presente perfeito 15

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Léo String é um observador do mundo e nada mais. Não interage, não se relaciona, praticamente não existe. Até que se depara com várias situações corriqueiras que o lançarão no meio de uma maré de desencontros e o forçarão a participar do mundo.

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Presente Perfeito

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São Paulo 2015

Presente Perfeito

Viviane Lago

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Copyright © 2015 by Editora Baraúna SE Ltda

Imagem da Capa Antonio Canova: Psiquê revivida pelo beijo de Eros - Museu do Louvre

Projeto Gráfico Jacilene Moraes

Revisão Textual Rafael Silvestre

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________

L175p

Lago, Viviane Presente perfeito / Viviane Lago. - 1. ed. - São Paulo: Baraúna, 2014.

ISBN 978-85-437-0203-2

1. Romance policial brasileiro. I. Título.14-18733 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

________________________________________________________________16/12/2014 17/12/2014

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTAEDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

Rua da Quitanda, 139 – 3º andarCEP 01012-010 – Centro – São Paulo - SPTel.: 11 3167.4261www.EditoraBarauna.com.br

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A meu marido e filhos, que me inspiram, me fortacem e me apoiam.

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- 1 -Ao entrar no hall do edifício, percebeu que alguém

estava de mudanças. Era daqueles folgados que prende o elevador e dane-se para o resto do mundo. Teria que su-bir os treze andares andando. Pessimista inveterado, Léo String amaldiçoou a todas as gerações — as passadas e as futuras — do novo morador, desejando que saísse logo.

Naquele ambiente escuro e fechado entre um andar e outro, tinha que parar para retomar o fôlego, afinal era treze andares altos. Pensou até em descer tudo de volta para comprar água na padaria ao lado, riu de si mesmo.

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Todo aquele movimento com tanto oxigênio em seu cérebro lhe traziam Angélica em várias formas, em cheiros, em imagem, em som... Seria possível que ele estivesse apaixonado? Não conseguia parar de vê-la em sua cabeça, mesmo pensando nos assuntos que o desvia-ram a rotina. Sentia-se menos inflexível, menos sisudo. “Que raios quis ela dizer com acaso? Oras, acaso é eu decidir que a quero encontrar e ficar no café até que ela apareça” remordia-se inconformado.

Uff uff, enfim no décimo terceiro andar. Não sentia as pernas, mas sim ao coração e simplesmente porque queria saltar pelo orifício mais próximo, fosse boca, nariz ou mesmo ouvido. Antes de entrar, decidiu ficar alguns instantes descansando no batente da escada, para se recuperar. “Se minha vida dependesse de subir e descer escadas...” e nem quis concluir a indagação para retomar fôlego.

— Muito obrigada! — foi o grito que ele escutou ainda sentado ali naqueles degraus, ao que parecia, a nova vizinha era do apartamento em cima do seu. Mas a única coisa que pensou e quis realmente foi: “Espero que não me perturbe.” E com um sorvo de fôlego, ele se levantou para entrar em casa.

Ali só entravam ele e dona Leila, a senhora que dei-xava para ele tudo em condições de uso: sua roupa lavada e passada, a louça limpa, lençóis trocados e chão varrido ou aspirado. Nunca se encontravam, ela tinha as chaves, além de ele não colocar interesse o suficiente para que tal encontro acontecesse. Todos os acertos ficavam em cima da arca, na sala de jantar, nas sextas-feiras de manhã.

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Não sabia ao certo sobre que hora começaram os barulhos de móveis arrastando de um lado ao outro e uns tamancos batendo no chão como se fosse martelo em sua cabeça atormentando o seu sono diário. “Que raios estava fazendo aquela pessoa?”, deve ser apenas por hoje, justificou Léo String — sabendo de antemão que não adiantava culpar a vizinha pela sua falta de sono.

Compôs-se e foi até o corredor, subiu os três lances de escada que os separavam e bateu a porta:

— Já vou parar! — gritou uma mulher lá de dentro.Léo String insistiu, batendo outra vez.— Eu já disse — abriu-se abruptamente a porta —

que já vou parar — era uma mulher de seus trinta e três anos, sem indício algum de cumprir o que dizia.

— Ah sim — disse ele olhando sutilmente para den-tro do apartamento — acho que você vai dormir muito confortavelmente em cima de uma cama embrulhada por papelão no meio de uma cozinha americana. Você quer ajuda, pelo bem da boa vizinhança e pelo sono dos outros condôminos, sugiro que aceite!

