caminhos marcantes - escola secundária josé afonso

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8/8/2019 Caminhos Marcantes - Escola Secundária José Afonso http://slidepdf.com/reader/full/caminhos-marcantes-escola-secundaria-jose-afonso 1/4 CAMINHOS MARCANTES I 2015. É verão. Um veículo serpenteia a paisagem rural inglesa. Tem por destino Portsmouth, na costa sul de Inglaterra e nele seguem Anastácia e José, um casal de portugueses, para celebrar o aniversário dele. Tudo parece perfeito, as filhas gémeas, recém-nascidas, ficaram com uma ama de confiança para que o casal pudesse disfrutar de um fim de semana a dois, o hotel que reservaram sobre a praia promete tranquilidade e até o dia está incrivelmente luminoso. Circular pelas estradas inglesas, onde se conduz pela esquerda, continua a ser um desafio para este casal habituado à condução continental. Este é mesmo o único aspeto que ainda lhes causa estranheza. De resto, a sua integração na sociedade tem sido um sucesso, ele como pianista já com créditos firmados na Royal Opera House, ela a construir uma carreia tímida, mas sólida, como pintora. II O fim de semana foi tudo aquilo que eles tinham desejado mas, aquando do regresso, o tempo mudou, começou a chover e José sentia-se com pouca disposição para conduzir. No entanto, a saudade das filhas bebés apressou-o. Durante o caminho, Anastácia aconselhou-o a parar. Não havia pressa! Até podiam reforçar o seu pequeno-almoço com um muffin e um batido, que lhe parecia? Pouco depois a impaciência de José, a curva pronunciada e o piso molhado fizeram despistar o carro que embateu contra um muro. No momento seguinte, Anastácia acordou no hospital. Tudo parecia confuso na sua cabeça e havia uma névoa a pairar sobre o seu quarto. Uma enfermeira acercou-se e deu-lhe a pior notícia: o seu marido havia falecido. Como era possível ter acontecido uma coisa daquelas? Ainda agora o tinha ao seu lado… Sentiu que tinha caído num buraco negro, nada fazia sentido. Não sabia como seguir em frente, nem cuidar das suas filhas. Chorou compulsivamente durante um dia, até se convencer de que não podia continuar assim. Tinha de ser a melhor mãe para as suas meninas. E naquele momento jurou a si mesma que tudo iria fazer para que o legado de José fosse transmitido às suas filhas. III

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8/8/2019 Caminhos Marcantes - Escola Secundária José Afonso

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CAMINHOS MARCANTES 

I

2015. É verão. Um veículo serpenteia a paisagem rural inglesa. Tem por destino

Portsmouth, na costa sul de Inglaterra e nele seguem Anastácia e José, um casal deportugueses, para celebrar o aniversário dele. Tudo parece perfeito, as filhas gémeas,

recém-nascidas, ficaram com uma ama de confiança para que o casal pudesse disfrutar

de um fim de semana a dois, o hotel que reservaram sobre a praia promete

tranquilidade e até o dia está incrivelmente luminoso.

Circular pelas estradas inglesas, onde se conduz pela esquerda, continua a ser

um desafio para este casal habituado à condução continental. Este é mesmo o único

aspeto que ainda lhes causa estranheza. De resto, a sua integração na sociedade tem

sido um sucesso, ele como pianista já com créditos firmados na Royal Opera House, elaa construir uma carreia tímida, mas sólida, como pintora.

II

O fim de semana foi tudo aquilo que eles tinham desejado mas, aquando do

regresso, o tempo mudou, começou a chover e José sentia-se com pouca disposição

para conduzir. No entanto, a saudade das filhas bebés apressou-o. Durante o caminho,

Anastácia aconselhou-o a parar. Não havia pressa! Até podiam reforçar o seupequeno-almoço com um muffin  e um batido, que lhe parecia? Pouco depois a

impaciência de José, a curva pronunciada e o piso molhado fizeram despistar o carro

que embateu contra um muro.

No momento seguinte, Anastácia acordou no hospital. Tudo parecia confuso na

sua cabeça e havia uma névoa a pairar sobre o seu quarto. Uma enfermeira acercou-se

e deu-lhe a pior notícia: o seu marido havia falecido. Como era possível ter acontecido

uma coisa daquelas? Ainda agora o tinha ao seu lado… 

Sentiu que tinha caído num buraco negro, nada fazia sentido. Não sabia como

seguir em frente, nem cuidar das suas filhas. Chorou compulsivamente durante um

dia, até se convencer de que não podia continuar assim. Tinha de ser a melhor mãe

para as suas meninas. E naquele momento jurou a si mesma que tudo iria fazer para

que o legado de José fosse transmitido às suas filhas.

III

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Anastácia olhou-se ao espelho. Tinham passado quinze anos sobre aquele

fatídico dia e ela só poderia estar orgulhosa do que tinha alcançado. Aquele era,

definitivamente, um dia para ser comemorado. -"Este dia é em tua homenagem!",

disse em voz alta, como se José estivesse a ouvi-la.

As três saíram de casa e dirigiram-se com as bagagens para o carro Mickey que

lhes abriu as portas. - Bom dia, senhoras!  –  Apertem os cintos que a viagem vai

começar!

- Já conhecem o novo modelo da Nissan?- referiu Joana, já em viagem, tocando

no écran tátil onde surgiu o newsvideo da marca.

