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Cadernos de Saúde NÚMERO 2 VOLUME 1, 2008 Publicação Semestral

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Cadernosde Saúde

N Ú M E R O

2VOLUME 1, 2008

Publicação Semestral

Índice

C a d e r n o s d e S a ú d e V o l u m e 1 N . º 2

Editorial 101Alexandre Castro-Caldas

Educação Médica Contínua - Motivações e metodologias de ensino-aprendizagem 103Maria Adelaide de Lima Serra

Revisitando as afasias na PALPA-P 135Ana Mineiro, Alexandre Castro-Caldas, Gabriela Leal, Inês Rodrigues

“As cores da voz” – expressão das emoções no timbre da voz cantada 147Ana Leonor Santos Pereira

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 167Alexandre Manuel Câmara de Carvalho

Identidade Pessoal e Neuroética: o novo desafio da Filosofia 185Sara Margarida de Matos Roma Fernandes

Amor Surdo: realidade cultural? O papel da Língua Gestual Portuguesa e da Cultura Surda no comportamento afectivo de 10 jovens Surdos 191Joana Morêdo Pereira

O processo de avaliação dos níveis de bem-estar espiritual: um contributo para a sua validação 199Ana Cristina Caramelo Rego

Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 101

É dado à estampa o segundo número dos Cadernos de Saúde. Pelo caminho publicou-se um

suplemento, dirigido aos Médicos Dentistas, onde se deu conta do trabalho de investigação

realizado pelos alunos de Medicina Dentária do Centro Regional das Beiras.

Iniciou-se o ano lectivo 2008/2009 e é grato registar que mais uma vez, este ano, as propostas

de acções de ensino do ICS tiveram a aceitação da sociedade. Todas elas tiveram procura

que preencheu as vagas abertas. Significa isso que se está a percorrer um caminho que a

muitos interessa. Salienta-se, em particular, o início do Mestrado em Neuropsicologia que vem

enriquecer significativamente o acesso das nossas iniciativas.

No presente número juntamos um novo conjunto de trabalhos, de domínios diversificados,

que espelham a convergência de saberes de que devem revestir-se as questões da saúde e que

têm vindo a alimentar o saber do ICS. Registamos com gosto que existe já, no nosso correio,

material suficiente para o terceiro número.

O Conselho Científico da Revista foi ampliado e muito agradecemos o apoio de quem agora

se junta neste projecto editorial que se espera venha a desempenhar papel de relevo no domínio

das Ciências da Saúde do nosso país.

Editorial

Alexandre Castro Caldas

Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 103-134

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem *Continuous Medical Education – Motivations and Methodologies of Learning/Teaching

Maria Adelaide de Lima SerraInstituto de Ciências da Saúde, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa

Resumo

A Andragogia é tão antiga como o próprio Homem, mas a sua individualização como teoria de Aprendizagem só surgiu no final do século XX. Na área médica existe já uma experiência significativa da sua utilização no ensino pré-graduado, mas na educação médica contínua os estudos são ainda relativamente escassos e dirigidos sobretudo ao ensino de gestos. Este estudo foi desenhado com o objectivo de perceber quais as motivações dos médicos para continuar a estudar ao longo da vida, quais os estilos de ensino/aprendizagem mais adoptados por este grupo profissional e como avaliam as acções de formação que frequentaram.

Para tal, foram construídos e validados três questionários (motivações, métodos preferenciais de aprendizagem e ava-liação das acções de formação), que foram apresentados em conjunto a um grupo de 95 médicos de várias especialidades, seleccionados por conveniência.

A análise dos resultados demonstrou que, na realidade, os médicos estudam de forma contínua, sobretudo por satis-fação pessoal e pela necessidade de actualização. Estudam primordialmente para responder aos problemas clínicos do dia-a-dia, preferindo, inicialmente, adquirir os conhecimentos de forma passiva (lendo livros e revistas), mas dando primazia aos métodos activos (discussão entre colegas e aplicação prática dos conhecimentos) para a estruturação, reforço ou actualização de conhecimentos prévios. A maioria dos médicos não recorre a reuniões científicas para aprender, embora considerem que elas são importantes para a aquisição de conhecimentos e melhoria da prática clínica. O local onde decorrem as acções de formação não é importante para a aprendizagem, mas o horário extra-laboral é mais motivante. A maioria das acções de formação frequentadas basearam-se no método expositivo, tendo correspondido às expectativas iniciais em cerca de metade dos inquiridos. A importância do formador na aprendizagem é reconhecida por menos de metade dos inquiridos.

Palavras-chave: educação, educação médica pós-graduada, educação médica contínua, métodos de ensino, aprendizagem.

Abstract

Andragogy is as old as man itself, but its individualization as a learning theory only emerged in the late XX century. In the medical field, there is a significant experience regarding its use on pre-graduate teaching; however, the studies regarding its use in continuing medical education are still relatively scarce, and mainly address issues related with gestures teaching. We designed this study with the purpose of understanding the motivations that impel physicians to continue studying, which are their most frequently adopted teaching/learning methods and how do they evaluate the formations they attend to.

For that purpose, we built and validated three different questionnaires (motivations, preferred learning methods and formations assessment), that were presented altogether to a group of 95 physicians from several medical specialties, selected according to a convenience criteria.

The results revealed that, in fact, physicians do study in a continuous way, mainly for their own personal satisfaction, and to satisfy their update needs. They study mainly to be able to respond to daily clinical problems, and, although they initially give preference to acquire knowledge in a passive approach (reading books and scientific magazines), they give primacy to more active methods (discussion with fellows and practical knowledge application) for structuring, consolidating or updating previous knowledge. Most physicians do not seek scientific meetings as a learning method, although they acknowledge the importance of such meetings for knowledge acquisition and practise improvement. The place where meeting formations take place is not relevant in the learning process, but as far as timing is concerned, extra-labour programs are more motivating. The most frequently attended formation activities were based on expositive methods, and met initial expectations for more than half of the responders. Less than half of the responders acknowledged the formers importance in the learning process.

Keywords: teaching, graduate medical education, continuing medical education, educational models, learning.

* Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Educação Médica do Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Católica Portuguesa

[email protected]

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de aprendizagem, mas também a mais difícil de orientar. Autores como Maslow (5), Herzeberg (11) ou Gagné (12) tentaram compreender as principais motivações do aluno adulto, utilizando-as de forma a optimizar o processo de aprendizagem.

A par da evolução das teorias andragógicas surgiu também a preocupação política e social com a Aprendizagem ao Longo da Vida (ALV). A UNESCO introduziu, no final dos anos 60, a Lifelong Learning (Aprendizagem ao Longo da Vida) como um conceito de extrema importância e um dos princípios orientadores da reestruturação do processo educativo (13). Ao longo dos últimos 40 anos ocorreram várias Conferências Internacionais sobre a Educação de Adultos. A última decorreu em Hamburgo em 1997, sob o tema “A educação das pessoas adultas, uma chave para o século XXI”. Nesta Conferência (Vª) foi sublinhada a importância da educação na fase adulta, passando as pessoas e comunidades a assumir um papel de controlo do seu destino, cabendo à sociedade definir como enfrentar os desafios do futuro (14).

Não existem métodos de ensino/aprendizagem especificamente pedagógicos ou andragógicos. O método de aprendizagem terá sempre que ser ajustado às necessidades do aluno, ao que se pre-tende que seja aprendido (objectivos), ao grupo em si e a muitos outros factores (15). Existem, no entanto, diferenças em relação ao tipo de apren-diz. Comparativamente com a criança, o adulto é mais independente e auto-direccionado na sua aprendizagem, tem um património de experiências de vida que constituem o substrato de toda a sua aprendizagem, orienta a sua formação de acordo com interesses pessoais, sociais e/ou profissionais, tem interesse particular em aplicações práticas e imediatas, prefere resolver problemas e desafios em vez de estudar apenas pelo prazer de aprender, responde sobretudo a motivações internas (pessoais, sociais, profissionais) e pouco a motivações externas (avaliações, provas, testes) e, por último, é muito menos tolerante à frustração.

Ao contrário da Pedagogia, em que o aluno tem um papel passivo, submisso e de obediência, na Andragogia o aluno é o sujeito do processo de ensino/aprendizagem, actuando o professor ape-nas como facilitador. Perante diferentes formas de aprender, há necessariamente diferentes formas de ensinar, e os “professores” de adultos terão, obrigatoriamente, que ter uma formação diferente, adequada ao “ensino” deste grupo.

Introdução

As rápidas e constantes transformações que a todos os níveis se têm verificado nas últimas décadas impedem que, actualmente, a educação do indivíduo termine quando sai da escola. A “Era do Conhecimento” desencadeou grandes inovações, não só no plano tecnológico como também no plano organizacional, e criou a necessidade de aumentar a capacidade competitiva. Estas transformações implicam formar profissionais com capacidade de diagnosticar e resolver problemas, de tomar deci-sões, de criar, de intervir, de trabalhar em equipa, de se auto-organizar e de se reconstruir num ambiente em constante mudança. A qualidade dos serviços deriva directamente do pessoal que neles trabalha (1). É, pois, fundamental que o indivíduo não deixe de aprender ao longo da vida, que adquira novas competências, que seja capaz de se adaptar e que esteja sempre aberto a novas possibilidades. Neste contexto, surge a necessidade de encontrar novas formas de aprendizagem para o adulto, não só na escola mas sobretudo no ambiente de trabalho (2).

O termo Andragogia foi utilizado pela primeira vez em 1833 por Alexander Kapp (3), mas rapi-damente caiu em desuso. Voltou a ser utilizado por Rosenstock em 1921, referindo-se ao conjunto de professores, métodos e filosofias diferenciados necessários à educação de adultos. Em 1929 foi Lindeman quem o adoptou (4), tendo sido um dos primeiros e mais importantes contribuintes para a pesquisa da educação de adultos do século passado. Lindeman identificou os cinco pressupostos, que ainda hoje fazem parte dos fundamentos da moderna teoria da aprendizagem de adultos (5).

Na década de 60, a palavra Andragogia passou a ser amplamente utilizada na Europa, referindo-se à “filosofia, ciência e técnica da educação de adultos”. Em 1968, Malcom Knowles introduziu nos EUA a teoria e os conceitos da aprendizagem do adulto (6), sendo a partir daí conhecido com o Pai da Andragogia. Em “The Adult Learner – a Neglected Species” (7), Knowles descreve como formulou a Teoria de Aprendizagem de Adultos por oposição à Pedagogia, e como adoptou a palavra Andragogia como a mais correcta para descrever a “arte e ciência de ajudar adultos a aprenderem” (8, 9, 10).

Com base nos Pressupostos Andragógicos definidos por Knowles, surgiram várias teorias de aprendiza-gem de adultos, a maioria das quais consideram a motivação como a principal variável do processo

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e métodos de aprendizagem variem de local para local e entre várias profissões. Com este trabalho, pretendemos avaliar:

•Quemotivaçõesimpelemosmédicosaestudarcontinuamente? A partir de determinada altura da carreira médica, as motivações externas (socioeconómicas) para continuar a sua forma-ção deixam de existir; porque continua, então, a maioria dos médicos a querer aprender e estudar? Será a sua motivação condicionada sobretudo pelas suas necessidades, ou pelas suas expectativas? Estarão direccionados apenas para os problemas que lhes surgem habitual-mente no seu dia-a-dia, ou procuram saber mais acerca de determinado assunto que lhes desperta especial interesse, apesar de não ser comum na sua prática clínica diária?

•Poroutrolado,sendoumaprofissãoemqueaexperiência tem um enorme peso na aprendiza-gem, porque se continua em Medicina ainda a fazer a maior parte da formação pós-graduada segundo moldes pedagógicos, quando há várias décadas outros grupos profissionais aprendem já por métodos andragógicos? Como gostam os médicos de aprender? Preferem o método expositivo, gostam de aprender sozinhos nos livros ou na internet, aprendem mais com as discussões de casos clínicos em grupos, ou têm habitualmente um grupo de colegas a quem recorrem quando necessário?

•Osconhecimentosteóricosbásicossãoimpres-cindíveis para uma prática médica consciente e responsável, e não são passíveis de adquirir apenas através da experiência. Assim, a aprendi-zagem de um médico tem sempre que ser, pelo menos em parte, orientada para os conteúdos. Como estudam os Médicos? Preocupam-se em adquirir primeiro os conhecimentos teóricos necessários à sua prática clínica ou, pelo con-trário, procuram saber o porquê das coisas em resposta às necessidades que lhes vão surgindo no dia-a-dia? Consideram produtivas as acções de formação efectuadas no próprio local de tra-balho ou preferem deslocar-se especificamente para aprender, num ambiente completamente diferente do habitual?

De acordo com estas questões, estipularam-se os objectivos do presente trabalho: perceber quais as motivações dos médicos para continuarem a estudar numa fase estável da sua carreira, quais os métodos

Os métodos andragógicos começaram por ser utilizados em ambiente empresarial, em áreas como a gestão de pessoal, planeamento estratégico, marke-ting, comunicação, processos de qualidade, etc. (16, 17), verificando-se uma preocupação crescente com o desenvolvimento da formação no próprio local de trabalho (2, 18) e através da internet, ensino à distância e intranet (19-21), de forma a possibilitar a todos os trabalhadores a mesma oportunidade de formação; a área da saúde não foi excepção (1, 22). A andragogia foi depois introduzida no ensino uni-versitário pré-graduado (década de 80), inicialmente em cursos com uma forte componente empresarial, como a Administração (23, 24), a Engenharia (25) e a Gestão de Empresas (25, 26) e, mais recentemente, em áreas da Saúde como a Enfermagem (27-31), Medicina Veterinária (32), Medicina Dentária (33) e Medicina (34-40). A formação pós-graduada só começou a adoptar os métodos andragógicos na última década (41): o primeiro artigo sobre educação médica contínua (EMC) e métodos andragógicos data de 1995, e encontra-se disponível apenas em alemão (42).

Os trabalhos existentes na literatura médica sobre a utilização da Andragogia e métodos andragógicos na fase pós-graduada (Internato Complementar) e na Educação Médica Contínua (EMC: fase após obtenção do grau de especialista) são escassos, e visam quase exclusivamente a formação durante o internato complementar (43-48). Os artigos que envolvem apenas médicos especialistas dizem res-peito sobretudo à aprendizagem de gestos (49-51) e atitudes (52-55); quando se pretende a transmissão de conhecimentos, o método mais aplicado na educação médica é a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), e a grande maioria dos trabalhos sobre EMC e PBL (Problem-based learning) são posteriores a 2000 (21, 56-63), com excepção de uma revisão publicada em 1990 (64).

Nas últimas duas décadas tem-se verificado uma mudança de atitude em relação à educação médica. O papel central deixou de ser o Ensino, para passar a ser a Aprendizagem, e o educador passou a ter o papel de facilitador da aprendizagem. Antes de qualquer decisão, é essencial conhecer o aluno, o meio em que este se integra e definir o que queremos que seja aprendido e como. Neste sentido, é importante saber quais as principais motivações dos médicos para continuarem a estudar ao longo de toda a sua vida e quais os métodos de apren-dizagem preferidos. Como todo o indivíduo está inserido num meio, é natural que as motivações

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utilizando o sistema de indexação MeSH da PubMed/Medline, tendo para tal sido intro-duzidos os seguintes itens: “Problem-based learning” e “Education, Medical, Continuing”.

De todos os artigos pesquisados na PubMed foram seleccionados apenas os que apresentavam grau de evidência mais elevado, nomeadamente inquéritos ou trabalhos de investigação. Foram considerados todos os estudos que fossem pelo menos contro-lados (controlados, controlados e randomizados, multicêntricos) e guidelines, tendo sido excluídos as revisões, os artigos de opinião e os estudos descritivos.

A pesquisa bibliográfica sobre a utilização dos métodos andragógicos na Educação Médica Contínua permitiu identificar um total de 56 artigos, publicados entre 1976 e 2006 (30 anos).

A distribuição do número de publicações/ano foi muito irregular, havendo apenas nove publicações nos últimos seis anos (> 2000) e 16 nos últimos dez anos (Figura 1). No entanto, verifica-se com interesse que o número de artigos respeitantes à educação médica aumentou precisamente nestes últimos anos. Na primeira década de publicações, a maior parte dos trabalhos dizia respeito à educação pré e pós graduada de enfermeiros, ou de vários profissionais de saúde em conjunto (médicos, enfermeiros, técni-cos de saúde) (Figura 2). Parece, pois, ter havido, na última década, um despertar de consciências dentro do meio médico para a necessidade de adaptar os métodos de ensino a uma nova realidade.

A pesquisa realizada revelou uma enorme escas- sez de trabalhos sobre a utilização de métodos

de ensino/aprendizagem por eles preferidos, que tipo de acções de formação costumam frequentar e como as classificam.

Revisão bibliográfica

Na preparação deste trabalho foi efectuada uma revisão bibliográfica utilizando quatro metodologias diferentes, de acordo com os seguintes objectivos:

1. Com o objectivo de saber qual o “estado da arte” dos métodos andragógicos em geral e qual a sua aplicação actual nas diversas áreas do conhecimento, foi efectuada uma pesquisa na internet, utilizando um motor de busca genérico (Google), tendo sido introduzidos os termos “métodos andragógicos”, “andra-gogia”, “andragogy”, “andragogic methods”, “andragogy methods” e “learning methods”.

2. Numa segunda fase, restringiu-se a pesquisa bibliográfica à utilização dos métodos andragó-gicos em Medicina e foi efectuada na Pubmed/Medline. Introduziram-se separadamente os termos “Andragogy”, “Andragogic learning” e “Andragogic methods”.

3. Foi também pesquisada na Pubmed/Medline a existência de questionários de motivações e de estilos de aprendizagem aplicados a médicos. Por não ter tido quaisquer resultados, esta pesquisa foi repetida com o sistema de inde-xação MeSH da Pubmed/Medline, através da qual também não se obtiveram resultados.

4. Com o intuito de saber qual a aplicação dada à ABP na EMC foi realizada uma última pesquisa,

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Figura 1 – Distribuição por anos dos artigos sobre Andragogia publicados na Pubmed entre 1976 e 2006.

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e randomizados, um estudo multicêntrico e uma meta-análise (total: 13). Não encontrámos qualquer estudo sobre métodos andragógicos que tivesse sido efectuado com o objectivo de estudar o comporta-mento de aprendizagem dos médicos.

Enquadramento Teórico

O surgimento do conceito de Andragogia

O termo Andragogia deriva das palavras gregas andros (homem) + agein (conduzir) + logos (tra-tado, ciência), e foi utilizado pela primeira vez pelo professor alemão Alexander Kapp em 1833, para descrever a Teoria de Educação de Platão (3), mas rapidamente caiu em desuso. Em 1921 voltou a ser utilizado por Rosenstock, com o intuito de chamar a atenção para o conjunto de professores, métodos

andragógicos na EMC, pelo que se optou por efec-tuar nova pesquisa bibliográfica sobre a aplicação dum método andragógico particularmente utilizado no ensino médico: a Aprendizagem Baseada em Problemas. Esta revisão seleccionou um total de 114 artigos, publicados entre Agosto de 1994 e Maio de 2006. A Figura 3 representa a distribuição geográfica dos 61 artigos publicados após 1999. Os seis (9,8%) artigos classificados como “Desconhecido” são-no porque não apresentavam resumo ou identificação do local em que foram realizados.

Alguns destes estudos incluíam também as fases pré e pós-graduadas. Apenas 33 artigos diziam respeito apenas à EMC e estavam disponíveis em Inglês. Destes, foram excluídos os artigos de opinião (11), os estudos descritivos (7) e as revisões (2). Em relação aos restantes, seis eram estudos de intervenção controlados, cinco estudos controlados

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Figura 3 – Distribuição por países dos trabalhos publicados entre Jan. 2000 e Maio 2006.

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Quadro I – Pedagogia versus Andragogia, segundo Malcom Knowles.

Modelo Pedagógico Modelo Andragógico

Papel da Experiência

A experiência de quem aprende é considerada de pouca utilidade. Pelo contrário, o que é impor-tante é a experiência do professor.

Os adultos são portadores de uma experiência que os distingue das crianças e jovens. Essa experiência constitui o recurso mais rico para as suas próprias aprendizagens.

Vontade de aprender

A disposição para aprender o que o pro-fessor ensina tem como finalidade obter êxito e progredir em termos escolares.

Os adultos estão dispos-tos a aprender desde que compreendam a utilidade da aprendizagem na reso-lução dos problemas reais da sua vida profissional e pessoal.

Orientação da

aprendizagem

A aprendizagem é enca-rada como um processo de conhecimento sobre determinado tema, ou seja, é dominante a lógica centrada nos conteúdos e não nos problemas.

Nos adultos a aprendizagem é orientada para a resolu-ção de problemas e tarefas com que se confrontam na sua vida quotidiana (o que desaconselha uma lógica centrada nos conteúdos).

Motivação

A motivação para a aprendizagem resulta sobretudo de estímulos externos ao sujeito, como é o caso das classificações escolares e das apreciações do professor.

Os adultos são sensíveis a estímulos da natureza externa (notas, etc.), mas são os factores de ordem interna que os motivam para a aprendizagem (satisfação, auto-estima, qualidade de vida, etc.)

Baseando-se nos pressupostos da Pedagogia, Kno-wles concebeu então a sua antítese, as Premissas ou Pressupostos Andragógicos (5, 6, 65):

1. Necessidade de conhecer. Como colocar em prática os conhecimentos no dia-a-dia é determinante para o comprometimento do adulto com a aprendizagem; o adulto sabe exactamente quais são as suas necessidades de conhecimento.

2. Autoconceito de aluno. O adulto é capaz de suprir a sua necessidade de conhecimento de forma autónoma, tem capacidade de auto desenvolvimento.

3. O papel da experiência. A experiência do aluno adulto é o centro da sua aprendizagem. O conhecimento do professor, os livros, os meios audiovisuais, são apenas referenciais opcionais à disposição para livre escolha do estudante.

4. Vontade de aprender. O adulto está pronto para aprender o que decide aprender, recusando-se a aprender o que os outros lhe impõem como sua necessidade de aprendizagem.

e filosofias diferenciados necessários à educação de adultos. Eduard C. Lindeman adoptou-o também no seu trabalho, “The Meaning of Adult Education”, publicado em 1929 (4), tendo sido um dos primeiros e mais importantes contribuintes para a pesquisa da educação de adultos do século passado. Segundo este autor, “... a educação de adultos será através de situações e não de disciplinas. Na educação convencional é exigido ao estudante que se ajuste ao currículo estabelecido; na educação de adultos o currículo é construído em função da necessidade do estudante. Na classe do estudante adulto a expe-riência tem o mesmo peso que o conhecimento do professor”. Lindeman identificou cinco pressupostos que, ainda hoje, fazem parte dos fundamentos da moderna teoria da aprendizagem de adultos (5):

1. Os adultos são motivados para aprender de acordo com as suas necessidades e interesses;

2. O adulto orienta a sua aprendizagem para as situações de vida;

3. A experiência é a mais rica fonte de apren-dizagem para o adulto, pelo que o centro da metodologia da educação é a análise das experiências;

4. Os adultos auto-dirigem a sua aprendizagem, sendo o papel do professor entrar num processo de investigação mútua com os seus alunos;

5. As diferenças individuais aumentam com a idade, pelo que a educação de adultos deve ter em conta as diferenças de estilo, tempo, lugar e ritmo de aprendizagem de cada aluno.

Na década de 60, o vocábulo Andragogia passou a ser amplamente utilizado em França (Pierre Furter), Jugoslávia (Susan Savecevic) e Holanda, referindo-se à “filosofia, ciência e técnica da educação de adultos”. Nos EUA, foi Malcom Knowles quem, em 1968 (6), introduziu a teoria e os conceitos da aprendizagem do adulto, tornando-se o termo andragogia e o nome de Knowles intrinsecamente ligados. Em “The Adult Learner – a Neglected Species” (7), Malcolm Knowles descreveu como começou a tentar formular a Teoria de Aprendizagem de Adultos em 1950, mas só em 1960 teve pela primeira vez contacto com a palavra Andragogia, utilizada por um educador jugoslavo, tendo-a então adoptado como a mais correcta para descrever a “arte e ciência de ajudar adultos a aprenderem” (8, 9, 10). Knowles considerou que os métodos pedagógicos não são, de forma alguma, adequados ao ensino de adultos, e fez a comparação entre a pedagogia e a andragogia da seguinte forma (16):

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 109

necessidades sociais, de auto-estima e de auto- -realização como Necessidades Secundárias. Segundo Maslow, o indivíduo adulto só se sentirá seguro e motivado para passar à fase seguinte quando tiver satisfeitas as necessidades do nível imediatamente abaixo. Assim, por exemplo, o aluno adulto só se preocupará em adquirir as necessidades sociais (amizade, inclusão em grupos, etc.) quando tiver satisfeitas as necessidades fisiológicas (ar, comida, descanso, abrigo, etc.) e de segurança (protecção contra o perigo e privação).

O modelo de Herzeberg não se baseia nas necessi-dades internas (orientação interna), mas no ambiente externo e no trabalho do indivíduo (orientação externa). Herzeberg considera dois factores de satis-fação (14): factores higiénicos (relacionados com as condições físicas do trabalho, salário, vida pessoal, supervisão técnica, políticas empresariais, segu-rança no cargo), e factores motivacionais (relações interpessoais, realização pessoal, conhecimentos, status, responsabilidades, progresso, crescimento e o próprio trabalho em si). Também neste caso, os factores motivacionais só surgirão depois de satisfeitos os factores higiénicos. Podemos comparar os factores higiénicos de Herzeberg com as necessi-dades fisiológicas, de segurança e sociais de Maslow, e os factores motivacionais com as necessidades de auto-estima e de auto-realização (Figura 5).

Gagné baseia as suas ideias na Teoria do Pro-cessamento de Informação, proposta e desenvol-vida por teóricos cognitivistas, e que tem como modelo a forma como os computadores processam a informação. Tal como acontece nos computa-dores, a informação que entra nos receptores

5. Orientação da aprendizagem. O indivíduo adulto orienta a sua aprendizagem para algo que tenha significado para o seu dia-a-dia, não apenas para a retenção de conteúdos.

6. Motivação. A motivação do adulto para apren-der não depende apenas de estímulos externos vindos de outras pessoas, como avaliação escolar, promoções hierárquicas, opiniões ou pressões de “superiores”, etc., mas sobretudo de estímulos internos, da sua própria vontade de aprender.

De todas as variáveis controláveis do processo edu-cativo, a motivação é considerada pela maior parte dos autores como a mais importante, mas também a mais difícil de orientar. Autores como Maslow (1950), Herzeberg (1979) ou Gagné (1987) construíram várias teorias, que tentam compreender as principais motivações do aluno adulto, utilizando-as de forma a optimizar o processo de aprendizagem.

Maslow considerou a segurança como essencial ao processo do crescimento (5). Segundo ele: “A pessoa sadia interage, espontaneamente, com o ambiente, através de pensamentos e interesses e expressa-se independentemente do nível de conhecimento que possui. Isto acontece se ela não for mutilada pelo medo e na medida em que se sente segura para a interacção” (66). De acordo com este pressuposto, Maslow esquematizou as necessidades do indivíduo numa pirâmide com 5 níveis, constituindo as neces-sidades fisiológicas a base da pirâmide, seguidas das necessidades de segurança, necessidades sociais, necessidades do ego (reconhecimento, reputação, amor, etc.) e, por último, no topo da pirâmide encontram-se as necessidades de auto-realização (Figura 4).

Maslow considera as necessidades fisiológicas e de segurança como Necessidades Primárias, e as

Figura 4 – Pirâmide de motivações de Maslow. Adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Hierarquia_de_necessida-des_de_Maslow.

Necessidades de Auto-Realização

Necessidades de Auto-Estima

Necessidades Sociais

Necessidades de Segurança

Necessidades Fis iológicas

Figura 5 – Comparação entre as Hierarquias das Necessidades de Maslow e os Factores de Higiene-Motivação de Herzeberg. Adaptado de http://www.ff.ul.pt/paginas/oliveira/OGFAT064.pdf.

Neces-sidades

deAuto-Realização

Necessidadesde estima

Necessidades Sociais

Necessidades de segurança

Necessidades fisiológicas

HIERARQUIADAS NECESSIDADES

FACTORESDE HIGIENE-MOTIVAÇÃO

Motiv

acio

nai

s

O trabalho em siResponsabilidadeProgressoCrescimento

RealizaçãoReconhecimentoStatus

Relações interpessoaisSupervisãoColegas e subordinados

Supervisão técnicaPolíticas administrativas e empresariaisSegurança no cargo

Condições físicas detrabalho, SalárioVida pesoal

Hig

iénic

os

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2110

No entanto, isto só se verifica se o indivíduo esti-ver suficientemente motivado para fazer o ensaio dos itens retidos na MCP. Nem toda a informação retida na MCP passa para a MLP, mas a que passa poderá ficar aí armazenada, potencialmente, para toda a vida. Uma vez armazenada na MLP, toda a informação está disponível para ser recuperada (mas não necessariamente acessível...).

Gagné considera, de acordo com este Modelo, que o ciclo da aprendizagem começa na motivação, pas-sando pela apreensão, aquisição, retenção, memori-zação, generalização e desempenho, até atingir a fase de feedback, que reforça a motivação e dá dinamismo ao processo. Estas fases são todas influenciadas por estímulos, que tanto podem ser internos como externos. Os estímulos externos devem ser contro-lados pelo educador com o propósito de influenciar os processos de aprendizagem, e consideram-se eficazes quando conseguem activar a motivação, dirigir a atenção, estimular a evocação da memória e orientar a aprendizagem, intensificar a retenção, promover a transferência da aprendizagem, elucidar o desempenho e proporcionar o feedback. As fases da aprendizagem estão associadas a processos internos, que por sua vez são influenciados por estímulos externos. Esta aprendizagem provoca alterações no comportamento do indivíduo de forma mais ou menos permanente, que podem ser classificadas em cinco categorias de capacidades humanas: informação verbal, habilidades intelectuais, estratégias cognitivas, atitudes e habilidades motoras (69). Segundo Gagné, a aquisição de algumas capacidades é requisito para a aprendizagem de outras capacidades “de ordem superior”; cada processo de aprendizagem deve ter a sua hierarquia própria, devendo cada actividade ser trabalhada apenas quando os requisitos anteriores forem cumpridos (70).

sensoriais terá que ser codificada, para depois poder ser armazenada e processada. Esta informação armazenada deve estar disponível e acessível ao indivíduo, para que possa ser recuperada quando necessário. As bases teóricas do processamento de informação são cognitivistas – na medida em que abordam a organização do pensamento, o papel da compreensão na aprendizagem, as estratégias cognitivistas na resolução de problemas, a estrutura da consciência humana – mas a medição dos resul-tados é comportamentalista (12). Os acontecimentos mentais são analisados em termos dos seus efeitos comportamentais, que podem ser observados e medidos (ex: tempo de reacção, reconhecimento verbal de estímulos diversos). Segundo esta teoria, a aprendizagem intencional processa-se de acordo com o Modelo do Processamento da Informação, o que pode ser esquematizado da seguinte forma (Figura 6):

A informação do meio activa um órgão sensorial e, durante um período muito breve, esta fica retida na memória sensorial (registo sensorial); esta memória armazena apenas informação sensorial bruta, não processada, sendo considerada apenas uma ponte de ligação entre o meio exterior e a memória interna. Se não for dada atenção ao estímulo externo, o registo sensorial desse estímulo desaparece quase de imediato; pelo contrário, se lhe for dada atenção, a informação é codificada e transportada do registo sensorial para a zona de armazenamento. Aqui, o primeiro sistema de armazenamento da informação codificada na memória sensorial é a memória a curto prazo (MCP), de trabalho ou activa. A MCP só é capaz de armazenar entre 5 e 9 itens (67) e durante escassos segundos a um minuto (68). Daqui, a informação segue para a memória a longo prazo (MLP), onde é processada e armazenada.

Figura 6 – Modelo do Processamento de Informação sobre a Aprendizagem Intencional de Gagné. Adaptado de Sprinthall & Sprinthall.

