caminhos africanos e giros afro-brasileiros

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C aminhos afriCanos & Giros afro-brasileiros Edições Toró Taboão da Serra 2009

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Caminhos Africanos e Giros Afro-BrasileirosCaminhos Africanos e Giros Afro-Brasileiros

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  • Caminhos afriCanos & Giros afro-brasileiros

    Edies Tor Taboo da Serra 2009

  • ndice

    Ancestralidade do barro: cangomas da afrodescendencia ... 03

    A lgica do corpo: a memria inscrita ... 19

    Fios de frica ... 27

    Candombl, movimento e geografia ... 30

    Matriz afro-brasileira: suas tranas e encruzilhadas ... 34

    Encontros

    24/10 Ancestralidade do barro: Cangomas do Afrodescendente, com

    Marcos Ferreira Santos (Msico e Arte-educador. Professor da Faculdade de

    Educao da USP)

    31/10 A Lgica do Corpo: Plsticas e Prticas, com Sarah Rute (Artista

    plstica . Educadora da rede municipal de ensino e do Museu AfroBrasil)

    07/11 Fios de fricas: Tecidos e Identidades, com Luciane Silva

    (Pesquisadora e Educadora da Casa das fricas. Danarina. Professora-

    Assistente da FACAMP)

    14/11 Candombl, Movimento e Geografia, com Billy Malachias

    (Gegrafo. Pesquisador e Educador do CEERT)

    21/11 Tranas do Verbo: Entre a Saliva e a Pgina, com Allan da Rosa

    (Arte-Educador, Historiador e Poeta. Integrante do Grupo Irmos Guerreiros

    e da Edies Tor) & Confeco de Xequer, com Luiz Poeira (Arteso, Msico

    e Luthier. Integrante do Grupo Irmos Guerreiros e coordenador do Instituto

    Tambor)

  • 3anCestralidade do barro: CanGomas da afrodesCendenCiaPor Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos

    www.marculus.net

    Kama ndoto yako imekusumbuaKama inaogopa, kama imani yako imeondokaKama unaniitaUkitaka unaweza kurudi ndani ya moyo yanguUlale malaikaUlale mwana wanguUlale ulale...

    (Se teus sonhos te perturbaremSe ficares com medo, se tua f te deixarSe tu chamares por mimPodes retornar para as profundezas do meu coraoPodes retornar para as profundezas de meu teroEnto, dorme, meu anjo... dorme minha crianaDorme, dorme...)

    Somi, Ulale Malaika Wangu, Cantiga de ninar em swahiliUganda , 2004

    a danarina o ato puro das metamorfoses

    Bachelard (1988:151)

  • 4Na proposta deste pequeno texto, assim como da oficina proposta

    sem querer efetuar aqui uma digresso metodolgica importante

    ressaltar a nossa adoo de uma noo de estilo fundamental em nossa

    rea de conhecimento: toda reflexo e pesquisa, numa perspectiva an-

    tropolgica, sobre um grupo cultural e suas manifestaes simblicas,

    afetuais, poltico-sociais e econmicas pressupem uma jornada in-

    terpretativa.

    No dizemos aqui de uma tcnica de interpretao que possa ser uti-

    lizada de maneira instrumental, sem nenhum comprometimento on-

    tolgico. Ela uma empreitada onde, seguindo aquela sugesto de Paul

    Ricoeur (articular o olhar do gegrafo, o esprito do viajante e a criao do

    romancista), saio de meu lugar tranqilo e deixo meus pr-conceitos e

    pr-juzos (a epoch fenomenolgica) e vou buscando o sentido (tarefa

    hermenutica) nessas obras da cultura e da arte. Mas, curiosamente,

    essa jornada interpretativa (que me leva para fora) tambm me reme-

    te para o mais especfico, para o mais interior das minhas descobertas.

    Paradoxalmente, no mais estranho, no mais extico, no mais distante...

    eu me reencontro. a temtica exposta por Heidegger no crculo her-

    menutico: ao buscar o sentido nas coisas percebemos que somos ns

    que, reciprocamente, atribumos sentidos s coisas. No so aspectos

    somente antagnicos, mas, sobretudo, complementares da jornada in-

    terpretativa. O dilema passa a ser no, propriamente, como entrar no

    crculo hermenutico, mas como sair dele.

    De meu ponto de vista, a forma privilegiada de sair do crculo her-

    menutico, na troca incessante de sentidos (no momento poitico do

    crculo), a percepo do Outro em seu tempo prprio e o impulso cria-

    dor que nos toca: somos impelidos a criar.

    Por isso, minha necessidade de reafirmar essa hermenutica como

    jornada interpretativa em que a pessoa o incio, o meio e o fim da jor-

    nada e que suscita um engajamento existencial. No como tcnica de

  • 5interpretao de algum sentado, confortavelmente, em seu gabinete

    com seus dicionrios, nos seus cemitrios de palavras sem alma, e os

    utiliza para a exumao dos sentidos. Para mim, a maioria dos dicion-

    rios de smbolos e de mitologias um cemitrio1. O verbete uma cova

    num cemitrio de sentidos, pois ele foi retirado de seu contexto e se con-

    verte em palavras mortas dispostas em um esqueleto esqulido de aes

    desprovidas de sentido. Pode ser qualquer coisa, se aplicar a qualquer

    prtica ao bel prazer de qualquer propsito e, ao mesmo tempo, nada

    significar. Perde sua pregnncia simblica, perde esta caracterstica pr-

    pria de quem fecunda sentidos em uma gravidez de Ser. importante

    lembrar, cotidianamente, que a pregnncia vai de par com a maiutica

    (parir idias e sentidos), assim como a humildade vai de braos dados

    com a sabedoria. Basta olhar a altivez nos olhos negros emoldurados das

    rugas esculpidas pelo tempo e branqueados cabelos pelas tantas luas de

    nossas avs.

    A jornada interpretativa , precisamente, esse momento antropol-

    gico em que eu deixo o gabinete, a comodidade do lugar-comum, o meu

    lugar, o meu locus (lugar) e domus (lar) e, ento, viajo. Vou contemplar

    essa paisagem desde o seu interior, vou dialogar com as pessoas concre-

    tas l. E a ento, nessa exploso de sentidos, que se do as descobertas

    da constituio de nossa alteridade, me levam ao caminho de mim mes-

    mo, ao mais especfico de mim, numa reconstituio pessoal de sentidos.

    Pois , exatamente, esta busca no interior da substncia de uma ima-

    ginao criativa que caracteriza a oficina proposta. As profundidades

    da argila como pretexto prtico e plstico para o exerccio de uma mi-

    tohermenutica dos elementos ao modo bachelardiano que produz me-

    1 Salvo honrosas e poucas excees, como por exemplo o saudoso mestre, Juni-to Brando, em seu Dicionrio Mtico-Etimolgico de Mitologia Grega (Editora Vozes, 2 vols, 1993) em que cada verbete resgata sua narratividade e suas vertentes em vrias e generosas pginas.

  • 6tforas, imagens e smbolos capazes de organizar a nossa compreenso

    de si mesmo, do Outro e do mundo em que estamos mergulhados; no

    como plos isolados, mas como ns de uma trama que s se constitui

    enquanto tal na socialidade (Maffesoli, 1985) das amarras, laos e cises,

    ataduras e rupturas, sobre os fios da existncia.

    Tal mitohermenutica, como definem e praticam Ortiz-Oss (1980

    e 2003) e Ferreira-Santos (1998, 2004a e 2004b), se situa no qua-

    dro de uma filosofia latino-mediterrnea lastreada numa razn afectiva

    (Ortiz-Oss, 1995). Trata-se de uma postura filosfica de conciliao

    de contrrios (razo e sensibilidade2), caracterstica da cultura latina

    (itlica e ibrica) que se consolida s margens do mediterrneo pago

    da Grande Me (pr-cristo) e que dialoga em profundidade com a Pa-

    chamama (Me-Terra) amerndia e com a Me frika. Uma filosofia da

    pessoa afro-amerndia3, mais precisamente.

    No universo desta dialtica-sem-sntese4 em que se constitui a pes-

    soa que podemos praticar uma mitohermenutica como uma inter-

    pretao filosfica, de cunho antropolgico, que busca compreender as

    manifestaes simblicas nas obras da Arte e da Cultura a partir dos

    vestgios mticos e arquetipais nos arranjos narrativos das imagens e

    smbolos, tentando apreender a configurao das estruturas de sensibi-

    lidade na busca de sentido para a existncia humana (Ferreira-Santos,

    2004a; Ortiz-Oss, 1982).

