camenietzki, carlos ziller. quando o céu era perfeito - revista de história

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    Quando o cu era perfeito

    Avanos cientficos retiram dos corpos fsicos a ideia da perfeio e ampliamos espaos da investigao celeste

    Carlos Ziller Camenietzki

    30/11/2011

    Gravura contempornea que representa afinitude do mundo. A mitolgicaestabilidade do espao celeste amparava aAstrologia na poca Moderna.

    A ideia de que o cu um espao privilegiado, lugar da perfeio e depsito de sonhos eesperanas das pessoas, to antiga quanto se pode imaginar. No se sabe ao certo quando e deque maneira essa noo apareceu e se instalou. Mas podemos tomar como certa a generalizaoda ideia de que o cu um lugar muito bom, para onde as pessoas vo quando esto muitocontentes, ou quando vivem prazeres extraordinrios. Mais ainda: aps a morte, para l quevo os felizes e aqueles de vida correta e bemcomportada.

    Vinculado a esta idia, o cu tambm j foi

    considerado o espao da perfeio, onde tudo erainaltervel: parece ser sempre do mesmo modo,sempre igual a si mesmo e, por isso, perfeito. Comesse aparato bsico, podese compreender alongussima vigncia da crena no governo domundo pelos astros. A Astrologia sempre estevefundada num princpio muito simples: o que permanente, perfeito, dirige o transitrio,imperfeito. Da em diante, o passo imediato: osastros governam os acontecimentos da Terra, a

    vida dos homens.O peso dessas crenas na nossa cultura muitomaior do que pensamos ordinariamente. O prpriovocabulrio revela isso em expresses de usocotidiano. A palavra desejar tem sua origem noverbo latino desidero, cujo radical sidus, estrela,para os latinos. Desta palavra tambm dependemdiversos outros verbos de uso corrente, como

    considerar, indicando que, em algum momento do nosso passado, considerar era algo que sesupunha fazer com as estrelas.

    A Astrologia sempre foi um saber vigoroso que seduzia os homens. Na sua prtica, ou seja, noregistro e na anlise dos movimentos dos corpos celestes, sempre lanou mo de conhecimentostambm teis em outros campos da atividade dos homens, como na Geometria. Com isso, essaparte instrumental da interpretao dos cus saber o posicionamento dos astros ganhounotvel projeo e acabou por se identificar com outra palavra de grande sucesso nas lnguasmodernas, designando um conhecimento distinto: Astronomia.

    Porm, a diferenciao entre uma prtica e a outra levou muito tempo para acontecer. Aseparao entre os significados de Astrologia e de Astronomia foi lenta ao longo dos sculos

    XVI e XVII, e na poca das Luzes, j estavam estabelecidos dois vocbulos distintos para essasduas prticas celestes. A primeira se referia ao conhecimento do futuro e fornecia umaexplicao para os acontecimentos presentes do mundo social e natural; a segunda tratava doestudo dos prprios astros, seus movimentos e sua dinmica.

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    Manuscrito francs do sculo XV com os signos do

    zodaco. A Astrologia acabou se dividindo em duas uma previa um futuro inevitvel e a outra dizia o queprovavelmente aconteceria. (Museu Cond Frana))

    A crena nas influncias celestes era togrande que a prpria formaouniversitria dos mdicos, at o sculoXVIII, inclua vastos estudos deAstrologia, e o seu papel na diagnoseera da maior importncia. Por exemplo,a obra do doutor Joo Ferreira da Rosa,mdico que se dedicou a estudar uma

    infeco contagiosa em Pernambuco em1694, comea com consideraes acercados eclipses e da disposio dosplanetas, que teriam aberto caminho aocontgio. Tratase do primeiro registrode uma infeco de febre amarela noBrasil, que teria comeado em 1685 eperdurou por mais de uma dcada.

    Mas se entre os mdicos o prestgio

    desta prtica sempre foi enorme, nemtodos os grupos sociais se comportavamda mesma forma, durante o mesmotempo, com relao a ela. Os religiosos,srios e severos advogados dos cus,aceitavam as concluses da Astrologia,mas sempre procuraram impor limites sprevises: nada poderia ser dito quepusesse em xeque a onipotncia divina;a cincia dos cus no poderia nuncaemitir juzos definitivos sobreacontecimentos que dependiam dasaes dos homens estes deveriamdispor de sua liberdade de escolha.

    Ento, uma importante distino acabou aparecendo: a Astrologia se dividiu em Judiciria aquela que emite juzos sobre as coisas e Natural. A primeira, nefasta, mentirosa, embusteiraetc. A segunda, inocente, til e importante para o conhecimento do mundo. Pela Judiciria, osastrlogos diriam o que vai inevitavelmente ocorrer; pela Natural, eles diziam o queprovavelmente vai ocorrer.

    A distino acabou por tornar aceitvel para os homens de Deus a ao do astrlogo nas cidades,cortes e palcios, onde suas previses se apresentavam mais como prognsticos do que comovaticnios. A eles cabia dizer a previso meteorolgica do ano, interpretar o significado de umeclipse ou da passagem de um cometa; dizer o destino provvel de um recmnascido, o sucessode um matrimnio, prever a descendncia de poderosos. Por exemplo, no ano anterior batalhaem que morreu D. Sebastio (15541578), rei de Portugal, no norte da frica, um grande e clarocometa apareceu nos cus e foi visto em todo o mundo. Sabedores dos preparativos do monarcaportugus, astrlogos adiantaram o prognstico ruim da perda do governo luso ainda em 1577.Ignorando as previses, o jovem rei foi ao combate, perdeu a batalha e a vida, e o cometa ficouconhecido como o sebstico, ganhando o nome daquele que no respeitou as previses dosastrlogos.