Vendo-se vencida pelas evidências, a garota abriu a porta deixando Léo String passar. Ele quase não sabia onde pisar, havia papelão para todos os lados e várias latas de cerveja emolduravam o panorama da desordem.

— Suponho que o quarto esteja vazio? Perguntou ele sutilmente, quando se deparou com um quarto cheio de roupas do teto ao chão, em uma das paredes eram pra-teleiras de inúmeros sapatos, todos iguais, mas ao parecer dela, diferentes.

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— Sou muito organizada, disse ela, gosto de arru-mar a minha roupa por primavera, verão, outono e in-verno, organizando depois por tons e logo por tamanhos.

— Você vai levar uma eternidade para terminar o clo-set. Não é melhor montar logo a cama? — tentou induzi-la.

— Não, ainda! É que se monto a cama, não vou saber quanto espaço mais eu tenho para dispor para mais prateleiras.

— As suas prioridades são muito interessantes. — ironizou ele — E em quanto tempo você acredita que vai arrumar tudo isso para poder ir para cama dormir junto com o restante do edifício? Um ano, dois, quem sabe?

A moça achou os comentários do “cara” engraçados e sem notar a sutil alfinetada, respondeu, feliz pela nova amizade que fizera por causa de sua desordem:

— Achei que em duas horas, mas já levo quatro e não consigo colocar mais nada aqui. Quer uma cerveja? — ofereceu sentando-se em uma caixa.

Depois de ele tentar arrumar o apartamento daquela garota que ocupava o mesmo lugar no espaço que uma síl-fide, Léo String começava a ver que aquela desordem era um reflexo dinâmico da cabeça da dona. Pouco a pouco ficou desanimado em mover ou tirar de caixas ou tentar arrumar. Era trabalho vão e inútil. Ele não dava para isso. Era crítico literário, resenhista. Tudo em carreira solo, as parcerias não eram muito frutíferas, além de frustrantes. Ele estava agredindo sua principal natureza — a de ser solitário — ao ajudar a Paula.

***

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A perfeição exige seu tempo. É um momento pre-ciso em que estamos todos presos entre os fatos irreme-diáveis do passado e o futuro sonhado e, às vezes, quase inalcançável! É durante este lapso de segundo em que podemos mudar nossas vidas por completo. Mas nem todas as pessoas estão atentas a esta oportunidade e se prendem à rotina. Pois as mudanças são um fardo incô-modo. E, portanto, estas pessoas não estão dispostas a aceitar isto com facilidade.

Na semana passada, para Léo String, a perfeição estava na resistência diária de realizar a mesma tarefa dia após dia. Mas do que poderia saber ele? Léo String não sabe nada do mundo e se esconde detrás das pra-teleiras da biblioteca e de grossos livros clássicos, bem como seus óculos de fundo de garrafa, a última barreira antes que estes dois mundos colidissem em um choque cruel de indiferença.

Sua rotina era a mesma, sempre e igual todos os dias, para atingir a perfeição. Quase tão mecânico quanto robó-tico. Todas as manhãs ele se levanta, arruma a cama, toma seu café da manhã se arruma e vai. E ali no aconchego da luz branca da biblioteca, ele ultrapassa as gerações de co-nhecimento em busca de entretenimento e conhecimento. Bom, também faz parte do seu trabalho como crítico lite-rário, para viver do seu maior deleite: a leitura.

A solidão é irremediável para ele, que não tinha ne-cessidades porque era preenchido com conhecimento. Por outro lado, se podia dizer que era culto: lia de tudo, até bula de remédio e rótulo de shampoo, com a comedida paciência e encantamento que os leitores mais ávidos têm.

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Por razões óbvias, a biblioteca era muito mais que um abrigo organizado para livros. É o templo do conhecimen-to e o seu refúgio diário, onde Dante, Cervantes e Shakes-peare se sentavam ao seu lado e sussurravam ao seu ouvido. Dikens, Wilde e Austen discutiam o tempo para fugir de conflitos e desacordos. E onde apenas ele se sentia confor-tável, sentando naquelas cadeiras duras e mesas rabiscadas.

Ele era de natureza séria e quieta, calado mesmo, e dentro de sua cabeça existia um universo diferente, uma realidade a parte, cheia de frases literárias, metáforas e fi-guras de linguagem. Era um mundo espetacular com fan-tasias, fábulas, monstros e fadas. Certamente por lá não existiam as pessoas em carne e osso, mas onde ganhavam vida suas histórias, suas reflexões e sua alma.