    Em apoio ao nosso estilo mitohermenutico nos socorremos da fe-

    nomenotcnica de Gaston Bachelard (1884-1962), qumico francs nas-

    2 Veja-se a este respeito FERREIRA-SANTOS, 2005 e 2004b, bem como Ostrower, 1997.3 Para aprofundar os elementos propriamente africanos desta vertente veja-se Oliveira, 2003.4 Embora em quadros filosficos distintos (mas, convergentes), a expresso utilizada, ou adotada neste mesmo sentido, tanto por Berdyaev, Mounier, Bachelard como Merleau-Ponty, e mais recentemente, por Edgar Morin, no conceito de recursivi-dade.

  • 7cido em Bar-sur-Aube no vero montanhoso de um 27 de junho, sob

    o calor de seu sol campons do qual se demorar a deixar para viver

    a falta de materialidade natural no espao urbano e acadmico de Pa-

    ris. , precisamente, este calor natal que ser o movente primordial de

    sua tese de doutoramento (para alm das escolhas racionais) e que ser

    tambm retomado em seu ltimo livro. Curiosamente, envolvido com os

    telgrafos durante a primeira juventude, foi mobilizado de 1914 a 1919

    pelo exrcito francs durante a Primeira Guerra Mundial tendo vivido

    o front em unidades de combate e, por conseguinte, condecorado com a

    Cruz de Guerra.

    Vamos nos valer de sua distino fundamental da imaginao cria-

    tiva em suas duas expresses bsicas: a imaginao formal e a imaginao

    material (Bachelard, 1989a).

    A imaginao formal aquela que se distrai com a geometria f-

    cil das superfcies. Literalmente, aquela imaginao que brinca com as

    formas e as frmulas na abstrao ldica de um devaneio matemtico-

    racionalista ou na beleza das formas de uma simetria, de uma pers-

    pectiva ou das harmonias das linhas de uma obra para o deleite visual

    ou academicismo musical. Facilmente nomevel, as formas se bastam

    a uma epistemologia conceitual que se desengaja do mundo e no suja

    suas mos na matria mundana.

    No entanto, ainda que seja difcil separ-las de maneira to explci-

    ta, a imaginao material aquela que necessita das profundezas para

    alm das superfcies lisas e tranqilas de um olho preguioso. a rela-

    o de nossa corporeidade com os elementos lquidos, com os elemen-

    tos areos, com os elementos ctnicos e com os elementos gneos que se

    encontram na raiz da fora imaginante. De maneira ambivalente, esta

    materialidade suscita um aprofundamento e um impulso (Bachelard,

    1989a:3), um casamento e um combate (p.14), suscita o equilbrio entre a

    experincia e o espetculo (p.16), pois em relao s matrias primordiais,

  • 8a vista lhes d nome, mas a mo as conhece (p.2).

    A dinamogenia decorrente desta relao primordial (corporeidade

    e matria) tanto pode suscitar o mergulho em sua profundidade, pers-

    crutando a substncia desta matria, numa con-fuso com seu prprio

    mago (casa, abrigo, fundo do mar, o centro do furaco ou o interior da

    brasa...) ou ainda impulsionar-lhe a uma paisagem onde a mo cons-

    trutora ou destruidora lhe agita transformaes (modelar o barro, cons-

    truir, provocar temporais, conduzir as ventanias, incendiar...). Os mo-

    ventes da matria (a vontade, a intimidade, o repouso, o movimento e a

    sublimao) produzem o carter dinmico destas relaes em ciclos de

    euforia e disforia cujo ritmo e movimento nos autorizam uma espcie

    de ritmanlise, pois o que mais importa o que Bachelard chama de

    anlise do movimento mais do que anlise das idias. Ao contrrio, seria

    como deixar a natureza fisiolgica do ritmo5 para ficar apenas com a na-

    tureza intelectual da harmonia6. Que abenoada seja a roda de capoeira

    de angola que dana e canta ! Este um dos enganos mais freqentes

    nessas linhas recentes de investigao, pois so precisamente as conste-

    laes de afinidades que permitem refletir sobre os meios de transmisso de

    um mito, seja por difuso, seja por ressonncia antropolgica, em situaes

    idnticas.7.

    Assim sendo, vamos efetuar alguns dilogos simblicos entre a cria-

    o de imagens arquetpicas na modelagem da argila e o filme A Luz

    se Fez (de Otar Iosseliani, 1989), tentando evidenciar como poderiam

    5 Bachelard nos informa sobre um filsofo brasileiro, Lcio Alberto Pinheiro dos Santos, que muito o influenciou utilizando o que se chama de ritmanlise. Veja-se Bachelard, 1994:129-130. 6 Willems apud Durand, 1981:320, nota 302. Aqui ainda nos esclarece Ba-chelard em sua dinamogenia: Mas o criador de msica escrita tem dez ouvidos e uma mo. Uma mo para unir, fechada sobre a caneta, o universo da harmonia; dez ouvidos, dez atenes, dez cronometrias para escutar, para ampliar, para regular o fluxo das sinfonias. (1990b :256).7 Durand, 1983:42.

  • 9ser discutidos os temas ancestrais em sala de aula, possibilitando um

    dilogo fecundo com os alunos em sua prpria jornada na reflexo so-

    bre sua pertena a um universo muito mais amplo e antigo, bem como

    para uma possvel e saudvel assuno de sua ancestralidade, este trao

    da constituio de nosso processo identitrio que alm de nos dizer de

    nossa pertena, de nossa dvida constante com os ancestrais, tambm

    muito maior que nossa existncia e nos ultrapassa. Somos portadores de

    algo muito mais amplo e mais profundo. Atravs de nossa voz, as vozes

    ancestrais re-encontram o seu canto no mundo.

    A msica como elemento central das transformaes, corpo e alma

    dos jeliya griot, matria etrea do vento que passeia pelas folhas da

    rvore me-ancestral , precisamente, como inicia E a luz se fez (1989).

    Mas, a crtica intensa de seu diretor, o russo nascido na Gergia, Otar

    Iosseliani8, apresenta a cena de uma gigantesca rvore sendo cortada e

    transportada por uma empresa madeireira, na regio de uma aldeia no

    Senegal.

    O contexto idlico da aldeia que vive ao modo ancestral engana o

    espectador desavisado. O matriarcado que transparece nos faz rever

    nossos preconceitos principais de raa, gnero, etnia, classe social. E de

    maneira, absolutamente, potica ao estilo dos jeliya griot.

    A aldeia atropelada por caminhes e carros da madeireira que pas-

    sam por ali e deixam revistas, balas e guloseimas para os aldees. Um

    motorista aperta a mo de um dos ancies que, sem entender do que

    se trata, lava as mos e sua esposa estranha o cheiro que permaneceu.

    Os homens lavam roupa no rio enquanto as mulheres caam e colhem

    frutas. Danam e cantam luz do sol ou luz da lua. Belas, imponentes,

    com seus seios mostra, sensualizam a natureza com sua fora seduto-

    8 Diretor nascido em 1934 e exilado por conta prpria em Paris desde 1982, com forte influencia do realismo-socialista, discpulo direto de Aleksander Dovjenko (1894-1956), o que ajuda a compreender seu fascnio pela paisagem africana.

  • 10

    ra. So vrias Ians (senhora dos ventos e dos temporais) e Oxum (orix

    das guas doces dos rios), andando pela mata com seus arcos e faces.

    Enchem um cesto de frutas que colocam sobre uma pequena balsa de

    taquara que desliza pelo rio at chegar onde os homens trabalham la-

    vando a roupa. Param um pouco e fazem sua refeio. Um outro cons-

    tri uma coroa de flores e, tambm numa pequena balsa de taquara, a

    deita no rio que a leva para sua amada.

    Os conflitos entre as mulheres so constantes (disputa sobre com-

    panheiros, posse de um pneu de caminho usado como bia no rio, etc),

    mas os ancios ajudam a resolver os impasses. Numa belssima cena, o

    poo da aldeia est vazio e eles vo derramando gua. Mas, a gua que

    cai no poo se esvai na terra seca. Imana, a anci da aldeia (espcie de

    Nan Buluku me-ancestral da lama que nos d a vida), entra em sua

    cabana e faz uma orao ao dolo de madeira que ela reverencia. Logo

    em seguida, comea a chover9. Na chuva, os amantes se reconhecem

    e se tocam. Os homens se renem para decidir, assim como um outro

    crculo de mulheres tambm se rene para decidir sobre os impasses.