Estímulos do Meio

Registo sensorial

Memória de Curto Prazo

Memória de Longo Prazo

Recuperação

Atenção Ensaio

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 111

Aqui foi sublinhada a importância da educação na fase adulta e incentivados os compromissos a favor dos direitos dos adultos à Aprendizagem ao Longo da Vida. Contrariamente às Conferências anteriores, em que a educação de adultos era considerada um subsistema educacional, na Vª Conferência foi salientada a importância das diversas dimensões da vida social do indivíduo, e a educação de adultos passou a ser considerada uma educação continuada ao longo de toda a vida. As pessoas e as comu-nidades assumiram, assim, um papel de controlo do seu destino, e à sociedade cabia definir como enfrentar os desafios do futuro (14).

Métodos andragógicos

O pilar da Pedagogia é o professor, tendo o aluno um papel passivo, submisso e de obediência. Na Andragogia, o aluno é o sujeito do processo de ensino/aprendizagem, sendo considerado capaz, autónomo, responsável, dotado de inteligência, consciência, experiência de vida e motivação interna. Knowles considerou, inicialmente, que a Pedagogia e a Andragogia eram dois processos distintos, mas as teorias actuais consideram-nos como um continuum, encontrando-se a pedagogia num extremo e a andra-gogia no outro (72). O que separa estes 2 processos é a quantidade e qualidade de experiências retidas pelos alunos na altura em que iniciam o processo de aprendizagem, o controlo que apresentam sobre o processo de aprendizagem e o ambiente nessa mesma altura.

O cognitivismo de Ausubel e o construtivismo de Piaget são, talvez, as teorias de aprendizagem que mais se adequam à corrente andragógica. O cognitivismo considera a aprendizagem como um processo activo, em que a aquisição de conhecimen-tos depende da representação e processamento da informação para construir “conhecimento significa-tivo”; a nova informação interage com os conceitos relevantes pré-existentes na estrutura cognitiva do aluno, construindo e reconstruindo diferentes conhe-cimentos teóricos e práticos (73).

Embora alguns autores considerem a obra de Piaget como Cognitivista (74), ela é mais frequen-temente classificada como Construtivista. O cons-trutivismo de Piaget e de Vygostsky considera que a inteligência humana não é inata (ao contrário do cognitivismo, que considera que o indivíduo já tem uma inteligência “básica” quando nasce), mas resulta da interacção entre o indivíduo e o meio; o Homem não nasce inteligente, mas também não é

O sistema político e a Formação de Adultos

Durante a década de 60 do século passado, a par da evolução das teorias andragógicas, surgiu também a preocupação política e social com a Aprendizagem ao Longo da Vida (ALV). A UNESCO introduziu, no final dos anos 60, a Lifelong Learning como um conceito de extrema importância, e um dos princípios orientadores da reestruturação do processo educativo (13).

Numa primeira fase, a ALV surgiu como resposta aos novos desafios colocados pelos rápidos pro-gressos a vários níveis: económico, político, cultural e social. A ALV prometia um constante renovar de conhecimentos, atitudes e valores ao longo de toda a vida, permitindo aos indivíduos adaptarem- -se e controlarem as alterações que iam surgindo. Focava-se no desenvolvimento pessoal, e o lema era o indivíduo “fazer-se a ele próprio” em vez de “ser feito” (71). A sociedade civil desempenhava aqui um papel central.

No final dos anos 80 emergiu a segunda geração da ALV, condicionada pela transformação económica que acontecia nos países industrializados. Nesta altura, o conhecimento e a informação eram con-sideradas as bases da actividade económica, o que condicionou uma reestruturação da ligação entre as esferas da educação de adultos e da economia. Durante a década de 90, a ALV foi considerada a chave de ligação entre as estratégias económicas e educacionais, controlando a competitividade e empregabilidade no mercado de trabalho. A ALV servia sobretudo o mercado, passando o Estado para segundo plano e negligenciando quase totalmente o aspecto social.

A preocupação com a integração social do indivíduo e com o seu desenvolvimento pessoal ressurgiram no início do século 21. A terceira geração do conceito de ALV sugeria a interligação dinâmica entre os 3 aspectos institucionais mais importantes – Estado, Mercado e Sociedade civil. O sector económico determinava quais as competências e qualificações que o sistema educacional público devia produzir, mas a ALV devia ser um projecto individual, sendo da responsabilidade do indivíduo a criação e pre-servação do seu próprio capital humano.

A última Conferência Internacional sobre Educação de Adultos da UNESCO (a Vª), decorreu em Ham-burgo em 1997, sob o tema “A educação das pessoas adultas, uma chave para o século XXI” e contou com a presença de 1500 participantes (incluindo os representantes políticos dos 135 Estados Membros).

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2112

demonstrativo (exploratório), o que não exclui que seja oportuno empregar o método expositivo antes da demonstração ou o método activo (simulação) após a mesma.

Há, actualmente, uma necessidade crítica de transformar as formas passivas de aprendizagem do paradigma tradicional em formas activas e interactivas (o que não implica necessariamente abandonar as formas clássicos de ensino). Os alunos devem participar e colaborar em todas as fases da sua aprendizagem, desde a elaboração do currículo até à avaliação final, sugerindo alterações ao longo do percurso sempre que o considerem necessário ou benéfico.

Métodos

Com o presente trabalho pretendeu-se observar um grupo específico (médicos), de forma a compreender melhor o fenómeno a estudar (métodos preferenciais e motivações de aprendizagem). Trata-se, assim, de uma investigação empírica (77).

Construção, validação e aplicação dos questionários

Para investigar os objectivos principais deste trabalho foi necessária a aplicação de três questio-nários distintos, que avaliaram separadamente as motivações e interesses, os métodos preferenciais de aprendizagem e as acções de formação mais frequentes na classe médica.

Não existindo na literatura nenhum questionário adequado a esta investigação, foi necessário construí- -los e validá-los.

Construção do questionário

Numa primeira fase, utilizaram-se entrevistas pouco estruturadas junto de alguns médicos e psi-cólogos (n =6), de forma a encontrar as variáveis mais importantes a incluir na investigação principal. Com a informação recolhida, elaborou-se um esboço do questionário, que visava avaliar os objectivos do trabalho:

1. O que faz com os que os médicos estudem durante toda a sua vida profissional (motiva-ções);

2. Quais osmétodos de ensino/aprendizagempreferidos pela classe médica;

3. Quais os tipos de acções de formação quecostumam frequentar e como as avaliam.

passivo perante os estímulos do meio, ou seja, ele age sobre eles de forma a construir e organizar o seu próprio conhecimento cada vez mais elaborado. Por outro lado, a teoria construtivista considera, tal como o cognitivismo, que a aquisição de novos conhecimentos tem início na assimilação destes por um esquema já existente, criando-se posteriormente um novo esquema que permite a acomodação deste novo conhecimento. Este novo esquema vai sendo, assim, ampliado à medida que o indivíduo interage com o meio (75).

Baseados nas teorias da aprendizagem surgiram vários métodos de ensino e aprendizagem que, duma forma geral, podem ser agrupados em três categorias: exposição, exploração e simulação (76). Na exposição, a transmissão da informação é unidi-reccional e passiva. São exemplos deste método as palestras, a leitura de livros e revistas e pesquisas na internet. Embora geralmente mais estruturada e permitindo a transmissão de maior quantidade de informação, esta forma de ensino/aprendizagem é habitualmente pouco eficaz na retenção de novos conhecimentos a longo prazo (76), pelo que deve ser sempre complementada com outras actividades de aprendizagem. Sem a aplicação prática e dis-cussão, os novos conhecimentos serão rapidamente perdidos.

O método exploratório incita à exploração e descoberta através da interacção. Ao contrário da exposição, encoraja e facilita a troca de informa-ção nos dois sentidos. As discussões em grupo, o brainstorming, a aprendizagem através de casos clínicos ou de problemas são adaptações do modo exploratório.

A simulação permite a aprendizagem e repetição de gestos de uma forma segura e semelhante à realidade, e a sua gradual transferência para a prática clínica. Na educação médica, este método é aplicado através da utilização de simuladores, do role-play e dos doentes-tipo.

É importante salientar que não existe um método de ensino ou de aprendizagem exclusivo ou mais indicadoparaaandragogia.Quantomaioradiver-sidade de métodos utilizados, mais rica será a for-mação (dentro de um mesmo grupo, cada indivíduo terá necessariamente um método de aprendizagem próprio). O método de aprendizagem terá sempre que ser ajustado às necessidades do aluno, ao que se pretende que seja aprendido (objectivos), ao próprio grupo em si e a muitos outros factores (72). Se se pretendem ensinar gestos, o método mais adequado será, provavelmente, o método

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 113

se estava escrito de forma perceptível ou se era sugerida alguma alteração à forma como a pergunta estava formulada, e foi pedido que fosse avaliada a importância do item para a caracterização da variável latenteemcausa(QuadroII).

Desta forma, um total de 45 perguntas foi apresentado a um painel de 10 avaliadores com conhecimentos em avaliação de motivações e estilos de aprendizagem. O painel foi constituído por 4 psicólogos e 6 médicos.

Com as respostas do painel de avaliadores, foi efectuada a estimativa da validade dos questioná-rios.

Estimativa da Validade

Inicialmente, foi efectuada a validação teórica do questionário. Foram pesquisadas na literatura as várias componentes das motivações e dos estilos de ensino/aprendizagem, bem como os seus diferentes aspectos; de seguida, os itens dos 3 questionários foram comparados com os itens habitualmente consi-derados relevantes para medir cada um dos aspectos de cada variável componente. Verificou-se, assim, que os questionários estavam construídos de acordo com os conceitos actuais das motivações (conceitos andragógicos de Knowles, pirâmide das necessidades de Maslow, teoria da Higiene-Motivação de Herze-berg, etc.) e dos métodos de ensino/aprendizagem (exposição, exploração, simulação). De seguida, foi realizada a validação de conteúdo, apresentando os questionários a um painel de especialistas na matéria.

A extensão de concordância dos especialistas, designada por Murphy e Davidshofer por Rácio de Validade de Conteúdo (Content Validity Ratio-CVR) (78), foi determinada pelo método de Lawshe, que permite quantificar a validade de conteúdo através de um rácio calculado a partir da informação fornecida por um painel de peritos relativamente pequeno. Com base nos resultados fornecidos pelo painel de avaliadores, é aplicada a fórmula:

CVR= (ne-N/2)/(N/2)

ne – n.º de elementos do painel que classificaram cada item como essencial para medir o constructo

N – n.º total de elementos que constituíram o painel

O resultado do CVR obtido foi comparado com resultados de tabelas produzidas por Lawshe (79, 80), de forma a obter a relação mínima necessária para adquirir significado estatístico, tendo em conta o número de elementos do painel; os itens com p <0,05

Dentro de cada um dos sub-questionários foram identificadas várias variáveis latentes, ou seja, variá- veis que não podem ser medidas nem observadas directamente, mas que poderiam sê-lo indirecta-mente, através de variáveis componentes.

A cada variável componente foram atribuídas entre 1 e 3 itens ou perguntas. Cada pergunta foi avaliada por 5 respostas alternativas (discordo totalmente, discordo, não discordo nem concordo, concordo, concordo totalmente), de acordo com uma escala de Likert de cinco níveis.

Cerca de 10% das afirmações foram construídas de forma negativa, com a intenção de: 1) confirmar ou reforçar a resposta a outras afirmações semelhan-tes efectuadas pela positiva, uma vez que há uma tendência natural para responder de acordo com o que é considerado socialmente mais correcto e não de forma individual; 2) reforçar a atenção de resposta ao teste, tendo em conta que o questionário final (que engloba as três vertentes dos objectivos) é relativamente extenso.

Além das variáveis latentes, foram incluídas no questionário variáveis de caracterização da população que incluíram: idade, sexo, tempo de exercício de Medicina, tempo de exercício como especialista, especialidade, número de acções de formação a que assistiu no último ano e número de acções que ministrou no mesmo período de tempo.

De seguida, o esboço do questionário inicial foi apresentado a um painel de avaliadores. Foi efectuada a explicação escrita do que se pretendia investigar em cada um dos constructos ou variáveis latentes dos 3 questionários (identificados como Partes). Para cada um dos itens foi perguntado

Parte 1 – Motivações e interesses de estudo dos Médicos

Constructo 1: Porque estudam os médicos ao longo de toda a sua vida profissional, mesmo

quando já atingiram uma fase estável da sua carreira?

Estas perguntas destinam-se a avaliar se os médicos estudam por razões de satisfação ou interesse

pessoal (quer seja Medicina, quer sejam outros assuntos) ou se estudam com um objectivo social

(progressão na carreira, reconhecimento pelos pares) ou económico (reconhecimento financeiro dum

maior grau de conhecimento).

1. Não sinto que o meu esforço em formação seja recompensado financeiramente

Este item está escrito de forma perceptível: � Sim � Não

Sugere alguma alteração ao texto?

Em que medida é que este item contribui para responder ao conceito enunciado:

� Não contribui nada

� Contribui mas não é fundamental

� É fundamental para o conceito

Quadro II – Estrutura do questionário enviado para os ele-mentos do painel de avaliadores.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2114

tempo de exercício como especialista foram tratadas como variáveis quantitativas intervalares; o sexo e a especialidade foram consideradas variáveis nomi-nais, e o número de acções de formação assistidas e ministradas como variáveis ordinais. A variável idade foi transformada em variável ordinal, sendo os escalões criados de acordo com os valores fornecidos pelos seus quartis:

•Grupo1:<41anos•Grupo2:42a48anos•Grupo3:49a51anos•Grupo4:>51anos

O tempo de exercício como especialista foi tam-bém recodificado numa variável ordinal, tendo-se optado por definir os diferentes escalões de acordo com o tempo habitual decorrente entre concursos para progressão na carreira médica (5 anos). Foram, pois, criados três grupos:

•Grupo1:<5anos•Grupo2:5a10anos•Grupo3:>10anos

A variável número de acções de formação assistidas também foi recodificada numa variável ordinal dife-rente, mas de acordo com os seus quintis, uma vez que os quartis não forneceram números inteiros:

•Grupo1:<1•Grupo2:2ou3•Grupo3:4ou5•Grupo4:6ou7•Grupo5:>7

No caso da variável número de acções de formação ministradas, efectuaram-se duas transformações dife-rentes: 1) foi recodificada em variável nominal (Sim/Não), e 2) foi transformada em nova variável ordinal, de acordo com os valores dos seus quartis:

•Grupo0:0•Grupo1:1a3•Grupo2:>3

A variável especialidade foi transformada numa variável nominal diferente, em que foram agrupa-das as especialidades médicas (Medicina Interna, Nefrologia, Cardiologia, Pediatria, Anestesiologia, Infecciologia, Gastrenterologia, Imunoalergologia, Fisiatria e Psiquiatria), cirúrgicas (Cirurgia Geral, Urologia, Oftalmologia e Ginecologia/Obstetrícia), de laboratório (Imunohemoterapia, Radiologia e Anatomia Patológica) e a medicina geral e familiar (MGF). Optou-se por analisar a MGF isoladamente,

foram excluídos. Para um total de 10 avaliadores, o CVR deve ser superior a 0,6, pelo que foram excluídas todas as perguntas que apresentassem um valor inferior ou igual a esse. Das 45 perguntas iniciais foram excluídas 10, apresentando o ques-tionário final 35 perguntas.

Aplicação do questionário

Depois de validado, ao questionário final, cons-tituído pelo conjunto dos 3 sub-questionários, adicionou-se uma introdução com a contextualização do mesmo, a explicação dos objectivos a atingir com a sua aplicação e a previsão do tempo de resposta. Foi então apresentado a médicos de várias especia-lidades, por contacto directo e por conveniência, tentando abranger vários grupos etários e o maior número possível de especialidades.

A resposta ao questionário foi voluntária e anó-nima, tendo os respondentes sido informados de que os resultados seriam tratados sempre em grupo e nunca individualmente. O questionário foi entregue pelo avaliador, mas foi auto-preenchido.

Estimativa da Fiabilidade

Para estimar a consistência interna do questionário foi utilizado o método do α de Cronbach.

Métodos estatísticos

O questionário global (com 35 itens) foi analisado, do ponto de vista estatístico, em três partes diferentes, correspondentes aos três questionários iniciais: 1) motivações e/ou interesses (itens 1 a 12), 2) méto-dos preferenciais de aprendizagem (itens 13 a 28), e 3) avaliação das acções de formação frequentadas (itens 29 a 35). Todos os itens tinham a mesma escala de medida (escala de Lickert constituída por 5 níveis).

O cálculo da dimensão da amostra foi efectuado utilizando a “regra do polegar” (81), que preconiza um tamanho mínimo da amostra de n =5k (k = número de variáveis a analisar) se k >15, e de n =10k, se k <15. No questionário de motivações, os itens a analisar são 12 (n =120); o questionário de métodos de aprendizagem é formado por 16 itens (n =80) e o questionário de avaliação das acções de formação apresenta sete itens (n =70). O tamanho mínimo (n) da amostra nunca foi inferior a 50.

No que respeita às variáveis de caracterização, a idade, o tempo de exercício da Medicina e o

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 115

Por último, foi realizada a análise das Respostas Múltiplas para estudo dos itens com maior e menor impacto nos respondentes.

Todos os testes estatísticos foram efectuados utilizando o programa SPSS versão 13.0 para Win-dows.

Resultados

Caracterização da amostra

Foram analisados 95 inquéritos. A mediana da idade dos respondentes foi de 48 anos, com um mínimo de 31 e um máximo de 65 anos. Trinta e quatro indivíduos (35,8%) eram do sexo masculino e 61 (64,2%) do sexo feminino. A mediana do tempo de exercício da Medicina foi de 23 anos, sendo o mínimo de 7 anos e o máximo de 35. No que respeita ao tempo de especialidade, dezasseis (17,6%) eram especialistas há menos de 5 anos, dezassete (18,7%) eram-no há mais de 5 anos mas há menos de 10 anos e cinquenta e oito (63,7%) tinham pelo menos 10 anos de especialidade (mediana = 13; mínimo = 0; máximo = 32 anos).

A amostra foi constituída em 50,5% (n =48) dos casos por especialistas de MGF; os restantes especialistas distribuíram-se pelas especialidades médicas (33,7%), cirúrgicas (11,6%) e de laboratório (4,2%).Quantoaonúmerodeacçõesde formaçãofre-

quentadas e ministradas pelos respondentes, os resultados são apresentados nos quadros III e IV.

Quadro III – Distribuição do número de acções de formação assistidas nos 12 meses anteriores à resposta ao questio-nário.

N % de inquiridos

0 21,3

1-3 28,7

3-5 17,0

5-7 13,8

>7 19,1

Quadro IV – Número de acções de formação ministradas nos 12 meses anteriores à reposta ao questionário.

N % de inquiridos

0 46,3

1-3 30,5

>3 23,2

uma vez que considerámos que esta especialidade apresenta características próprias e diferentes das especialidades com forte componente hospitalar.

Numa primeira fase, foi efectuada uma análise descritiva dos dados de caracterização da população. No caso das variáveis nominais e ordinais (sexo, escalões de tempo de especialidade, grupos de especialistas) utilizaram-se apenas as frequências; quanto às variáveis quantitativas (idade, tempo de exercício da Medicina, tempo de exercício como especialista), foram descritas pela sua mediana (percentil 50) e pelos percentis 25 e 75, por se ter verificado que nenhuma delas apresentava uma distribuição normal (teste de Kolmogorov-Smirnov com p <0,05).

De seguida, os questionários foram analisados utilizando o método da análise dos componen-tes principais (análise factorial), de forma a tentar identificar itens que, no seu conjunto, avaliassem um mesmo factor e que, como tal, pudessem ser tratados em conjunto. Não se tendo verificado os pressupostos necessários à utilização da análise factorial (teste de KMO >0,6 e teste de esfericidade de Bartlett com p < 0,001), optou-se por utilizar métodos não paramétricos para analisar os itens de forma isolada, como variáveis ordinais graduadas individualmente de 1 a 5 pontos.

Depois de verificada a não normalidade da dis-tribuição da quase totalidade das variáveis, optou- -se por utilizar testes estatísticos não paramétricos. Aplicando o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis (k factores independentes) pesquisaram-se diferenças estatisticamente significativas na resposta aos diferen-tes itens relacionados com as variáveis independentes idade, grupos de idades, tempo de exercício de Medicina, escalões de tempo como especialista, grupos de especialidades e escalões de número de acções de formação assistidas e ministradas (apenas nos questionários de métodos de aprendizagem e de avaliação das acções de formação). Para análise da influência do género nas respostas foi utilizado o teste de Mann-Whitney, uma vez que a variável independente apresentava apenas duas categorias.

Sempre que o teste de Kruskal-Wallis evidenciou diferenças significativas nas respostas a algum dos itens, utilizou-se posteriormente o teste de Mann- -Whitney (2 factores independentes), de forma a identificar qual(quais) o(s) grupo(s) que contribuía(m) para essa diferença global, e a análise descritiva para avaliação do tipo de relação existente entre os grupos da variável.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2116

concordam com a afirmação 12 (“Tenho estudado continuamente ao longo de toda a minha carreira”) e discordam do item 10 (“Estudei apenas até ao final da especialidade”). Apesar de estudarem sobretudo as patologias com que lidam mais frequentemente (item 6; mediana =4), e para responder às neces-sidades clínicas diárias (item 11; mediana =4), os médicos consideram que não estudam estritamente o necessário (item 9; mediana =2); tentam estudar assuntos diversificados (item 7; mediana =4), e estudam sobretudo para obter satisfação pessoal e para se manterem actualizados: mediana das res-postas aos itens 2 e 5 =5 (“Concordo plenamente”). Globalmente, os médicos consideram que o esforço na sua formação se reflecte de forma positiva na sua carreira (item 4; mediana =4), embora concordem que este não é recompensado financeiramente (item 1, formulado pela negativa; mediana =2).

Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nas respostas em relação aos grupos de idades. Os itens mais valorizados pelos respondentes foram o item 2 (necessidade de actualização), 5 (rea-lização pessoal) e 12 (estudam continuamente).

Entre sexos, verificou-se diferença na resposta ao item 3 (p <0,05), com o sexo masculino a considerar mais frequentemente que estuda para aumentar a sua competitividade no mercado de trabalho.

O tempo de especialista condicionou a resposta ao item 4, não se tendo, no entanto, verificado diferença entre os especialistas com menos de 5 anos e os especialistas com mais de 10 anos de especialidade. A diferença residiu entre os grupos com 5 a 10 anos de especialidade e com mais de 10

A maior percentagem dos respondentes situou-se no escalão de 1 a 3 acções de formação frequentadas no último ano, e de nenhuma acção de formação ministrada durante o mesmo período.

Análise estatística do questionário

O questionário global apresentava 35 itens, divi-didos por três sub-questionários diferentes: os 12 primeiros itens avaliavam as motivações/interesses dos médicos para estudar continuamente; os 16 itens seguintes (perguntas 13 a 28) destinavam-se a caracterizar quais os métodos de aprendizagem preferidos por este grupo; os 7 últimos itens (29 ao 35) pretendiam avaliar o grau de satisfação dos médicos em relação às acções de formação que habitualmente frequentam.

Tratando-se, na realidade, de 3 questionários diferentes, foram analisados separadamente.

Questionário de Motivações/Interesses

Todos os itens foram definidos através da sua mediana (percentil 50) e dos percentis 25 e 75 (QuadroV).

O item 1 foi formulado na negativa, pelo que a escala de Likert foi também invertida, ou seja, o valor 1 corresponde ao “Concordo plenamente”, o valor 2 ao “Concordo”, o valor 3 ao “Indiferente”, o valor 4 ao “Discordo” e o valor 5 ao “Discordo plenamente”.Da observação do quadro anterior, podemos con-cluir que os médicos efectivamente estudam ao longo de toda a sua carreira: todos os respondentes

Quadro V – Caracterização individual dos itens 1 a 12 através dos percentis 25, 50 (mediana) e 75.

Item Percentil 25 Percentil 50 Percentil 75

ITEM 1 – O meu empenho na minha formação não é recompensado financeiramente 1,0 2,0 3,0

ITEM 2 – Estudo para me manter o mais actualizado possível 4,0 5,0 5,0

ITEM 3 – Estudo para aumentar a minha competitividade no mercado de trabalho 2,0 3,0 4,0

ITEM 4 – O esforço que tenho efectuado na minha formação reflectiu-se na minha carreira 4,0 4,0 5,0

ITEM 5 – Estudo para obter realização pessoal 4,0 5,0 5,0

ITEM 6 – Estudo sobretudo as patologias com que lido mais frequentemente no dia-a-dia 4,0 4,0 4,0

ITEM 7 – Tento estudar assuntos diversificados 3,25 4,0 4,0

ITEM 8 – Costumo participar em acções de formação não relacionadas directamente com Medicina

2,0 3,0 4,0

ITEM 9 – Estudo estritamente o necessário 1,0 2,0 2,0

ITEM 10 – Estudei apenas até ao final da especialidade 1,0 1,0 2,0

ITEM 11 – Estudo para responder às necessidades da prática clínica diária 3,0 4,0 4,0

ITEM 12 – Tenho estudado continuamente ao longo de toda a minha carreira 4,0 4,5 5,0

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 117

(94,8%); apenas um terço dos respondentes refere participar em acções de formação não relacionadas com Medicina (33%).

Embora mais de metade dos médicos considere que o seu empenho na formação não é recompensado financeiramente (67,3%), a grande maioria sente-se recompensado em termos de carreira (85,2%).

A questão que maior indiferença causou neste grupo foi a respeitante à competitividade no mercado de trabalho (36,8%).

Questionário dos Métodos Preferenciais de Apren-dizagem

Os procedimentos efectuados com o questio-nário anterior foram repetidos para os itens 13 a 28, respeitantes ao questionário de Métodos de

anos, considerando estes últimos os esforços feitos na sua formação financeiramente recompensados (Figura 7).

Em relação ao item 7, verificou-se existir diferença significativa (p <0,05) nas respostas dos vários grupos deespecialidades.Quandoseanalisaramosgrupos2a 2, verificou-se que esta diferença ocorria de forma significativa apenas entre a MGF e as especialidades médicas (p =0,005) (Figura 8).

Os resultados da análise das respostas múltiplas encontram-se resumidos no quadro VI.

A necessidade de se manterem actualizados (99%) e de obterem realização pessoal (94,7%) parecem ser as principais motivações para este grupo de médicos estudar continuamente. A quase totalidade dos res-pondentes considera que estuda de forma contínua

> 10 anos5 -10 anos< 5 anos

E sca lõe s esp ecia lista s

5

4

3

2

1

ITE

M 4

9

19

76

91

26

17

15

83

70

p < 0 ,05

Figura 7 – Diferenças de resposta ao item 4, condicionadas pelo tempo como especialista.

Figura 8 – Diferenças na resposta ao item 7, dependente dos grupos de especialidades.

MGFEspecialidadescirúrgicas

Especialidadesmédicas

Grupos de especialistas

5

4

3

2

1

ITEM

7

3

73

11

Laboratório

p = 0,005

Quadro VI – Análise das Respostas Múltiplas dos itens 1 a 12.

Factor/ItemDiscordo

plenamente (%) + Discordo (%)

Indiferente (%)

Concordo (%) + Concordo

plenamente (%)

ITEM 1 – O meu empenho na minha formação não é recompensado financeiramente 20,0 12,6 67,3

ITEM 2 – Estudo para me manter o mais actualizado possível 0 1,1 99

ITEM 3 – Estudo para aumentar a minha competitividade no mercado de trabalho 27,4 36,8 35,8

ITEM 4 – O esforço que tenho efectuado na minha formação reflectiu-se na minha carreira

8,5 6,4 85,2

ITEM 5 – Estudo para obter realização pessoal 1,1 4,2 94,7

ITEM 6 – Estudo sobretudo as patologias com que lido mais frequentemente no dia-a-dia

6,3 14,7 78,9

ITEM 7 – Tento estudar assuntos diversificados 4,3 20,2 75,5

ITEM 8 – Costumo participar em acções de formação não relacionadas directamente com Medicina

44,6 22,3 33,0

ITEM 9 – Estudo estritamente o necessário 80,0 7,4 12,7

ITEM 10 – Estudei apenas até ao final da especialidade 96,9 2,1 1,1

ITEM 11 – Estudo para responder às necessidades da prática clínica diária 24,3 3,2 72,6

ITEM 12 – Tenho estudado continuamente ao longo de toda a minha carreira 4,2 1,1 94,8

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2118

percentil 75). O local onde decorrem as acções de formação não parece ser muito importante: tanto o item 25 (acções de formação no local de traba-lho) como o item 27 (acções de formação fora do ambiente habitual) apresentam medianas de 3.

Um quarto dos respondentes concorda que aprende mais se as acções de formação decorrerem no local de trabalho (percentil 75 do item 25 =4), e também 25% dos inquiridos prefere acções de formação que decorram fora do seu ambiente habitual (percentil 75 do item 27 =4).

Nos itens 15, 24 (Ler) e 16 (discussão com espe-cialistas) as respostas foram bastante consensuais, apresentando os três percentis analisados o mesmo valor (“Concordo”).Quandocomparadososgruposdeidadesentre

si, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nas respostas aos diferentes itens.

Em relação ao sexo, verificou-se diferença esta-tisticamente significativa em relação ao item 17 (p =0,027) e ao item 23 (p =0,006), embora este resultado seja muito pouco significativo em termos

Aprendizagem. Todos os itens foram caracterizados através dos seus percentis 25, 50 (mediana) e 75 (QuadroVII).

A escala de Likert do item 28 foi invertida, em virtude do item ter sido formulado pela negativa, pelo que ao valor 1 correspondeu o “Concordo plenamente”, ao valor 2 o “Concordo”, ao valor 3 o “Indiferente”, ao valor 4 o “Discordo” e ao valor 5 o “Discordo plenamente”.

Da análise do quadro, verifica-se que não existe nenhum item que tenha sido particularmente valo-rizado, quer seja no sentido positivo quer seja no negativo. No entanto, os itens 17 (opinião de colegas especialistas) e 20 (aprendizagem com a aplicação prática) foram os únicos que desencadearam respos-tas mais extremadas no sentido positivo (“Concordo plenamente”). O item 26 (aprendizagem em horário laboral) é o que apresenta maior concentração de respostas no “Discordo” ou “Indiferente”, facto con-cordante com as respostas ao item 28 (motivação para aprender fora do horário de trabalho), que se concentram sobretudo no “Discordo” (mediana e

Quadro VII – Caracterização individual dos itens 13 a 28, através dos percentis 25, 50 (mediana) e 75.

Item Percentil 25 Percentil 50 Percentil 75

ITEM 13 – Prefiro estudar sozinho 3,0 4,0 4,0

ITEM 14 – Recorro primordialmente à Internet para estudar 2,0 3,0 4,0

ITEM15–Quandoestudo,recorroprincipalmentealivroserevistasdaespecialidade 4,0 4,0 4,0

ITEM 16 – Adquiro melhor os conhecimentos discutindo determinados temas e/ou casos clínicos específicos com colegas

4,0 4,0 4,0

ITEM 17 – A experiência e opinião de colegas especializados numa matéria auxiliam-me na aquisição de aprendizagens relevantes

4,0 4,0 5,0

ITEM 18 – A minha principal fonte de aquisição de conhecimentos é através de Congressos, Simpósios, Reuniões ou Cursos

2,0 3,0 4,0

ITEM 19 – Para mim, o método mais eficaz de aprendizagem é a observação 2,0 3,0 4,0

ITEM 20 – Desenvolvo significativamente os meus conhecimentos com a sua aplicação prática

4,0 4,0 5,0

ITEM 21 – Na realidade, só aprendo quando faço 2,0 3,0 4,0

ITEM 22 – Prefiro manter-me actualizado ouvindo outros colegas exporem assuntos de interesse, de forma resumida e actualizada

2,0 3,0 4,0

ITEM 23 – Ouvir falar de determinado assunto é a melhor forma de reter novos conhecimentos

2,0 4,0 4,0

ITEM 24 – Mantenho-me actualizado lendo as revistas da especialidade e as últimas edições dos livros de texto de referência

4,0 4,0 4,0

ITEM 25 – É mais fácil aprender quando as acções de formação decorrem no local de trabalho

2,0 3,0 4,0

ITEM 26 – As acções de formação em horário laboral permitem-me aprender mais e melhor

2,0 3,0 3,0

ITEM 27 – Aprendo mais quando assisto a acções de formação fora do meu ambiente habitual

3,0 3,0 4,0

ITEM 28 – As acções de formação que decorrem fora do meu horário de trabalho não me motivam

3,0 4,0 4,0

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 119

ser uma forma pouco cativante de se manterem actualizados (Figura 12).