    Se o prestgio dos astrlogos era enorme, nunca foi unnime. Ainda no incio do sculo XVI, omdico Franois Rabelais (14941553) publicava prognsticos astrolgicos jocosos em Paris, nosquais as previses eram ridicularizadas. O doutor Rabelais previa coisas bvias usando o linguajardos conhecedores dos cus: o inverno seria frio e o vero seria quente, por exemplo.

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    Aqueles que ridicularizavam o conhecimento astrolgico acabavam por fazer par com sisudosmatemticos que rejeitavam a Astrologia como coisa v e de pouco uso, como o doutor PedroNunes (15021578), professor de Coimbra e cosmgrafomor da corte portuguesa. O incio dosculo XVII, alis, testemunhou o grande prestgio dos astrlogos na poltica europeia.Praticamente no havia grande monarca do Velho Mundo que no dispusesse de um matemticopara lhe fazer previses. Entre estes, Johannes Kepler (15711630), na corte do imperador emViena, e Galileu Galilei (15641642), na do groduque da Toscana, em Florena. At mesmo oVaticano dispunha de seus astrlogos para as previses de que necessitava, embora diversos

    papas tivessem emitido bulas contra a Judiciria, que atentava contra a onipotncia divina econtra o livrearbtrio.

    Porm, ao longo do sculo XVII surgiram vrias interrogaes acerca das maneiras como os astrospoderiam interferir na vida dos homens. Afinal, nesse sculo os homens acabaram por perceberque uma estrela coisa que est muito longe, mas muito longe da Terra, e pensar que seuposicionamento possa determinar algo num lugar to distante no ideia trivial. Certamente,algo deveria sair da estrela e viajar at a Terra levando a capacidade de interferir na vidahumana.

    A crena no governo do mundo pelos astros pressupunha um cosmo pequeno no qual suas partesestariam organicamente ligadas entre si, de tal forma que uma alterao em uma delasrepercutiria imediatamente nas demais. O mundo era um todo orgnico e feito exclusivamentepara ns, os ocupantes do centro da vida na Terra.

    Por outro lado, na segunda metade do sculo XVII, diversos estudiosos aventavam seriamente ahiptese da existncia de outros mundos, e isso mostrava a mudana da pauta das discusses,das preocupaes daqueles que estudavam o cu. De fato, o mundo se abria, e ainda que oshomens de saber usassem o mesmo vocabulrio de pocas anteriores, suas ideias j erambastante diferentes, suas crenas j no eram mais as mesmas.

    Nesse tempo, como expresso do malestar astrolgico, a Europa assistiu publicao de umasrie de livros que questionavam diretamente as antiqussimas crenas no governo do mundopelos astros: Fontenelle (16571757) publicou sua Histria dos Orculos, em franco dilogo comos antigos gregos, e Pierre Bayle (16471706), seus Pensamentos diversos sobre o Cometa. Asduas obras tiveram grande repercusso, e as ideias expostas serviram para acentuar aobsolescncia da Astrologia e o ceticismo cada vez mais generalizado quanto s influnciascelestes.

    A prpria ideia da ao distncia, to cara aos astrlogos, ganhou expresso precisa e definidacom a obra Princpios Matemticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton (16421727). Aindaque se aceitasse que um corpo distante pudesse interferir em outro, isso no poderia mais serfeito com base em crenas vagas e em raciocnios provveis.

    A enorme expanso das dimenses do mundo ocorrida ao longo do sculo XVI no foi relativaapenas geografia da Terra e da superfcie habitada pelos europeus e seus descendentes; ela foitambm celeste. O mundo fechado e pequeno em que os homens acreditavam viver eraperfeitamente compatvel com a crena no governo dos astros; mas aquele outro mundo queemergia em meados do sculo XVI, aberto, amplo e infinitamente povoado de estrelas e deplanetas, no se ajustava mais noo de que os acontecimentos terrenos fossem dirigidos pelasestrelas.

    A prpria ideia dos cus como espao da perfeio acabou perdendo seu significado fsico. Oshomens que so salvos por sua vida exemplar, ou pela livre e no motivada vontade de Deus, nose renem mais num lugar do mundo, numa parte privilegiada. A perfeio deixou de estar emum espao material. Ela certamente no deixou de existir, mas perdeu o endereo, no maisuma regio, um lugar onde se renem os beatos e os felizes; ela existe na esfera interior de

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    cada homem e no busca mais se realizar no mundo pela intermediao de estrelas, planetas esatlites.

    O mundo aberto que emergia, povoado de planetas e estrelas, no se ajustava mais noo deque os acontecimentos terrenos fossem dirigidos pelas estrelas

    Carlos Ziller Camenietzki professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coorganizadordeJesutas, Ensino e Cincia, Sculos XVIXVIII. Casal de Cambra: Caleidoscpio, 2005.

    Saiba Mais Bibliografia

    CAROLINO, Lus Miguel. Cincia, Astrologia e Sociedade: a teoria da influncia celeste emPortugal (15931755). Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2003.

    KOYRE, Alexandre. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

    ROSSI, Paolo. O Nascimento da Cincia Moderna na Europa. Bauru: Edusc, 2001.

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