    Toda a lgica de organizao do grupo comunitria. Tambm juntos

    vo para a encosta de um dos montes para assistirem juntos e aglo-

    merados o pr do sol no horizonte africano, uma das fotografias mais

    belas do filme.

    Um dos impasses resolvidos a autorizao para que Okonoro, uma

    das mulheres, se case de novo. Seu marido, ao contrrio dos demais,

    nada faz e dorme o tempo todo. Cansada disso resolve deix-lo levando

    os filhos. Yere, rapaz apaixonado por Okonoro constri uma nova cabana

    9 Em vrias vertentes na frica Central, Nan Buluku me do par primor-dial Mawu (por vezes, feminino) e Lissa (por vezes, masculino). Lissa teria ensinado aos homens o plantio e o manejo com a metalurgia. Mawu se faz presente nos tem-porais e na chuva. Estes dialogam, intensamente, de maneia simblica, com Ians e Ogum, da tradio yorub. De qualquer forma, os elementares esto presentes: gua, ar, terra e fogo.

  • 11

    para eles. Comunica que a cabana est pronta ao batucar num tambor

    feito com um tronco de rvore, pendurado horizontalmente. Assim que

    a aldeia autoriza, passam a viver juntos. No casamento, ambos vo para

    a nova cabana com uma jovem palmeira nas mos para plant-la junto

    cabana. curiosa a semelhana deste ato fundador com o mito de

    Pindorama, na tradio amerndia brasileira: as palmeiras (axis mundi)

    que sustentam o mundo. Quando do dilvio que tudo destruiu, somen-

    te os tupi que estavam no alto das palmeiras, que sobreviveram para

    povoar o mundo novamente. Okonoro vivendo com Yere engravida no-

    vamente.

    Imana, numa cena emblemtica (que ainda mais a identifica com

    Nan), vai construindo um homem na areia. Seu corpo aparece enter-

    rado, de maneira sentada, com ps e braos mostra. Imana recolhe de

    um pano a cabea (ori) embrulhada e coloca sobre o pescoo do corpo

    sentado na areia. Seu velho marido assiste. Ela costura a cabea sobre

    o pescoo com folhas e, logo em seguida, assopra sua alma... o homem

    abre os olhos e revive. A ressonncia mtica desta cena com a cabe-

    a de Orfeu. Fazer a cabea, ou na linguagem das religies de matriz

    africana, seu ori, revelar seu orix, equivale a recuperar o seu canto,

    recuperar a memria dos ancestrais, nascer de novo.

    Politicamente, podemos verificar este mesmo processo no movi-

    mento de independncia dos pases africanos ao colonialismo europeu

    Arglia, Angola, Moambique, Guin, etc em que atravs de processo

    revolucionrios ou mais-ou-menos democrticos, assumem sua prpria

    cabea. Mas, no sem a alma soprada pelas divindades e o corpo mol-

    dado pela terra-me.

    Lazra, outra mulher importante na narrativa (senhora das cermi-

    cas, espcie de Ogum feminino10), chamada pelos ancestrais para agir

    10 Ogum, o deus ferreiro yorub, sincretizado com So Jorge (neste caso, o dra-go simbolismo do forno-tero do ferreiro), que teria recebido a arte da metalurgia

  • 12

    na aldeia, assim como ocorre com os sangoma de tradio zulu. Ela entra

    na cabana e vestida para tal. A semelhana com a tradio afro-bra-

    sileira apaixonante: com saias de palha, um vu com contas e bzios

    sobre a face, faco e perneiras, ela vai at a cabana de Imana, a anci. La-

    zra incorpora Omulu, o velho, senhor do cemitrio e diz a Imana que ela

    precisa se retirar da aldeia e que a menina que vai nascer ter seu nome.

    Imana, resignada, monta seu cavalo e parte para a floresta. Depois de

    terminada sua obra na aldeia, retorna sua origem. Lazra retorna para

    sua cabana, tira a roupa cerimonial e chora. Assim como Nan, que d a

    vida, moldando os seres humanos em seu barro, exige que retornem ao

    seu elemento no final da jornada; segue Imana, na narrativa do filme,

    de volta floresta e ao mistrio. Comeam, ento, os desastres e dese-

    quilbrios da modernidade, a doena dos corpos sem alma.

    Na seqncia, ocorre o rapto ao modo da grega Eurdice - um outro

    motorista da madeireira passa pela aldeia, oferecendo guloseimas, leva

    consigo a esposa de Yere, Okonoro e seus filhos. Yere parte, ento, para

    encontr-los e traz-los de volta. Ao lado de seu burrico, Yere inicia

    sua saga pelos caminhos da nova frica. Encontra pelo caminho grupos

    islmicos reunidos para a orao crepuscular. Pergunta de sua esposa e

    ningum sabe responder. Segue novamente e encontra um grupo cris-

    to celebrando uma missa em campo aberto. A mesma coisa ocorre e

    para as armas e os instrumentos agrrios de Lissa (filho/filha de Nan), expresso do ferreiro divino que auxilia na tarefa civilizadora da cultura sem perder seu spro (anima), sua alma (tal como o Hefasto grego). Neste filme, se reala a pregnncia fe-minina deste ferreiro, pois no desenvolvimento das culturas agrrias, o surgimento da cermica (e logo depois da metalurgia agrria), devedora das mos femininas que se concentravam nas tarefas de coleta e cultivo. Neste sentido, poderamos dizer da ancestralidade das ferreiras, como podemos verificar nas culturas drom (ciganos sados do Vale do Indo e tambm povos que vivenciam a dispora), bem como entre os zulu, na zona sul-africana. Uma das expresses mais belas do canto desta tradio o grupo vocal Ladysmith Black Mambazo (ladysmith, em ingls: ferreira). A mesma ferreira que trago em meu prprio sobrenome.

  • 13

    ningum sabe responder. Continua e se depara com uma reunio de um

    partido poltico. Ningum sabe dizer de sua Okonoro e os filhos.

    Ele vai encontr-los no quintal de uma pobre casa na periferia.

    Nova forma de Hades, a periferia onde se encontra, escondida, nossa

    ancestralidade pois que rechaada pelos novos grupos dominantes: as

    religies institucionalizadas (partidarizadas em seu fundamentalismo)

    e os partidos polticos (a nova religio dessacralizada em seu funda-

    mentalismo laico). Mas, sobre aquilo que, verdadeiramente, buscamos

    sobre o nosso canto (nas duas acepes da palavra: como nosso lugar

    de origem e como nossa forma de cantar), expresso na anima; sobre isso,

    os outros grupos no sabem nos responder.

    Na viagem de retorno, na tomada de conscincia de nossa ances-

    tralidade, a recomendao de no olhar para trs mais radical: ao che-

    gar na aldeia, ela j no mais existe. Incendiada pela madeireira (este

    o motivo do ttulo ambguo: e a luz se fez), a aldeia agora s possui

    restos que testemunham a passagem do domnio ocidental: restos das

    cabanas, troncos cortados, vida ceifada sem plantio. Yere toma a esposa,

    Okonoro, e os filhos com o burrico, vem a palmeira que ainda sobrevive

    e tomam a estrada para uma nova jornada. No olham para trs.

    De outro lado, na cidade prxima da aldeia, Lazra com seu compa-

    nheiro encontra uma das mulheres da aldeia. J no est com os seios

    mostra e imponente em sua prpria luz e energia, com seu faco mo.

    Veste novas roupas. Se adapta. Lazra com o companheiro estendem um

    pano sobre a calada, junto a outros vendedores. Retiram da bolsa v-

    rios dolos esculpidos em madeira. Assim como o dolo que Imana re-

    verenciava.

    Alinham e organizam os dolos sobre o pano estendido e esperam,

    acocorados, a vinda de algum turista interessado em comprar. A jornada

    continua. No olham para trs. Seguem o vento. preciso re-encontrar

    o canto e dizer dele aos quatro ventos. Assim iniciam as transformaes:

  • 14

    sangomas, ou na corruptela brasileira, cangomas da afrodescedncia que

    ofeream um dilogo fecundo junto aos alunos os principais orfeus e

    eurdices, ianss, ogums, oxums e nans que hoje iniciam a jornada e o

    canto dos que nos acolhero amanh.

    propriamente o re-encontro com a ancestralidade que possibilita

    o renascimento. Descobri-lo preso nos pores da conscincia...