Analisando por grupos de especialidades (médi-cas, cirúrgicas, laboratoriais e MGF), encontrámos diferenças significativas nas respostas aos itens 20 (p =0,013) e 28 (p =0,011). Embora a aplicação prática dos conhecimentos adquiridos seja importante para todos os grupos de especialistas, a MGF é a especialidade que o afirma de forma menos marcada (Figura 13).

O item 28 foi formulado pela negativa, tendo a escala de Likert também sido invertida, como anteriormente explicado. Assim, a mediana situa-se no “Discordo” para todos os grupos excepto para

práticos: 1) ambos os sexos concordam que aprendem com a experiência e opinião de colegas especialistas, embora o sexo feminino concorde de forma mais marcada (Figura 9); 2) o sexo feminino é mais unânime em considerar que é importante ouvir falar de novos conhecimentos para melhor os reter (Figura 10).

O tempo como especialistas influenciou a resposta aos itens 18 (p =0,011) e 24 (p =0,024). O grupo com menos de 5 anos de especialidade recorre mais às acções de formação como fonte de aquisição de novos conhecimentos, sendo estas mais ou menos indiferentes ao grupo com mais de 10 anos de especialidade (Figura 11). Pelo contrário, a leitura das últimas edições dos livros e revistas da espe-cialidade parece ser a única fonte de actualização dos especialistas há mais de 10 anos, enquanto para os especialistas há menos de 5 anos esta parece

Figura 9 – Diferenças entre sexos na resposta ao item 17.

Fem ininoMasculinoSexo

5

4,5

4

3 ,5

3

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xp

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57

77

62

p < 0 ,05

Figura 10 – Diferenças entre sexos na resposta ao item 23.

Fem ininoMasculino

5

4

3

2

1

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69

Fem ininoMasculinoSexo

5

4

3

2

1

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r n

ovos

conh

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men

tos

69

p < 0,01

Figura 11 – Respostas dos diferentes escalões de tempo de especialidade ao item 18.

> 10 anos de especialidade

5-10 anos de especialidade

< 5 anos de especialidade

Escalões especialistas

5

4

3

2

1

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70

p = 0,005 p = N.S.

p < 0,05

Figura 12 – Respostas dos vários escalões de tempo de espe-cialidade ao item 24.

> 10 anos de especialidade

5 -10 anosde especialidade

< 5 anos de especialidade

Escalões especialistas

5

4,5

4

3,5

3

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21

37

11

> 10 anos de especialidade

5 -10 anosde especialidade

< 5 anos de especialidade

Escalões especialistas

5

4,5

4

3,5

3

2,5

2

21

37

11

p < 0,05

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2120

Não se verificaram diferenças significativas em relação ao número de acções de formação assistidas

as especialidades cirúrgicas, para as quais o item é “Indiferente”. No grupo da MGF, 46 dos 48 respon-dentes discordaram da afirmação (Figura 14).

Figura 13 – Resposta dos diferentes grupos de especialistas ao item 20.

MGFLaboratórioEspecialidadescirúrgicas

Especialidadesmédicas

Grupos de especialistas

5

4,5

4

3,5

3

2,5

2

Des

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5

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48

51

10

p < 0,005

Figura 14 – Respostas dos vários grupos de especialidades ao item 28. Neste item, a escala de Likert foi invertida.

MGFLaboratórioEspecialidadescirúrgicas

Especialidadesmédicas

Grupos de especialis tas

5

4

3

2

1

As

acç

ões

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87

38

53

p < 0,05

p < 0,005

Quadro VIII – Análise das Respostas Múltiplas dos itens 13 a 28.

ItemDiscordo

plenamente (%) + Discordo (%)

Indiferente (%)

Concordo (%) + Concordo

plenamente (%)

Item 13 – Prefiro estudar sozinho 10,5 18,9 70,5

Item 14 – Recorro primordialmente à Internet para estudar 41 30,5 28,5

Item15–Quandoestudo,recorroprincipalmentealivroserevistasdaespecialidade 3,2 9,5 87,4

Item 16 – Adquiro melhor os conhecimentos discutindo determinados temas e/ou casos clínicos específicos com colegas

3,2 11,6 85,3

Item 17 – A experiência e opinião de colegas especializados numa matéria auxiliam-me na aquisição de aprendizagens relevantes

1,1 3,2 94,8

Item 18 – A minha principal fonte de aquisição de conhecimentos é através de Congressos, Simpósios, Reuniões ou Cursos

37,9 28,4 32,7

Item 19 – Para mim, o método mais eficaz de aprendizagem é a observação 35,8 26,3 36,9

Item 20 – Desenvolvo significativamente os meus conhecimentos com a sua aplicação prática

1,1 7,4 91,6

Item 21 – Na realidade, só aprendo quando faço 49,5 18,9 31,6

Item 22 – Prefiro manter-me actualizado ouvindo outros colegas exporem assuntos de interesse, de forma resumida e actualizada

33,7 25,3 40,0

Item 23 – Ouvir falar de determinado assunto é a melhor forma de reter novos conhecimentos

28,4 20,0 51,6

Item 24 – Mantenho-me actualizado lendo as revistas da especialidade e as últimas edições dos livros de texto de referência

9,5 12,6 77,9

Item 25 – É mais fácil aprender quando as acções de formação decorrem no local de trabalho

28,4 36,8 34,8

Item 26 – As acções de formação em horário laboral permitem-me aprender mais e melhor

37,9 46,3 15,8

Item 27 – Aprendo mais quando assisto a acções de formação fora do meu ambiente habitual

21,1 53,7 25,3

Item 28 – As acções de formação que decorrem fora do meu horário de trabalho não me motivam

64,2 27,4 8,5

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 121

Questionário de avaliação das acções de formação assistidas

Os itens 29 a 35 foram construídos com a intenção de avaliar o grau de satisfação dos médicos em relação às acções de formação que habitualmente frequentam. Mais uma vez, optou-se por analisar os itens isoladamente, utilizando testes não para-métricos. Os itens foram caracterizados através dos seus percentis 25, 50 e 75, como se pode observar no quadro IX.

Os inquiridos são unânimes em considerar que as acções de formação em que participaram foram importantes não apenas para o aumento dos seus conhecimentos (item 33), mas também para a melho-ria da sua prática clínica diária (item 34). Apesar de não ser tão consensual como os itens anteriores, a maior parte dos médicos considera que as acções de formação que frequentaram foram sobretudo baseadas em exposições orais (item 29) e que cor-responderam às suas expectativas (item 35).Quando analisadas as respostas em relação a

grupos específicos, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas em relação ao sexo, escalões etários, escalões de tempo de especialidade, grupos de especialistas, número de acções de for-mação assistidas e número de acções ministradas.

Na análise das Respostas Múltiplas, todos os itens foramconsideradosisoladamente(QuadroX).

A grande maioria dos respondentes manifestou- -se satisfeita com as acções de formação a que habitualmente assiste, quer do ponto de vista de enriquecimento teórico (94,7%) e de melhoria da prática clínica diária (92,7%), quer do ponto de vista subjectivo (expectativas iniciais). Cerca de

ou ministradas durante os 12 meses anteriores à resposta ao questionário. As acções de formação ministradas foram inicialmente divididas apenas em 0 e >1 mas, tendo o p desta análise sido não significativo, optou-se por repetir a análise dividindo o número de acções de formação em 3 grupos (<1; 1 a 3; > 3); também desta forma não se verificaram diferenças estatisticamente significativas em relação ao número de acções de formação ministradas e os métodos de aprendizagem. É de salientar que 46,3% (n =44) dos respondentes não tinha qualquer acção de formação ministrada no último ano e apenas 23,2% (n =22) tinham dado pelo menos três acções de formação no mesmo período.OQuadroVIIIresumeosresultadosobtidosna

Análise das Respostas Múltiplas dos itens 13 a 28.A discussão entre colegas (item 16: 85,3%; item

17: 94,8%) e a aplicação prática dos conhecimentos (item 20: 91,6%) foram as formas de aprendizagem preferidas pelos inquiridos, seguidas pela leitura de livros e revistas da especialidade (item 15: 87,4%; item 24: 77,9%). Uma percentagem significativa (70,5%) de médicos prefere estudar sozinho, e apenas 28,5% recorre à internet à procura de novos conhecimen-tos. As acções de formação que decorrem fora do horário de trabalho são muito bem aceites pelo grupo inquirido: sessenta e um dos 95 respondentes (64,2%) sente-se motivado por elas e apenas vinte e seis (27,4%) é indiferente ao horário em que decorremasacçõesdeformação.Quantoaolocalem que decorrem as acções de formação, a maioria é-lhe indiferente, sendo quase igual o número dos respondentes que se situam no “Discordo” e no “Concordo” (21,1% vs 25,3%).

Quadro IX – Caracterização individual dos itens 29 a 35 através dos percentis 25, 50 e 75.

Item Percentil 25 Percentil 50 Percentil 75

ITEM 29 – As acções de formação a que assisti basearam-se sobretudo na exposição de conhecimentos

2,0 4,0 4,0

ITEM 30 – As acções de formação a que assisti basearam-se sobretudo na discussão em grupo de casos clínicos

2,0 3,0 4,0

ITEM 31 – As acções de formação a que assisti basearam-se sobretudo no ensino de gestos e de atitudes

2,0 2,0 3,0

ITEM 32 – Considero que o formador influencia mais a minha aprendizagem que o método de ensino utilizado

2,0 3,0 4,0

ITEM 33 – Considero que as acções de formação a que assisti foram proveitosas em termos de aumento dos meus conhecimentos

4,0 4,0 5,0

ITEM 34 – As acções de formação em que tenho participado foram importantes para a melhoria da minha prática clínica

4,0 4,0 5,0

ITEM 35 – As acções de formação em que tenho participado correspondem às minhas expectativas iniciais

2,25 4,0 4,0

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2122

perante algumas experiências de aprendizagem, sendo-lhes pedido que identificassem os componen-tes de uma aprendizagem eficaz; em todos os grupos, a motivação foi identificada como o componente mais importante da aprendizagem, e a necessidade intrínseca de aprender como a característica mais marcante da aprendizagem de adultos. Este estudo termina concluindo que, para melhorar a educação, é necessário passar do paradigma do ensino para o paradigma da aprendizagem. É, pois, necessário conhecer o que motiva os médicos a continuar a estudar, independentemente de factores externos como a aquisição do grau de especialistas ou da progressão na carreira. Este foi um dos propósitos que levou à elaboração deste trabalho.

O questionário de motivações/interesses aplicado confirmou aquilo que é do senso comum, mas que ainda não tinha sido demonstrado: efectivamente, os médicos consideram que estudam continuamente ao longo de toda a sua carreira, e não apenas até ao final da especialidade (altura da carreira médica em que terminam as avaliações externas obrigatórias para o exercício da especialidade). Este aspecto é demonstrado pelas respostas aos itens 10 e 12. Atendendo a que estes dois itens estão construídos em escalas inversas, as duas respostas reforçam-se mutuamente, verificando-se que os médicos não se limitam a estudar apenas com o objectivo de obter uma formação imediata (especialidade), mas que essa formação ocorre continuamente ao longo de toda a sua carreira.

As principais motivações apontadas por este grupo de médicos foram a satisfação pessoal e a necessi-dade de se manterem actualizados, em detrimento

60% considerou que a exposição de conteúdos é a forma mais usualmente utilizada para a transmissão de conhecimentos nas acções de formação que frequentaram, havendo 25,3% que participou em acções de formação baseadas na discussão de casos clínicos e apenas 12,6% que teve a oportunidade de frequentar acções de formação para ensino de gestos. A importância do formador na aprendizagem dividiu as respostas: 32,7% considera que este não influencia significativamente a aprendizagem, contra 44,2% que considera o formador mais importante do que o método de ensino utilizado e 23,2% que não tomam partido nem pelo formador nem pelo método de ensino.

Discussão dos resultados

A aprendizagem contínua na carreira médica foi, é e sempre será, uma necessidade inquestionável. Durante as últimas décadas, o Conhecimento passou a dominar o nosso Mundo: quem aprende continua- mente mantém-se actualizado e competente; quem não aprende, rapidamente deixa de ser considerado competente e é ultrapassado. Muito se tem debatido acerca das formas mais eficazes de transmitir e adquirir a enorme quantidade de conhecimentos científicos que surgem, nos nossos dias, a uma velocidade alucinante. São vários os autores que se questionam acerca das motivações que impelem os médicos a estudar ao longo de toda a sua carreira (82-84), mas apenas reflectem acerca do tema. Há um único estudo descritivo (85), realizado com profes-sores de Medicina de vários graus académicos e de várias especialidades, em que estes foram colocados

Quadro X – Análise das Respostas Múltiplas dos itens 29 a 35.

Factor/ItemDiscordo

plenamente (%) + Discordo (%)

Indiferente (%)

Concordo (%) + Concordo

plenamente (%)

Item 29 – As acções de formação a que assisti basearam-se sobretudo na exposição de conhecimentos

25,5 14,9 59,6

Item 30 – As acções de formação a que assisti basearam-se sobretudo na discussão em grupo de casos clínicos

45,3 29,5 25,3

Item 31 – As acções de formação a que assisti basearam-se sobretudo no ensino de gestos e de atitudes

60,0 27,4 12,6

Item 32 – Considero que o formador influencia mais a minha aprendizagem que o método de ensino utilizado

32,7 23,2 44,2

Item 33 – Considero que as acções de formação a que assisti foram proveitosas em termos de aumento dos meus conhecimentos

0 5,3 94,7

Item 34 – As acções de formação em que tenho participado foram importantes para a melhoria da minha prática clínica

1,1 6,3 92,7

Item 35 – As acções de formação em que tenho participado correspondem às minhas expectativas iniciais

25,0 20,8 54,1

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 123

(63,7%) concordam que o seu empenho em forma-ção não é recompensado, não se tendo verificado diferenças estatisticamente significativas em relação a nenhuma das variáveis independentes consideradas. Contrariamente, esta percentagem aumentou quando se avaliou a repercussão da formação contínua na carreira: apenas 8 médicos discordaram do item 4, tendo 80 considerado que o seu esforço em formação se reflectiu na carreira. A análise conjunta dos itens 1 e 4 sugere que os médicos estudam com o objectivo principal da progressão na carreira, sendo secundário o aspecto financeiro. No entanto, a progressão na carreira por si só, acompanha-se de maior recompensa financeira, pelo que difi-cilmente se conseguirá separar os dois factores. A reforçar esta dúvida, verificou-se que as respostas diferiram de acordo com o tempo de exercício como especialista: os médicos com mais de 10 anos de especialidade são os que se sentem mais recompensados em termos de carreira. Esta diferença é mais significativa em relação ao grupo intermédio (5 a 10 anos como especialista), talvez porque esta é exactamente a fase intermédia da carreira médica. Com menos de 5 anos a exercer como especialista, o médico continua a estudar tendo em vista uma etapa da progressão na sua carreira: o concurso para Assistente Graduado; depois dos 10 anos como especialistas, a maior parte dos médicos tem já a sua carreira estabilizada, o que os faz sentir mais seguros e recompensados; na fase intermédia, os médicos não se sentem recompensados pelo seu investimento em estudo, talvez pelo facto de, nessa fase da carreira, não obterem qualquer progressão. Não é, pois, possível dissociar completamente a necessidade de estudar da obtenção de recompensa material, mesmo que essa seja apenas traduzida em termos de carreira.

No que diz respeito ao que estudam, este grupo de médicos considera que estuda assuntos diver-sificados (dentro da área médica) e não apenas o estritamente necessário. No entanto, reconhece que se dedica a estudar sobretudo as patologias mais frequentes e a procurar respostas para as questões que surgem na prática clínica diária. Este aspecto está de acordo com o descrito por vários autores (86-89). Os médicos sentem-se motivados para aprender 2 tipos de problemas: 1) específicos, relacionados com a patologia apresentada por determinado doente ou com uma questão em particular levantada na sua prática clínica; 2) gerais, tais como novas descobertas científicas, novos fármacos ou novas técnicas, por exemplo.

da competitividade de mercado (considerado mais importante pelo sexo masculino). Manning e DeBakey (83) consideram que a força-motriz para a formação contínua dos médicos é o orgulho pessoal no seu desempenho e o desejo de nunca ser (ou ser considerado como) profissionalmente inadequado. Será este um dos componentes da Satisfação Pessoal identificada no nosso inquérito ou, pelo contrário, este é um conceito que abrange a Satisfação Pes-soal e a Necessidade de Actualização? Estarão os dois factores interligados, ou serão independentes? O que consideram os médicos Satisfação Pessoal: o saber apenas pelo saber, o saber pela actualização e competência que lhe estão inerentes, o saber pela vantagem social e profissional que acarreta? A mesma questão se coloca em relação à Necessidade de Actualização: surge apenas pela satisfação pessoal de se saber actualizado, por sentir que se mantém na “linha da frente” em termos profissionais, por se sentir competente e também mais competitivo? A veemência com que foram dadas as respostas aos itens 2 e 5 (mediana 5 em ambos) parece ser indicativa de que ambos os factores se encontram relacionados apesar de, na análise factorial, estes dois itens não terem sido identificados como pertencentes ao mesmo factor.

Na nossa amostra, a maior parte dos médicos parece não estudar com o intuito de manter a sua competitividade no mercado de trabalho: apenas pouco mais de um terço dos respondentes (35,8%) concordou com o item 3. No entanto, a amostra do nosso trabalho foi constituída maioritariamente por indivíduos do sexo feminino (como seria de esperar, face à população médica do país) e, curiosamente, a análise estatística realizada mostrou que esta moti-vação é significativamente mais frequente no sexo masculino. Este facto pode enviesar os resultados finais, segundo os quais, para mais de metade da população (64,2%) a manutenção da competitivi-dade de mercado não parece ser determinante para continuarem a estudar. Não existem, na literatura, dados que nos permitam explicar esta diferença de comportamento entre géneros, nem podemos concluir que esta tendência seja generalizável a toda a população médica. A confirmar-se, este dado leva-nos a questionar se a tendência da cada vez maior constituição feminina da comunidade médica estará adaptada à cada vez maior competitividade do mercado de trabalho.

A maior parte dos médicos sente que o esforço que despende na sua formação não é recompensado do ponto de vista financeiro: 64 dos 95 inquiridos

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disponíveis na literatura, alguns versando os aspectos gerais do processo de aprendizagem (86-89), outros procurando a opinião dos próprios educadores acerca dos métodos utilizados (85, 37), e outros ainda avaliando a aplicação prática de métodos andragógicos (sobretudo ABP) na aprendizagem de temas específicos (90-92). Estão identificadas duas formas principais de aprendizagem, associadas às motivações gerais consideradas: à motivação criada pelos problemas específicos associa-se um tipo de aprendizagem semi-estruturada ou informal, que recorre aos livros, revistas e discussão entre colegas; para a resolução de problemas gerais, os médicos recorrem sobretudo a uma aprendizagem formal, como são as reuniões, cursos, congressos ou simpósios organizados pelas sociedades das especialidades, ou o planeamento de projectos de aprendizagem (86, 89, 93).

Todos estes estudos são, no entanto, dirigidos apenas a uma das vertentes da aprendizagem de adultos: como gostam de aprender os médicos. Com a aplicação do questionário de métodos preferenciais de aprendizagem pretendemos averiguar como, quando e onde preferem os médicos aprender. Consideramos que os dois últimos aspectos (quando e onde) são também determinantes na aprendizagem deste grupo profissional: por um lado, a disponi-bilidade temporal da maioria dos médicos para frequentar acções de formação fora do seu horário laboral é reduzida; por outro lado, as solicitações no local de trabalho são quase permanentes, o que dificulta significativamente a realização de acções de formação no local de trabalho, como têm sido cada vez mais defendidas em outras áreas laborais (1, 2, 18). Assim, pensamos que o local onde decorrem (no local de trabalho ou fora deste) e o período de tempo em que decorrem as acções de formação (durante o horário normal de trabalho ou fora deste) podem também ser condicionantes importantes da motivação para aprender determinado assunto, razão pela qual os incluímos no inquérito que apresentá-mos ao nosso grupo de médicos.

A análise dos resultados do questionário de méto-dos preferenciais de aprendizagem mostrou que um número significativo de médicos (70,5%) prefere estudar sozinho (item 13), sendo a fonte preferencial de aquisição de conhecimentos os livros e revistas da especialidade: 87,4% dos respondentes concorda que os utiliza para estudar (item 15), e 77,9% que recorre a eles para se manter actualizado (item 24). A internet não parece ser apelativa para os médicos, recorrendo a ela em busca de novos conhecimentos

Aparentemente, os médicos de MGF parecem preocupar-se mais em estudar assuntos diversificados. Em relação ao item 7 (“Tento estudar assuntos diversificados”), verificou-se existir diferença signi-ficativa nas respostas dos grupos de especialistas por nós considerados. Embora todos os grupos tenham concordado com a afirmação, houve dife-rença estatisticamente significativa entre o grupo das especialidades médicas e a MGF (p =0,005). Contudo, as respostas que os médicos desta especialidade deram em relação aos itens 6 e 11 revelam que, tal como as outras especialidades, também eles estudam sobretudo as patologias com que lidam mais frequentemente no dia-a-dia e para responder às necessidades da prática clínica diária. O facto de a MGF ser uma especialidade mais abrangente do que as especialidades hospitalares pode implicar, por si só, a necessidade de que o estudo seja mais diversificado, e não uma procura de diversidade para obter qualquer satisfação pessoal. Neste sentido, a diferença estatística observada no item 7 poderá não se traduzir numa diferença real.

Por outro lado, os hábitos de estudo dos médicos parecem prender-se sobretudo com a Medicina, uma vez que apenas um terço dos respondentes diz frequentar ou ter frequentado acções de formação de outras áreas, que não foram especificadas. A maioria (45%) assume nunca o ter feito, enquanto 22% é indiferente a esta questão (item 8). Relativamente a este item, não se verificou existir diferença na resposta das várias especialidades, aspecto que reforça a possibilidade de os médicos de MGF terem efectivamente os mesmos hábitos de estudo dos restantes especialistas, ou seja, estudarem apenas os temas necessários e suficientes para o exercício das suas funções. Contrariamente à noção globalizada de que o Médico seria um indivíduo com uma cultura geral vasta, a resposta a este item revelou uma tendência dos médicos para uma cultura cada vez mais restrita à área médica. Este facto torna-se mais claro quando se analisam as respostas fornecidas pelo item 11, em que 72% concordam total ou plenamente com a afirmação de que estudam para responder às necessidades da prática clínica diária. Acerca deste tema não existe nenhum estudo disponível na literatura científica. No momento actual, em que se procuram sobretudo profissionais competentes e versáteis, é dada primazia à cultura profissional específica, ocupando a cultura geral do indivíduo um lugar de menor importância.

Em relação aos métodos preferenciais de apren-dizagem dos médicos, existem já alguns estudos

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pela resposta ao item 18, que mostra que apenas uma minoria (32,7%) considera aprender através da frequência de Congressos, Simpósios, Reuniões ou Cursos, enquanto a maioria (66,3%) é indiferente ou discorda da afirmação. Esta minoria parece concentrar-se sobretudo no grupo de especialistas com menos de 5 anos de especialidade que, pela análise estatística efectuada, recorre a acções de formação como fonte de aquisição de conhecimentos de uma forma significativamente superior aos outros escalões de especialistas. Pelo contrário, o grupo com mais de 10 anos de especialidade é mais indiferente às acções de formação, recorrendo mais à leitura de revistas e livros como fonte de actualização do que os restantes escalões. Este facto pode dever-se a uma maior necessidade de contacto social com os colegas de especialidade ou a maior dificuldade em escolher o que estudar e aprender por parte dos mais novos, mas as razões desta diferença não foram avaliadas pelo nosso questionário, e não encontrá-mos na literatura nada que apoiasse ou refutasse os nossos resultados. Apesar de existirem alguns estudos que pretendem comparar a aprendizagem através de métodos activos e passivos (85, 90, 93), não encontrámos nenhum trabalho que avaliasse a opinião dos médicos acerca da importância das acções de formação formais na aprendizagem de novos conhecimentos. Este é um aspecto interessante, e a ter em conta quando se pretendem organizar acções de formação específicas.

Pelo contrário, os métodos activos como a discussão em grupo e a aplicação prática dos conhecimentos apresentaram elevadas percentagens de concordância nas respostas, facto que está de acordo com o descrito na literatura. A resolução de problemas clínicos está identificada como sendo a principal forma através da qual os médicos aprendem e desenvolvem as suas competências (82), e a aprendizagem baseada em problemas é o principal método construtivista aplicado à educação médica (93, 94), sendo pelo menos tão eficaz como a exposição na aquisição e retenção de conhecimentos e muito mais agradável para todos os intervenientes no acto de ensino/apren-dizagem (95-98). Na nossa população, o método preferido para a aprendizagem foi a discussão com colegas especialistas (item 17; 94,8%), logo seguido da aplicação prática dos conhecimentos (item 20; 91,6%). A resposta ao item 16 (discussão entre colegas) é concordante com a resposta ao item 17 (85,3%) mas, curiosamente, a resposta ao item 21 (só aprendo quando faço) é completamente díspar da resposta ao item 20, o que, ao contrário do que se

apenas 28,5% dos inquiridos. Imediatamente a seguir à leitura, os inquiridos consideram que adquirem melhor os conhecimentos se estes forem discutidos entre colegas (item 16; 85,3%). A discussão entre pares é considerada um método activo de aprendi-zagem, ao contrário da leitura, que é considerada um método passivo. No entanto, a discussão de um assunto específico entre colegas pressupõe, na grande maioria das vezes, um conhecimento teórico prévio, pelo que não se tratará efectiva-mente da aquisição de um novo conhecimento, mas sim do reforço, estruturação, desenvolvimento ou sedimentação de um conhecimento já existente. O mesmo se aplica ao item 17 (discussão com cole-gas especializados), com o qual a quase totalidade (94,8%) dos inquiridos concordou: também esta pergunta está formulada em termos de aquisição de aprendizagens mas, habitualmente, a experiência ou opinião de colegas especialistas são procuradas quando existem dúvidas acerca de determinado assunto específico, sobre o qual o inquiridor tem já conhecimentos prévios mais ou menos estruturados. Esta afirmação é apoiada pelas respostas aos itens 22 e 23, que dizem respeito à aprendizagem através da audição: menos de metade dos respondentes considerou que ouvir falar de determinado assunto era a melhor forma de se manterem actualizados (40%), e apenas metade dos mesmos considerou importante ouvir falar para melhor reter novos conhecimentos (51,6%). Em relação a este aspecto, verificou-se existir uma diferença significativa nas respostas entre sexos, sendo que o sexo feminino considera mais importante para a sua aprendizagem o diálogo com colegas especialistas e também ouvir falar de novos conhecimentos. No entanto, esta diferença não é valorizável do ponto de vista prático, uma vez que ambos os sexos concordaram com as afirmações, verificando-se a diferença apenas no grau de concordância.

O que os médicos parecem considerar importante no processo de aprendizagem é o diálogo activo entre colegas, da mesma especialidade ou não. É de salientar que, com excepção da leitura, os restantes métodos passivos de aquisição de conhecimentos parecem não ser do agrado do grupo inquirido: para além das respostas ao itens que caracterizam o “ouvir” (itens 22 e 23), também a afirmação que avaliava o “ver” (item 19) teve pouca aceitação: apenas 36,9% da nossa população considerou que a observação era um método eficaz de aprendizagem, e uma percen-tagem muito semelhante (35,8%) discordou mesmo da afirmação. Estes resultados são consubstanciados

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Os itens 25 e 27 destinavam-se a avaliar onde os médicos preferem que decorram as acções de formação: no seu local de trabalho (item 25) ou, pelo contrário, fora do seu ambiente habitual (item 27). As respostas a estas questões distribuíram-se de forma mais ou menos uniforme por todas as posições da escala, com predomínio, em ambos os casos, pela posição intermédia (“indiferente”). Apesar de a diferença não ser significativa, a percentagem de respostas concordantes com a realização das acções de formação no local de trabalho foram ligeiramente superiores às respostas discordantes (34,8% versus 28,4%). No entanto, verificou-se o mesmo em relação à realização das acções de formação fora do ambiente habitual (25,3% concordaram, 21,1% discordaram), apesar de esta ter suscitado maior percentagem de indiferença (53,7%). Perante estes resultados, podemos concluir que o local onde decorrem as acções de formação é, para a maioria dos médicos da nossa população, irrelevante.

O mesmo não se verifica quando analisamos as respostas aos itens 26 e 28, que avaliam a pertinência da realização de acções de formação durante o horá-rio laboral, situação aconselhada e praticada noutros grupos profissionais (1, 2, 18). A maioria dos médicos sente-se motivado pelas acções de formação que decorrem fora do seu horário de trabalho (item 28: 64,2%), enquanto uma percentagem superior (84,2%) é indiferente (item 26: 46,3%) ou discorda (item 26: 37,9%) das acções de formação durante o horário laboral. Podemos especular se estas respostas serão condicionadas pelo facto de as acções de formação que decorrem durante o horário de trabalho serem frequentemente interrompidas (pelo próprio ou por outros) para dar resposta às necessidades clínicas diárias, mas esta condicionante não se coloca se as acções de formação decorrerem no horário de trabalho mas fora do local de trabalho. Por outro lado, a mesma situação surge quando as acções de formação decorrem no local habitual de trabalho, mesmo que fora do horário regular, e em relação ao local não se verificou existir esta diferença. A for-mação dentro do horário de trabalho pode também ser entendida como um prolongamento deste e, por isso, não ser desejada; pode ser entendida como obrigatória (e não como desejada), o que diminui significativamente a motivação, condição essencial na aprendizagem de adultos. Não menos importante é a sobrecarga horária de trabalho a que a maior parte dos médicos está sujeito, que poderá fazer com que as acções de formação dentro do horário laboral sejam vistas como limitantes da actividade

verificou em relação às respostas aos itens até agora analisados, não era inicialmente esperado. Enquanto 91,6% dos inquiridos considera que desenvolve significativamente os seus conhecimentos com a sua aplicação prática, apenas 31,6% concorda que só aprende quando faz. Mais uma vez, há dois conceitos distintos a considerar. Enquanto o item 20 diz respeito ao desenvolvimento de conhecimentos já existentes, o item 21 refere-se à aprendizagem de novos conhecimentos. O facto de cerca de metade dos inquiridos (49,5%) ter discordado da afirmação “Na realidade, só aprendo quando faço” e da quase maioria ter concordado que desenvolve significativa-mente os seus conhecimentos quando os aplica, é indicativo de que os médicos começam por estudar a teoria e só depois passam à aplicação prática dos conhecimentos adquiridos, ou seja, utilizam a prática não como forma de aprendizagem inicial, mas como meio de reforço da mesma.

Em relação ao item 20, verificou-se existir diferença nas respostas dos vários grupos de especialistas, sendo esta significativa apenas quando se comparam a MGF e as especialidades médicas. Embora a MGF concorde que desenvolve os seus conhecimentos com a aplicação prática, é o grupo de especialistas que menor importância atribui a este aspecto, ao contrário das especialidades médicas que, talvez por serem especialidades com maior necessidade de utilização de técnicas, dão uma maior importância à aplicação prática dos conhecimentos adquiridos de forma passiva.