Havia a união de amores impossíveis, a travessia de lugares inimagináveis, dança com lobos entre outras fan-tásticas coreografias literárias. Havia a vírgula e o ponto em seu lugar certo e exclamação para mostrar espanto e interrogação para perguntas inusitadas. A ironia um re-flexo direto do que não queria dizer com todas as letras. Suas sentenças mentais eram formuladas em frases literá-rias, às vezes em verso e se expressava de maneira similar, talvez por isso a falta de compreensão das pessoas em ge-ral. Uma caricatura viva.

E o tempo passava e as coisas mudavam, mas ele gostava de pensar que era como uma pedra fundamental: não mudava, não passava e ficava, ficava — era sempre o mesmo, com as mesmas roupas, mas sim gostava de provar comidas diferentes e restaurantes novos.

Mas isso foi semana passada, antes de tanto tumulto.

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- 2 -Postava-se na mesma mesa da biblioteca, trazia o seu

bloco de notas e uma única caneta. A disciplina excedia os padrões da normalidade.

Era tanta que nem em sua casa não entrava nin-guém. Nunca permitiu nem que sua mãe desse palpites em sua decoração. Seu lar era aquele lugar minúsculo onde dormia, com um sofá cama, um fogão embutido, um banheiro ainda menor e todo carpetado, para facili-tar a limpeza com o aspirador de pó! Óbvio. Na cozinha tinham poucos pratos e no mesmo número os jogos de talheres, para obrigá-lo a deixar tudo limpo.

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Ele era uma caricatura! Lenda urbana! Uma pessoa incorporada na história da cidade e simplesmente por es-tar sempre ali, ser aquela mesma pessoa e não se importar com nada mais. Alguém que é como é, sem complexos e sem se preocupar como o que os outros pensam. Alguém que passa e as pessoas olham murmurando e, não que tenha feito algo espetacular ou algo merecedor de uma medalha de honra ao mérito.

Nada disso, era apenas uma caricatura viva que esta-va ali e transitava pelas ruas e se fincava naquela mesa da-quela biblioteca. Um ser “vint-age” um antiquado e en-quadrado que se recusava a ver o que o mundo oferecia.

E mesmo sem falar com ninguém, naquele dia, pe-culiarmente, aquela menina que estudava sociologia sen-tou-se a sua frente e permaneceu estática e observando-o em todos os detalhes.

Léo String movia-se incômodo, mas resolveu abs-trair a presença da moça precisamente quando entrou no clímax da história. E outra vez, estava a salvo! O resto do mundo novamente inexistia. No dia seguinte, outro livro, mas definitivamente ele não conseguia entrar no ritmo e esquecia-se, com facilidade, do que lera no pará-grafo anterior.

“Mas que demônios esta garota quer comigo?!”“Será que pergunto? Se abrir a boca, melhor pedir

que ela se retire! Mas será que o faço delicadamente ou posso ser grosso? Raios!”

E na fração de segundos em que pensava todas estas coisas e muito mais, ele não se dera conta de que a enca-rava dentro dos seus olhos — coisa que não fazia em hi-

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pótese alguma com ninguém, nem com sua própria mãe. Normalmente ele desviava o olhar, mas ali havia algo de tragédia, ressentimento e falta de cordura, e a falta de cordura é uma coisa muito perigosa.

Existia uma complexidade, profundidade e intensi-dade que podia captar e pressentir, na boca do estôma-go, mas não podia dar a precisão do que seria. Ela tinha os olhos rasos d’água, sua garganta seca segurava ideias e sensações que estavam suspensas, ele pode traduzir isso nas expressões dela. Ali no breve momento entre o inspi-rar e o expirar, o segundo em que morremos e voltamos a viver a cada instante.

— Eu preciso desabafar algo.— disse ela sussurrando, tão pra dentro que nem ela mesma conseguia escutar-se.

“Ai meu Deus, agora vem, e eu nem vou conseguir falar nada?! Desaprendeu a falar?” repreendeu-se forte-mente em vão.

E sem aguardar seu consentimento, ela recome-çou a narrativa prendendo definitivamente a atenção de Léo String:

— E escolhi você porque todo mundo sabe que é antissocial e não gosta das pessoas.

“Uau! todo mundo sabe que sou antissocial!” Léo String inflou o peito em um orgulho besta e permitiu que o elogio fosse um salvo-conduto para que ela pudesse falar com ele. E ele estava ali pasmo.

“ Só espero que ela não seja destas loucas, instáveis e histéricas e que falam sem parar.”

— Há dois anos, resolvi fazer uma viagem ao Chi-le para aprender espanhol e fazer uma imersão cultural.