    De uma apropriao mazomba da concepo de sangoma, temos a

    noo de cangoma, do qual um jongo popular gravado na voz de Clemen-

    tina de Jesus, exemplifica este despertar para a conscincia que dorme:

    Tava durumindo, Cangoma me chamou

    Disse: Levanta Povo! Cativeiro j acabou...11

    Significativamente, quando Nelson Mandela tomou posse da Re-pblica Arco-ris, em 10 de maio de 1994, fez questo de que o ato fosse frente ao povo e ao ar livre, fora dos suntuosos edifcios do Parlamento sul-africano, erguido sobre o sangue do apartheid. Os generais, que o perseguiram durante tantos anos, agora o escoltavam. Fra, justamente, um sangoma zulu que, naquele ato, exorcizara os fantasmas. Em setem-bro daquele mesmo ano, um congresso de sangomas exprimia seu dese-jo de reconhecimento oficial da terapia tradicional com o mesmo status da medicina ocidental.

    Os sangoma so pessoas escolhidas pelos espritos ancestrais para a tarefa de conduzir a sade espiritual da comunidade. No se sangoma porque se quer. Os futuros sangomas so visitados no meio da noite pelos espritos ancestrais e, desta forma, no conseguem dormir pelas transformaes internas e pela responsabilidade perante a comunida-de. Um canto caracterstico desta fase da escolha do sangoma Angila-

    11 Original em Canto Popular do Nordeste, Coleo Discos Marcus Pereira, 1978. Outra verso mais recente se encontra em Mawaca.Tucupira Astrolabio, Ethos Produtora de Arte e Cultura, 2000.

  • 15

    langa (Eu no durmo). Seu carter solidrio e fraternal, alm do aspecto medicinal, baseia-

    se, sobretudo, no respeito ancestralidade. Uma das canes para a in-vocao dos espritos ancestrais chama-se Ihoyiya (invocao), utili-zada quando algum est sob possesso ou se invoca a cura de algum doente. Outra cano diz: wamemezUmngoma, ndiyagula ndinani na? Ndinenhloko ndinehlaba, ndiyagula ndinani na? (ndinani na = O que eu tenho?). O doente solicita ao sangoma que, pela interveno dos ances-trais, diga o que ele tem, qual a origem de suas dores. Toda a comunida-de invoca aos ancestrais que iluminem o sangoma para a cura (Makeba, 1988).

    Este aspecto solidrio to presente na cultura zulu que, tanto na prece de invocao como no agradecimento, a comunidade se irmana com o sangoma. Por exemplo, o canto Baya Jabula (Eles se regozijam), um canto de agradecimento, quando algum curado pela interven-o dos ancestrais no sangoma: Bayajabula abangoma, eha eya nembala bayajabula abangoma.. Aproximadamente, a citao significa: ns nos regozijamos quando os ancestrais do ao sangoma o poder de cura e d sa-de a um dos membros da comunidade, pois quando este est com boa sade, a comunidade que tem boa sade. (Makeba, 1988).

    Uma escultura em bano de Moambique, pertencente coleo do Museum fr Vlkerkunde (Parrinder, 1967: 97), representa um antigo medicine-man, um sangoma com vrias tatuagens pela pele e o ar sereno e altivo de quem respeitado pelo que ele representa. Ele intermedia as foras da natureza, os espritos ancestrais e o Sagrado, num trabalho, essencialmente, comunitrio.

    Estes aspectos nos levam a perceber como se articulam o barro, as imagens, as contas, os cantos e os santos na caracterstica principal das mitologias africanas que vimos investigando ao longo dos anos: a an-cestralidade.

    Ax.

  • 16

    Bibliografia:

    BACHELARD, Gaston (1989a). A gua e os Sonhos: Ensaio sobre

    a imaginao da matria. So Paulo: Martins Fontes.

    BACHELARD, Gaston (1990b). O Ar e os Sonhos: Ensaio sobre a

    imaginao do movimento. So Paulo: Martins Fontes.

    BACHELARD, Gaston (1994). O Direito de Sonhar. Rio de Janeiro:

    Bertrand Brasil, 4 ed.

    BRANDO, Junito de Souza (1993). Dicionrio Mtico-Etimolgi-

    co de Mitologia Grega. Petrpolis: Editora Vozes, 2 vols, 2. Edio.

    DURAND, Gilbert (1981). Las Estructuras Antropolgicas del

    Imaginario: Introduccin a la Arquetipologa General. Madrid: Tau-

    rus Ediciones. H traduo brasileira editada por Ed. Martins Fontes,

    1997.

    DURAND, Gilbert (1983). Mito e Sociedade: A Mitanlise e a So-

    ciologia das Profundezas. Lisboa: A Regra do Jogo Edies, Ensaios n.o

    7.

    FERREIRA-SANTOS, Marcos (1998). Prticas Crepusculares:

    Mytho, Cincia e Educao no Instituto Butantan um estudo de caso

    em Antropologa Filosfica. So Paulo: FEUSP, tese de doutormento, 2

    vols., ilustr.

    FERREIRA-SANTOS, Marcos (2004a). A Sacralidade do Tex-

    to em Culturas Orais. Dilogo revista de ensino religioso, IX, 35:14-18,

    agosto.

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    hermenutica e Antropologia da Educao em Euskal Herria e Ame-

    rndia. So Paulo: Faculdade de Educao, USP, tese de Livre Docncia.

    FERREIRA-SANTOS, Marcos (2005). Crepusculrio: Confern-

    cias sobre Mitohermenutica & Educao em Euskadi. So Paulo: Edi-

    tora Zouk, 2.ed.

  • 17

    MAFFESOLI, Michel (1985). A Conquista do Presente. Rio de Ja-

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    MAKEBA, Miriam (1988). Sangoma. New York: Imaginary Enter-

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    Rio de Janeiro: Vozes, 12 ed.

    PARRINDER, Geoffrey (1967). African Mythology. London: Paul

    Hamlyn.

  • 18

    Filmografia:

    Filme: E a Luz se fez

    Ttulo original: Et la lumire fut

    Direo e roteiro: Otar Iosseliani

    Inspirado: mitos de tradio oral do Senegal

    Fotografia: Robert Alazraki

    Cenografia: Yves Brover

    Msica: Nicolas Zourabichvili sobre folklore senegals

    Produo: Frana/Alemanha/Itlia/Senegal

    Elenco: Sigalon Sagna (Badinia), Saly Badji (Okonoro), Binta Ciss

    (Mzezve), Marie-Christine Dieme (Lazra), Fatou Seydi (Kotoko), Alpha

    Sane (Yere), Abdou Sane (Bouloude), Souleimane Sagna (Soutoura),

    Marie-Solange Badiane (Djou), Moussa Sagna (Lade), Ouissman Vieux

    Sagna (Gagou), Salif Kambo Sagna (Noukoume), Oswalda Olivera (Se-

    dou), Bouba Sagna (Chatoutou), Fatou Mounko Sagna.

    Durao : 95 min.

    Ano: 1989

    Distribuio: Belas Artes/Abril Vdeo (em formato VHS)

  • 19

    a lGiCa do Corpo: a memria insCritaP o r S a r a h R u t e

    O que a frica e como ela se traduz

    Partamos da tradio oral segundo Hampat B, que nos mostra que

    a palavra falada tem origem divina; possui valor moral fundamental

    vinculado foras ocultas nela depositada, no sendo utilizada sem

    prudncia. O universo material e imaterial no esto dissociados,

    compreendendo, ao mesmo tempo, religio, conhecimento, cincia

    natural, iniciao arte, histria, divertimento e recreao, conduzindo

    o homem totalidade. Apoiando-se em tradies da savana ao sul do

    Saara, ele nos conta como a palavra falada fora vital que emana do

    criador de todas as coisas, Maa Ngala, e instrumento da criao, quando

    Ele sente falta de um interlocutor e cria Maa, o Primeiro Homem,

    tornando-a, para os povos grafos, a fonte primordial do conhecimento.

    Sagrada e fonte de poder, ao pronunciar algo, se cria a coisa pronunciada,

    assim, dizer fazer, como nos conta a Gnese Primordial:

    No havia nada, seno um Ser.Este Ser era um Vazio vivo,

    a incubar potencialmente as existncias possveis.O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um.

    O Ser-Um chamou-se de Maa Ngala . Ento Ele criou Fan, um Ovo maravilhoso com nove divises

    no qual introduziu os nove estados fundamentais da existncia .Quando o Ovo primordial chocou,

    dele nasceram vinte seres fabulosos que constituram a totalidade do universo,

  • 20

    a soma total das foras existentes do conhecimento possvel.Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta

    a tornar-se o interlocutor (kuma-nyon) que Maa Ngala havia desejado para si.