Combinando as respostas aos itens 13 a 24, respeitantes à forma como os médicos gostam de estudar e aprender, podemos individualizar duas situações diferentes: quando se trata de adquirir novos conhecimentos, os médicos preferem recorrer a livros e revistas da especialidade, ou seja, preferem fazê-lo de forma passiva e, na maior parte dos casos, individualmente; quando pretendem relembrar, aprofundar, actualizar, organizar ou experimentar conhecimentos já existentes, recorrem sobretudo a métodos activos de aprendizagem, como sejam a discussão com outros colegas ou a aplicação prática dos conhecimentos adquiridos teoricamente. De acordo com Amin e Eng (76), estas duas formas de aprendizagem complementam-se. Embora a expo-sição seja mais estruturada e permita a transmissão de maior quantidade de informação, deve ser com-plementada com a aplicação prática e discussão. Se assim não for, os novos conhecimentos rapidamente serão perdidos.

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Mais de metade dos nossos respondentes classificou as formações que frequentou como expositivas (item 29: 59,6%), enquanto um quarto assistiu sobretudo a acções de formação baseadas em discussões de casos clínicos em grupo (item 30: 25,3%) e apenas 12,6% (item 31) participou em formações em que foram ensinados gestos e atitudes. O número de médicos que considerou ter assistido a formações sobretudo expositivas foi inferior ao inicialmente esperado. No entanto, a maioria dos médicos não manifestou dúvidas em classificar as acções de formação em que participou: se somarmos as percentagens de respostas concordantes com os itens 29 (método expositivo), 30 (discussão em grupo) e 31 (ensino de gestos e atitudes), obtemos 97,5% de concordância, o que significa que apenas 2,5% das acções de formação não foram identificadas com nenhum destes métodos.

No conjunto destes 7 itens (29 a 35), não se verificaram diferenças nas respostas entre sexos, entre escalões de idades ou de tempo de especialidade ou entre grupos de especialistas.

Não se encontraram também diferenças relaciona-das com o número de acções de formação assistidas ou ministradas, quer em relação ao questionário de métodos preferenciais de aprendizagem, quer em relação ao questionário de avaliação das acções de formação frequentadas. Apesar de não existir nenhum trabalho na literatura que apoie a nossa hipótese, inicialmente esperávamos que os médicos que frequentaram ou ministraram maior número de acções de formação apresentassem um método de aprendizagem preferencial diferente daqueles que raramente participam em formações. No que respeita aos últimos itens, pensamos que seria previsível que os médicos com maior número de acções de formação ministradas valorizassem significativamente mais o papel do formador e que frequentassem mais acções de formação com métodos activos. Apesar de as nossas hipóteses não terem sido confirmadas, pensamos ser necessária a aplicação de questionários mais dirigidos a estas variáveis e a uma população de maiores dimensões para se poderem tirar con-clusões válidas.

Resumo dos resultados

1. Os médicos estudam efectivamente ao longo de toda a sua carreira.

2. As principais motivações identificadas foram a satisfação pessoal e a necessidade de actua- lização.

clínica. Este é mais um aspecto que não foi avaliado com o nosso questionário e que, por isso, não nos permite tirar qualquer conclusão. É, no entanto, de salientar que o grupo das especialidades cirúrgicas foi o único que se mostrou indiferente ao horário em que decorrem as acções de formação, e que a quase totalidade dos especialistas de MGF prefere acções de formação fora do horário de trabalho. Apesar de existir uma diferença significativa entre as respostas do grupo de MGF e as do grupo das especialidades médicas (p <0,05), esta diferença é particularmente acentuada entre a MGF e as espe-cialidades cirúrgicas (p <0,005). Não se verificaram diferenças significativas entre os restantes grupos de especialistas.

Em relação à avaliação das acções de formação que habitualmente frequentam, os médicos são unânimes em considerar que estas são importantes para o aumento dos seus conhecimentos (item 33: 94,7%), bem como para a melhoria da sua prática clínica diária (item 34: 92,7%). Um facto curioso é que apenas pouco mais de metade dos respondentes (54,1%) considerou que as acções de formação tinham correspondido às suas expectativas iniciais, o que, conjugado com as respostas aos itens 33 e 34, pode ser interpretado como as acções de formação terem superado as expectativas iniciais dos médicos. Quanto ao papel do formador no processo de

aprendizagem, a maior parte considerou que este era mais importante do que o método de ensino utilizado (44,2%), embora esta vantagem tenha sido pequena em relação aos que discordaram: 32,7% dos inquiridos considerou que o formador não influencia significativamente a aprendizagem. O equilíbrio na distribuição das respostas ao item 32 pode dever-se à perspectiva individual que cada um tem em relação ao que é um formador e ao que é um método de ensino. Não podemos, no entanto, esquecer que estas são apenas especulações, não avaliadas com o presente inquérito nem suportadas pela bibliografia disponível. De facto, são várias as referências presentes na literatura que consideram que “... a qualidade e o valor do formador são impres-cindíveis para conseguir motivar os formandos.” (99), que “O ensino eficaz depende crucialmente das capacidades de comunicação do professor.” (100) ou que “O sucesso da técnica pedagógica escolhida dependerá mais dos objectivos traçados para ela, bem como da postura e comportamento do professor que a propõe.” (101).

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dos conhecimentos, a MGF é a especialidade que menor importância lhe confere.

16. O local em que decorrem as acções de formação não parece influenciar de forma significativa a aprendizagem de nenhum grupo específico de médicos.

17. As acções de formação que decorrem fora do horário laboral são motivantes para todos médicos, mas de forma muito mais marcada para a MGF; o grupo das especialidades cirúr-gicas foi o único que se mostrou indiferente ao horário das acções de formação.

18. A quase totalidade dos médicos inquiridos avalia de forma positiva as acções de formação em que participou, considerando-as importantes para a melhoria da sua prática clínica e para o aumento dos seus conhecimentos.

19. Apenas cerca de metade dos inquiridos concorda que as acções de formação que frequentou corresponderam às suas expectativas iniciais.

20.Quasemetadedos inquiridos considera queo formador é mais importante do que o método de ensino, embora uma percentagem significativa considere que este não influencia significativamente a aprendizagem.

21. A maioria das acções de formação frequentadas baseou-se na exposição de conhecimentos.

22. Apenas cerca de um quarto dos respondentes participou em acções de formação com dis-cussões em grupo.

23. O número de acções de formação frequentadas ou ministradas não influencia os métodos de aprendizagem escolhidos.

Vantagens e limitações do presente estudo

O presente estudo limitou-se à análise das res-postas de um número reduzido de respondentes, provenientes de uma população de conveniência. Estes factos podem limitar a generalização das conclusões. Contudo, deve assinalar-se que este é o primeiro estudo empírico sobre esta matéria e que o número de respondentes foi suficiente para poder retirar conclusões significativas do ponto de vista estatístico, atendendo ao número de variáveis em estudo, seguindo a “regra do polegar”. Será vantajoso que, em estudos posteriores, sejam uti-lizadas respostas de uma população seleccionada aleatoriamente, e que o número de inquiridos seja alargado.

No presente estudo não foi possível utilizar a análise factorial para reduzir o número de factores a

3. A manutenção da competitividade de mer-cado não foi uma motivação importante para a maioria dos médicos, sendo mais relevante para o sexo masculino do que para o sexo feminino.

4. O objectivo principal da formação contínua por parte dos médicos parece ser a progressão na carreira, sendo a recompensa financeira um aspecto secundário.

5. Estudam sobretudo as patologias mais frequen-tes e com as quais lidam na sua prática clínica diária, embora considerem estudar assuntos diversificados e não apenas o estritamente necessário.

6. A MGF parece ser o grupo de especialistas que estuda assuntos mais diversificados, mas este resultado pode não ser real e dever-se apenas ao facto de esta ser uma especialidade mais abrangente.

7. Apenas um terço dos inquiridos frequenta acções de formação não relacionadas com a Medicina, sendo os hábitos de estudo dos médicos muito dirigidos à área da Saúde.

8. A maioria dos médicos prefere estudar sozi-nha.

9. Os livros e revistas da especialidade são a fonte preferencial de aquisição de novos conheci-mentos.

10. Os médicos utilizam muito pouco a Internet com o objectivo de aprendizagem.

11. A discussão entre colegas foi muito valorizada pela grande maioria dos inquiridos como forma de melhorar a aquisição de conhecimentos, sobretudo quando esta ocorre com médicos de especialidades diferentes.

12. Os métodos activos de aprendizagem foram os preferidos pelo grupo analisado, sendo a leitura o único método passivo bem aceite.

13. A aprendizagem através da frequência de Congressos, Simpósios, Reuniões ou Cursos só agrada a uma minoria de médicos, sendo mais apelativa para os especialistas mais jovens (com menos de 5 anos de especialidade); os especialistas mais velhos (com mais de 10 anos de especialidade) preferem aprender nos livros e revistas.

14. Os médicos utilizam a aplicação prática dos conhecimentos não como forma inicial de aprendizagem, mas sobretudo como meio de reforço dos mesmos.

15. Apesar de todos os grupos de especialistas considerarem importante a aplicação prática

Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem 129

2. O que estudam os médicos?

Embora considerem que não estudam apenas o necessário, a grande maioria dos médicos estuda sobretudo as patologias mais frequentes do seu dia-a-dia. Embora os nossos resultados pareçam apontar nesse sentido, não nos permitem concluir que os médicos de MGF procurem estudar assun-tos mais diversificados por iniciativa própria, uma vez que a sua especialidade justifica, por si só, a necessidade de procurar assuntos diversos para suprir as necessidades do dia-a-dia. Os hábitos de estudo desta população prendem-se sobretudo com a área da Saúde, havendo um número reduzido de inquiridos que frequenta outras acções de formação não directamente relacionadas com a Medicina.

3. Como estudam os médicos?

Para a aquisição de novos conhecimentos, a maioria dos inquiridos prefere estudar isolada-mente, recorrendo sobretudo a livros e revistas da especialidade. A aprendizagem através de acções de formação organizadas (Congressos, Reuniões, etc.), que utilizam sobretudo o método expositivo (mais estruturado e permitindo a transmissão de maior quantidade de informação), só se revelou apelativaparaosmédicosmais jovens.Quandooobjectivo não é já a aquisição, mas a estruturação, actualização ou aprofundamento de determinado assunto, o método de aprendizagem preferencial é a discussão com outros colegas ou a aplicação prática dos conhecimentos anteriormente adquiridos. Seja através de métodos activos ou passivos, os médicos começam por adquirir os conhecimentos necessários à sua prática clínica e só depois passam à sua aplicação prática.

4. Onde consideram os médicos que as acções de formação são mais eficazes?

Quandosetratadeaprendizagem,ofactodeasacções de formação decorrerem no próprio local de trabalho ou completamente fora do ambiente habitual (de trabalho e circundante) é indiferente para a maioria dos inquiridos.

5. Quando consideram os médicos que devem decorrer as acções de formação?

Ao contrário do que se verifica noutras profissões, em que é aconselhável que as acções de formação decorram durante o horário de trabalho, a maioria dos médicos inquiridos considerou mais produtiva a aprendizagem que decorre fora do horário laboral.

analisar. Esta limitação pode resultar da ausência de suporte teórico para a construção de um questionário que permitisse analisar os factores intervenientes na motivação dos médicos para estudar de forma contínua. De facto, não estão ainda descritos e identificados na literatura os factores determinantes da motivação no processo de aprendizagem, o que pode justificar que a tentativa de identificar esses factores a posteriori se tenha revelado infrutífera. Perante esta limitação, optou-se por analisar os itens separadamente, utilizando métodos estatísticos não paramétricos. Esta escolha permitiu preservar a informação inicial e revelou-se mais ajustada, tanto mais que a grande maioria dos itens não apresentava uma distribuição normal. É de salientar que a análise estatística revelou que muitos itens podem estar inter-relacionados ou depender de factores comuns, pelo que seria importante que no futuro fossem efectuados trabalhos que permitissem identificar quais os factores motivacionais determinantes na aprendizagem ao longo da vida.

Conclusões

O presente trabalho objectivou a noção que subjec-tivamente sempre existiu, de que os médicos estudam ao longo de toda a sua vida profissional, e não ape-nas até ao final do período de formação. Tentámos compreender porquê, o quê, como, quando e onde estudam os médicos, e como avaliam as acções de formação que habitualmente frequentam.

1. Porque estudam os médicos continuamente ao longo de toda a sua carreira?

De acordo com os resultados obtidos, fazem-no sobretudo por satisfação pessoal e por necessidade de actualização, podendo estes dois factores estar interligados. Por outro lado, não se verificou que a necessidade de actualização pudesse estar também relacionada com a manutenção da competitividade no mercado de trabalho, a qual não foi significa-tivamente valorizada. Este facto pode resultar da constituição predominantemente feminina da nossa amostra, e de esta motivação ser, de acordo com os nossos resultados, mais importante para o sexo masculino. O factor financeiro não parece ser uma motivação importante para a formação contínua, uma vez que a maioria dos médicos inquiridos considerou que o seu empenho em formação não teve reflexos económicos. Contrariamente, a quase totalidade concordou que este esforço se reflectiu na sua carreira.

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ser empregues métodos activos de aprendi-zagem, ou seja, o formando deve partir dos conhecimentos que já possui e, com a ajuda de um orientador, seguir os passos necessários que lhe permitam, por si próprio, atingir os objectivos pretendidos e adquirir os novos conhecimentos.

No entanto, é importante ter presente que, por um lado, os médicos estão mais familiari-zados com o método expositivo, com o qual a hipótese de frustração é muito reduzida, e por outro, a quantificação dos conhecimentos prévios é difícil, sendo quase impossível que todos os participantes numa mesma acção de formação tenham exactamente o mesmo nível de conhecimentos prévios sobre determinado assunto. Assim, a atitude mais sensata parece- -nos ser a utilização conjunta de vários métodos de ensino/aprendizagem, de forma a que sejam abrangidos pela formação os vários estilos de aprendizagem individuais presentes. Nunca é demais frisar que os métodos devem ser sempre adequados a cada situação em particular, ao público a que se destinam e aos objectivos a atingir.

•Nãoparecesermuitoimportanteseasacçõesde formação decorrem no local de trabalho ou fora deste, mas devem desenvolver-se fora do horário laboral.

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Esta preferência foi particularmente acentuada no grupo da MGF, tendo as especialidades cirúrgicas sido indiferentes ao horário em que decorrem as acções de formação.

6. Como avaliam os médicos as acções de forma-ção que habitualmente frequentam?

A maior parte das acções de formação frequen-tadas basearam-se no método expositivo, sendo a avaliação da quase totalidade dos médicos positiva. Estes consideraram-nas importantes para o aumento dos seus conhecimentos e para a melhoria da sua prática clínica.

Numa primeira leitura, este último dado estaria em desacordo com os resultados do ponto 3, no qual se concluiu que a aprendizagem formal só seria apelativa para os médicos mais jovens. Na realidade, estes dois aspectos complementam-se, e os resultados obtidos estão em acordo com o descrito na literatura (86, 89, 93): para a resolução de pro-blemas específicos os médicos recorrem sobretudo à aprendizagem informal ou semi-estruturada, mas a aquisição de conhecimentos gerais associa-se a uma aprendizagem mais formal, como foram as acções de formação que o grupo estudado frequentou na grande maioria das situações.

Tendo em conta os resultados obtidos com este estudo, a organização de acções de formação deverá ter em consideração alguns aspectos:

•Asacçõesdeformaçãodeverãosempretrans-mitir algo de novo, uma vez que os médicos procuram-nas sobretudo para se manterem actualizados;

•Osmédicosestudamprioritariamenteaspato-logias mais frequentes na sua prática clínica, pelo que, antes da estruturação de uma acção de formação, deve ser feito o diagnóstico das necessidades práticas dos clínicos a que esta se destina;

•Quantoaosmétodosdeaprendizagemautilizar,existem duas situações distintas a ter em aten-ção: 1) se o objectivo da formação for uma nova aprendizagem ou aprendizagem de um assunto genérico, como por exemplo a divulgação de novos fármacos, novas técnicas terapêuticas ou diagnósticas ou de novas descobertas científicas, a transmissão dos conhecimentos deve ser feita de um modo formal e, neste caso, o método expositivo é habitualmente bem aceite; 2) se a acção de formação se destina a actualizar ou a reforçar conhecimentos prévios, devem

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Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 135-146

Resumo

Neste artigo, revisita-se a noção de afasia e os defeitos linguísticos que lhe são subjacentes, analisando uma bateria recente para a avaliação da linguagem na afasia, em português, a PALPA-P de São Luís Castro, Susana Caló e Inês Gomes (2007).

Palavras-Chave: Afasia – Defeitos de Linguagem – PALPA-P

Abstract

The aim of this paper was to provide a critical appreciation of PALPA-P – an aphasia test, adapted to portuguese, by São Luís Castro, Susana Caló & Inês Gomes (2007) – through revisiting the concept of aphasia and language impairment in aphasia.

Keywords: Aphasia – Language Impairements – PALPA-P

Revisitando as Afasias na PAlPA-PAna Mineiro* 1, 2, Alexandre Castro Caldas1, Inês Rodrigues1, Gabriela Leal 3, 4

1 Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa2 Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 3 Hospital de Santa Maria4 Escola Superior de Saúde de Alcoitão

* [email protected]

Notas introdutórias

“If everyone is thinking alike, no one is thinking”

(General Patton, citado por R. Wertz: 1996: 180)

Sendo a afasia um conceito controverso, herdeiro de uma tradição histórica na forma de pensar o cérebro e sua relação com a linguagem, situaremos, neste artigo de revisão, a investigação em afasiologia numa perspectiva histórica.

Partindo de um conceito operativo sobre a noção de afasia e de uma classificação fina dos vários tipos de afasia e subjacentes defeitos de linguagem, anali-saremos uma bateria para a avaliação da linguagem na afasia em português, a Provas de Avaliação da Linguagem e da Afasia em Português (PALPA-P).

Detendo-nos, previamente, na bateria original, a PALPA, recenseando o seu desenho e as críticas de que foi alvo, partiremos para uma apresentação da recente PALPA-P, analisando a sua operatividade para avaliar os diferentes aspectos da linguagem.

O que é a Afasia?

Conceito de Afasia

A afasia é uma perturbação adquirida da linguagem que resulta de uma lesão cerebral cuja etiologia

pode ser diversa. Essa lesão focaliza-se nas estru-turas supostamente envolvidas no processamento da linguagem1 e afecta a compreensão auditiva, a leitura e a escrita assim como a expressão oral da linguagem em diferentes graus2.

A afasia tem sido um grande alvo histórico de investigação e de debate científico nas áreas da medicina, da neuropsicologia e, paralelamente, da linguística.

Um pouco de história

No final do século XVIII, já existia um conheci-mento acumulado sobre a afasia, sendo, no entanto, Franz Joseph Gall (1758-1828) quem veio dar a este campo um contributo inestimável, tornando- -se, através da ideia de “especialização cerebral” o precursor da investigação de base neurológica, ou seja, da moderna neuropsicologia.

Esta doutrina foi levada a cabo por muitos segui-dores e pelo próprio Gall que não deixou de a

1 Tal como é referido por Castro Caldas (1999:164): “A afasia é a perturbação da linguagem que resulta de uma lesão cerebral, localizada nas estruturas que se supõe estarem envolvidas no processamento da linguagem.”

2 Tal como proposto por Wertz (2004:249): “Aphasia is an acquired disorder of language subsequent to brain damage that affects auditory comprehension, reading, oral expressive language, and writing.”

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2136

mais tarde, em 1865, depois de observar vários doentes com lesões neurológicas, Broca afirma que “on parle avec l’hémisphère gauche”. Fica, assim, associado na história da medicina como o pai do conceito de dominância cerebral. (Cf. Castro Caldas: 1999:20).

Um pouco mais tarde e influenciado pelos traba-lhos de Meynert sobre feixes de associação cerebral, Wernicke publicou um trabalho, em 1874, que o celebrizou e a partir do qual se inaugurou uma nova etapa na investigação da área focalizada nos modelos associativos.

Tal como refere Castro Caldas (1999: 21) a pro-pósito do trabalho de Wernicke, em Die Aphasische Symptomem Complex:

“(…) o autor realça a existência de um centro de memórias sensoriais que seria responsável pela compreensão auditiva da linguagem. Os doentes com lesões deste centro (que Wernicke começou por localizar na ínsula e só mais tarde localizou no lobo temporal) perderiam a capacidade de compreender, auditivamente, a linguagem oral. O aspecto mais interessante deste modelo é, porém, o facto de terem sido descritas vias de ligação entre os diversos centros dando, assim, uma dimensão funcional ao cérebro que até então não tinha sido considerada.”

Wernicke (1874) e o conjunto de investigadores que se abrigaram na Escola de Breslau previram ainda a existência de um outro tipo de afasia: a afasia de condução. Esta última é provocada pela lesão do “feixe arqueado” que une o lobo temporal ao lobo frontal, ou seja, o feixe que permite a comunicação entre as áreas de Wernicke e de Broca (Geschwind:1965). Um paciente com este tipo de alteração deveria poder compreender normalmente (como um afásico de Broca), falar fluentemente como um afásico de Wernicke, mas não seria capaz de repetir pois estava interrompida a ligação entre o que os autores designavam por memórias auditivas e memórias motoras da linguagem.

Contudo, só dez anos mais tarde, em 1884, é que Ludwig Lichtheim descreveu estes pacientes. Para além dos sintomas previstos por Wernicke, estes pacientes exibiam, como o modelo previra, uma grande dificuldade em repetir palavras ou frases ouvidas.

Hoje em dia, a investigação que se faz, através de baterias de testes e através da imageologia, visa, sobretudo, tornar mais rigoroso o estudo da

aplicar, por exemplo, ao diagnóstico de criminosos. Pelo seu fundamentalismo e pelas generalizações abusivas que dela se fizeram, esta teoria desapareceu sem deixar rasto, sendo muitas vezes conotada com o charlatanismo, a astrologia, a quiromancia ou a numerologia. Na verdade, o que nos legou foi muito importante: permitiu a descoberta da “especialização cerebral” (funções psicológicas associadas a regiões específicas do cérebro), afastando a teoria ventricular3 e dando o primeiro passo na neuropsicologia.

Com base nos pressupostos frenológicos, Paul Broca (médico e antropólogo) trabalhou com Jean Baptiste Bouillaud, acérrimo seguidor de Gall, na criação de um modelo experimental. Baseando-se no estudo de doentes com lesões cerebrais a hipótese que se colocava era saber se um determinado órgão frenológico fosse lesado, qual seria o grau de perda da função pela qual ele era responsável. (Cf. Castro Caldas: 1999:20).

Broca procurou doentes que apresentassem alte-rações da linguagem oral e esperou pela sua morte para lhes dissecar o cérebro. O primeiro doente foi Leborgne, cujo léxico oral se encontrava restringido ao vocábulo tan. Leborgne era considerado egoísta, vingativo e mau e a sua patologia era apenas lin-guística, pois este doente era considerado consciente dos seus actos. O que é que revelou o exame ao cérebro de Leborgne? O hemisfério direito estava perfeitamente intacto. Em compensação, o córtex do hemisfério esquerdo estava deteriorado numa área considerável e no meio dessa lesão existia uma pequena zona com uma lesão mais profunda e com maior tempo de evolução: a terceira circunvolução4 frontal. Depois de ter estudado um segundo doente com idêntica sintomatologia e lesão semelhante, Broca atribui à terceira circunvolução frontal, a localização da “linguagem articulada”. Alguns anos

3 O modelo funcional cerebral que perdurou durante a Idade Média foi a Teoria Ventricular. Esta teoria, particularmente desenvolvida por Galeno dominou o conhecimento até ao século XVII e baseia-se na interacção entre os fluidos dos três ventrículos. No terceiro ventrículo situa-se a discurso e a ligação entre memória e linguagem. A partir de meados do século XVII, esta teoria vai perdendo preponderância, embora alguns aspectos deste modelo continuem presentes, nomeadamente:

– os conceitos de localização funcional cerebral; – as “ligações fortes” entre memória e linguagem; – a ideia de que as memórias são “imagens armazenadas”. (Cf. Whitaker, H. 1998. “History of Neurolinguistics”, In:

Handbook of Neurolinguistics, pp. 27-53.).4 Broca passa de uma “teoria das bossas” para uma “teoria das

circunvoluções” (Cf. Castro Caldas: 1999:20).

Revisitando as Afasias na PALPA-P 137

Estes são pressupostos que é necessário ter em linha de conta quando se discute a questão da classificação das diferentes síndromes. Contudo, nada impede que se considere a patologia vascular como sendo a referência central, dada a frequência largamente superior destes casos.

A classificação das afasias depende então do desempenho do doente em determinados parâmetros que são avaliados através de baterias de testes. Os parâmetros a avaliar nas baterias mais comummente utilizadas são os seguintes (cf. Leal & Pavão Martins :2005:360):

(i) fluência do discurso;

(ii) capacidade de denominação de objectos;

(iii) capacidade de repetição de palavras;

(iv) capacidade de compreensão de ordens.

O primeiro critério – fluência do discurso – é inicialmente proposto por F. Benson (1967) e resulta de um dos primeiros estudos de correlato entre as características do discurso afásico e a localização da lesão cerebral. Este autor, da escola de Boston, estudou as cintigrafias cerebrais de doentes com aci-dentes vasculares cerebrais e verificou que, quando a lesão se encontrava à frente do rego de Rolando, o discurso era não-fluente e, no caso de a lesão ocupar regiões para trás deste acidente anatómico, o discurso era considerado fluente. Os critérios de classificação de fluência são vários que não importa, neste contexto, detalhar.

Os critérios seguintes quando presentes ou ausen-tes (de acordo com pontuação obtida em provas expressamente desenhadas) permitem a classificação de múltiplos síndromes afásicos que se podem resu-mir, tal como apresentamos no seguinte quadro:

Fluência Compreensão Nomeação Repetição

Afasia Global – – – –

Afasia de Broca – + – –

Afasia de Wernicke – – –

Afasia de Condução + + + / – –

Afasia Anómica + + – +

Afasia Transcortical Mista

– – – +

Afasia Transcortical Sensorial

+ – – +

Afasia Transcortical Motora

– + – +

Surdez Verbal Pura + – + –

afasia, com o intuito de, por um lado, aprofundar o conhecimento da biologia da linguagem e a sua forma de relação com o cérebro, e, por outro lado, propor soluções adequadas para a reabilitação da linguagem.

Tipos de afasia

Desde cedo se compreendeu que não eram idên-ticas as perturbações da linguagem resultantes de lesões cerebrais. Com o estudo das correlações entre os defeitos observados e a localização das lesões responsáveis, compreendeu-se que o processamento da linguagem pelo cérebro dependia de múltiplos operadores com localizações distintas no cérebro. É justo evocar o trabalho de Dejerine, em França, para além da contribuição principal de Broca e da Escola de Breslau, que explorou aspectos relacio-nados com a leitura, deixando obra, ainda hoje, de referência obrigatória.

Pode, então, sintetizar-se todo este labor de um século dizendo que está consolidado e universal-mente aceite o conceito de que a uma determi-nada localização de lesão cerebral corresponde uma alteração específica de linguagem. Devemos acrescentar, contudo, que o perfil de disfunção da linguagem varia consoante o tempo decorrido depois da lesão cerebral e que importa ter em linha de conta a natureza do processo desigual do cérebro.Quasetodaatipologiadasafasiasresultada observação de casos com acidentes vasculares cerebrais. Compreendeu-se então que estes acidentes não acontecem de forma aleatória no cérebro mas obedecem a um padrão anatómico dos vasos que o irrigam. Pode, então, dizer-se que cada síndrome afásico considerado na classificação mais usada, a de Boston, corresponde a um síndrome de localização de acidente vascular.

Se percorrermos a literatura do passado sobre classificação dos síndromes afásicos, verificamos algumas diferenças importantes de autor para autor. Isto resulta, em grande parte, do facto de cada autor basear as suas observações em casuísticas distintas. A classificação de Boston que resulta da de Wernicke baseia-se precisamente nos casos do Boston Vete-rans Administration Hospital que acolhia os casos vasculares. A classificação de Henry Head (1926) no primeiro teste padronizado para avaliar a afasia, é bem distinta porque se baseava na observação de feridas do cérebro sofridas por militares na guerra. Neste caso, a variação das localizações cerebrais das lesões já não segue um padrão pré-definido.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2138

Relativamente à compreensão auditiva8 da lin-guagem coloquial ela encontra-se bem conservada, sendo de notar que existem algumas alterações de compreensão de estruturas sintácticas complexas, como a forma passiva e que são testáveis através, por exemplo, pelo Token Test (De Renzi e Vignolo, 1962).

Afasia de Wernicke

O quadro de afasia de Wernicke resulta de uma lesão na parte posterior e superior da face externa do lobo temporal do hemisfério esquerdo9.

Esta afasia caracteriza-se por uma grande perturba-ção da compreensão auditiva havendo uma fluência discursiva normal. Para além do defeito mencionado os afásicos de Wernicke apresentam ainda perturba-ções ao nível das capacidades de nomeação e de repetição. Como refere Leal (2003: 8):

“Habitualmente estes doentes têm um discurso paragramático, fazem muitos erros parafrásicos e erros de “word finding”.

Os erros na produção verbal podem ser de diver-sos tipos que vão desde as parafasias verbais (troca de uma palavra por outra) às parafasias holofrásticas (modificação da palavra na sua estrutura) passando pelas pausas anómicas e pelo circunlóquio.

Existem duas variantes na afasia de Wernicke: uma variante cujo defeito de expressão é mais acentuado,

latórios e distorções. Ocasionalmente podem produzir nomes errados. O nível do defeito de nomeação pode ir desde uma incapacidade completa até uma redução ligeira na capacidade de evocação.”

8 “Auditory comprehension is relatively good for single words and short sentences. However, comprehension of grammatically complex sentences is impaired. Their phrase length is short and they produce halting, tele-graphic, agrammatic speech that contains, primarily content words.”

(Wertz, R. Dronkers, N.F. Ogar, J.2004. The MIT Encyclo-pedia of Communication Disorders, p. 249).

9 “The traditional belief is that Wernicke’s aphasia results from a lesion in Wernicke’s area (posterior Brodmann’s area 22) in the left hemisphere auditory-association cortex (Damasio 1992), with extension into Brodmann’s areas 37, 39 e 40. ( ) Spoken phrase length averages six or more words, and a semblance of syntax is present. However, the oral-expressive behavior includes phonolo-gical errors and jargon. ( ) A salient sign in Wernicke’s aphasia is impaired auditory acuity. In addition, verbal repetition and naming abilities are impaired, and there is a range of reading and writing deficits.”

(Wertz, R. Dronkers, N.F. Ogar, J.2004. The MIT Encyclo-pedia of Communication Disorders, p. 250).

Os vários tipos de defeitos de linguagem segundo as várias afasias

Nesta secção, iremos caracterizar os vários defeitos de linguagem segundo a tipologia de afasias que acima apresentámos.

Afasia de Broca

Esta afasia é aquela cujo quadro clínico possui uma descrição mais antiga. Segundo Castro Caldas (1999:175):

“Aceita-se hoje que existam duas variantes do quadro que foi inicialmente descrito por Broca. A primeira corresponde a uma lesão extensa que envolve não só o pé da terceira circunvolução fron-tal, região conhecida como “área de Broca”, mas também as regiões frontais vizinhas e a substância branca subcortical, podendo estender-se até aos gânglios da base.(….)”

Neste caso, o discurso dos doentes restringe-se praticamente ao uso de nomes e muitas vezes ao uso de uma única palavra (existente ou não) e que se chama estereótipo (ex. tan). As acções são expressas através de verbos no infinitivo e não existem quase nunca partículas de ligação (discurso telegráfico) o que leva alguns autores a caracterizar esta afasia pelo seu agramatismo. Este termo não é totalmente correcto já que não se trata de uma perda da noção de gramática e da utilização das suas regras5, mas sim da alteração muitas vezes distribucional das mesmas, como no exemplo: “loja comprar arroz” em vez de “fui à loja comprar arroz”6.

Os afásicos de Broca também apresentam um defeito de nomeação que pode situar-se entre um défice ligeiro (redução na capacidade de articulação/ /produção) até à incapacidade completa. Relati-vamente à anomia da afasia de Broca, esta tem origem na incapacidade para encontrar a posição articulatória, provocando erros e distorções. Este tipo de defeito encontra-se mais marcado no discurso espontâneo do que em provas de nomeação7.