- O que estão para aí a falar? Não estejam com ideias!- interveio Mickey,

travando de repente, fazendo as gémeas soltar um pequeno grito o que provocou um

riso geral.

Era uma brincadeira recorrente sempre que iam de viagem. Mickey mostrava-

se indignado com a ideia de ser trocado por outro modelo mais avançado e elas não

perdiam uma oportunidade de o provocar. Afinal todos sabiam que Mickey pertencia

àquela família e ficaria com elas para sempre.

Retomaram a conversa, recordando José e o quanto ele continuava a ser um

marco nas suas vidas. As inovações que tinham ocorrido desde 2015 tinham sido

enormes! Hoje em dia as mortes nas estradas eram coisa do passado. Com a

tecnologia robótica, os acidentes rodoviários deixaram de ter relevância.

- Se no tempo do pai já houvesse condução autónoma, provavelmente ele

ainda estaria entre nós – concluiu Rita.

Fez-se então um silêncio e cada uma perdeu-se nos seus pensamentos.

IV

Entretanto chegaram ao seu destino, o hotel sobre a praia, e o ambiente

mudou por completo. O brilho do mar, o cheiro a maresia, a frescura do ar, o barulho

das gaivotas e a temperatura doce inundaram-nas de tranquilidade e bem-estar.

Anastácia foi, então, assaltada pelas recordações vivas de José. Dos bons

momentos que tinha passado com ele, naquele lugar, sem saber que seriam os

últimos. Não pode evitar a emoção mas a alegria e entusiasmo das filhas trouxeram-na

ao presente.

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Dirigiram-se ao quarto com uma grande varanda aberta sobre o mar onde

passaram as horas seguintes a gozarem a companhia umas das outras, envolvidas por

aquele suave ambiente.

Ao fim da tarde preparam-se para o que as tinha trazido até ali. Caminharam

pelo pontão da praia até ao local onde tinham sido lançadas as cinzas de José, háquinze anos atrás.

O mar, apesar de calmo, fazia ali um rebuliço ao bater nas rochas e aquele foi o

único som que se ouviu nos momentos em que as três ali permaneceram, cada uma

perdida nos seus pensamentos.

As gémeas não podiam ter recordações físicas do pai mas Anastácia tinha, de

algum modo, conseguido manter a sua presença nas suas vidas e não sentiam

amargura pela perda, só saudade. Tinham construído uma imagem afetiva do pai e,

por isso, aquele momento estava a ser vivido com serenidade e alegria.

Regressaram à praia, envolvidas num longo abraço, até a uma tenda montada

no areal onde iriam ficar instaladas.

V

O dia estava a terminar. O sol, oblíquo no horizonte, emprestava uma

tonalidade quente ao ambiente. Anastácia reparou, com agrado, que tudo se

encontrava organizado como ela tinha encomendado. No centro da tenda estava umamesa posta onde iriam jantar, decorada com as fotografias antigas de José e Anastácia

com as gémeas e no centro o bouquê de casamento. Anastácia tinha-o secado e

preservado com cuidado pelo que continuava bonito. Era uma homenagem a José por

causa das rosas azuis. Eram a sua flor preferida e uma espécie de talismã. Por ocasião

do seu primeiro concerto como solista em Londres, no musical Mamma Mia, no

Novello Theatre, tinham oferecido a toda a companhia rosas azuis.

Para ele, aquele dia tinha sido inesquecível, o dia em que tinha atuado pela

primeira vez num palco daquela dimensão. Era o culminar do sonho de uma vida e asrosas azuis, o símbolo dessa conquista.

Ouviram-se uns acordes no ar e ela sorriu, pois reconheceu a melodia “Lay all

your love on me”, do mesmo musical e que José apreciava especialmente.

Se tudo ali tinha sido preparado em sua homenagem também a escolha do

menu não podia deixar de o ser. Por isso o prato principal seria, todas o sabiam,

Chicken Tikka Masala. Nos primeiros anos em Londres, José tinha-se deliciado com

este prato de origem indiana. Para ele constituía o cúmulo do exotismo e um marco da

sua vida naquele país. Para sobremesa um arroz-doce bem português.

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VI

A noite tinha descido e a luz dos candeeiros a velas iluminava o ambiente.

Anastácia achou que estava no momento de revelar a surpresa que tinha preparado.

- Meninas, tenho uma novidade a comunicar-vos! - anunciou. - O que acham de

virmos viver para aqui, em Portsmouth? Poderia ser uma oportunidade para a minha

carreira. Terei novas paisagens para me inspirar e até mais clientes por causa dos

turistas. Quanto a vocês, também penso que beneficiariam com a mudança.

- Fantástico! - disseram as gémeas quase em uníssono.

- Até podemos aprender surf … Seria uma boa mudança para todas nós!-

entusiasmou-se Rita.

- Sim, concordo. Para não falar no clima!- adicionou Joana.

Felizes, voltaram para o seu quarto de hotel. Enquanto as suas filhas se

preparavam para deitar, Anastácia dirigiu-se à varanda. O mar parecia um espelho e

uma suave brisa marítima subia pela encosta e chegava até ela.

O ar estava calmo.

Anastácia reparou então no céu brilhante e aí descobriu uma estrela que se

destacava mais do que as outras. Sorriu, e percebeu que tinha tomado a decisão certa.