    Assim, Ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e misturou-as; ento, insuflando na mistura uma centelha de seu prprio hlito gneo,criou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de

    seu prprio nome: Maa.E assim esse novo ser, atravs de seu nome e da centelha divina nele

    introduzida , continha algo do prprio Maa Ngala

    Hampat B nos ensina que a tradio oral a grande escola da vida

    que recupera e relaciona todos os aspectos; , ao mesmo tempo religio,

    conhecimento, cincia natural, iniciao arte, histria, divertimento

    e recreao. fundada na iniciao e na experincia para conduzir o

    homem sua totalidade, servindo para contribuir para a criar um tipo de

    homem particular, para esculpir a alma africana. Ele nos diz ainda que,

    se tal forma de transmisso e aprendizado se liga ao comportamento

    cotidiano destes povos, a cultura africana no , portanto, algo abstrato

    que possa ser isolada da vida; envolve uma viso e uma presena particular

    no mundo um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se

    religam e interagem. A tradio oral, portanto, se baseia numa concepo

    do homem, do seu lugar e do seu papel no mundo.

    Em material organizado para professores, SALUM1 fala sobre esta

    questo, lembrando que, ainda que no houvessem escrito sua histria

    anteriormente, os africanos e os povos autctones das Amricas e

    Oceania eles tm histria e uma escrita em objetos de arte plenos de

    mensagens codificadas por signos e smbolos que podem ser traduzidos, ou

    interpretados verbalmente, como o caso de muitos objetos proverbiais. Ela

    1 Marta Heloisa Leuba SALUM, Texto do guia temtico para professores fri-ca: culturas e sociedades, da srie Formas de Humanidade, do Museu de Arqueolo-gia e Etnologia da Universidade de So Paulo. Escrito em janeiro de 1999 e revisto e adaptado em julho de 2005 para publicao no site Arte Africana.

  • 21

    fala sobre uma fora relativa fora humana, um princpio vital que

    est presente em tudo o que existe: as rvores, as pedras, os astros, tudo

    influenciando a vida humana e vice-versa, numa relao de foras

    naturais, sobrenaturais, seres humanos e foras csmicas.

    Enquanto os europeus queriam dominar as coisas indiscriminadamente,

    os africanos davam importncia a elas, pois tinham conscincia de que elas faziam parte de um ecossistema necessrio sua prpria sobrevivncia . As preces e oraes feitas a uma rvore, antes dela ser derrubada, era uma atitude simblica de respeito existncia daquela rvore, e no a manifestao de uma crena de que ela tinha um esprito como dos humanos. Ainda que se diga de um esprito da rvore, trata-se de uma fora da Natureza , prpria dos vegetais, e mais especificamente das rvores. Assim, os humanos e os animais, os vegetais e os minerais enquadravam-se dentro de uma hierarquia de foras, necessria Vida, passveis de serem manipuladas apenas pelo Homem (1999/2005).

    Ao admitirem a existncia destas foras, ao contrrio dos europeus, os africanos as entendiam como forma de se lidar com as foras da natureza e do cosmo. Contrariando a idia europia de magia como sinnimo de falta de cultura, integravam de forma inteligente, o conhecimento sobre tais foras parte de suas cincias e sobretudo, de acordo com Salum, sua Medicina. Lembra-nos que o ocidente tem como importante instrumento da Ideologia do Desenvolvimento o vis econmico da Histria, onde o Capital, que emerge de fora das sociedades produtoras2, para dominar suas atividades econmicas com regramento conforme interesses externos elas e seus povos, modificando as relaes sociais e impondo um novo modelo de pensar e agir.

    2 As sociedades africanas tradicionais (ou pr-coloniais) tinham em suas atividades econmicas uma das formas de sobrevivncia, de acordo com o meio ambiente em que viviam, de suas necessidades materiais e espirituais, e de toda uma tradio anterior de vrias tcnicas e tipos de produo. Havia muitos povos nmades, que precisavam se deslocar periodicamente, e havia povos sedentrios, que fundando seus territrios, chegaram a constituir grandes reinos, desenvolvendo atividades eco-nmicas produtivas, tanto de bens de consumo como de bens de prestgio - em que se destacam vrias de suas artes de escultura e metalurgia (SALUM, 1999).

  • 22

    O corpo significado: Olhares para o corpo

    Na Grcia

    Soma= encher, inchar (peso, elasticidade, consistncia)

    Corpous = aspecto externo (forma, beleza e ornamento)

    Prapis = corao, esprito, inteligncia e ventre (objeto parte do

    sujeito)

    A cultura ocidental corpo separado do sujeito, influenciado pela

    religio crist, vai se estabelecer limites para este corpo, criando punies

    e formas de controle, delimitando sua expressividade individual.

    frica e Amrica pr-colonial

    Coexiste como dispositivo de:

    Identidade - Se forjava atravs de uma perspectiva de eterno retorno

    e de re-ligao com o espao perdido no tempo histrico colonial.

    Criaram dispositivos que buscavam restabelecimento do cotidiano e do

    presente vvido.

    Linguagem - Comunicao no verbal para a construo de

    estratgias que transgrediram, pela via do ldico, os rigorosos grilhes

    do cotidiano.

    Percurso adotado para combate e resistncia pela via corporal:

    pela religiosidade, pela dana, pela luta (como a capoeira) pela oralidade

  • 23

    Ser = ter corpo

    pelas vias desta corporalidade que o africano vai se reconhecer e

    se identificar:

    O corpo integra-se ao simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, direes de olhar, mas tambm de signos e inflexes micro-corporais, que apontam para outras formas perceptivas.

    Muniz Sodr

    O simbolismo contido em seu corpo, seja nas escarificaes ou nos

    seus gestos ou forma de se relacionar com o outro e com o seu entorno,

    articula-se a partir de sua corporalidade e territorialidade uma

    cultura simbolizada pelas vias do corpo e do territrio. O indivduo

    duplo embora ele seja um ser em relao, no havendo corpo individual,

    separado dos outro e do meio ambiente.

    O corpo que transmite: O corpo escravizado

    Poder: Veculo de resistncia sociocultural e como agente

    emancipador da escravido, gerado pelos signos de atitudes corporais o

    autodomnio dos corpos.

    Desfazimento: A coisificao do africano. O castigo e as relaes

    com o trabalho,

    - o corpo que vive no fazimento, no trabalho

    - sente o desfazimento e - se re-inventa no refazimento deste corpo.

    As canes de trabalho e a criao de meios de agilizar gesto, no uso

    das ferramentas de trabalho:

  • 24

    Nas casas grandes O corpo como recurso para ritmar e facilitar a lida

    (Bate o monjolo no piloPega a mandioca pra fazer farinha

    Onde foi parar meu tosto?Ele foi para a vizinha)

    Na vida cotidiana - A dinmica que cria a ao da vida cotidiana, na construo das casas ou na lavagem das roupas

    (Mandei cai meu sobradoMandei, mandei, mandeiMandei cai de amarelo

    Caiei, caiei, caiei)

    Nas cidades Nos preges dos vendedores e escravos de ganho, a ferramenta que acompanha o mover do corpo ou o corpo que acompanha o movimento do instrumento

    (Amo-lador de facas, tesoura-li-cate, de u-nha)

    III - O corpo que preserva e resiste: Sentir o corpo na

    esttica da afro-dispora

    A frica reverberou -se em signos dessemantizados, tpicos agenciamentos energtico csmicos. Tais signos trilharam caminhos

    que os levaram a desembocar em uma constelao de significados ldicos, expresses do desejo e do gozo saboreados em festividades, em

    cerimnias iniciticas e religiosas, em repertrio mdico e nutricional, enfim, constitudos em heranas cravadas no corpo, como memria da

    ancestralidade, pela tradio oral e gestual.

    Julio Tavares

  • 25

    As dificuldades criadas para o negro, interdies:

    acesso ao seu mundo cotidiano e aos seus familiares a preservao dos seus hbitos de cheirar, sentir, ouvir, ver e falar. acesso ao prprio corpo

    A capoeira foi uma resposta para recuperar a cosmo-viso que se

    atualizava nos gestos realimentando as heranas e os comportamentos

    por intermdio dos movimentos corporais cravados nos hbitos

    cotidianos.

    O corpo passa a constituir o saber comunitrio e a perfazer-se como

    arquivo e como arma.