5 Tal como afirma Castro Caldas (1999: 175): “não se trata exactamente da perda do uso da gramática, mas sim da capacidade de introduzir na forma do discurso algumas das suas regras.”

6 Exemplos encontrados em Castro Caldas (1999:176).7 Tal como refere Leal (2003:7): “A anomia da afasia de

Broca manifesta-se pela incapacidade para encontrar a posição articulatória. O defeito é mais marcado no discurso espontâneo do que em provas de nomeação de objectos. Os afásicos de Broca produzem erros articu-

Revisitando as Afasias na PALPA-P 139

de poderem responder a questões devidamente contextualizadas ou muito frequentes. As capacidades de nomeação e de repetição não estão preservadas e as capacidades para a leitura e a escrita também estão muito comprometidas.11

Afasia Anómica

Neste quadro afásico, existe uma clara perturbação nos mecanismos de evocação. O doente substitui a palavra por paráfrases explicativas, descrevendo, meronimicamente, as funções ou partes do objecto que pretende nomear. O defeito principal nesta afasia reside na dificuldade de acesso aos nomes12, estando poupadas as restantes capacidades. (Cf. Castro Caldas: 1999:181).

Afasia de Condução

O defeito saliente neste tipo de afasia centra- -se na incapacidade para repetir palavras e frases, independentemente de a compreensão auditiva ser relativamente boa. A linguagem expressiva oral é fluente embora os doentes com afasia de condução cometam numerosos erros fonológicos e substituam palavras por outras que lhe sejam fonologicamente próximas. A nomeação, a leitura e a escrita encontram-se geralmente alteradas.13

11 “This non-fluent syndrome is associated with large left hemisphere lesion that may involve the frontal, temporal, and parietal lobes, insula, and underlying white matter, including the arcuate fasciculus (Dronkers and Larsen, 2001). It is the most severe of all syndromes. Auditory comprehension is markedly reduced and may be limited to inconsistent comprehension of single words. Oral-expressive language is sparse, often limited to a recurring intelligible –“bees, bees, bees” – or unintelligible – “doobe, doobe, doobe” – stereotype. Other automatic expressions, including profanity and counting, may also be preserved. Globally aphasic patients are unable to repeat words, and no naming ability is present. Reading and writing abilities are essentially absent.”

(Wertz, R. Dronkers, N.F. Ogar, J.2004. The MIT Encyclo-pedia of Communication Disorders, p. 249).

12 “This fluent syndrome is the least severe. Anomia – word finding dificulty – is present in all aphasic syndromes; thus localization of the lesion that results in anomic aphasia is not precise.”

(Wertz, R. Dronkers, N.F. Ogar, J.2004. The MIT Encyclopedia of Communication Disorders, p. 250).

13 “The salient sign in conduction aphasia is impaired ability to repeat phrases and sentences in the presence of relatively good auditory comprehension and oral-expressive abilities. Although auditory comprehension is relatively good, it is not perfect. And, while oral-expressive language is fluent (longer phrase length and semblance of syntax), patients with conduction aphasia

em que o discurso dos doentes é jargonafásico, e uma variante em que predomina o defeito de compreensão (cf.Castro Caldas: 1999:175).10

Afasia Global

A afasia global é a forma mais grave de pertur-bação da linguagem. Resulta de uma extensa lesão do hemisfério esquerdo envolvendo a rede neuro-nal que suporta e trata toda a informação verbal. O discurso é não-fluente podendo estar limitado a um estereótipo. Estes doentes possuem um acentuado defeito de compreensão de material verbal apesar

10 O papel desempenhado pela região do cérebro afectada tem, provavelmente, duas funções: uma relativa aos processos de descodificação e outra relacionada com os processos de codificação. Relativamente à função de descodificação, admite-se que:

“ (…) nesta região cerebral ocorre a transformação dos sons da linguagem, que são recebidos no córtex temporal em ambos lados do cérebro (a informação recebida no hemisfério direito é transferida para o esquerdo através do corpo caloso) em código interno do sistema, registando-se, posteriormente, o endereçamento dessa informação às múltiplas áreas cerebrais que a ela digam respeito; não se trata, por isso, de um processo de compreensão, mas sim de um processo de descodificação – a compreensão surge quando a informação activa o campo semântico que lhe diz respeito e isso pode ocorrer em qualquer lugar do cére-bro. Há alguma evidência experimental que suporta a ideia de ser o tratamento do tempo de entrada da informação um dos mecanismos perturbados nesta afasia. Assim, a compreensão melhora quando as provas são apresentadas vagarosamente, sugerindo ou uma maior lentidão dos processos de descodificação que é superada se a informação entrar lentamente, ou um erro na marcação temporal da entrada da infor-mação, provocando erros na sequenciação ou, ainda, uma perturbação de memórias operativas perceptivas que permitem manter a informação em stand by por pequeníssimas fracções de tempo, dificultando depois o relacionamento de todos os dados entrados. Este relacionamento permite a identificação com unidades de significado.” (Castro Caldas: 1999: 179).

Relativamente à função de codificação podemos entendê-la de duas formas:

– regista-se uma dificuldade de evocação que é mais marcada para nomes de acção do que para partículas de ligação – sugerindo, por isso, que o acesso a esta informação depende de outros mecanismos possivel-mente relacionados com zonas anteriores do cérebro enquanto que os nomes e as acções se relacionam mais com o córtex sensorial e que se estende pelas regiões posteriores do cérebro (parietal, occipital e temporal).

– regista-se também erros de programação a nível fonológico (selecção de fonemas e sequenciação dos mesmos). (Cf. C.Caldas: 1999: 180).

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2140

para avaliar as perturbações adquiridas da linguagem e o processamento da mesma.

Para efectuar essas avaliações e consequentes programas de reabilitação linguística, os afasiologistas viam-se pressionados a elaborar os seus próprios materiais, tendo por base a literatura científica da área que mencionava tarefas de decisão lexical e de repetição de palavras, sem mencionar os estímulos. Socorrendo-se de listas de frequências de palavras como aquelas que eram fornecidas pela linguística de corpora15, nomeadamente, o Survey of English Usage deRandolphQuirkparaGrandeBretanhaeoBrown Corpus de Nelson Francis e Henri Kucera para os Estados Unidos da América. Os investigadores iam, caso a caso, desenhando os seus próprios materiais de avaliação da afasia, cuja limitação principal residia na incomparabilidade dos casos estudados.

A laboriosidade decorrente da construção de materiais clínicos próprios – de diagnóstico relati-vamente ao defeito de linguagem e de desenho de um programa de reabilitação decorrente do defeito de linguagem – somado ao facto de estes materiais não permitirem comparações entre casos individuais levou Kay, Lesser e Coltheart a lançarem-se, em 1984, na construção de uma bateria que avaliasse não só as perturbações adquiridas da leitura e da escrita como também as tarefas de processamento auditivo (cf. Castro, S.L. Caló, S. e Gomes, I: 2007:10).

A PALPA surge assim, neste contexto histórico, numa tentativa de colmatar as lacunas existentes. Quandose falanumaprovaparaaavaliaçãodosdefeitos da linguagem espera-se que os resultados da prova nos elucidem acerca da natureza do defeito

15 Os corpora linguísticos, enquanto colecções substanciais de performances linguísticas, tiveram uma grande importância na forma como os linguistas e os estudiosos da linguagem passaram a encarar os dados linguísticos. O facto de se poder ter acesso a dados reais e do uso, partindo de uma descrição real do desempenho para o estabelecimento de regras inaugurou uma nova era na linguística, a linguística baseada ou conduzida pelos dados (data-based e data driven). A partir dos anos 80 e com o advento e desenvolvimento computacional passou a ser possível coleccionar dados de uma forma muito mais ampla e facilitada do que nos primeiros corpora como o SEU ou o Brown Corpus. Prova disso são, nos anos 80, a Birmingham Collection of Texts orientada por John Sinclair com mais de vinte milhões de palavras, no seu corpus principal. Também para o português e a partir dos anos 90, foi constituído um corpus de referência, o Corpus de Referência do Português Contemporâneo (CRPC) com mais de 200 milhões de ocorrências. Hoje em dia, a construção de baterias de avaliação da linguagem pode beneficiar de dados atestados para as várias línguas graças ao desenvolvimento da Linguística de Corpora.

Afasias Transcorticais

As afasias transcorticais (sensorial e motora) carac-terizam-se pela preservação da repetição associada a um defeito de compreensão auditiva, no caso da afasia sensorial, e pela existência de um discurso não fluente, no caso da afasia motora. Se apresentar ambos os defeitos, será uma afasia mista (cf. Castro Caldas: 1999: 183).

Surdez Verbal Pura

Trata-se de uma situação relativamente rara em que se verifica a incapacidade de descodificar audi-tivamente a linguagem. O doente comporta-se como um surdo que não consegue compreender o que ouve, nem consegue produzir discurso normal e dar nomes aos objectos, não podendo naturalmente repetir.

PAlPA-P

PAlPA: história, desenho experimental e apreciação de uma bateria tão esperada

A PALPA – Psycholinguistic Assessments of Language Processing in Aphasia – surgiu em 1992, pelas mãos de Janice Kay, Ruth Lesser e Max Coltheart. Importa dizer que o seu desenvolvimento acompanhou o nascimento da chamada Neuropsicologia Cogni-tiva. Esta corrente de trabalho considera irrelevante a localização da lesão cerebral responsável pela afasia, preocupando-se, fundamentalmente, com a boa descrição da produção residual de linguagem. Pretende, desta forma, identificar os processos alte-rados e daí inferir as regras de processamento e não discutir quais as regiões cerebrais responsáveis pelas funções.

Estes investigadores chegaram à conclusão, durante a década de 80, que existiam muito poucos testes14

make numerous phonological errors and replace intended words with words that sound similar. Naming, reading, and writing abilities are disrupted to some extent.”

(Wertz, R. Dronkers, N.F. Ogar, J.2004. The MIT Encyclopedia of Communication Disorders, p. 250).

14 Note-se a existência, em 1926, de um primeiro teste padro-nizado para avaliar a afasia aparece proposto por Henry Head – Aphasia and Kindred Disorders of Speech –. Este instrumento aparentemente testado em 44 sujeitos normais pretendia fazer uma avaliação sistemática das perturbações do afásico. Contudo, foi só a partir de Weisenberg e Mc Bride (1935/1964) que se constituiu a primeira bateria psicométrica, utilizando procedimentos padronizados, comparando resul-tados com sujeitos normais (Cf. Leal: 2003:131).

Revisitando as Afasias na PALPA-P 141

A PALPA original e as versões que dela descen-deram – EPLA23, o PALPA – Nederlandse Versie24, o Hebrew version of the PALPA25 e o PALPA-P26 destinam-se, principalmente, a identificar proble-mas de processamento da linguagem em pessoas com lesões adquiridas, partindo da formulação de hipóteses (hypothesis driven) acerca da natureza do defeito de linguagem em doentes afásicos.

Adicionalmente, a PALPA foi desenhada para pro-videnciar orientações sobre o tratamento apropriado para cada um dos casos de afasia.

A PALPA fundamenta-se num modelo de linguagem que se assume como modular. Nesta perspectiva, a linguagem, à semelhança de outras funções cog-nitivas, tem uma arquitectura complexa que con-siste numa organização por módulos relativamente independentes entre eles. Parte-se do princípio de que as lesões cerebrais podem causar alterações selectivas (por módulo). Os módulos armazenam e processam a informação cujo input pode ser auditivo ou visual (imagens ou leitura) e cujo output pode ser também auditivo ou escrito. O modelo da PALPA baseia-se na comunicação entre os vários módulos e nas funções de processamento linguístico que dependem de cada módulo e das suas ligações. Todas essas ligações passam e centralizam-se no sistema semântico.

Kay, Lesser e Coltheart construíram um modelo partindo das seguintes questões: (i) Como é que as pessoas comunicam? (ii) O que é que é necessário para comunicar? Somado a estas questões centrais, os autores englobaram as aportações da literatura científica no que concerne os defeitos de linguagem de pessoas com lesões adquiridas e as capacidades para a recuperação da linguagem exibidas por esses doentes, adaptando, assim, o seu modelo aos resul-tados demonstrados na literatura. Conscientes de que o seu modelo de linguagem está longe de ser universalmente aceite, os autores apresentaram um contributo importante ao construírem esta bateria, na medida em que este modelo parece ser útil para identificar e interpretar os vários padrões de

23 EPLA (Evaluación del Procesamiento Linguístico en la Afasia) de Valle e Cuetos (1995). Cf. Castro, Caló e Gomes (2007: 9).

24 PALPA – Nederlandse Versie de Baastiaanse, Bosje e Vish-Brink (1995). Cf. Castro, Caló e Gomes (2007: 9).

25 Hebrew version of the PALPA – de Gil e Edelstein (2001). Cf. Castro, Caló e Gomes (2007: 9).

26 PALPA – P, adaptação para o português de Castro, Caló e Gomes (2007).

de linguagem assim como nos apontem caminhos acerca dos aspectos da linguagem que são mais apropriados para a reabilitação.16

Esta posição não é consensual já que os clínicos nem sempre concordam sobre o que deve ou não deve ser um teste para a avaliação dos defeitos de linguagem decorrentes da afasia. Enquanto que, para Godglass17, o objectivo central de uma prova de avaliação para a afasia é providenciar dados sobre as competências linguísticas cruzadas com dados psicométricos, para Lincoln18, um teste para a afasia deve conduzir ao desenho preventivo de medidas interventivas na reabilitação do defeito de linguagem exibido.

As provas são, todos elas, instrumentos desenhados para medir e avaliar apenas alguns parâmetros na afasia. Sendo certo que, nenhuma prova ou bateria de provas pode satisfazer todos os propósitos, existem provas desenhadas numa perspectiva sindromática, para classificar e diagnosticar as afasias, tal como a B.A.A.L.19, a W.A.B20 e a BDAE21 e outras provas que incidem sobre os processos linguísticos nas suas diferentes modalidades (expressão, compreensão, leitura e escrita) em diferentes níveis linguísticos (fonológico, morfológico, sintáctico e semântico), tal como a A.A.T.22

16 Tal como afirmam Byng, S., Kay, J., Edmundson, A. & Scott, C. (1990: 67): “[an aphasia test should] first and foremost (…) elucidate the nature of the language impairement and indicate what aspects of language performance are most appropriate for treatment”

17 Godglass, H. (1990) Comentary: cognitive psychology and clinical aphasiology, In: Aphasiology, .4, 93-95.

18 Lincoln, N. (1988) Using the PICA in clinical practice: are we flogging a dead horse? In: Aphasiology, 2, 501-506

19 A B.A.A.L. (Bateria de Avaliação de Afasias de Lisboa) de Damásio (1973), Castro Caldas (1979) e Ferro (1989) é uma versão modificada e revista da M.A.E. – Multilingual Aphasia Examination – e resulta de um projecto cooperativo para a construção de uma bateria de afasia comparável em várias línguas, com uma nomenclatura normalizada. Ao adoptar critérios taxonómicos esta bateria permite a classificação do tipo de afasia (Cf. Leal: 2003:133-134).

20 A W.A.B. de Kertesz (1982) tal como a B.D.A.E. são baterias “localizacionistas” cujo objectivo principal é classificar os doentes num dos oito tipos de afasia (global, Broca, Wernicke, de condução, transcortical sensorial e anómica). Cf. Leal: 2003: 133.

21 A B.D.A.E. é de Godglass e Kaplan (1972, 1983) é uma bateria de carácter localizacionista que tenta dividir as afasias segundo o defeito linguístico subjacente e cuja ênfase se centra nas diferenças qualitativas entre os vários tipos de afasia (Cf. Leal: 2003: 132).

22 A A.A.T. é de Huber e colaboradores (1983). Cf. Leal: 2003:133.

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for making comparisons with appropriate control subjects (as recommended by Shallice in 1979)”

Contudo, a sua aparição não deixou de provocar críticas que se constituíram enquanto observações e recomendações interessantes para a construção de novos materiais que poderão ser revistos e modifi-cados à medida que as teorias cognitivas vão sendo refinadas e revistas27.

As principais críticas dirigidas à PALPA centram-se na escassez de tarefas que permitem o processamento de frases.

Existem áreas que não estão contempladas nestas tarefas, tais como a produção de frases e as inferên-cias, a recuperação de verbos de acção (Wertz:1996: 18728 e Basso: 1996: 19229).

Alguns outros aspectos da linguagem também não são mensuráveis pela PALPA, tais como a com-plexidade gramatical, a conversação e a fluência

27 Tal como referem os autores, Kay, Lesser e Coltheart (1996:213): “However, the proof of the pudding is in the eating: we wait to see wether PALPA fulfills its promise. (…) We see PALPA as an evolving resource which will be modified over time as cognitive theories are revised and refined.”

28 Wertz (1996: 187) adianta: “ Some areas – sentence production, inference-making, on-line processing of language – are not assessed”.

29 Atente-se no que refere Basso (1996: 192): “One obvious limitation is the imbalance between assessment of single-word processing and assessment of sentence processing. (…) Models of the lexical-semantic system are highly elaborated and in general agreement, though not entirely identical. The same cannot be said for models of sentence processing, which are far less elaborated and much more heterogeneous.” Mais adiante, a mesma autora especifica (1996: 192) e sugere uma solução: “(…) although damage to the syntactic and grammatical mechanisms of language may be limited to language comprehension, in the majority of cases both sentence comprehension and production are involved, and in some rare cases only production. (…) Controlled picture description tasks can be used to evaluate various grammatical constructions, such as active and passive sentences, and could fill the gap.” Sublinhados nossos.

Observe-se o que afirma Anna Basso (1996: 192) a propósito da recuperação de verbos, tarefa inexistente na PALPA: “Another important deficiency is in verb retrieval (…). Many agrammatic patients show structural simplification in sentence production, and Berndt (1991) suggests that a problem in realizing verbs for production can be an important component of the patient’s failure to encode more complex sentences because the verb encodes much information about the form a sentence will eventually take. Even if this were not the case, an action-naming task would be important, since some (agrammatic) patients have a specific deficit of verb retrieval, whereas other types of patient (anomic aphasics) are better able to provide verbs than nouns.”

defeitos de linguagem guiando o clínico para o seu tratamento.

A PALPA é constituída por 60 diferentes testes que exploram a integridade dos componentes espe-cíficos de cada módulo e as suas ligações, inserido num determinado modelo de processamento da linguagem.

Os 60 testes constituintes da bateria estão agru-pados em quatro categorias diferentes (17 testes para o processamento auditivo, 29 testes para a leitura e a escrita, 8 testes para testar a semântica das unidades lexicais e das imagens e 6 testes para testar a compreensão das frases).

Cada tarefa segue, geralmente o mesmo formato partindo de algumas “instruções de uso” (Instructions for Use) que incluem a descrição do objectivo da tarefa e o que se pretende que o doente faça. Também existem por vezes nesta bateria, dados de estatística descritiva de sujeitos sem lesão. Em algumas tarefas existe um “ponto especial” (Special Points) onde se encontra um guia de administração da tarefa que orienta o clínico na administração do estímulo ao doente (Como apresentar o estímulo? Como repetir a utilização do estímulo?). Também se encontram folhas de registo e de cotação para indicar a performance do doente e o estímulo utilizado. Estas folhas de registo permitem calcular o número de respostas correctas e incorrectas e determinar o tipo de erro.

A PALPA é uma bateria consistente com o seu modelo, válida para avaliar e comparar os defeitos de linguagem e desenhar a sua recuperação. A sua natureza user-friendly parece atrair muitos afasio-logistas e foi motivo de replicação e de adaptação para outras línguas. Tal como é referido por Anna Basso (1996: 191):

“The PALPA responds to a great demand for well controlled psycholinguistic material and it beautifully fills this gap. The stimuli are carefully chosen according to linguistic parameters, such as frequency of use, length, regularity, etc. The test is easy to understand and instructions are clear.”

E reforçado por Ferguson e Armstrong (1996: 193):

“The long waited PALPA by Kay et al. (1992) is all it claims to be (…) it provides controlled stimuli and tasks which allow for systematic replication of case studies, baselining for individual cases and

Revisitando as Afasias na PALPA-P 143

por São Luís Castro, Susana Caló e Inês Gomes e encontra-se publicada desde 2007.

Esta bateria reúne, tal como a versão original, 60 tarefas psicolinguísticas destinadas a avaliar a nomeação (através de imagens), a discriminação auditiva, a repetição de palavras, a compreensão de palavras e de frases, a memória, o conhecimento dos grafemas (letras), a consciência fonológica e as competências da leitura e da escrita.

É objectivo explícito desta bateria propiciar um exame da linguagem vocacionado para a avaliação das afasias. Contudo, o facto de esta bateria ser um “rico exame de linguagem33” faz com que ela seja um instrumento potencialmente útil para avaliar as várias dificuldades de linguagem de etiologia diversa, tanto nas crianças como nos adultos. Tarefas de processamento fonológico como as tarefas de segmentação e discriminação auditiva ou detecção de rimas podem ser úteis para detectar eventu-ais dificuldades de aprendizagem, assim como as tarefas de repetição de palavras se podem revelar interessantes para avaliar a dislexia (Cf. Castro, Caló e Gomes: 2007: 8).

A escolha dos estímulos das tarefas foi feita com base nas características da língua portuguesa. Assim, palavras, pseudo-palavras e frases foram selecciona-das tendo em conta, por um lado, as características fonológicas, morfológicas, sintácticas e ortográficas do português, e controlando, por outro lado, as mesmas variáveis dos estímulos da bateria inglesa original, tais como a extensão, a frequência, a ima-ginabilidade e o conteúdo semântico. As imagens correspondentes às palavras foram desenhadas de novo com base no traçado original. (Cf. Castro, Caló e Gomes: 2007: 7).

A bateria compõe-se de:

(i) Um manual que contém o enquadramento teórico desta abordagem (que situa o pro-cessamento da linguagem numa perspectiva modular) e as normas de administração da prova. Para cada prova encontra-se a apre-sentação dos parâmetros a avaliar, algumas sugestões de prossecução da avaliação, con-soante o desempenho do sujeito, e dados de estatística descritiva para crianças e adultos com idades e escolaridades diferentes.

(ii) Quatro cadernos de estímulos, umpara oprocessamento fonológico, outro para a leitura e a escrita, outro para a semântica de palavras

33 Palavras utilizadas pelas autoras (Castro, Caló e Gomes: 2007: 7).

discursiva (Wertz: 1996: 18730, Ferguson e Armstrong: 1996: 19631).

Sobre este ponto vale a pena salientar que muitos críticos da PALPA concordam que o facto de não poder ser avaliado o discurso empobrece a bateria. Ferguson e Armstrong (1996: 195-196) tecem mesmo duras críticas ao facto de este modelo se basear numa abordagem que mede o reconhecimento de uma palavra simples como o item lexical por excelência para a análise perpetuando a ideia antiquada, sob o ponto de vista da linguística de que a palavra isolada reflecte a performance funcional da competência linguística. A visão sociolinguística da linguagem não foi contemplada no modelo teórico subjacente a esta bateria, o que promove uma avaliação da linguagem incompleta.

Outras limitações da bateria prendem-se com os testes de escrita e as medidas de leitura que se encontram circunscritas às palavras ou frases (Wertz: 1996: 18732), salientando-se, mais uma vez, a falta de análise do discurso, como parte integrante da competência linguística dos falantes.

PAlPA-P: uma bateria para avaliar a linguagem dos afásicos em português

A PALPA-P – Provas de Avaliação da Linguagem e da Afasia em Português – é a versão portuguesa da PALPA original de Kay, Lesser e Coltheart. Esta adaptação da bateria original foi levada a cabo

30 Wertz (1996:187) refere: “Auditory comprehension, reading, naming, repetion, and writing tasks are included. However, the PALPA does not include measures of conversation to assess, information content, fluency, and grammatical complexity. (…). Thus the PALPA does not do what some tests do”.

31 As autoras criticam a PALPA referindo que (1996: 196): “A modular view of language views language as a primarily psychological entity existing as a system within each individual. In this way language is seen as fairly much a static set of rules and regulations which an individual uses for variety of purposes. A sociolinguistic perspective, on the other hand, views language as a set of resources through which meanings can be exchanged in a dynamic way. While an individual obviously has to have a certain capacity within his/her mental apparatus to deal with language, the way the language is organized within that mental faculty has a great deal to do with the way language is used by the individual. Hence, factors such as context are relevant in the language- processing system itself – they are not merely extraneous conditions which exist outside the language system. They are driving forces within the organization of that system, and to ignore them means ignoring integral parts of the system itself.” Sublinhados nossos.

32 Wertz refere (1996:187): “Similarly, assessment of writing is limited, and measures of reading are limited to words and sentences.”

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2144

figurados, as metáforas conceptuais ou lexicais36 ou as expressões idiomáticas, não são contemplados nesta bateria.

Visto que todos os doentes afásicos apresentam, em menor ou maior grau defeitos de compreensão de material verbal e que este aspecto é determinante em alguns tipos de afasia, seria interessante ter provas para avaliar aspectos mais sofisticados da compre-ensão, já que a compreensão de material simples e de ordens complexas já se encontra contemplada pelas baterias tradicionais de avaliação.

A compreensão de algumas das imagens utilizadas na PALPA-P (Snodgrass e Vanderwart,1980) não pode ser aplicada a sujeitos iletrados37, a menos que a validação da mesma seja feita também numa população de sujeitos analfabetos. Acreditamos que alguns destes estímulos podem condicionar a avaliação, nomeadamente de sujeitos com baixa escolaridade e crianças.

A flexibilidade deste instrumento pode ser valiosa para os clínicos que procurem avaliar aspectos particulares da linguagem mas também auxiliar no controlo da intervenção terapêutica como medida de recuperação e mudança.

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36 Por metáfora conceptual entendemos uma relação projectiva entre dois domínios conceptuais (e.g. tempo é dinheiro, discutir é uma guerra, etc.) Podem ser criadas metáforas novas com base neste mecanismo de projecção conceptual. Por metáforas lexicais, entendemos expressões metafóricas cristalizadas nas línguas como, por exemplo, ter telhados de vidro. A não compreensão das metáforas cristalizadas ou lexicalizadas e a inexistência de metáforas novas no discurso dos afásicos parece ser um tema interessante para futuras investigações.

37 A importância da escolha dos estímulos visuais é apoiada por estudos como o de Reis, Guerreiro e Castro Caldas (1994), onde foi verificada uma maior dificuldade na nomeação de imagens de contorno do que em fotografias, especialmente no grupo de iletrados.

e imagens e outro para a compreensão de frases.

(iii) Folhas de registo e cotação para cada uma das provas.

(iv) Folha de respostas para as provas em que o sujeito tem que responder por escrito aos estímulos apresentados.

A aparição da PALPA-P, uma bateria adequada à língua portuguesa e desenhada de acordo com as premissas da bateria é, sem dúvida, interessante para os afasiologistas portugueses. Sendo certo que a B.A.A.L é uma bateria que adopta critérios taxonó-micos que ajudam a classificar o sujeito observado num dos tipos de afasia (Ferro, 1986) a PALPA-P vem colmatar a lacuna relativamente à avaliação mais detalhada dos defeitos de linguagem que subjazem à patologia da afasia original (cf. Colteheart (2004) e Kay et al. (2004)).

O facto de os materiais desta bateria terem sido construídos com base em sólidas fontes linguísticas para o português34 indiciam-nos a sua validade para testar os defeitos linguísticos.

As tarefas de compreensão de frases encontram- -se na PALPA-P equilibradas em termos de número em relação às tarefas de compreensão de palavras isoladas35. Esta tinha sido uma das críticas à bateria original.

Também a produção de frases como parâmetro linguístico para ser avaliado se encontra, nesta versão da bateria, o que significa que as observações críticas relativamente à ideia antiquada de que a palavra simples serve para avaliar a competência linguística foram tidas em linha de conta neste trabalho.

Pensamos que esta bateria avalia bem os parâ-metros de nomeação, repetição e compreensão. Contudo, devemos salientar que determinados aspec-tos da linguagem, como, por exemplo, os sentidos

34 A PALPA-P teve como fonte para a frequência das palavras, o CORLEX – Léxico Multifuncional computorizado do Português Contemporâneo, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa e orientado pela equipa de Maria Fernanda Bacelar do Nascimento. O CORLEX é um sub-corpus do CRPC – o maior corpus de referência do português contemporâneo. Com base na extracção das ocorrências/frequências do CORLEX, Inês Gomes e São Luís de Castro construíram uma base de dados para o português europeu, o Porlex, que utilizaram nesta bateria. (Cf. Gomes, I e Castro, s.L. 2003. Porlex, a lexical database in European Portuguese, In: Psychologica, 32, 91-108.)

35 A PALPA-P tem 6 tarefas de compreensão de frases e 8 de compreensão de palavras e imagens.

Revisitando as Afasias na PALPA-P 145

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Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 147-166

Resumo

A expressão das emoções na voz cantada faz-se segundo um código com vários parâmetros tais como: tempo, vibrato, ritmo, afinação, amplitude e timbre. O objectivo deste estudo é compreender como é que o timbre expressa as emoções do performer. Doze cantores profissionais foram gravados a cantar peças musicais eruditas com um conteúdo emocional específico – Tristeza, Alegria, Raiva e Medo – e um vocalizo (Neutro). Os dados consistiram em 432 vogais extraídas das gravações aceites perceptivamente por um júri composto por sete estudantes de canto. Os resultados mostraram que as frequências dos formantes mudam de acordo com as emoções: Raiva e Alegria têm frequência de ocorrência dos formantes mais altas do que Tristeza e Medo. Esta investigação mostrou, também, que os formantes têm funções especializadas: F2 e F1 discriminam vogais, F4, F3 e F5 discriminam indivíduos e F5 e F1 discriminam emoções. Os resultados apontaram para o facto de, independentemente do tipo de voz, cada emoção ter a sua própria assinatura tímbrica, visível no espectro, com uma conexão específica com um formante: Raiva/F5, Tristeza/F4 e Alegria/F3. Este último ponto necessita de investigação futura.

Palavras-chave: timbre, voz cantada, formantes, expressão emocional.

Abstract

Expression of emotions in singing is connected to a code with several parameters such as tempo, vibrato, rhythm, pitch, amplitude and timbre. The aim of this study is to understand how timbre expresses the performer’s emotions. Twelve professional singers were recorded while singing pieces of music with specific emotional content – Sadness, Joy, Anger and Fear – and a vocalise (Neutral). The data consisted of 432 vowels extracted from the perceptually accepted singing recordings judge by seven singing students. The results showed that formant frequencies changes are dependent on the emotions: Anger and Joy show higher formant frequency than Sadness and Fear. This investigation showed, also, that formants have specific functions: vowel discrimination is dependent on F2 and F1, individual discrimination is done by F4, F3 and F5, and emotional discrimination by F5 and F1. The results pointed out for the fact that, independently of the voice type, each emotion has is own specificity, visible in spectra, with a particular connection to a formant: Anger /F5, Sadness/ F4, Joy/F3. Further research needs to be considered on this last issue.

Keywords: timbre, singing voice, formants, emotional expression.

“As cores da voz” : Expressão das Emoções no Timbre da Voz CantadaThe “voice colours”: Expressing Emotions Through the Singing Voice Timbre

Ana Leonor Pereira*

* [email protected] Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Ciências da

Fala do Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Católica Portuguesa

Introdução

A comunicação emocional em palco é determi-nante para a qualidade da performance e determi-nante para o grau de talento atribuído ao intérprete. A questão do talento é uma questão central, uma vez que determina se um aprendiz de música poderá ser um concertista ou não. Enquanto que se supõe que a técnica é adquirida ao longo dos anos de

estudo de um músico, supõe-se o talento como inato. Deste modo, considera-se que não se pode ensinar o talento. Ora, podendo aferir, em parte, o talento de um músico pela sua capacidade de comunicar as emoções através do som, urge per-guntar o que significa possuir esta capacidade. Por outro lado, se houver fundamentos científicos que permitam determinar de que modo tal comunicação é conseguida, então pode ser que aquilo que se tem atribuído ao talento também possa, em certa medida, ser ensinado.Quis-se, assim, averiguarquais os correlatos no sinal acústico da expressão das emoções na voz cantada.

