Bresson. Ele quer ver ali a potncia do

    interstcio que separa os planos e coloca o vazio entre eles, contra o

    poder dos encadeamentos sensrio-motores. Mas essa oposio entre

    duas lgicas opostas quase indiscernvel na prtica. Bresson usa

    planos visualmente fragmentados e raccords que constituem elipses. Ele

    nos mostra vontades de partes de corpos: de mos que tocam um

    ventre de asno, de braos que fazem o gesto do batizado, uma mo que

    entorna um galo de leo, a mesma mo que avana na sombra sobre

    uma mo que descansa na luz. Mas a fragmentao de corpos e de

    planos em si mesma um procedimento ambivalente. Deleuze v a a

    infinitisao do intervalo que desorienta os espaos e separa as

    imagens. Mas pode-se ver a exatamente o contrrio. A fragmentao

    um meio de intensificar a coordenao visual e dramtica: pega-se com

    as mos, portanto no h necessidade de representar o corpo inteiro.

    Caminha-se com os ps, portanto intil representar as cabeas. O

    plano fragmentado tambm um procedimento econmico para centrar

    a ao sobre o essencial, sobre o que se chamava entre os tericos

    clssicos da pintura o momento grvido de histria. A mo de Grard

    pode ser reduzida a uma minscula sombra escura que toca somente a

    forma branca a que se reduz mo de Marie. Mas essa fragmentao

    apenas acentua a coordenao implacvel de sua caa e do filme que

    a pe em cena. Todo o filme funciona assim segundo uma diferena

    quase indiscernvel entre a direo do caador voluntrio e a do cineasta

    do involuntrio. Do ponto de vista deleuziano, isso equivale tambm a

  • Jacques Rancire Intermdias 8

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    uma quase indiscernibilidade entre uma lgica da imagem-movimento e

    uma lgica da imagem-tempo, entre a montagem que orienta os

    espaos segundo o esquema sensrio-motor e aquela que lhes

    desorienta para que o produto do pensamento consciente se torne

    idntico em potncia livre disponibilizao das potencialidades das

    imagens-mundos. A cinematografia de Bresson e a teoria deleuziana

    pem em evidncia a dialtica constitutiva do cinema. Trata-se da arte

    que consegue essa identidade primordial entre o pensado e o no-

    pensado que define a imagem moderna da arte e do pensamento. Mas

    tambm a arte que inverte os sentidos dessa identidade para

    reinstaurar o crebro humano em sua pretenso de se tornar o centro

    do mundo e ter as coisas a sua disposio. Essa dialtica fragiliza de vez

    toda vontade de distinguir por traos determinantes dois tipos de

    imagens e fixar assim a fronteira que separa um cinema clssico de um

    cinema moderno.

  • De uma imagem outra? Intermdias 8

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    Jacques Rancire filsofo, ensasta e professor emrito do Departamento de Filosofia da Universidade Paris VIII. A sua escrita tem-se manifestado principalmente nas reas da histria, da filosofia, da esttica e da poltica. Autor, entre outras obras, de: La Nuit des proltaires (1981), O mestre ignorante (Fayard, 1987 e Ed. Autntica, 2002), O desentendimento. Poltica e filosofia. (Galile, 1995 e Ed. 34, 1996), Aux bords du politique (1998), A partilha do sensvel. Esttica e poltica (La Fabrique, 2000 e Ed. 34, 2005) e Linconscient esthtique (2001).

    Luiz Felipe G. Soares doutor em Letras (Ingls e Literaturas Correspondentes) pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2001), com tese sobre construo de imagens de identidade nacional (brasileira e americana) durante a Segunda Guerra, a partir do discurso em torno de Carmen Miranda. Possui mestrado em Literatura, tambm pela UFSC (1996), e graduao em Comunicao Social (Jornalismo) pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1988). Atualmente professor do Curso de Cinema da UFSC. Tem experincia nas reas de Letras e Artes, com nfase em Estudos de Cinema, Teoria Literria e Crtica Cultural, optando por leituras assistemticas, a partir, em geral, de pressupostos nietzscheanos. [E-mail: [email protected]]