    O nico lugar seguro, a herana do que ficou perdido.

    Configura-se em:

    Roda uma rede ou subsistema cultural, um trao ldico. o lugar-

    texto que contm subtextos que so os jogos. onde se concentram as

    foras, as energias que mobiliza o grupo para uma ao comum atravs

    da ludicidade que ela prope.

    Jogo a ginga - movimentao articulada de avano / defesa e esquiva

    /ataque. Na movimentao permanente, busca equilbrio dinmico que

    o jogador ir construir a singularidade do trabalho corporal.

    Conseqncias: reflexo acentuado, capacidade de concentrao,

    ampliao da viso perifrica.

    Corpo - a recriao dos signos de comunicao no verbais

    armazenados pela memria corporal, criou um programa de atitudes

    corporais, caracterizando uma rede de resistncias realizadas em

    prticas corporais.

  • 26

    Este corpo j possua: autonomia dos quadris (jogo de cintura)

    Gestos para construo de comunicao e ordenao de sentido

    Expectativa diante do projeto de liberdade, como resgate permanente

    de si e da comunidade.

    Berimbau instrumento musical africano que d ritmo ginga,

    contribuindo com a memria motora de uma coletividade.

    Bibliografia

    JECUP, Kak Wer. A terra dos mil povos: histria indgena con-

    tada por um ndio. So Paulo: Peirpolis, 1998.

    TAVARES, Jlio. In: Revista do Patrimnio Histrico e Artstico

    Nacional, n 25. Rio de Janeiro, 1997.

    SODR, Muniz. In: Revista do Patrimnio Histrico e Artstico

    Nacional, n 25. Rio de Janeiro, 1997.

    AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento: Negro de

    Corpo e Alma. So Paulo: Fundao Bienal/ Associao Brasil 500

    Anos Artes Visuais, 2000.

  • 27

    fios de friCaPor Luciane Silva

    O ato de tecer uma das mais antigas formas de tecnologia, surgindo

    em nossas vidas muito antes da cermica e da metalurgia. Inicialmente

    os tecidos eram usados apenas como proteo contra as intemperanas

    do clima e, posteriormente, passaram a indicar status social, riqueza e

    identidade tnica nas diversas sociedades.

    No continente africano, h panos especiais que so vestidos por rai-

    nhas e reis; partidos polticos que utilizam tecidos como forma de pro-

    paganda; Mulheres que saem s ruas trajando panos com provrbios

    impressos que expressam seus anseios e descontentamentos. L, os te-

    cidos so elementos cheios de simbologias que circulam por diferentes

    culturas e, em cada uma delas, transmite idias, mensagens sociais, va-

    lores familiares... Sem contar as belas geometrias, cores e texturas.

    H uma fala notvel de um sbio Dogon, povo do Mali, pas localiza-

    do no oeste da frica, que assim se expressa: Estar nu estar sem pala-

    vras. Esta frase, citada pela professora Margarida Petter em sua pesqui-

    sa sobre o significado dos panos e a relao com a linguagem Diula, povo

    que habita as regies da Costa do Marfim, Guin, Mali, Burkina Fasso,

    Senegal, mostra-nos a grande importncia dos tecidos neste caso para

    o ato de vestir.

    Voc j viu alguma imagem de mercados africanos? Em meio s

    ruas cheias, coloridas, repletas de aromas e diferentes sotaques vemos

    a presena marcante dos tecidos. L circulam Kents, Bogolans, Indigos

    e Capulanas, alguns exemplos de modalidades artesanais e industriais

    muito comuns em suas regies de origem.

  • 28

    Na frica do Oeste os mercados so centros vibrantes de comr-

    cio e troca para a difuso de quantidades sem fim de tecidos - os feitos

    artesanalmente, os bordados, os diversos gneros de tinturados, assim

    como os tecidos produzidos industrialmente no Haarlem, Manchester,

    Bamako, Accra, Lagos e mais recentemente, na China. ( Alisa LaGam-

    ma. The poetics of Cloth. In: The essencial Art of African Textiles. De-

    sign Without End)

    Quando conhecemos as diversas modalidades de tecidos espalha-

    dos pela frica vemos como so plurais as culturas do continente que

    semeou inmeras influncias na vida brasileira atravs das populaes

    escravizadas que aqui aportaram. Vejamos alguns exemplos:

    Kent: Tecidos coloridos elaborados pelos povos Ashanti e Ew, de

    Gana e Togo. Fazem parte de uma antiga tradio de tecelagem na for-

    ma de faixas que primeiramente eram solicitadas por reis para os gran-

    des cerimoniais. So confeccionados em faixas estreitas em pequenos

    teares portteis e depois costurados verticalmente para se tornarem

    vestimenta de mulheres e homens. Os Kents tornaram-se smbolos

    nacionais em Gana.

    ndigos: O ndigo, vegetal originrio do oriente e utilizado como

    matria prima para tinturas desde muitos sculos atrs, amplamente

    conhecido por algumas populaes da frica Ocidental, assim como

    por povos do deserto do Saara, como os Tuareg, conhecidos como Ho-

    mens Azuis, porque suas roupas e belos turbantes so, geralmente, tin-

    gidos em ndigo.

    Bogolans: So tecidos em algodo pintados com uma mistura de ar-

    gila e componentes vegetais em tons de marrom, ocre, amarelo escuro

    e vermelho escuro. Esta tcnica de pintura praticada principalmen-

  • 29

    te por mulheres dos grupos Bambara, Malink, Dogon e Senufo, habi-

    tantes do Mali, Guin, costa do Marfim, Burkina Fasso. Nos contextos

    tradicionais so tecidos utilizados em ocasies especiais Logo aps o

    parto, por exemplo. As geometrias dos desenhos tambm possuem sig-

    nificados especficos - so como formas de escrita.

    Capulanas: So tecidos multicoloridos, produzidos industrialmen-

    te, e que tm nas estampas o principal atrativo. H estampas comemo-

    rativas de datas nacionais, exaltadoras de personalidades e partidos

    polticos, educativas, comunicadoras de mensagens sociais ou simples-

    mente belas por seus grafismos e cores. Em geral h uma imagem cen-

    tral e alguns padres que se repetem na borda, formando uma espcie

    de moldura. Muitas vezes, acima ou abaixo do desenho h um provrbio,

    conselho ou palavra de ordem. O nome capulana especfico de Moam-

    bique, pas localizado na frica oriental, parte do continente banhada

    pelo Oceano ndico; em outras reas recebem outras denominaes :

    wax, fancy, panos, so alguns exemplos.

    Os tecidos seguem atuando como importante veculo de transmis-

    so de mensagens e simbologias. Cada cor, cada grafismo, cada trama

    tecida nos revela criaes e saberes de nosso ancestral continente afri-

    cano.

  • 30

    Candombl,movimento e GeoGrafiaP o r B i l l y M a l a c h i a s

    Plantando Ax.

    Pois galera, foi com muito entusiasmo e curiosidade que dia desses

    atrs recebi no meu endereo eletrnico uma mensagem do Allan Rosa

    pedindo para eu entrar em contato. Bem, o entusiasmo por que conhe-

    o o Allan j a alguns anos e desde o comeo nutro por ele admirao,

    respeito e carinho de amigo e pai. No sei se tenho idade suficiente para

    ser pai dele, creio que sim, mas o fato que todos esses sentimentos co-

    mearam l no NCN na USP, talvez seja mais apropriado no NCN NA1

    usp.

    A turma daquele ano foi muito especial, com muitos bons estudan-

    tes, guerreiras e guerreiros que com todas as dificuldades dos corres do

    dia-a-dia, resistiam, insistiam, persistiam e sonhavam, sozinhos e em

    grupo, em galera.

    Turma boa de conceito, de papo, de festa, de amizade, de estudo,

    companheirismo e de sonho. E na boa,... penso que sonhar o que d

    sentido vida.

    Foi l, no tempo passado, que o presente e o futuro foram desenha-

    dos, riscados, mapeados. Nas ilustraes do Marcelo, nas palavras do

    Allan, nos mapas do Srgio (in memoriun), trs filhos, trs axs, um

    sonho num mesmo movimento por... d i g n i d a d e!

    1 NA em maisculo porque nunca foi da universidade ele existe na universi-dade e hoje em dia encontra-se ameaado de despejo.

  • 31

    Comunicao, Histria e Geografia. Salete, Rosa, Pinheiro, trs jo-

    vens, trs sonhos, trs realidades que carregam o ax das folhas em so-

    brenomes de folhas e plantas.