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expressiva); quanto ao parâmetro ‘duração vogal-a- -vogal’, a relação entre versões neutras e expressivas foi também de grande semelhança obedecendo a dois princípios – tornar mais lentas as notas curtas e marcação da estrutura da frase com o desenho lento-acelera-desacelera –, nas versões expressivas o alongamento das notas curtas foi maior; quanto ao parâmetro ‘volume geral de som’ também a diferença entre versões neutras e expressivas não foi significativa; no parâmetro ‘variabilidade de volume a curto termo’ todos os excertos agitados mostraram grande variabilidade por oposição aos excertos não agitados; quanto ao parâmetro ‘frequência funda-mental’ nos excertos agitados a ondulação do vibrato era maior do que nas versões neutras e nos excertos não agitados; quanto ao parâmetro ‘frequência dos formantes’ os investigadores observaram que em todas as versões expressivas havia manipulação da frequência dos formantes.

Estes resultados mostram que a variabilidade do nível do som a curto termo, os padrões da frequência fundamental e as frequências dos formantes são parâmetros a que o cantor recorre para se exprimir emocionalmente. O cantor manipula a pronúncia das consoantes, provocando grandes amplitudes de modulação, manipula a extensão do vibrato e o timbre da voz para comunicar emocionalmente. Esta listagem das diversas manipulações efectua-das no intuito de resultados acústicos que sejam percepcionados como veiculando determinadas emoções vem confirmar estudos anteriores [2]. A preponderância de determinados recursos acústicos sobre outros necessita, contudo, de investigação futura que corrobore ou não este estudo de caso. A limitação mais premente diz respeito, naturalmente, ao facto de ser um estudo de caso cujos resultados não podem ser generalizados.

Acusticamente falando, a cada emoção corresponde um tecido específico de propriedades sonoras cujas características são resultado dos gestos específicos do intérprete tendo por objectivo modificações subtis do som que estão para além da música escrita; uma espécie de metalinguagem musical [8].

A relação entre estes parâmetros acústicos e os seus correlatos causais, no plano fisiológico, está por sistematizar se bem que haja alguns estudos que visam averiguar algumas destas relações: o efeito das emoções sobre a respiração é de tal modo preponderante que os resultados técnicos da performance são afectados por esta relação [9]. Globalmente constata-se que, tendo as emoções padrões fisiológicos específicos, estes, tal como

Queacomunicaçãodasemoçõesnavozcantadadepende de um conjunto diversificado de factores quer na produção, quer na percepção, é já matéria consensual. Se um destes factores, especificamente o tímbrico, permite, por si só, determinar e definir emoções é a questão que se põe. Há estudos de caso que sugerem que há espectros-tipo relativos a determinadas emoções, mas a cartografia destes espectros-tipo não está delineada [1, 2, 3]. A maior parte da investigação que pretende analisar esta relação fá-lo com o intuito de compreender a per-cepção da emoção por parte do ouvinte e não com a intenção de descrever o modo de produção da expressão da emoção por parte do cantor [4, 5, 6].

Tal como para a voz falada [7], a primeira e mais premente preocupação foi a de saber quais os diversos parâmetros vocais afectados pelas emoções. Morozov (1996) concluiu que são os seguintes os parâmetros da voz cantada afectados pelas emoções: tempo e ritmo, dinâmica, duração das sílabas e das micropausas, características do vibrato, afinação, dicção, pronúncia e, finalmente, timbre. Este autor considera que as manipulações do timbre são macro e micro estruturais referindo-se, as primeiras, a modi-ficações da amplitude e frequência dos formantes, e as segundas, a mudanças dos harmónicos das suas posições esperadas. Está, pois, particularmente inte-ressado em observar se há deslocação das frequên-cias de ocorrência no formante do cantor concluindo que, efectivamente, este sobe quando as emoções visadas são a alegria ou a raiva, e desce, quando as emoções pretendidas são a tristeza ou o medo. Para além destas modificações espectrais macro estruturais, o autor refere que há, também, modificações micro estruturais significativas na expressão emocional da voz cantada, especialmente no caso do medo e da raiva. Nestes casos, há desvios de mais de 7% para cima das frequências dos harmónicos das suas posições ideais harmónicas relativas à frequência fundamental (Fo). O autor observa, contudo, que a natureza de tais desvios pode ser acidental.

Posteriormente, Sundberg e seus colaboradores [2, 3] fizeram também um levantamento dos diversos parâmetros afectados pelas emoções na voz cantada: tempo, duração vogal-a-vogal (desvios de ritmo), amplitude, padrões de Fo (vibrato) e frequências dos formantes. No que respeita à análise acústica chegaram aos seguintes resultados: quanto ao uso do parâmetro ‘tempo’, os resultados não mostra-ram grandes variações entre as versões neutras e expressivas (dezassete excertos foram executados a capella por um cantor, em versão neutra e versão

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 149

vocal, do contexto musical expresso pelo compositor e do contexto linguístico em que ocorrem é a intenção deste trabalho. Procura-se, pois, o código tímbrico da meta-linguagem emocional produzida pelo cantor na performance musical. Ao visar analisar as eventuais manipulações do timbre efectuadas pela expressão das emoções, pretende observar-se quais as possíveis modificações espectrais do som, independentemente do timbre individual do cantor e do timbre particular de cada vogal através da qual tais modificações estão a ocorrer: se estão a ocorrer transformações “para além” das especificidades individuais tímbricas e “para além” das propriedades inerentes a cada vogal, uma vez que se considera, naturalmente, que, ao comunicar determinada emoção, o cantor não pode, nem fazê-lo fora do seu próprio timbre, nem deturpando o contexto linguístico e, portanto, tê-lo-á que fazer sem ser à custa da distinção das diferentes vogais e sem ser à custa da sua própria individualidade tímbrica.

Delineou-se o seguinte plano “experimental”: 1. Gravaram-se cantores profissionais em situação performativa emocional específica; 2. Seleccionaram-se perceptivamente os excertos musicais cuja emoção era assim corroborada; 3. Analisaram-se espectro-graficamente vogais dos excertos confirmados e, finalmente, 4. Procedeu-se à análise estatística dos dados assim obtidos. De acordo com este plano testou-se se, da análise exclusiva do timbre da voz cantada, se poderiam inferir os quatro estados emo-cionais (Alegria, Tristeza, Raiva e Medo) visados na produção acústica dos cantores.

Metodologia

O presente estudo é um estudo transversal e prospectivo. São utilizadas cinco variáveis inde-pendentes: quatro emoções básicas, ou primárias, a saber: alegria (A), tristeza (T), raiva (R) e medo (M); e um vocalizo, que nos dá uma “emoção” neutra (N) e que serve como emoção de controlo. A variável dependente é o timbre, na sua definição acústica, visando observar as possíveis consequências das variáveis independentes na amplitude dos primeiros formantes (F1, F2, F3, F4 e F5) e na frequência a que ocorrem nas vogais [a], [i] e [u].

Pretende fazer-se uma comparação intrassujeitos e intersujeitos. Por exemplo, com o indivíduo 1: 1A; 1T; 1R; 1M e 1N observando em cada uma das situações emocionais os formantes do timbre vocálico. Mais especificamente, comparar: 1A média das vogais [a] com 1T média das vogais [a] com 1R média das

na voz falada, perturbam quer a respiração, quer a fonte sonora, quer a articulação, quer a resso-nância; ou seja, o aparelho fonador, no seu todo, é afectado, se bem que não igualmente, por todas as emoções [10, 11, 3]. Efectivamente, a ideia de a voz ser um microcosmo da fisiologia global das emoções verifica-se tanto na voz cantada, como na voz falada; contudo, a análise específica de todas estas relações acústico-fisiológicas não está efectuada para a voz cantada, não havendo, portanto, uma descrição dos diferentes mapas emocionais nessas diversas perspectivas. Rapoport (1996) sublinha, inclusivamente, que os cantores fazem uso de um verdadeiro alfabeto de gestos expressivos de modo a utilizar as cores emocionais necessárias apropriadas à performance de determinada obra.

Se há dominância de alguns destes factores sobre os outros também ainda não foi averiguado, se bem que a produção, a comunicação e a percepção das emoções exija um conjunto multifactorial de aspectos para ser convenientemente caracterizada. A origem desta metalinguagem não verbal, e não estritamente musical, é uma questão em aberto; Sundberg avança a hipótese de este código de expressão emocional ser importado da prosódia da voz falada mas de não se esgotar nesta importação já que, por exemplo, a macro-entoação1 está dada pela música escrita [3, 11]. Estas questões intercruzam a psicologia, a linguística, a biologia humana, a sociologia, a perfor-mance musical e a pedagogia vocal, mostrando que o corpo de conhecimento é de uma multifacetada interdisciplinaridade e transdisciplinaridade.

Estes investigadores e suas equipas tiveram, tam-bém, por objectivo, o estudo da relação emoções/timbre, mas, ambos o fizeram apenas em indivíduos singulares, como já referido: Sundberg e colabora-dores no estudo de caso em que analisam a voz de Hagegärd [2]; Morozov e colaboradores no estudo em que analisam a voz de Shalyapin [1]. Estes estudos sugerem que há invariâncias espectrais respectivas a determinadas emoções, mas o mapeamento destas invariâncias, e as eventuais estruturas espectrais das emoções não chega a ser levado a cabo.

Mostrar que as emoções se exprimem com mapas tímbricos diferentes, tendo, em todos os indivíduos padrões idênticos independentemente do seu tipo

1 Sundberg distingue macro-entoação de micro-entoação: a primeira, diz respeito à melodia e ao ritmo escritos pelo compositor e que o intérprete tem que respeitar, a segunda, diz respeito às nuances interpretativas do performer (rubato, micro-pausas, duração das consoantes,etc), que mais não são do que desvios relativamente à composição escrita.

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são menos manipuláveis para a expressão emocional do que F3, F4 e F5?

3. A frequência e amplitude de Fo afectam a frequência de ocorrência e a amplitude dos formantes?

4. A expressão tímbrica das emoções varia com as vogais? Há vogais mais permeáveis às emoções do que outras?

5. Há emoções cuja expressão na voz cantada é mais exequível do que outras? Se há, quais?

Amostra

A amostra é de conveniência. Não existindo em Portugal uma associação de cantores profissionais é muito difícil saber qual o tamanho e composição da população e, com esta informação, proceder a uma recolha aleatória. Assim, é feita uma amostragem de conveniência por ser a única exequível.

A amostra é constituída por cantores profissionais solistas, isto é, cuja actividade profissional performa-tiva é executada a solo e não em conjunto como é o caso dos coralistas; isto, porque se pensa que a expressão das emoções individuais só é executada na performance a solo e não na performance coral, a qual, eventualmente, torna patente as emoções do maestro que dirige o grupo, e não dos indivíduos que a constituem.

A idade dos indivíduos está compreendida entre os vinte e nove e os trinta e nove anos. Esta faixa etária inclui cantores com alguma experiência, pois todos eles já têm alguns anos de carreira, e, simultaneamente, possibilita homogeneidade no que respeita à idade vocal3 dos indivíduos. São cantores que possuem entre três e quinze anos de experiência profissional.

Há pessoas de ambos os sexos, cinco grupos: vozes femininas agudas (Soprano 1 e Soprano 2) e graves (Mezzo 1 e Mezzo 2); e vozes masculinas agudas (Contratenor, Tenor 1, Tenor 2, Tenor 3 e Tenor 4) e graves (Barítono 1, Barítono 2 e Barítono 3). Deste modo, abrangem-se os diversos tipos vocais e pode observar-se se a expressão das emoções nos seus correlatos acústicos tímbricos é, ou não, dependente da tipologia das vozes ou do sexo dos indivíduos.

3 Idade vocal do indivíduo é aquela que resulta da sua maturação neuro-fisiológica. Há, pois, uma qualidade vocal correspondente a uma determinada idade vocal de acordo com as variações anatomofisiológicas decorrentes da idade dos indivíduos [12].

vogais [a] com1M média das vogais [a] e com 1N média das vogais [a]; e depois, sucessivamente, com as vogais [i] e [u]. Esta comparação intrassujeito é feita relativamente a cada uma das emoções e com cada um dos participantes no estudo. Após esta primeira comparação analítica que visa averiguar se há uma relação entre a emoção expressa e o timbre, e quais os mapas formânticos de cada emoção estudada, passa-se a um segundo momento de comparação intersujeitos. Por exemplo, com os indivíduos 1 e 2: 1A,2A; 1T,2T; 1R,2R; 1M,2M e 1N,2N; isto entre todos os sujeitos participantes no estudo. Esta comparação permite averiguar se dada intenção emocional se repercute acusticamente na estrutura formancial de modo similar em todos os sujeitos. A haver uma resposta positiva a esta questão poderemos dizer se há ou não padrões generalizados na comunicação emocional da voz cantada.

Objectivos

O objectivo deste estudo é mostrar que os dife-rentes mapas espectrais das quatro emoções básicas aqui estudadas sofrem, relativamente uns aos outros, mudanças idênticas em todos os indivíduos aquando da performance cantada.

Pretende-se, pois, responder a quatro questões fundamentais:

1. Existe uma relação entre a expressão das emo-ções e o timbre da voz cantada2?

2. A existir uma relação, que tipo de relação é esta?

3. Há padrões típicos nesta relação emoções/timbre?

4. Havendo padrões, estes são independentes do tipo de voz e do sexo dos indivíduos?

No decurso da investigação surgiram, a partir destas questões fundantes, outras questões secun-dárias, igualmente importantes:

1. A expressão tímbrica das emoções afecta igualmente todos os formantes, quer na sua frequência, quer na sua amplitude?

2. F1 e F2, por serem formantes particularmente importantes para a discriminação das vogais,

2 Entende-se aqui “timbre da voz cantada” num sentido lato: se bem que seja sempre timbre das vogais, uma vez que é nas vogais que este timbre se está sempre a dar é, também, timbre de algo que está para além das vogais. É, pois, timbre das vogais, timbre individual e timbre “emocional”. Contudo, cada uma destas instâncias tímbricas está erigida sobre a anterior, ou sobre as anteriores.

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 151

As vogais escolhidas para analisar foram as vogais [a], [i] e [u]. A razão desta escolha remete para o facto de estas serem as vogais correspondentes aos três extremos de constrição do tracto oral, pelas suas posições extremas de articulação representam o triângulo das vogais (todas as outras vogais são produzidas com posições articulatórias intermediárias destas). Assim, as estruturas formânticas por elas exibidas serão paradigmáticas, isto é, se houver manipulação nestas estruturas para a expressão emo-cional, possivelmente também o haverá nas outras vogais que neste estudo não foram analisadas.

Procedimentos

Requisitos éticos

Os indivíduos que participaram neste estudo fizeram-no em regime de voluntariado, isto é, após terem sido contactados e questionados acerca da sua disponibilidade para participarem nesta investigação acederam sem quaisquer reservas. Foi-lhes garantido o anonimato. Tanto os cantores, após as gravações, como os estudantes de canto que integraram o júri de avaliação perceptiva das vozes, após o preenchimento do inquérito; autorizaram verbalmente a utilização dos dados para a investigação em curso.

Gravações

As gravações foram todas efectuadas no mesmo espaço físico durante duas semanas. Os cantores executaram as suas performances a cappela, isto é, sem qualquer acompanhamento musical. Esta situação foi artificial relativamente à situação perfor-mativa habitual de um intérprete de música erudita: normalmente a execução não é a cappela. Também artificial foi o facto de o executante estar simples-mente a cantar sem público. Estes dois factores foram apontados pelos indivíduos como perturbadores, mas nenhum considerou que a situação impossibi-litasse a comunicação emocional. É de notar que estes músicos são artistas habituados a situações performativas que nem sempre são as ideais.

O facto de os cantores terem sido gravados sem acompanhamento foi uma exigência que teve que ser cumprida para poder garantir que não havia no espectro analisado nenhuma interferência de outro espectro dado por um ou vários outros instrumentos, isto é, foi uma exigência imposta pela análise espectrográfica que se visava realizar. Não se terem gravado os cantores em situação de concerto deveu-se, também, a uma necessidade

Equipamentos, instrumentos e mate-riais

As gravações foram efectuadas num gravador Sony TCD-D8 DAT que permite seleccionar frequências de amostragem de 48 khz e uma quantização de 16-bits. A vantagem deste gravador DAT é que as gravações por ele efectuadas são verdadeiros clones do original, isto é, não há qualquer compactação ou filtragem. O microfone utilizado foi um Beyer Dynamic M 69 TG que tem uma frequência de resposta de 50 Hz a 16 kHz, um nível de pressão de som (SPL) máximo de 120 dB e um padrão polar hypercardioídico. Por ter uma larga extensão de frequência de resposta, uma grande sensibilidade e um baixo feed-back é considerado um bom microfone para a gravação da voz cantada. A cassete utilizada foi uma Sony DAT (Digital Audio Tape) de 180 minutos, também ela permitindo uma gravação digital de frequência de amostragem de 48 kHz e uma quantização de 16 bits. As gravações efectuadas foram depois introduzidas no software SpeechStation2 num computador LG LW20-22DP Intel Centrino Mobile Technology, Intel Pentium Intel M Processor 740 (1.73GHz), com uma placa gráfica Intel GMA 900 Graphics e memória de 512 MB DDR2. Para a análise formântica o software utilizado foi o SpeechStation2 da Sensimetrics, para a estimativa de Fo e sua amplitude foi utilizado o Praat.

Foi utilizada uma folha de registo criada pela investigadora para aferir se as emoções que os cantores visavam expressar eram perceptivamente confirmadas ou não. Neste folha, os indivíduos constituídos como júri para o efeito, após ouvirem cada excerto, tinham que marcar com um ‘X’ na coluna da emoção (Alegria, Tristeza, Raiva ou Medo) que consideravam estar a ser expressa ou, caso considerassem que nenhuma dessas emoções estava especificamente definida, marcavam ‘Indefinida’.

A amostra foi inicialmente constituída por um conjunto de doze cantores profissionais, tendo posteriormente um sido eliminado na selecção perceptiva, ficando 11 indivíduos efectivamente na amostra analisada (um dos tenores foi excluído, pois nenhuma das emoções por ele visadas nas peças executadas foi confirmada perceptivamente). Cada um deles executou quatro excertos de repertório e um vocalizo perfazendo um total de sessenta excertos. Destes, foram posteriormente seleccio-nados na avaliação perceptiva os quarenta e oito excertos relativos às emoções específicas que foram confirmadas perceptivamente.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2152

Aplicação da folha de registo para avaliação per-ceptiva

Com o intuito de potenciar a eventual expressão emocional exibida nas amostras, procedeu-se à aplicação de um inquérito de avaliação perceptiva das mesmas. Deste modo, os excertos seleccionados, não só teriam sido produzidos com uma determinada intenção emocional, como também esta intenção teria sido corroborada por um júri. Pretendeu-se, assim, salvaguardar, que os excertos analisados tinham de facto um dado conteúdo emocional, quer este fosse, ou não, visível no espectro. O júri de avaliação perceptiva foi constituído por 7 estudantes de canto de idade compreendida entre os 23 e os 29 anos, tendo entre 8 e 21 anos de estudo de música e entre 5 e 12 anos de estudo de canto. Optou-se, assim, por um painel de indivíduos que tivessem vivência da música erudita, quer ao nível da escuta, quer ao nível da execução vocal propriamente dita. Foi esta a escolha por se considerar que, embora a comunicação emocional através da música seja dirigida a todos, aqueles que estão familiarizados com este código específico, terão, eventualmente, melhor capacidade para o decifrar4.

Após ter gravado os excertos em DAT e estes terem sido transferidos para computador procedeu-se a uma combinação aleatória dos mesmos, fazendo-se uma sequência não previsível das emoções visadas pelos intérpretes. Foi nesta sequência que os excertos foram posteriormente submetidos à avaliação do júri. Cada membro do júri tinha que decidir, perante o inquérito atrás referido, qual a emoção que efec-tivamente escutava a partir da audição individual de cada excerto. Era-lhe pedido que escolhesse entre ‘tristeza’, ‘alegria’, raiva’, ‘medo’ ou indefinido. O item ‘indefinido’ foi explicitado previamente pela investigadora. Cada excerto foi ouvido três vezes.

Análise e tratamentos de dados

Análise espectrográfica

A análise espectrográfica foi efectuada com o programa SpeechStation2 como referido atrás. De cada excerto seleccionaram-se três vogais [a], três

4 Buekers (1998, citado por Guimarães, 2007) refere que, embora não haja uma diferença significativa entre a avaliação peceptiva de profissionais experientes e não experientes, a avaliação dos profissionais era menos variável. Compreende-se, assim, que um júri especialista poderá melhor avaliar perceptivamente.

espectrográfica: era necessário que o sinal gravado tivesse a menor interferência de ruído possível; ora, em situação concertística evitar o ruído do público é quase uma impossibilidade. Contudo, preservou-se a possibilidade de gravar numa sala com alguma reverberação, pois o auto-controlo da fonação num cantor de música erudita depende, em parte, do feed-back por ele ouvido na sala onde se encontra.

A cada participante no estudo foi pedido que executasse quatro excertos de música previamente escolhidos do seu repertório, representativos, no seu parecer, das quatro emoções visadas e um vocalizo. A cada excerto, ou peça completa, correspondia uma das emoções pretendidas. Foi-lhe pedido que indicasse qual o extracto, dos que executou, que associava a alegria, tristeza, raiva e medo. Cada excerto incluiu, pelo menos três vogais [a], três vogais [i] e três vogais [u]. A ordem pela qual as peças foi executada foi escolhida pelo cantor. A maioria dos cantores referiu dificuldade em encontrar no seu repertório peças que expressassem medo. No entanto, todos trouxeram excertos que, de algum modo, consideravam responder aos requisitos pedi-dos. Também foi referida a dificuldade de encontrar extractos de música onde a expressão de cada uma das emoções fosse pura, ou seja, cada emoção parecia-lhes aparecer em determinado contexto emocional mais amplo, por exemplo: a Alegria devia ser “Alegria exultante” ou “Alegria contemplativa”? A investigadora nunca interferiu no repertório esco-lhido pelos intérpretes, mesmo quando instigada a fazê-lo. Assim sendo, logo na escolha do repertório a cantar houve nuances diferentes nas interpretações de Alegria, Tristeza, Medo ou Raiva.

Todos os cantores foram gravados a uma distância de três metros do microfone. A sala foi fechada. Foi pedido que, se possível, não se deslocassem no espaço. Os excertos foram cantados duas vezes e duas vezes gravados. As gravações de cada indivíduo duraram entre 15 e 25 minutos.

O nível de gravação no gravador foi estável, sendo, por vezes, ajustado de acordo com o volume da voz do cantor e com a peça a executar, no sentido de garantir níveis de entrada bons e sem distorção. Os excertos foram regravados no programa em duas frequências de amostragem: 11025 Hz e 44100Hz, no sentido de posteriormente se escolher o que exibisse melhor qualidade para análise.

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 153

Também foram mais difíceis de mensurar os espectros das mulheres, por ser mais difícil dis-tinguir harmónicos de picos de ressonância, isto é, a enfatização, do ponto de vista espectral, de quase todos os harmónicos torna complicado decidir, com verdadeira objectividade, quais os harmónicos coincidentescomosformantes.Quantomaisaltaafrequência fundamental cantada mais complexa esta decisão. Na tentativa de, de algum modo, contornar parte desta dificuldade, procuraram-se extrair vogais com frequência fundamental mais baixa (nunca se excedeu os 600 Hz). Assim, evitou-se sempre valores iguais ou superiores à frequência fundamental crítica que é de 880Hz, pois, neste caso, a leitura formântica não seria viável.

A medição, sempre dupla, da amplitude formancial e da frequência a que ocorrem os formantes deveu-se ao facto de considerar que a fidedignidade do valor encontrado para o pico ressonancial era tanto maior, quanto maior o valor da amplitude exibida, ou seja, como a determinação do formante é feita através da amplitude observada em determinada frequência, o valor da amplitude era relevante. Por outro lado, a manipulação das amplitudes dos formantes poderia concorrer também para a expressão das emoções no timbre da voz cantada, objecto do nosso estudo.

Para cada vogal foi ainda encontrada a frequência fundamental média e sua amplitude com o programa PRAAT. Escolheu-se este programa para encontrar a estimativa da Fo por ser este programa considerado um dos mais fiáveis na leitura da frequência funda-mental. A razão pela qual se retirou o valor médio da frequência fundamental de cada vogal analisada remete ainda para o facto de garantir que, eventuais manipulações de F1 nas vozes agudas femininas (a existirem na amostra estudada), por fazerem parte das estratégias utilizadas por estas vozes para a projecção do som, não faziam parte das estratégias usadas para a expressão das emoções. Por outro lado, visava-se também saber se o valor de Fo afectava a expressão emocional nos formantes ou não.

A razão pela qual as vogais escolhidas para analisar foram as vogais [a], [i] e [u] remete para o facto de estas serem as vogais correspondentes aos três extre-mos de constrição do tracto oral, pelas suas posições extremas de articulação representam o triângulo das vogais (todas as outras vogais são produzidas com

e morosa. A vogal [a] é sentida por todos os cantores como a vogal mais difícil de “timbrar”. Assim se entende, que o espectro exibido nas vogais [a] cantadas, nem sempre seja facilmente legível.

vogais [i] e três vogais [u]. Esta selecção obedeceu aos seguintes critérios: qualidade perceptiva e visual da vogal, clareza do sinal e Fo abaixo de 600 Hz. Preferiu-se sempre as vogais coincidentes com sílabas tónicas por se considerarem estas mais expressivas e mais pertinentes do ponto de vista linguístico e, também, por serem vogais longas (superiores a 100 ms). Dos 48 excertos seleccionados foram analisadas 432 vogais (144 vogais [a], 144 vogais [i] e 144 vogais [u]). Procedeu-se posteriormente à medição de cada vogal em três pontos: ponto médio (2/4), 1/4 e 3/4. Obtiveram-se, assim, três medições (três réplicas) de cada vogal. Em cada um destes pontos mediu-se, manualmente, os cinco primeiros formantes, F1, F2, F3, F4 e F5, retirando-se o valor de ocorrência da frequência e o valor da amplitude. Esta medição manual fez-se observando, também, a estimativa dos formantes dada pelo programa (análise pico a pico no espectro de predição linear, LPC). Contudo, por se considerar que esta estimativa não é fiável, a medição final não foi com base nesta estimativa. Pretendeu-se, sobretudo, definir os formantes por um lado, procurando no espectrograma frequência/tempo as linhas horizontais (harmónicos) de maior amplitude visualizadas pela maior intensidade lumi-nosa; por outro, procurando a coincidência com o pico formântico no espectro amplitude/frequência oferecido pela funcionalidade Spectrum viewer do programa Speech Station2.

O espectro frequência/tempo visualizado foi o baseado na transformada rápida de Fourier (FFT). A frequência de amostragem escolhida aquando da gravação para o programa foi de 11025 Hz (a visualização efectiva exibida foi de 0 a 5500 Hz), por se considerar que a qualidade do espectro assim apresentada era a melhor para a análise espectro-gráfica. O espectro assim visualizado tem pouca compressão o que permite uma melhor acuidade na medição. A janela de análise utilizada foi de tipo Hanning, de tamanho 128.

Os formantes que sistematicamente foram mais difíceis de medir foram F1 e F5: o primeiro, porque muitas vezes é difícil decidir se o pico ressonancial se encontra no primeiro harmónico ou no segundo; o segundo, porque, por vezes, tem muito pouca intensidade, especialmente na vogal [a]5.

5 Diferentemente do que acontece na fala, a vogal [a] não é uma vogal “forte” no canto, pois o facto de, do ponto de vista funcional, haver necessidade de converter a pressão alta na faringe típica da vogal [a] em pressão na região palatal anterior, globalmente procurada para todas as vogais cantadas, torna a aquisição tímbrica do [a] cantado uma aquisição difícil

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quatro ou mais indivíduos. Foi considerado infirmado aquele excerto cuja corroboração emocional percep-tiva foi igual, ou inferior, a 42,8%, isto é, apenas confirmado por três ou menos indivíduos.

Tendo em conta que o júri de avaliação perceptiva foi constituído por sete elementos, cada emoção, a ser corroborada em absoluto, nos doze excertos dos cantores, sê-lo-ia 84 vezes. Os resultados dos inquéritos expressos pelo gráfico da Figura 1 mostram que a emoção percebida com maior sucesso foi a Tristeza (embora apenas 64 vezes confirmada) e que a emoção mais difícil de ser corroborada perceptivamente foi a Alegria (apenas 27 vezes).

No sentido de averiguar as razões pelas quais determinadas emoções visadas tinham tido menos sucesso do que outras, pretendeu-se tornar explícito de que modo se efectivava a incompreensão: se simplesmente o ouvinte não conseguira definir a emoção que ouvira, ou se a tinha trocado por outra, e neste caso, por qual ou quais. A Figura 1 torna patentes algumas confusões curiosas entre emoção visada/emoção apreendida: um número significa-tivo de excertos que visavam exprimir Medo foram ouvidos como Tristeza (20 vezes), e um número importante de excertos que pretendiam expressar Raiva foram apreendidos como Alegria (14 vezes). A emoção cuja expressão foi mais difícil de ser reconhecida foi a Alegria, que, por 40 vezes foi considerada como indefinida.

Na Figura 2 mostra-se o número de excertos que vieram a ser efectivamente analisados. Neste gráfico pode ainda observar-se que, apesar de um homem ter sido excluído (Tenor 4), pelo facto de nenhum dos seus excertos ter sido corroborado do ponto de vista emocional, ainda assim, o peso dos homens na amostra continua a ser maior (tal como acontecia na amostra inicial – 8 homens e 4 mulheres). Observe-se, ainda, que os excertos

posições articulatórias intermédias destas). Assim, as estruturas formânticas por elas exibidas poderão ser paradigmáticas, isto é, se houver manipulação nestas estruturas para a expressão emocional, possivelmente também o haverá nas outras vogais que neste estudo não foram analisadas.

Estatística utilizada

Neste trabalho considerou-se que H0 se rejeita a partir de um valor de significância de p< 0,01. No presente trabalho, várias análises permitem descrever (análise descritivas: normalidade, variância, tabelas, médias, correlações e distâncias), explorar (análise de componentes principais) e testar hipóteses (análise de variância paramétrica, análise de variância não paramétrica). Os programas utilizados foram SPSS 15 (ANOVA, KRUSKALL-WALLIS), Minitab (ANOVA nested, testes de normalidade e de homogeneidade de variância) e Canoco 4.5 (Análise de componentes principais - ACP).

Resultados

Selecção perceptiva das amostras

Nesta análise preliminar apresentam-se, na Figura 1, os resultados relativos à avaliação perceptiva. Após ter as respostas do júri, fez-se um levantamento das percentagens de excertos cuja emoção foi confirmada ou infirmada. Foi considerado confirmado aquele excerto cuja corroboração emocional perceptiva foi igual, ou superior, a 57,1%, isto é, confirmado por

Figura 1 – Emoções visadas pelos cantores versus emoções apreendidas perceptivamente

Figura 2 – Número de excertos analisados por emoção e género

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 155

a sua variação nas diferentes vogais não é muito manifesta, se bem que F3 e F4 em [u], se encontrem ligeiramente mais baixos do que em [a] e [i]; e F5 se encontre ligeiramente mais baixo em [i], do que em [a] e [u]. Assim, F3 e F4 discriminam [a] e [i] de [u], enquanto que F5 separa o [i] das restantes vogais. É ainda de salientar que os padrões das médias das três vogais são completamente diferentes para os formantes: F1 e F2 têm comportamentos opostos ([i] tem o valor mínimo para F1 e máximo para F2); F3 e F4 têm comportamentos similares e F5 é semelhante a F1 (mais alto em [a], mais baixo em [i] e um pouco mais alto que [i] em [u]), mas a magnitude das diferenças é muito menor. Finalmente, o erro padrão reduzido, e a diferença entre as médias observados, evidencia que a resposta dos formantes às vogais é clara, com erros muito inferiores às

relativos a Tristeza e Neutro foram analisados em onze indivíduos enquanto que os relativos a Alegria e Medo ficaram substancialmente reduzidos.