    Laorie e Mogiba , EX! Nem tudo o que aparenta ser,

    mas tudo o que aparenta ser, ... EX!

    Candombl, Movimento e Geografia.

    Antes porm,... a curiosidade que falei a em cima virou satisfao e desafio, pois veio acompanhada do convite para organizar algumas idias sobre candombl, movimento e geografia e depois de organizadas bater um papo sobre elas. A mensagem foi: subir no bonde e tocar em frente. E assim, um pouco tmido, mas com muita coragem e um pou-co de medo (pela confiana depositada) que chego. Para falar de sonhos, falar da vida, falar de ns, com a beno deles.

    L onde comea a areia e termina o mar, l no quase indivisvel, l reina Exu.

    Os orixs so deuses de povos africanos denominados iorubs (Ni-gria e Benim). Olorum, o Deus supremo, criou os orixs e os encarre-gou de criar e governar o mundo. Cada orix responde por determinado aspecto fsico do universo, e por certa dimenso da cultura e da socie-dade.

    No Brasil os orixs foram misturados aos santos catlicos e com es-ses divide a tarefa de atender aos pedidos dos humanos. Os orixs so elementos da natureza, os femininos esto associados as guas, espe-cialmente as guas doces, Ewa, Oxum, Ians. Em frica diferentemente da Amrica, onde representa o mar, Iemanj deusa de um rio africano.

  • 32

    Nan, outra orix feminina, representa o fundo lamacento dos lagos e dos pntanos, zona de contato entre os elementos terra e gua.

    Os orixs masculinos ligados a terra so, Ogum, Omulu, Iroco. Ao ar, Oxal e Oxagui. Aos fenmenos atmosfricos do trovo, arco-ris e ventos, Xang, Oxumar, Ians (orix feminino). A vegetao e os ani-mais esto relacionados aos orixs caadores, Ogum, Oxossi, Ossaim, Enrinl, Logum Ed, sendo esse dois ltimos tambm de rio.

    Cossi eu, cossi orix Se no h folha no h santo.

    Ossaim no candombl o orix que responde pelas folhas, assim como Ogum e Oxossi um deus de ar livre, situa-se fora do barraco, mas sua morada a mata. senhor de todas as plantas selvagens que crescem livremente. Acredita-se que as plantas de jardim por mais medicinais e benficas que sejam, no possuem a mesma fora sagra-da daquelas que crescem nas matas selvagens domnio desse orix. Por isso no se adentra na mata sem antes saud-lo com seu canto pedindo permisso.

    As folhas e ervas so usadas em todos os rituais, nelas concentram-se o ax desde a colheita, macerao, infuso. Destinam-se a banhos e lavagens e recomenda-se que sejam esfregadas, espremidas trituradas com as mos.

    No candombl as folhas nascidas das rvores e as plantas, consti-tuem emanao direta do poder sobrenatural da terra fertilizada pela chuva. Cada orix tem suas folhas prprias usadas em seus rituais. Xang imbaba, tabaco de Ians, mariwo (folha da palmeira) de Ogum, algodo de Oxal , ewe ob (folha do juzo) Ossaim, alm de outras as-sociadas aos seus respectivos orixs.

    Para quem mora no Brasil , o sol nasce da frica .

    Srgio Pinheiro

  • 33

    Paisagens em Movimento.

    O espao geogrfico, e a paisagem nele inserida uma acumulao desigual de tempos.

    Para cada lugar, quebrada, regio de um pas, de uma cidade, de um

    bairro, ocorre uma acumulao desigual de tempos. O tempo da av,

    o tempo da me, o tempo da filha. As coisas (objetos) no mudam no

    mesmo instante. Na mesma rua podem circular carro e carroa, cavalo

    e bicicleta, podem voar uma pipa, um pssaro, um avio, pode-se ouvir

    msica de um berimbau, de um cd, de um pen drive, de um vinil. Cada

    objeto natural ou artificial se altera continuamente em forma e signifi-

    cado acompanhando as alteraes da sociedade. Cada forma das coisas

    alterada, renovada, suprimida, adaptada para dar lugar s necessidades,

    (nem sempre das pessoas), mas sem dvida da estrutura social.

    A paisagem assim descrita pode ser entendida como uma trans-

    crio do tempo no espao. E o espao geogrfico como uma ruga do

    passado no tempo presente. Movimentos na paisagem. Paisagens em

    movimento.

    Crditos:

    O texto foi inspirado em conversas e leituras da rua, da vida e do

    mundo, portanto parte do texto tem como crdito a existncia humana.

    A outra parte vem das leituras de:

    AUGRAS, M. O Duplo e a Metamorfose: a identidade mtica em

    comunidades nag. Petrpolis: Vozes, 1983.

    PRANDI, R. Contos e lendas afro-brasileiros: a criao do mundo.

    So Paulo: Cia das Letras, 2007.

    SANTOS, M. Pensando o Espao do Homem. 5 edio, So Paulo:

    Edusp, 2004.

  • 34

    matriz afro-brasileira:suas tranas e enCruzilhadas P o r A l l a n d a R o s a

    Num momento em que se demonstra urgente o ensino de histria

    e cultura africana e afro-brasileira na escola, temos o risco de ensinar

    carto-postal, de ensinar vazio e caricatura, desrespeitando tanta beleza,

    fundamento e cincia elaboradas durante sculos de resistncia.

    Neste espao da cartilha, e nestas semanas que reunidos nossos

    corpos geram e transmitem conhecimento e sensibilidade, nem cabe

    aqui o tanto giro desenvolvido por nossos ancestrais, por nossas crianas

    e por ns, dia a dia, noite a noite, h muitos invernos e primaveras.

    A vitalidade de nossos gestos e filosofias como um cavalo, nobre e

    elegante, de galope sedutor, manhoso, bailador. Nobre, mas acostumado

    a sujar seus cascos tambm nos charcos mais podres.

    Dessa vitalidade, aqui pra baixo vou citar, desenvolvendo idias

    sobre algumas das fundamentais marcas nossas, presenas de sempre,

    que no so camisas com gola de arame farpado nem p de gesso no

    salo, que no so correias militares visando a paralisia, mas so marcas

    de fontes que garantem a raiz, em seu movimento de firmar, alimentar,

    crescer e frutificar.

    Estudando a Capoeira Angola com suor e ouvidos, com a cabea e a

    sola, podemos perceber como estes elementos esto em nossa vivncia

    a cada instante, aqui na Senzalinha. E ns os encontramos, atentos a

    mais outras formas de resistir como indivduos, como pessoas e como

  • 35

    comunidade, compreendendo outras formas boladas entre o lamento e

    a redeno, entre a sanha e o sonho de ter que sempre se afirmar como

    gente, peleja de se garantir como ser humano, fato que bordou a filosofia

    de ser negro no Brasil em outras quebradas, ladeiras, esquinas e roas

    das Amricas todas.

    Jongos, caxambus, partidos-altos, sambas de tantos jeitos, bumbas-

    meu-boi, maracatus... e os candombls, tambores de mina, catimbs

    de devoo... nessa fieira de expresses que j brotam num ritmo em

    nossa memria, nessa linha de cultos e cultivos onde religiosidade e

    comunidade, msica, trabalho, segredos e cincias se misturam, est

    muita da fonte afro-brasileira. So mapas onde ainda vermelhas vo

    as marcas das pisadas pretas, que seguem pareadas com obrigaes

    dirias, com mos dadas e afetos ou desentendimentos prprios de cada

    comunidade. Talvez estas que citei a em cima surjam assim, jorrando

    e brilhando, pela potncia de sua poesia, de sua arte total, e por sua

    cantoria-instrumentao-dana, que so magnticas e que despertaram

    e despertam tanta vontade de chegar (ou de xingar, como as leis da

    histria toda do Brasil fizeram at agora h pouco. E ainda fazem muito.

    Entuchando a cultura afro em questo de delegacia ou de vergonha).