Validação das premissas estatísticas

Normalidade

Para cada formante, de cada vogal, o teste de normalidade de Ruan-Joiner (Rj), que varia entre 0 e 1, (sendo mais próximo de 1 quando a distribuição se aproxima da normal) deu resultados significativos para os cinco formantes. [13]

Homogeneidade de variância

Das 15 combinações possíveis entre Factores e Formantes, apenas duas não são significativas para o Teste de Bartlet χ2 [13], Vogais F1 e Vogais F4. No entanto, como foi realizada uma análise não paramétrica livre das restrições da ANOVA, poder- -se-á verificar, à posteriori, se estas duas excepções afectaram ou não os resultados.

Feitos os testes de homogeneidade de variân-cia [13], determinou-se que os dados cumpriam, globalmente, os requisitos exigidos pela ANOVA. Os requisitos da ANOVA permitem a utilização da média em tabelas, gráficos, como input da análise multivariada. Por isso, considerar a média como um bom estimador da população para cada factor (distribuições análogas e variância essencialmente homogénea) é fundamental para a validade de toda a análise estatística que a utiliza.

Correlações e distâncias

As correlações observadas [13] justificam a utili-zação da ANCOVA, de forma a eliminar o efeito da Fo nos restantes formantes.

Primeira instância do timbre: vogais

A Figura 3, que apresenta os diferentes gráficos de bigodes relativos às médias de cada formante, para cada uma das vogais, mostra que a variação mais significativa na diferenciação das vogais se dá ao nível dos formantes F1 e F2. F1 é mais alto em média de frequência de ocorrência para a vogal [a], mais baixo em [i] e ligeiramente mais alto do que [i], em [u]. F2 está próximo de F1 na vogal [a], está afastado de F1 na vogal [i] e de novo próximo de F1 na vogal [u], se bem que mais baixo do que em [a]. No que respeita aos formantes F3, F4 e F5

Figura 3 – Médias, erro e desvio padrão para as três vogais relativamente aos cinco formantes

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2156

H0 se verifica, ou seja, quando não há diferenças significativas emtre as médias), indicando que as diferenças observadas no gráfico de bigodes (Figura 3) são, sem qualquer dúvida, significativas, e, como se observou naquele gráfico, discrimina [i] de [a] e [u]. F1 vem logo a seguir em termos de importância, com um valor de F de 511. Mais uma vez, este resultado confirma o gráfico de bigodes, onde F1 era tido como muito importante para a discriminação das vogais. F3 e F4 têm valores muito inferiores de F, apesar de continuarem significativos. F5 é o formante menos importante na discriminação das vogais.Quandoseconsideramtodosoformantes,o valor de F é muito elevado, contribuindo para isso as diferenças observadas para F1 e F2. Todas as análises são significativas, sendo o valor de F (ANOVA) ou de Rao (MANOVA) proporcional à robustez do resultado.

Segunda instância do timbre: individualidade tímbrica dos cantores

A Figura 5 mostra as médias de frequência de cada um dos cinco formantes nos onze cantores discriminados através do gráfico de bigodes. A proximidade nos valores apresentados em F1 e F2 é muito maior do que a que ocorre em F3, F4 e F5. F1 e F2 apresentam padrões análogos enquanto que F3 e F4 formam outro par. F5 foge à lógica geral. Para F1 e F2 é visível que as diferenças observadas são pequenas, e que o erro (caixa em volta da média) é por vezes superior à diferença entre as médias, sendo este efeito mais importante para F2. F3 e F4 são, sem dúvida, os formantes onde as médias apresentam maiores diferenças, correspon-dendo provavelmente às características tímbricas dos cantores. F5 é menos variante que F3 e F4, mas mais que F1 e F2. Há, contudo, diversidade nas diferentes pessoas; possivelmente, algumas diferenças encontradas entre cantores podem também dever-se

diferenças das médias, sendo F2 e F1 os formantes onde este fenómeno é mais evidente.

Na Análise de Componentes Principais (ACP) – Figura 4 – o 1º eixo explica entre 62% a 81% da variância da amostra, e o 2º eixo explica entre 17% e 36% da variância da amostra. Nesta figura pode observar-se que as três vogais são muito bem discriminadas em qualquer um dos casos analisados (com algumas excepções), com o F2 a separar o [i] do [a] e do [u] e com o F1 a separar o [a] do [i] e do [u]. Este resultado confirma o gráfico de bigodes para as vogais (Figura 3), onde as médias das vogais para cada formante davam exactamente o mesmo padrão. É por estas razões evidente que bastam dois formantes para discriminar com clareza as três vogais, sendo a informação retida nos F3, F4 e F5 pouco significativa para as vogais. É possível observar que a separação das vogais é muito clara, com muito pouca dispersão de emoções, sendo esta menor para [a], intermédia para [i] e maior para [u]; este resultado pode indicar que existem capacidades diferentes de expressar emoções de acordo com as vogais cantadas, sendo a vogal [u] mais expressiva pois é aquela na qual as emoções se apresentam mais distanciadas umas das outras, estando desse modo mais diferenciadas e melhor definidas. Ainda neste gráfico (Figura 4), pode observar-se que Raiva e Alegria estão sempre lado a lado, e que Alegria é sempre a emoção mais afastada. NoQuadro1podeconfirmar-seoresultadoda

análise exploratória (Figura 3), que nos indicava que era o F2 o formante mais afectado pelas 3 vogais. O valor de 3307 para o F da ANOVA é muito grande (o valor de F é muito pequeno quando

Figura 4 – ACP para Vogais versus Emoções (todos os can-tores)

Quadro 1 – Tabela ANOVA e MANOVA para as vogais

ANOVA (DF=2) F p-level

F1 511 0

F2 3307 0

F3 13 3,1 E-6

F4 11 0,00002

F5 8 0,00032

MANOVA Rao’s R p-level

Todos F 651 0

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 157

F3 (valores mais distantes da origem relativamente ao 1º eixo) e, finalmente, F1 e F2 (sendo F2 aquele que menos contribui).

O primeiro eixo divide claramente as caracterís-ticas tímbricas da voz, com a maioria dos homens agrupados no lado direito do gráfico e as mulheres agrupadas no lado esquerdo do gráfico. O eixo dois está relacionado com outras características da voz e, possivelmente, com os próprios trechos musicais, sendo difícil visualizar qualquer padrão relativamente às emoções. Muitas emoções estão agrupadas para o mesmo cantor, evidenciando a supremacia das características tímbricas da voz em detrimento da emoção expressa. No entanto, nesta análise, esta derivação está provavelmente mais associada ao excerto que cantaram, já que as emoções se encon-tram dispersas. Analisando apenas o primeiro eixo (Figura 6), observa-se a existência de uma relação de F3 e F4 com as características tímbricas das vozes femininas e de F5 com as vozes masculinas.

Quadro 2 – Tabela ANOVA e MANOVA para cantores

ANOVA (DF=10) F p-level

F1 6,5 0

F2 1,9 0,037

F3 65,9 0

F4 138 0

F5 22 0

MANOVA Rao’s R p-level

Todos F 37,4 0

NatabeladoQuadro2vemosque,efectivamente,é o formante F4, seguido de F3, que mais contribui para a discriminação dos cantores, confirmando os resultados das análises anteriores (Figura 5 e Figura 6), que já evidenciavam este traço. O F2, muito importante na discriminação de vogais, deixa de ser significativo (p = 0,03) reforçando que os formantes têm uma função bastante especializada relativamente a cada factor (vogais, cantores ou emoções). O F1 tem um valor de F um pouco maior. F5 encontra-se entre F1 e F2 por um lado, e F3 e F4, por outro. Estes resultados, confirmam na íntegra a informação observada no gráfico de bigodes (Figura 5).

Terceira instância do timbre: emoções

Na Figura 7, pela análise das médias nos gráficos de bigodes, pode observar-se um padrão consistente em todos formantes relativamente às emoções. O Neutro é aquele que apresenta valores médios

ao facto de não se ter sempre o mesmo número de emoções a ser consideradas. Por exemplo, no Mezzo 2 (com duas emoções) e no Tenor 2 (com 3 emoções). Aparentemente, não existe um padrão comum ao mesmo naipe de vozes, mas esse resultado pode estar enviesado pelo número de emoções que entram na média.

Na Figura 6 o primeiro eixo explica 63% de vari-ância, o segundo eixo 22% e o 3º eixo 13%. Da análise desta ACP constata-se que a discriminação dos cantores se efectua pelos formantes F5, F4 e

Figura 5 – Médias, erro e desvio padrão dos cinco formantes nos onze cantores

Figura 6 – ACP para Cantores versus Emoções

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2158

dos formantes (para cada uma das vogais e para as cinco emoções) entre os cantores do sexo mas-culino e os cantores do sexo feminino (consultar resultados em [13]) observando-se, por exemplo, que os cantores de sexo feminino, diferentemente do que acontece nos cantores do sexo masculino, dissociam Neutro de Tristeza.

Observando o gráfico da ACP para as vogais (Figuras 4), pôde ver-se que a discriminação das vogais é feita pelo primeiro eixo e F2 (separando as vogais [i] das vogais [a] e [u]) e pelo 2º eixo e F1 (separando o [a] do [u]). Por isso, covariando com F1 e F2, poderemos ter os efeitos tímbricos das emoções quase puros. As análises seguintes são covariações de F3, F4 e F5 com F1 e F2, retirando assim o efeito das vogais da análise.

O primeiro resultado que ressalta da Figura 8 (ACP sem vogais – todos) é que, se eliminarmos a região menos significativa do gráfico (região central), as emoções ficam razoavelmente agrupadas, separando- -se claramente umas das outras. Lembrando o gráfico da Vogais versus Emoções (Figura 4), onde as vogais eram claramente determinantes no padrão observado, vemos que este resultado é bastante surpreendente, evidenciando que mesmo que as diferenças entre as médias seja pequeno (gráfico de bigodes das emoções – Figura 7), existem, no entanto, padrões que emergem quando separamos as emoções dos restantes factores.

Outro resultado interessante é que, sistematica-mente, são as vogais [i] e [u] que estão significati-vamente distantes do centro, indicando que são as melhores vogais no que diz respeito à discriminação das emoções. F5 está claramente relacionado com a Raiva, o F4 com a Tristeza e o F3 ligeiramente com a Alegria.

Para as 5 emoções, foram feitas análises de vari-ância para cada um dos formantes (ANOVA) e todos simultaneamente (MANOVA) para todas as vogais (coluna1doQuadro3).Nasanálisesseguintes–

mais baixos na frequência de todos os formantes (excepto em F2); Medo e Tristeza apresentam médias de valores próximos e Alegria e Raiva possuem também valores próximos, excepto em F5, em que, claramente Raiva apresenta as médias de valores mais altas de todos. É já visível que cada emoção aponta para um desenho distinto de frequências de formantes.

O mais interessante de observar na Figura 7 é que as emoções, ao contrário dos factores prece-dentes, apresentam o mesmo padrão para todos os formantes (as médias das frequências decrescem de Alegria para Neutro, e voltam a crescer para a Raiva), sendo F2 o que tem menos variância, e F5 o que tem maior variância nas descidas e subidas de frequência. Pelo contrário, as diferenças obser-vadas são sempre muito pequenas relativamente aos cantores ou às vogais.

De seguida procedeu-se à decomposição das emoções pelas três vogais de modo a confirmar o padrão observado no gráfico de bigodes (consultar os resultados em [13]). Verificou-se, ainda, se havia diferenças entre as relações das médias da frequência

Figura 7 – Médias, erro e desvio padrão das emoções nos cinco formantes

Figura 8 – Análises de componentes principais (ACP) para emoções (sem vogais): todos

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 159

os gráficos relativos à visualização da emoção Raiva (consultar os resultados em [13]).

Comparações das três instâncias

Comparações Vogais/Pessoas/Emoções

Os valores de significância na análise paramétrica, dado a artificialidade de considerar que a amostra tem mais de 1000 graus de liberdade, são muito mais pequenos, isto é, são muito mais significati-vos. A análise oferecida pelo teste Kruskal-Wallis χ2 (Quadro 4), basicamente, confirma os valoresobtidos da ANOVA para os três factores estudados (Quadros1,2e3),masosvaloresbastantemaisbaixos de p permitem uma comparação efectiva dos três factores.

Quadro 4 – Teste do Kruskal-Wallis χ2: Vogais/ Pessoas/ Emo-ções e Réplicas

Vogais (DF=2) Pessoas (DF=10)

Emoções (DF=4)

Réplica (DF=2)

χ2 p-level χ2 p-level χ2 p-level χ2 p-level

f1 505 0 69 0 31 0 0,042 0,98

f2 808 0 22 0,015 10 0,040 0,056 0,97

f3 29 0 422 0 15 0,005 0,29 0,87

f4 21 0 625 0 7,6 0,108 0,08 0,96

f5 17 0,0002 160 0 64 0 0,58 0,75

NoQuadro4enaFigura9observa-seque,paraas vogais, os formantes mais significativos são o F2 e F1 (com valores do χ2 na ordem dos 808 e 505, respectivamente); para os cantores, apenas F2 é não significativo sendo F4 e F3 os mais significati-vos (com valores do χ2 na ordem dos 625 e 422, respectivamente), e, para as emoções, F5 é muito significativo (com valor de χ2 de 64), F1 menos

2ª a 5ª colunas – Fo entrou sempre como covariável, para eliminar o efeito da frequência fundamental da análise das emoções. Na 3ª, 4ª e 5ª colunas analisaram-se as vogais isoladamente, para investigar a importância de cada vogal na discriminação das emoções . NaprimeiracolunadoQuadro3éevidenteque

o F5 é o formante que melhor discrimina as emo-ções, sendo o valor de p muito significativo (p = 1,1E-14). Seguidamente, com grau de significância menor, F1 e F3. F2 e F4 não são significativos (com p = 0,3 e p = 0,05 respectivamente). Este resultado confirma o gráfico de bigodes (Figura 7), onde F5 evidenciava maior variância. Na segunda coluna doQuadro 3 pode ainda verificar-se queos resultados são idênticos aos da primeira coluna, com F5 mais significativo seguido de F1 e F3. Da terceira à quinta colunas (ANCOVA [a],[i] e [u], res-pectivamente) pode ainda observar-se que a vogal [i] é, efectivamente, aquela que melhor discrimina as emoções em todos os formantes exceptuando F4 (com p = 0,03). Relativamente a F2, a vogal [i] é a única capaz de discriminar emoções. As vogais [a] e [u] não são significativas para as emoções nos formantes F3[a], F3[u] e F4 [u], respectivamente.

Ao utilizar todos os formantes na MANOVA e MANCOVA (Quadro 3), os resultados ficam alta-mente significativos, o que indica que a utilização do complexo de todos os formantes permite uma descrição mais clara da expressão das emoções no timbre da voz cantada. Em termos gerais, F2 e F1 discriminam vogais, F5 e F1 emoções e F4 e F3 cantores.

No intuito de averiguar se haveria padrões especí-ficos das emoções, construíram-se, a título exempli-ficativo (uma vez que a amostra é heterogénea no que respeita às emoções executadas pelos cantores),

Quadro 3 – Tabela de análise de variância para as emoções, para cada um dos formantes (ANOVA), covariada com Fo (ANCOVA), covariada com Fo para cada uma das vogais (ANCOVA [a], ANCOVA [i] e ANCOVA [u]) e para todos os formantes (MANOVA), covariados com Fo (MANCOVA, MANCOVA [a], MANCOVA [i] e MANCOVA [u]

DF= 4 ANOVA ANCOVA ANCOVA [a] ANCOVA [i] ANCOVA [u]

F p-level F p-level F p-level F p-level F p-level

f1 6,94 1,7 E-5 4,11 0,003 6,94 2,2E-05 2,84 0,0245 6,74 3,1E-05

f2 1,06 0,38 0,89 0,47 4,81 0,0009 7,7 6E-06 5,88 0,0001

f3 4,04 0,003 3,41 0,009 1,85 0,118 4,86 0,0008 1,46 0,213

f4 2,31 0,056 1,58 0,177 4,08 0,003 2,56 0,039 1,29 0,275

f5 18,5 1,1E-14 18,3 1,6E-14 3,3 0,0107 15,1 2,2E-11 6,4 5,9E-05

MANOVA MAncova MaNcova [a] Mancova [i] Mancova [u]

Todos Rao’s R p-level Rao’s R p-level Rao’s R p-level Rao’s R p-level Rao’s R p-level

F 6,3 6,5E-17 6,4 1,8E-17 4,2 2,1E-9 5,9 5,4E-15 4,07 5,3E-9

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2160

entanto, podemos comparar o F (Anova) ou o Rao (MANOVA) entre análises, já que a amostra é sempre amesma.OQuadro5resumeestesresultados.PelaanálisedoQuadro5edaFigura10pode

observar-se que para as vogais os formantes F2 e F1 são os mais significativos com valores de F muitíssimo altos (3307 e 511, respectivamente); para a discriminação tímbrica das pessoas os formantes F4 seguido de F3 são os mais significativos (com valores de F de 138 e 66, respectivamente) sendo apenas F2 não significativo (com p = 0,037); para as emoções os formantes F5 e F1 são os mais significativos (com valores de F de 18,5 e 6,9, respectivamente), não sendo significativos os formantes F2 e F4 (com

(com valor de χ2 de 31), F3 pouco significativo (com valor de χ2 de 15) e F2 e F4 não são significativos. Na Figura 9 note-se que a probabilidade de H0 se verificar é proporcional à área assinalada pelo que, quanto mais longe desta área o formante se encontrar, mais significativo ele é no que concerne o factor mencionado.

Relativamente à quantidade de variância explicada por cada componente, a análise paramétrica de variância tem duas medidas proporcionais a este valor, o F para a ANOVA e o R para a MANOVA. No

Figura 9 – Valores do Kruskal-Wallis χ2 dos cinco formantes para as pessoas, para as emoções e para as vogais, res-pectivamente

Quadro 5 – Tabela ANOVA e MANOVA comparativa para quantidade de variância entre Vogal/Emoção/Cantor/Réplica

Vogais (DF=2)Resíduos (DF=1023)

Pessoas (DF=10)Resíduos (DF=1015)

Emoções (DF=4)Resíduos (DF=1021)

Réplica (DF=1)Resíduos (DF=1024)

Anova F p-level F p-level F p-level F p-level

f1 511 0 6,45 1,09e-9 6,93 0,000017 0,0004 0,98

f2 3307 0 1,93 0,037 1,1 0,37 0,009 0,92

f3 12,8 3,1E-6 66 0 4 0,003 0,187 0,67

f4 10,8 0,00002 138 0 2,3 0,056 0,19 0,66

f5 8 0,00032 22 0 18,5 1,05E-14 0,26 0,55

Manova Rao’s R p-level Rao’s R p-level Rao’s R p-level Rao’s R p-level

Todos os formantes

630,8 0 37,4 0 6,27 0 0,18 0,997

Figura 10 – Valores da ANOVA F relativamente aos cinco formantes para as pessoas, para as emoções e para as vogais, respectivamente

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 161

ções (onde se discrimina cada vogal), Vogais (onde são feitas três medições) e Réplica (medição). Esta análise integra todos os factores, sendo a ordem dos factores hierárquica. Tem ainda a particularidade de fornecer uma medida do erro. O mais surpreendente quando se comparam as três análises de variância (ANOVA nested, ANOVA parcial e Kruskal-Wallis – Figura 12) é que é evidente a semelhança entre os gráficos, repetindo-se o mesmo padrão de partição da variância em cada análise.

Decomposição da variância (Vogais, Pessoas, Emoções)

No sentido de observar como é que a variância entre os factores estudados se decompôs suces-sivamente em cada formante, fizeram-se árvores de regressão para cada um dos formantes. Estes resultados podem consultar-se em [13].

p-level de 0,37 e 0,056, respectivamente). Note-se, mais uma vez, que a probabilidade de H0 se verificar é proporcional à área assinalada (Figura 10) pelo que, quanto mais longe desta área o formante se encontrar, mais significativo ele é relativamente ao factor mencionado.

Pode concluir-se, deste modo, que os resultados obtidospelaanáliseparamétrica(Quadro5/Figura10)epelaanálisenãoparamétrica(Quadro4/Figura9) são idênticos.

De seguida analisou-se a importância das ampli-tudes dos formantes na discriminação entre vogais, cantoreseemoções.AtabeladoQuadro6resumeestes resultados.

Quadro 6: Tabela ANOVA para amplitude dos formantes em Vogais, Emoções, Cantores e Réplicas

Formantes Vogal Emoção Cantores Réplica

F1 34,3 32,6 45,5 0,16

F2 65,4 43,1 30,6 1,54

F3 84,4 38,7 35,6 3,1

F4 56,8 34,2 57,2 1,8

F5 23,1 16,4 16,4 2,14

Todos 39,7 13,4 29,7 1,21

O resultado mais interessante é que, neste caso, apesar da ordem de importância ser a mesma (Vogais > Cantores > Emoções), os valores são muito mais próximos, como o ilustra o gráfico da Figura 11.

A Figura 11 mostra-nos que a variação da ampli-tude dos formantes é mais significativa do que a frequência dos mesmos na discriminação das emoções, uma vez que, na partição de variação de amplitude dos formantes os valores de variância entre vogal, emoção e cantor estão mais próximos.

Finalmente (Figura 12), realizou-se uma ANOVA nested, onde a ordem dos factores foi a da natureza das variáveis: Pessoas (que cantam emoções), Emo-

Figura 11 – Gráficos de queijos mostrando a partição da variância na frequência dos formantes e na amplitude dos mesmos

Figura 12 – Gráficos comparativos de Nested ANOVA, ANOVA F e Kruskal-Wallis χ2 para Pessoas, Emoções Vogais e Réplica

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2162

constatar-se uma possível relação específica de cada emoção com cada formante. Provavelmente, para Medo deve faltar, nesta análise, o formante com o qual possa estar mais directamente relacionado (possivelmente um formante acima de F5). Quantoà terceiraquestãode investigação:“Há

padrões típicos nesta relação emoções/timbre?” Ainda que os resultados desta investigação não sejam suficientes para afirmar categoricamente que há padrões específicos das emoções visíveis no tim-bre, nem qual a tipologia destes padrões em cada emoção, estes resultados permitem afirmar que cada emoção tem uma assinatura individualizada no timbre da voz cantada (pois que esta evidên-cia foi recorrente nos vários resultados): em geral, o mapa das frequências dos formantes em ordem descendente é Raiva, Alegria e Tristeza/Medo. Na intenção de melhor compreender o padrão Raiva fizeram-se gráficos, a título exemplificativo, que permitem apontar para o facto de haver padrões-tipo relativamente a cada emoção no timbre exibido a partir das frequências formanciais [13]. É preciso, contudo, mais investigação que permita melhor delinear os padrões tímbricos das emoções. Quantoàquartaquestãodeinvestigação:“Havendo

padrões, estes são independentes do tipo de voz e do sexo dos indivíduos?”. No que respeita a esta questão, ainda que se não tenha podido responder totalmente, os resultados apontam para o facto de, por um lado, os possíveis padrões das emoções serem indepen-dentes do tipo de voz dos indivíduos (uma vez que, naqueles em que foi possível averiguar, por terem um maior número de emoções, a tipologia da voz não influenciou o padrão geral observado), por outro, que há nuances nestes padrões relacionadas com o sexo dos indivíduos [13]. Pôde observar-se uma diferença no que respeita ao modo de se expressarem os cantores do sexo feminino, relativamente aos cantores do sexo masculino [13]: nos primeiros a discriminação emocional é mais acentuada havendo uma clara distinção entre o modo Neutro e a Tris-teza; nos segundos a discriminação emocional é menos acentuada havendo um paralelismo entre Neutro e Tristeza. Estes resultados necessitam de mais investigação futura.

É, também, de salientar o gradiente claro visível na ACP da Figura 6 (a qual, por ser de Cantores versus Emoções exibe resultados robustos relativa-mente ao desequilíbrio da amostra), onde, na parte positiva do primeiro eixo se localizam a maioria dos timbres masculinos e na parte negativa os timbres femininos. O desajuste de alguns cantores, deve-se,

Discussão e conclusões

Resposta às questões de investigação

Quantoàprimeiraquestãodeinvestigação“Existe uma relação entre a expressão das emoções e o timbre da voz cantada?”. Os resultados desta investigação permitem responder afirmativamente a esta questão. Pelo facto de se terem efectuado diversas análises os resultados são robustos. Embora a variância tímbrica para as emoções seja, com efeito subtil, não é negligenciável.

Para se poder chegar à eventual variância tímbrica da exclusiva responsabilidade das emoções foi neces-sário compreender a variância formancial relativa quer às vogais, quer à individualidade tímbrica dos cantores. Após as duas primeiras instâncias estarem analisadas foi, então, possível observar o que se passava na frequência de ocorrência dos formantes que pudesse ser atribuído ao conteúdo emocional visado pelos cantores. Os resultados mostraram, em primeiro lugar, que há manipulação da frequência dos formantes para as diferentes emoções, o que corrobora os estudos de Morozov e Sundberg [1, 2 e 3]; em segundo lugar, que Alegria e Raiva apre-sentam na globalidade frequências formânticas mais elevadas do que Tristeza e Medo – Morozov [1] havia concluído que o formante do cantor subia na sua frequência de ocorrência para Raiva e Alegria e descia para Tristeza e Medo –.Quanto à segunda questão de investigação: “A

existir uma relação, que tipo de relação é esta?” Este estudo permitiu mostrar que há uma relação directa exibida entre a amplitude e a frequência de ocorrência dos formantes e as emoções expressas. No que respeita às frequências dos formantes pôde constatar-se a existência de valores mais altos de fre-quência dos formantes nas emoções Raiva e Alegria, e de valores mais baixos nas emoções Tristeza e Medo. Nos resultados da avaliação perceptiva houve, como foi referido, uma confusão perceptiva assinalá-vel entre as emoções Alegria/Raiva e Medo/Tristeza. Ora, após os resultados pode, agora, compreender-se a razão desta incompreensão perceptiva: os quadros formânticos de Alegria e Raiva estão próximos e os de Tristeza e Medo também.

Com o resultado da ACP para as emoções (Figura 8), no qual se excluiu a variância da responsabilidade de F1 e F2 (uma vez que, covariando com F1 e F2, ou com as três vogais, se obtiveram os mesmos resultados) pôde observar-se que há uma relação de Raiva com F5, de Tristeza com F4 e, de Alegria com F3 (se bem que menos acentuada). Pode, assim,

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 163

relativamente a F3 e F4, já que cada cantor terá o seu caminho muito particular no domínio e controlo da projecção da voz (exactamente ao contrário das vogais, que sendo um padrão comum a todos os cantores dificilmente os formantes responsáveis pela sua discriminação poderiam separar timbricamente os cantores).

Na globalidade, a amplitude dos formantes é afectada pela expressão das emoções se bem que não se tenha chegado a averiguar como é que ela é discriminada para cada emoção. No que respeita à amplitude dos formantes apenas se analisou se havia uma relação significativa entre a amplitude exibida pelos formantes e as emoções, e os resultados foram confirmativos, inclusivamente, mostraram que o grau de variância das amplitudes dos formantes para as emoções é maior do que a variância da frequência dos formantes para as emoções.Quantoàsextaquestãodeinvestigação:“F1 e F2,

por serem formantes particularmente importantes para a discriminação das vogais, são menos mani-puláveis para a expressão emocional do que F3, F4 e F5?” Os resultados respeitantes à manipulação tímbrica efectuada para a discriminação das vogais confirmam a literatura existente, quer para a voz falada [15, 16, 17, 18], quer para a voz cantada [11,14, 19, 20, 21, 22], – tendo em conta que no presente estudo Fo esteve sempre abaixo de 600 Hz pelo que as posições relativas de F1/F2 não se alteraram –. Neste estudo, todos os resultados mostraram F1 e F2 como principais responsáveis pela distinção tímbrica das vogais e mostraram que é a sua posição relativa que permite distinguir as vogais [a], [i] e [u], embora a movimentação frequencial do segundo formante seja mais significativa para estas vogais do que a variância de F1. Este formante separa claramente [a] de [i] e de [u], enquanto que F2 discrimina com absoluta clareza [i] de [a] e [u]; a combinação de F1 e F2 é por isso completamente determinante na discriminação das três vogais, muito provavelmente de todas as vogais. Relativamente a F2 pode dizer-se, à luz dos resultados, que, efectivamente, é pouco manipu-lável na expressão e discriminação das emoções. Relativamente a F1, embora a sua preponderância na diferenciação das vogais seja eminente, este é também um formante importante para as emoções, apresentando-se como o segundo formante com maior variância nas emoções. O que leva a supor, portanto, que F1 não tem uma função tão impor-tante como F2 na diferenciação vocálica e que, de qualquer modo, não é esta função que inviabiliza a movimentação da frequência dos formantes na

provavelmente, à sua qualidade técnica e ao facto de possuírem menos anos como profissionais. É, por isso, possível, que a melhoria na qualidade técnica do canto, adquirida ao longo da vida profissional, esteja associada à manipulação de F3 e F4. Isto não é surpreendente uma vez que uma das aprendizagens técnicas perseguidas pela pedagogia vocal é a do abaixamento da laringe, cuja consequência geral é o abaixamento da frequência dos formantes. Nos cantores do sexo masculino de menor qualidade técnica há sempre desvios, no caso das cantoras do sexo feminino, não há dados suficientemente conclusivos, mas o padrão parece ser o inverso. Com esta informação pode compreender-se melhor a Figura 6 uma vez que a progressão na excelência implica uma especialização diferencial que maximiza as diferenças tímbricas entre homens e mulheres bem como a capacidade de sucessivamente alinhar as emoções com o eixo representado pelos vectores F3 e F4.Quanto à quinta questão de investigação: “A

expressão tímbrica das emoções afecta igualmente todos os formantes? Quer na sua frequência, quer na sua amplitude?” A resposta à primeira pergunta desta questão é negativa. Os resultados mostram, claramente, que há formantes mais importantes para a expressão tímbrica das emoções, nomeadamente F5 é o mais significativo, seguido de F1, e que há formantes não significativos para a expressão emocional, nomeadamente F2 e F4.

Nos diversos resultados apresentados são F4, F3, e menos significativamente F5, os principais respon-sáveis pela discriminação da individualidade tímbrica dos cantores. Estes resultados corroboram a literatura existente [11 e 14] que afirma estar a qualidade da voz relacionada com os formantes acima de F2. Sundberg aponta o quarto formante como o principal indicador da individualidade tímbrica, por este estar muito relacionado com as dimensões do tubo laríngeo e com o comprimento do tracto vocal. Curiosamente, F4 e F3 são também os formantes responsáveis pelo formante do cantor, pelo que há uma sobreposição das funções de F3 e F4: diferenciar individualmente os cantores (o que foi estudado nesta investigação) e, simultaneamente, permitir a projecção da voz cantada. A relação íntima de F3 e F4 é visível nas Figuras 3, 5 e 7 em que estão mais próximos do que os restantes formantes. Este facto poderá estar relacionado com a manipulação que os cantores fazem destes formantes para melhor projectar a voz. Esta poderia, também, ser a explicação possível para diferenças tão significativas para os cantores

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2164

que noutras (não que elas sejam mais ou menos permeáveis), por ordem: [i], [u] e [a].Quanto à nona questão de investigação: “Há

emoções cuja expressão na voz cantada é mais exequível do que outras? Se há, quais?” Os resultados expressos nesta investigação não permitem responder com clareza a esta questão se bem que possamos observar que a emoção Raiva é aquela que é mais claramente visível no timbre da voz cantada, e a emoção Medo a mais dificilmente reconhecível. Isto talvez possa ser explicado pela dificuldade sentida pelos cantores relativamente a esta emoção.

Conclusões

1. Com esta investigação pode afirmar-se que, exclusivamente pela análise tímbrica, se podem averiguar conteúdos emocionais específicos. A lite- ratura existente [1, 2 e 3] afirma que as emoções da voz cantada são legíveis acusticamente a par-tir de um conjunto multifactorial de parâmetros, aqui pudemos constatar que a análise exclusiva do timbre permite aferir das emoções veiculadas. A variância exibida pela frequência de ocorrência dos formantes para as emoções é, quando comparada com a mesma variância para as vogais ou para a individualidade dos cantores, subtil, no entanto, é claramente consistente.