    Imaginemos o trato, em silncio concentrado ou em festa versada, de

    quem cuida das folhas e dos panos que simbolizam tantas passagens e

    desejos. Imaginemos quem pensa e monta a arquitetura das moradas e

    templos, quem modela e testa a sonoridade dos instrumentos, buscados

    e trabalhados no tempo certo da lua e do ano. Imaginemos o carinho e

    a responsabilidade de quem cuida da comida, da bebida, do remdio,

    de quem organiza as reunies entre as famlias e as comunidades pra

    resolver problemas e propor questes. Imaginemos... e agora vamos na

    busca de reconhecer alguns desses fundamentos que articulam nossa

    memria negra e nossa movimentao:

    A Ancestralidade talvez o princpio dos jeitos de viver afro-

  • 36

    descendente. O inico da noo de mundo. Sem congelar numa linha

    dura de antes-durante e depois, mas conjugando a cada instante, a cada

    toque, a presena dos mortos, dos vivos e dos que viro. Como num

    berimbau gunga que toca a sua cadncia, refazendo pro ar o toque que

    antigos j levaram e que tambm s de quem est tocando. Indito

    e milenar. Repetindo e ao mesmo tempo surgindo pela primeira vez,

    mensagem por dentro da eternindade para quem est vindo e j est

    aqui, na comunidade, no pensamento, no gesto. Esta fora de considerar

    o ontem, como viga pra tudo o que e o que vem. Esta escolha de

    considerar os mais velhos, esta nostalgia que no paralisa mas que puxa

    a graa e apresenta o destino.

    Diante das condies de giro aqui nas terras brasileiras, marca negra

    que se mistura a cada verbo e a cada olhar de resistncia o princpio da

    Luta, do Desafio. To presente mesmo nas trocas e pelejas do verso, da

    dana, do batuque. Princpio que se desamarra nos jeitos de abrir o jogo

    e aceitar o perigo, e tambm nas estratgias da necessidade. Em muitos

    campos, dos polticos mais institucionais e anestesiados, s cabanas e

    garagens das periferias, seja num comercinho ou no preparo de uma

    fuga, o tom da luta bssola no passo afro-brasileiro.

    Essa luta, se disfara volta e meia ( pra no dizer sempre), dadas

    as condies injustas que fazem o p da sociedade, o cho das (ds)

    estruturas. Entra no seu cozimento a Seduo. Seduo que aqui no

    est ligada idia estereotipada de sexualidade superficial, leviana, mas

    sim aos truques e artimanhas. Como no movimento que faz ir por ali e

    vai por c, como na malandragem sadia e ligeira que chama ao contato.

    Que seduz porque se deixa seduzir, porque risco, necessrio e desejado.

    Estas pontes de luta e seduo fluem bem num ambiente de Jogo.

    Jogo do If, jogo de Angola. Jogo do batuque e do tempo. Jogo com as

    surpresas, que se realam porque fagulham no inesperado que as regras

    reforam. Jogo porque aberto, dentro das regras combinadas, s tantas e

  • 37

    tantas possibilidades de perguntar e responder, diferentes da previsvel e

    mecnica forma de ver o mundo (e quando muito, s ver) que considera

    tudo como causa e efeito, desconsiderando as muitas vertentes que o

    caldo do jogo abre.

    Matutando sobre o jogo e a seduo, espraiadas pelas lutas contnuas

    de sempre, sem data separada dos calendrios que rodam, a gente percebe

    como a Aparncia (esta to desprezada pela metafsica europia, que

    a v como quem garante erro e engano) e o Estilo so importantes

    na pegada dos quereres e dos seres. Assim como a Teatralidade, que

    aberta aos entendimentos, arma e carinho. Que abre bifurcaes no

    entendimento e no se murcha na determinao de um sentido s.

    Teatralidade que representando apresenta o mundo, desanuvia e que

    pode enganar os inimigos. Teatralidade no passo e na colheita.

    Na dificuldade de se afirmar como gente, como pessoa que gera e

    transmite amor e saber, chegando e continuando num pedao de cho

    estranho e indesejado, preciso criar um Territrio. Esse territrio

    pode ser o peji do santo, pode ser a encruzilhada, pode ser a porteira,

    tudo que parece ficar em mais do que um lugar, o que parece arranjar

    sua vitalidade num entre-lugar. A roda um territrio, clssico, da

    cultura negra. Completa, mvel, horizontal, ambiente de troca e de

    ensinamento, ritmado por natureza. Comunidades, fundos de quintal

    e, principalmente, o prprio corpo da gente, um territrio, um mapa

    de lutas e de encontros, de reconhecimentos e estranhamentos. Templo

    primeiro, territrio.

    A concepo bantu de compreenso e experimentao da vida d ao

    Movimento um papel que no se d a outro. Nada considerado inerte

    e a falta de movimento sinal de doena e decrscimo de energia. Assim

    como as energias ancestrais esto em movimento, exigindo trato e culto,

    a fora dos vivos se alimenta do movimento, fundamentado, com base,

  • 38

    que no rasga a atmosfera machucando o redor, mas que na dana da

    presena tem a inteno de se harmonizar a natureza e ao espao onde

    se acolhe.

    Nos jogos e no cotidiano de cada comunidade que se afirma como

    afro-brasileira, a Iniciao pe as frestas dos antigos em contato

    com os nossos teores mais ntimos. Etapas, degraus, cheinhos de atos

    e materiais simblicos, recheiam e do base. Essa inciao pode pedir

    retirada pra aprofundamento, pra rituais guardados e tambm pode ser

    considerada como o que acontece quando o mestre inicia, dia a dia, seus

    discpulos e aprendizes nos tabuleiros da vida, que sua cincia permite

    contemplar e suar.

    O Segredo mais uma cor desse arco-ris de ancestralidade negra.

    Ele mesmo quando anunciado, tem a fora de no matar o mistrio.

    Uma rasteira guardada em segredo dentro de uma linha de movimentos,

    um objeto saravado que mantm seu encanto e sua aura, um quartinho

    reservado, um lugar com suas histrias que no se expem toa, tudo

    isso soma, garantindo nas entrelinhas majestade pra seguir.

    em Comunidade que se cuida, que se inventa, que se vive e se

    celebra. Roda nenhuma se faz sozinho, assim como no assim se monta

    terreiro. E essa comunidade engloba tanto os que esto ao lado quanto

    os que esto dentro, nos costumes, os antigos e j idos. E na razo dessa

    comunidade que se desata a intuio, que se trabalha a vida e se resiste.

    A histria das comunidades negras feita com a fora de seus

    pensadores, e estes esto ligados no seu cho. So as mulheres que

    acolhem e refletem sobre as sadas, as mesmas que agem e que partem

    e repartem. So os Mestres, que por meio de seus ofcios, no caem

    na pasmaceira de separar o pensamento do gesto, no separam a

    cabea do restante do corpo. So sim, intelectuais, mas sem marra

    e sem bolor e sempre trilhando o destino de seu povo. Organizando,

    pleiteando mudanas e conservaes. Guiando, trazendo o conforto de

  • 39

    seus pensamentos mas tambm botando a espinha pra arrepiar, quando

    com suas artes, por dentro das comunidades, elaboram suas crticas e

    rinhas. Nos ltimos 500 anos, pode se perceber o estrago que se fez

    nas comunidades negras, quando seus mais velhos, seus mestres, seus

    artistas, eram escorraados, presos ou mortos, na inteno elitista de

    vampirizar ainda um bocadinho mais.

    A concepo bantu de universo, h centenas de anos prope que,

    seja nos tempos ou nos espaos, tudo est interligado. Toca-se aqui e

    reverbera-se ali, como uma Teia. E assim no se possvel separar arte

    de trabalho de vida de religiosidade. No se pode colocar os dias e as

    vontades e realizaes em departamentos, na cosmoviso bantu. J que

    tudo se interelaciona, dentro desse balaio de movimento, andando pelas

    encruzilhadas das sensaes e situaes, esperadas ou no.

    O que chamamos de Ax, que o Muntu para a nascente bantu,

    essa energia que temos que desenvolver, que vai muito alm de uma

    noo de bem ou de mal, e que mais apropriada noo de energia

    criativa ou destrutiva, positiva ou negativa. Nossos gestos e pensamentos

    ensolaram nessa praia dos nossos espritos, cabendo a ns desenvolver

    essa fora vital que ns, e tudo o que existe, traz. Na capoeira da vida.

    Agradecendo a ateno, mentalizo crescena e amor em nossos

    caminhos.

    Valeu e Vale!

  • Direo Geral: Mestre Marrom

    orGanizao PeDaGGica: Allan da Rosa

    concePo e DiaGramao De cartaz e aPostilas: Mateus Subverso e Allan da Rosa

    realizao: Grupo de Capoeira Angola Irmos Guerreiros & Edies Tor

    aPoio: ns por ns

    aGraDecimentos Plenos:aos educadores que vieram na graa e na luta e comunidade que

    chega ou oferece ateno.

    www.irmaosguerreiros.comwww.edicoestoro.net