2. Pode também afirmar-se que há quadros formân-ticos para cada emoção, se bem que o padrão-tipo tímbrico de cada emoção não tenha sido delineado. Pelos resultados não generalizáveis aqui obtidos, a assinatura específica das emoções é independente da tipologia das vozes mas não é independente do sexo dos indivíduos. Há contudo, que esperar por mais investigação.

3. Esta investigação permitiu mostrar que os for-mantes têm funções especializadas: F2 e F1 para a discriminação das vogais, F4, F3 e F5 para a diferenciação tímbrica individual das pessoas, F5 e F1 para a variância dos formantes atribuída às emoções.

4. Dos resultados obtidos nesta investigação pode afirmar-se que, na amostra estudada, há uma hierar-quia das vogais para a expressão das emoções: das vogais aqui analisadas a expressão emocional é mais exequível em [i], a seguir em [u] e só depois [a].

limitações do estudo

A primeira limitação deste estudo diz respeito ao tamanho da amostra estudada que, se bem que tenha

expressão emocional. Este estudo permitiu, também, averiguar que a maioria da variância observada no timbre diz respeito à diferenciação das vogais.Quanto à sétimaquestãode investigação: “A

frequência e amplitude de Fo afecta a frequência de ocorrência e a amplitude dos formantes?” A resposta a esta questão é negativa de acordo com os procedimentos metodológicos que se usaram: a escolha de vogais a analisar cuja Fo fosse baixa de modo a garantir que a movimen-tação frequencial de F1 devida a Fo não fosse significativa. Verificou-se, posteriormente (com os resultados patentes noQuadro 3), que esteprocedimento possibilitara a não significância de Fo na frequência de ocorrência dos formantes o que garantiu, neste estudo, a neutralização desta variância na dependência de Fo. A influência da amplitude de Fo na amplitude dos formantes não chegou a ser investigada se bem que a literatura existente quer para a voz falada [18], quer para a voz cantada [20], indique haver uma relação significativa entre as duas instâncias. Haveria, ainda, que saber até que ponto as diferenças de amplitude observadas nos formantes se deviam a Fo ou à expressão emocional, isto é, seria necessário efectuar as mesmas análises de covari-ância efectuadas para a frequência dos formantes relativamente às amplitudes. A literatura existente para a voz cantada [1] afirma uma relação efectiva entre a diversidade das amplitudes dos formantes e a expressão emocional.Quantoàoitavaquestãodeinvestigação:“A expres-

são tímbrica das emoções varia com as vogais? Há vogais mais permeáveis às emoções do que outras?” Pelos resultados podemos afirmar, por um lado, que sim pois, recorrentemente, as vogais [i] e [u] apareceram como melhores na discriminação das emoções do que [a]. Contudo, pode também afirmar- -se que, quando a qualidade expressiva do cantor é melhor [13] as diferenças da qualidade discriminatória das vogais não é tão acentuada aparecendo já [a] a par de [i] e [u]. Tendo em conta que a vogal [a] é a vogal cantada mais difícil de produzir com qualidade pelo cantor haveria que averiguar se a qualidade técnica dos indivíduos interfere na sua capacidade expressiva. Por outro lado, pode supor-se que, se todos os cantores analisados tivessem uma qualidade técnica e expressiva elevada, então não haveria diferenças na expressão tímbrica exibida pelas vogais. É preciso mais investigação para responder a estas questões. Pode, no entanto, afirmar-se que há vogais nas quais a expressão emocional é mais fácil do

As cores da voz - Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada 165

ensinados e mimados para a performance artística. Há que, naturalmente, saber, como é que no plano fisiológico se dão as manipulações para a produção das emoções que se repercutem acusticamente no timbre, isto é, compreender de que modo é que os quadros acústicos emocionais foram produzidos fisiologicamente. Esta é uma investigação futura com alcance evidente.

Aceitando como robustos os resultados desta inves-tigação que mostram os formantes como entidades com funções especializadas, seria interessante em investigações futuras verificar se a análise formântica do espectro acima de F5 produz resultados. De qualquer modo, tudo parece apontar para o facto de que a compreensão das emoções no timbre, e a compreensão dos seus padrões típicos segundo a emoção, precisa de uma análise mais alargada do espectro. Este é, também um campo profícuo, que necessita de mais investigação futura (ainda que as limitações técnicas permaneçam, por ora, como um obstáculo).

No início desta dissertação perguntava-se se, a limite, o talento artístico, e neste caso específico, o talento musical veiculado pela voz, seria ensinável. A investigação aqui levada a cabo apontou para o facto de se poder responder a esta questão afirmati-vamente: naturalmente que não se pode ensinar um indivíduo a ter emoções, mas, sabendo exactamente o que se produz tímbricamente para cada emoção pode ensinar-se a mimar o gesto dessa emoção, pelo que, em parte, o talento também é ensinável.

Compreendendo que o timbre da voz é um microcosmo do universo emocional da pessoa, compreendendo o timbre, compreende-se, tam-bém, a pessoa. Compreendendo que o timbre das emoções é a metalinguagem universal da música compreende-se a música e o seu propósito.

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inicialmente incluído 12 indivíduos (60 extractos musicais com conteúdo emocional específico), após os excertos por eles cantados terem sido seleccio-nados perceptivamente com o intuito de garantir uma efectiva expressão emocional posteriormente analisável, ficou consideravelmente reduzida (11 indivíduos e 38 excertos). Esta redução teve como consequência que das emoções Alegria e Medo apenas cinco excertos tenham sido analisados e da emoção Raiva, seis; de Tristeza foram analisados onze excertos correspondentes a onze dos doze indivíduos da amostra total. Por não se ter tido todas as emoções em todos os indivíduos, não se pôde comparar todos os cantores em todas as emoções, por um lado, nem avaliar da sua maior ou menor expressividade, por outro. Também não se pôde aferir, com exactidão, se a expressão emocional visível no timbre é independente ou não da tipologia das vozes ou do sexo dos indivíduos.

A segunda limitação decorre da primeira: pelo facto de não se ter tido todas as emoções em todos os indivíduos também não foi possível averiguar até que ponto os padrões individuais das emoções são idênticos entre si ou não, embora se tenha delineado a assinatura global de cada emoção.

Implicações teóricas e práticas & Pers-pectivas futuras

A existência de uma relação directa entre a expressão emocional e o timbre permite inferir, inversamente, o estado emocional do indivíduo a partir da análise do timbre da sua voz cantada. Isto explica, do ponto de vista teórico, como é que o cantor comunica emocionalmente e porque é que esta comunicação musical é metalinguística e universal. Ainda do ponto de vista teórico, sabendo que cada emoção se produz debaixo de um quadro específico tímbrico pode produzir-se artificialmente a “voz” daquela emoção, pode comunicar-se artificial-mente aquela emoção e, enfim, pode manipular-se, e mesmo ludibriar o interlocutor, a partir deste código metalinguístico. A vantagem de tal saber é óbvia para as mais diversas áreas (por exemplo, para as edito-ras discográficas, para a indústria cinematográfica, para a investigação forense, para a robótica, entre outras) e não apenas para a artística (performance e pedagogia do canto).

No plano prático, sabendo exactamente que as emoções se repercutem no timbre do indivíduo, e que o fazem de modo específico, os gestos precisos conducentes àqueles mapas tímbricos podem ser

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Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 167-184

Resumo

A mutação M184V seleccionada pelo uso de lamivudina é precoce, consistente e provoca resistência de alto nível a esse antirretrovírico. Não causa resistências cruzadas dentro da classe e reduz a capacidade replicativa de tal forma que a sua manutenção através da pressão selectiva contínua pode resultar em proveito para os doentes com infecção por vírus multirresistente e com poucas opções terapêuticas.

Métodos: Estudo prospectivo, aberto, em que a 22 doentes infectados por VIH1 com a mutação M184V se alterou a tera-pêutica antirretrovírica com base em genotipagem, mantendo- -se a prescrição de lamivudina ou emtricitabina. Através de comparação com controlo histórico foi averiguada a existência ou não de benefício virológico ou imunológico.

Resultados: Não foram encontradas diferenças entre as respostas imunológica e virológica dos dois grupos. Nos efeitos adversos mensuráveis analiticamente, o grupo 3TC sofreu variação negativa da ALT (-14.3 U/ml±31.3) e o grupo controlo teve aumento de 12.1 U/ml±50.4 (p<0.05). Na análise por subgrupos, para os doentes infectados com VIH de subtipos não-b, 50% no grupo 3TC terminaram com mais de 350 CD4 por mm3 contra 21.4% no grupo controlo (p=0.127); 83.3% dos doentes do grupo 3TC terminaram com carga vírica <1000 cópias/ml contra 57.1% do grupo controlo (p=0.149). Para TAM ≤3, 93.3% dos doentes do grupo 3TC terminaram com carga vírica <1000 cópias/ml, contra 74.1% no grupo controlo (p=0.128); para um total de mutações da transcriptase reversa≤4, 100% dos doentes do grupo 3TC terminaram com carga vírica <1000 cópias/ml contra 68.2% no grupo controlo (p=0.05)

Conclusões: A estratégia de adição de lamivudina ou emtricitabina aos esquemas antirretrovíricos desenhados para doentes em falência terapêutica infectados por vírus porta-dores da mutação M184V não é inferior à prática habitual de suspensão.

Não há toxicidade acrescentada por manter 3TC ou FTC.Da análise por subgrupos concluiu-se que em doentes

infectados por VIH de subtipos não-b há tendência para bene-fício imunológico e virológico. Verifica-se uma tendência para

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovíricoEffect of M184v mutation selection and maintenance on the antiretroviral treatment response

Alexandre CarvalhoHospital S. Marcos – Braga

* E-mail: [email protected] Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Ciências da Fala do Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Católica Portuguesa

Abstract

The mutation M184V in the reverse transcriptase gene is associated with high level of resistance to lamiduvine and emtricitabine. It emerges shortly after therapy with these antiretrovirals has begun. It does not provoke cross-resistance within the class of reverse transcriptase nucleoside inhibitors and reduces viral fitness in a way it could be an interesting option for patients with incomplete viral suppression and few therapeutic options, making it an interesting model for the study of a potential clinical benefit obtained by the continuation of antiretroviral therapy to which HIV has a reduced susceptibility

Methodology: It’s an open label, prospective study, in which antiretroviral treatment of 22 patients infected with HIV 1 bearing the M184V mutation was altered, based in a genotypic resistance test while the prescription of lamiduvine or emtricitabine was continued. Through comparison with a historical control group, the existence or lack thereof of viral or immunological benefits was established.

Results: Couldn’t be found any difference between immunologic or virologic responses on both groups. In laboratorial adverse events, the 3TC group experienced ALT negative variation (-14.3 U/ml±31.3) and control group has an increase of 12.1 U/ml±50.4 (p<0.05). In subgroup analysis, for subtype non-b HIV infected patients, in 3TC group 50% ended with more than 350 CD4 per mm3 against 21.4% in control group (p=0.127); in 3TC group 83.3% ended with viral load <1000 copies/ml against 57.1% in control group (p=0.149). With a number of TAM ≤3, 93.3% of the patients in 3TC group ended with viral load <1000 copies/ml against 74.1% in control group (p=0.128); for reverse transcriptase mutations ≤4, 100% of the patients in 3TC group ended with viral load <1000 copies/ml against 68.2% in control group (p=0.05).

Conclusions: It was concluded the strategy of adding lamiduvine or emtricitabine to the antiretroviral regimen designed for patients for whom treatment is failing, infected with a strain of the virus carrying the M184V mutation is not inferior to the usual practice of suspension of treatment. This strategy does not imply increased toxicity.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2168

From the analysis of subgroups it also can be concluded that patients infected with HIV of subtypes other than b have a tendency to benefit in viral and immunological terms. A tendency to benefit in viral terms has also been identified in the 3TC group if mutations were inferior to three thymidine analogue mutations or four nucleoside analogue mutations in addition to M184V.

Keywords: HIV infection, antiretroviral therapy, viral fitness, lamivudine, M184V mutation

vantagem virológica no grupo 3TC apenas em presença de um número moderado de mutações (inferior a três TAM ou a quatro mutações da transcriptase reversa no total, além da M184V).

Palavras-Chave: Infecção VIH, tratamento antirretrovírico, replicação vírica, lamivudina, mutação M184V

Introdução

O vírus da imunodeficiência humana (VIH) é res-ponsável por uma epidemia que se iniciou em 1981. De doença confinada a grupos de risco definidos, alargou-se à população em geral, exigindo respostas sem paralelo a nível científico, político e humanitário. Enquanto a comunidade científica reagiu de forma célere, fazendo avançar o conhecimento de um modo sem precedentes na história da medicina, política e humanitariamente ainda há um longo caminho a percorrer. Hoje considera-se a existência de duas epidemias causadas pelo mesmo vírus, consoante a localização sócio-geográfica: no mundo ocidentali-zado, há soluções já implementadas a modificar o curso da doença, no mundo em desenvolvimento, a epidemia está descontrolada.

O facto é que nos últimos dois anos o número de pessoas infectadas cresceu em todas as regiões do mundo. As subidas mais pronunciadas deram-se na Ásia Oriental e Central e na Europa Oriental, onde se verificaram aumentos de 21% relativamente a 2004 (1).

Estima-se que possam ter falecido cerca de 2,9 milhões de pessoas com SIDA durante o ano de 2006 (1) e provavelmente mais de 25 milhões desde o início desta história.

Na realidade, há apenas duas formas de combater a epidemia de infecção VIH/SIDA: a prevenção de novas infecções e o tratamento de quem já está infectado.

Parte das soluções referidas passam então pela terapêutica específica: em Março de 1987 foi apro-vado o primeiro fármaco antirretrovírico, o AZT (2). A partir daqui iniciou-se uma outra história, que levou a que a partir de 1996, com o advento e a implementação de terapêuticas combinadas potentes e de alta eficácia, nos países desenvolvidos a doença se transformasse de uma condição invariavelmente fatal numa patologia crónica, requerendo medicação diária, análises periódicas e consultas médicas de rotina. Na actualidade, com dezenas de drogas de

cinco classes ao dispor para terapêuticas combinadas de alta eficácia, poder-se-ia considerar o controlo da epidemia a médio prazo não fosse por um dos problemas mais graves que pode comprometer a eficácia desses fármacos: o das resistências.

O uso da terapêutica antirretrovírica de alta eficácia é notavelmente eficaz no controlo da progressão da infecção VIH e no prolongamento da sobrevida, mas estes benefícios podem ser comprometidos pelo aparecimento de resistências (3). Estas resistências são resultado de dois processos: a emergência de variantes genéticas preexistentes e a selecção de vírus resistentes como resultado da pressão selectiva que sobre eles é exercida e que vai condicionar mutações que surgem nas proteínas víricas que funcionam como alvo dos antirretrovíricos. Nos Estados Unidos da América, quase 50% dos doentes sob tratamento estão infectados com vírus resistentes a pelo menos uma classe de antirretrovíricos (4) e 13% dos doentes com virémia detectável são resistentes a três classes (5). Em consequência, a transmissão de estirpes resistentes é um problema que se coloca de forma crescente (6).

Na Europa, de acordo com o projecto SPREAD, uma rede de vigilância sistemática de transmissão de vírus resistentes, estima-se que essa percentagem seja cerca de 10% (7). Em França, Costagliola e colaboradores realizaram um estudo à escala nacional incluindo doentes de 29 centros com cargas víricas superiores a 1000 cópias/ml a fazer terapêutica antirretrovírica. Detectaram resistência a pelo menos um antirretrovírico em 88% das pessoas. A resistência aos análogos nucleosídeos era a mais prevalente (77% dos doentes eram resistentes a pelo menos uma droga desta classe). Mais preocupante, 19% dos doentes estavam infectados por vírus que eram susceptíveis a apenas uma classe de antirretroví-ricos. Já que estes doentes tinham em 2004 uma mediana de duração de infecção de 12 anos, muitos deles tinham sido submetidos no passado a mono ou biterapia com análogos nucleosídeos (8). Estes

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 169

dados trazem à memória as consequências da era pré-HAART.

Porque o melhor esquema terapêutico para um doente é o primeiro, se ele for portador de estirpes resistentes existe o risco real de submeter os doentes a mono ou biterapia com consequências a nível de desenvolvimento de resistências de alto nível e cruzadas. Também a eficácia de eventuais profilaxias pós-exposicionais pode ficar comprometida.

Existe um risco real de sub-epidemias de vírus resistentes, potencialmente intratáveis. Os testes de resistência não fornecem a resposta global, care-cendo de outros dados, de criatividade, empenho e muitas vezes arte (e não só ART – AntiRetroviral Therapy).

Uma das drogas antirretrovíricas mais utilizadas é a lamivudina (3TC), um inibidor nucleosídeo da transcriptase reversa, amplamente recomendado em todas as normas de orientação clínica e de tratamento da infecção VIH pela facilidade da toma única diária e pela excelente tolerabilidade. No entanto, tem uma baixa barreira genética, sendo a substituição do resíduo metionina pelo resíduo valina no codão 184 (mutação M184V) da transcriptase reversa do vírus da imunodeficiência humana capaz de conferir, por si só, resistência de alto nível ao fármaco.

A rapidez e consistência com que esta mutação é seleccionada pela exposição à lamivudina em doentes com supressão vírica incompleta, faz dela um modelo interessante para o estudo de um potencial benefício clínico obtido com a manutenção em esquemas terapêuticos de antiretrovíricos aos quais o VIH tem susceptibilidade diminuída.

O desenvolvimento de resistência aos fármacos antirretrovíricos é um dos factores que mais contribui para a falência da terapêutica da infecção VIH. A supressão virológica completa e a prevenção da resistência às drogas antirretrovíricas é, e continuará a ser, de primordial importância para o combate adequado à infecção VIH, mas, ocasionalmente, esta supressão não é alcançável.

Estudos têm demonstrado que algum benefício clínico pode ser obtido em doentes submetidos a terapêutica antirretrovírica combinada apesar da existência de replicação vírica (9, 10). Postulou-se que alguns ou todos os fármacos de um esquema em falência podem manter uma actividade residual in vivo apesar da ineficácia demonstrada in vitro. A base para esta conclusão parece ser uma redução na capacidade replicativa do VIH associada às muta-ções que conferem resistência aos antirretrovíricos. Sendo assim, a sua preservação através da pressão

selectiva das drogas pode acarretar um benefício virológico e imunológico para o doente apesar da falência terapêutica (11).

Está documentado que a mutação M184V na transcriptase reversa do VIH, ao mesmo tempo que confere alto nível de resistência à lamivudina, está associada com alterações funcionais da transcrip-tase reversa que levam à redução da capacidade replicativa do vírus que a contenha (12-14). Esta mutação parece ter um efeito positivo na função da transcriptase reversa, reduzindo a mutagénese espontânea através da melhoria da fidelidade da replicação (15). Não provoca resistência cruzada dentro da classe dos inibidores análogos da transcrip-tase reversa e reverte transitoriamente a resistência ao AZT e ao d4T (16).

Sabe-se também que, até ao momento, não foi detectada nenhuma mutação compensatória que proporcione ao VIH um mecanismo de escape que lhe permita readquirir a capacidade de replicação do vírus selvagem (17).

É assim concebível que o vírus mutante não possua integralmente as capacidades replicativas, desde que submetido à pressão da lamivudina, uma vez que a interrupção desta faz com que rapidamente as estirpes selvagens se sobreponham às mutadas (17).

Sendo um fármaco amplamente utilizado há mais de uma década, fruto da constância da sua recomendação em praticamente todas as normas de orientação terapêutica e da sua segurança e boa tolerabilidade, relativamente barato, com a patente prestes a cair no domínio público, seria de esperar que já estivessem publicados estudos definitivos, randomizados e controlados capazes de esclarecer e provar todas as vantagens da sua utilização neste contexto.

Mas os dois ensaios mais citados já realizados chegaram a conclusões contraditórias: o COLATE não provou benefício na adição de lamivudina a três drogas activas para doentes em falência terapêutica (18) e o E184V mostrou vantagem do seu uso em monoterapia comparando com a interrupção de toda a terapêutica, também em doentes com evidência de falência virológica (19).

Pensando-se que os vírus portadores dessa mutação possam ter desvantagens adaptativas e uma replicação menos eficaz, poderá então haver vantagem em exercer pressão sobre o VIH do doente no sentido de, após seleccionada, manter estirpes portadoras dessa mutação com o uso de lamivudina ou emtricitabina como droga adicional em esquemas que não sejam de primeira linha.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2170

Sem a pretensão de dar a resposta definitiva a esta hipótese, desenhou-se um estudo em que a um grupo de doentes em falência virológica e comprovadamente infectados por vírus portadores da substituição M184V se alterou a terapêutica antir-retrovírica para a mais eficaz possível, baseada na melhor evidência científica, mantendo-se a prescrição de lamivudina. Este grupo foi comparado a um controlo histórico.

Doentes, material e métodos

Recrutamento de doentes e controlo histórico

Realizou-se um estudo aberto, prospectivo, com controlo histórico, em que foram incluídos indivíduos maiores de 18 anos infectados pelo VIH 1, inscritos na consulta do Hospital S. Marcos (Braga), a fazer medicação antirretrovírica combinada que incluísse lamivudina ou emtricitabina de forma constante há pelo menos três meses e a quem tenha sido efectuado teste de genotipagem por terem critérios virológicos de falência terapêutica. Para a inclusão no estudo era obrigatória a presença da mutação M184V na enzima transcriptase reversa. Foram considerados critérios virológicos de falência terapêutica a incapacidade de reduzir em 1 log10 a carga vírica do VIH após pelo menos 12 semanas de terapêutica ou carga vírica detectável após supressão e, em ambos os casos, carga vírica superior a 1000 cópias/ml.

O grupo de controlo histórico consistiu em doen-tes seguidos na consulta do Hospital de Joaquim Urbano (Porto), infectados por VIH 1, portadores da substituição M184V na transcriptase reversa e a quem tenha sido alterada a terapêutica antirretrovírica. Era mandatório que do novo esquema não fizesse parte nem a lamivudina nem a emtricitabina.

De ambos os grupos foram excluídos doentes com hepatite B crónica e com doença oportunista activa.

Ao grupo da intervenção foram explicados os procedimentos a seguir e os objectivos pretendidos e obtido de cada doente o respectivo consentimento informado. Os doentes foram recrutados entre Abril de 2006 e Janeiro de 2007. O regime terapêutico escolhido baseou-se na genotipagem disponível, seleccionando-se terapêutica antirretrovírica combi-nada com pelo menos 3 fármacos activos, adicionada de lamivudina, 300 mg em toma única diária ou emtricitabina, 200 mg em toma única diária, já que o efeito similar da mutação M184V nestas duas drogas faz esperar que se comportem de modo idêntico.

A selecção do grupo de controlo histórico fez-se a partir da pesquisa autorizada nos processos da consulta do Hospital de Joaquim Urbano de 2006, de forma retrógrada, incluindo todos os doentes que satisfizessem os critérios de inclusão e exclusão e que tenham mantido a mesma terapêutica antirretrovírica após mudança baseada na genotipagem durante pelo menos 36 semanas.

O ensaio foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital de S. Marcos.

Avaliações efectuadas

No grupo da intervenção foram feitas avaliações clínicas no dia 0 e às 4, 8, 12, 24 e 36 semanas, incidindo na adesão ao tratamento, considerada como a capacidade de tomar as doses dos fármacos prescritas, no horário correcto (considerada óptima se se verificasse cumprimento de pelo menos 95%), intercorrências oportunistas e efeitos laterais atribuí- veis à terapêutica. Classificámos as intercorrências oportunistas de acordo com a revisão de 1993 da definição clínica de SIDA dos Centers for Disease Control and Prevention (Atlanta, EUA) (20).

Nos mesmos tempos foram efectuadas avaliações analíticas, consistindo em hemoleucograma, conta-gem de plaquetas, doseamento de transaminases séricas, contagem de linfócitos CD4 e determinação de carga vírica do VIH.

Para os controlos históricos foram registados os mesmos parâmetros.

Métodos laboratoriais

O ARN de VIH foi extraído a partir de amostras deplasmautilizandooQIAamp®ViralARNMiniKit,deacordocomasinstruçõesdofabricante(Qiagen).A transcrição reversa, amplificação e sequenciação das regiões Protease e Transcriptase Reversa foram efectuadas com HIV-1 TRUGENE™ Genotyping Kit (Bayer Healthcare). O alinhamento das sequências obtidas e interpretação de resistências foram feitos com o software OpenGene™ UNIX (Bayer Heal-thcare).

Todos os restantes exames analíticos foram efectuados no Laboratório de Patologia Clínica do Hospital de S. Marcos, com as técnicas padronizadas habituais.

Análise estatística

A análise estatística dos resultados foi feita através dosoftwareSPSS®11.0,empregandootestetde

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 171

Student para amostras independentes em variáveis contínuas e o teste do qui-quadrado em variáveis categóricas. Utilizou-se um intervalo de confiança de 95% e os resultados foram considerados estatis-ticamente significativos sempre que se verificasse p≤0,05.

Resultados

Características dos doentes

Foram recrutados 28 doentes para formar o grupo do estudo e seleccionados 30 doentes para o controlo histórico. A selecção e seguimento dos doentes do grupo em estudo foram feitos de acordo com o fluxograma patente na figura 1.

Vinte e dois doentes concluíram as 36 semanas previstas.Quatronãopassarama fasede recruta-mento e dois foram retirados da avaliação final (uma morte e um abandono de protocolo).

No quadro 1 estão caracterizados os dois grupos do estudo, doravante identificados como grupo 3TC e controlo. Concluiu-se não haver diferenças significativas entre ambos.

Após estratificação, verifica-se, quanto à idade dos doentes, que predominam em ambos os grupos a quarta e quinta décadas, onde estão incluídos 81,8%

dos doentes do grupo 3TC e 76,7% dos doentes do grupo de controlo (ver figura 2).

A grande maioria dos doentes estavam infectados há mais de seis anos, respectivamente 81,8% no grupo 3TC e 83,3% no grupo de controlo, conforme se observa na figura 3.Quantoàexposiçãoaantirretrovíricos,nafigura

4 verifica-se que a maior parte dos doentes tinham iniciado tratamento há mais de três anos quando foram incluídos no estudo (72,7% no grupo 3TC e 63,3% no grupo controlo). De realçar o cumprimento

Recusa (n=1)VHB + (n=1)Incapacidade de adesão (n=2)

Exclusão

Avaliação final (n=22)

Abandono (n=1)

Morte(n=1)

Resultado após início do estudo

Selecção dos doentes•VIH1positivo•Maisde18anos•TARconstantehámaisde3meses,com3TCouFTC•GenotipagemcomM184V

28 doentes

Figura 1 – Fluxograma dos doentes admitidos para o grupo em estudo

24 doentes

VariávelGrupo 3TC

(n=22)Controlo(n=30)

p(teste t para

amostras independentes)

Sexo

masculino 17 (77.3%) 21(70%) –

feminino 5 (22.7%) 9 (30%) –

Idade(anos±DP)

44.7±12.0 39.9±9.8 0.120 (NS)

Duração da infecção(meses±DP)

107.2±49.2 98.5±43.6 0.501 (NS)

Duração de TAR prévia(meses±DP)

53.5±36.7 45.9±26.3 0.390 (NS)

Hemoglobina inicial(g/dl±DP)

14.1±1.5 13.9±2.1 0.714 (NS)

Leucócitos iniciais(n/mm3±DP)

5237±2056 5669±2592 0.521 (NS)

Plaquetas iniciais(n.103/mm3±DP)

171±57 173±60 0.878 (NS)

ALT inicial(U/l±DP)

44.9±39.5 42.4±37.1 0.812 (NS)

Células CD4 iniciais(n/mm3±DP)

312±238 254±167 0.301 (NS)

Carga vírica inicial(cópias/ml)

63956±141746 37114±88349 0.405 (NS)

Quadro 1 – Caracterização dos dois grupos (DP= desvio-padrão; NS= não significativo)

3

20-29 anos 30-39 anos 40-49 anos 50-59 anos

Controlo

3TC

Idades dos Participantes

14

12

10

8

6

4

2

0

Figura 2 – Idade dos participantes

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2172

dos critérios de inclusão por parte de sete doentes (três no grupo 3TC e quatro no grupo controlo) com história de terapêutica antirretrovírica inferior a um ano.

Os esquemas de terapêutica antirretrovírica a que os doentes estavam submetidos quando foram recrutados são os constantes no quadro 2, estando de acordo com as normas de orientação clínica para tratamentos de primeira linha.

Quadro 2 – Tipo de terapêutica antirretrovírica prévia

Tipo de terapêutica Grupo 3TC Controlo

2 INTR + INNTR 12 (54.5%) 12 (40.0%)

2 INTR + IP 8 (36.4%) 18 (60.0%)

Só INTR 2 (9.1%) 0 (0.0%)

É de salientar, no entanto, a existência de dois pacientes medicados com esquemas compostos uni-camente por inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa, ambos no grupo 3TC.

Em ambos os grupos estão presentes quatro subti-pos de VIH, da forma representada no quadro 3.

Quadro 3 – Subtipos VIH das duas amostras

Subtipo VIH Grupo 3TC Controlo

b 10 (45.5%) 16 (53.3%)

g 9 (40.9%) 12 (40.0%)

c 3 (13.6%) 1 (3.3%)

d 0 (0.0%) 1 (3.3%)

As diversas mutações encontradas nos genes da transcriptase reversa foram agrupadas da seguinte forma:

Mutações de análogos da timidina (TAM)

M41LD67NK70RL210WT215Y/FK219Q

Outras mutações de resistência aos INTR

D44EK65RT69D/NL74VV118I

Mutações de resistência aos INNTR

L100IK103N/TV106A/I/MY188C/H/LG190A/S

As mutações do gene da protease foram tratadas como um grupo único.

Entre os dois grupos não foram encontradas diferenças com significado estatístico em nenhum dos conjuntos de mutações, como se pode conferir no quadro 4. Apenas dois doentes não eram por-tadores de nenhuma mutação além da M184V. Em contrapartida, 41 doentes apresentavam pelo menos uma mutação de cada um dos genes simultanea-mente (sempre excluindo a substituição M184V). Foi encontrada significância estatística na relação entre o tipo de terapêutica a que os doentes tinham estado sujeitos no passado e o tipo de mutações de que eram portadores. Com efeito, ter sido exposto a um inibidor não nucleosídeo da transcriptase reversa ofereceu um risco relativo de 5,1 para ter uma mutação que confira resistência a essa classe. De igual modo o risco relativo para que emirja uma mutação da protease em quem fez um esquema com inibidores da protease foi de 10,7.

Figura 3 – Duração da infecção VIH

0

2

4

6

8

10

12

Duração da Infecção VIH

1-2anos

2-3anos

3-4anos

4-6anos

6-8anos

8-12anos

>12anos

Controlo

3TC

0

2

4

6

8

10

12

Tempo de terapêutica prévia

< 1 ano 1-2 anos 2-3 anos 3-4 anos 4-5 anos > 5 anos

Controlo3TC

Figura 4 – Tempo de terapêutica prévia

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 173

Comparação entre os dois grupos

Após o processo de recrutamento, no caso do grupo 3TC, a terapêutica antirretrovírica proposta aos doentes foi a que se regista no quadro 5, onde é comparada com a terapêutica instituída ao grupo controlo (lamivudina e emtricitabina não contabi-lizadas).

Quadro 5 – Terapêuticas dos dois grupos durante o estudo, por classes de antirretrovíricos, lamivudina e emtricitabina excluídas.

Tipo de terapêutica (por classe) 3TC Controlo

INTR + INNTR 7 7

INTR + IP 12 13

INTR + INNTR + IP 1 3

INNTR + IP 0 1

IP 2 6

No quadro 6 estão sumarizados os valores ana-líticos encontrados para ambos os grupos no final do período do estudo. Em nenhuma variável a diferença assumiu significância estatística, excepto na variação da ALT. Neste parâmetro assistiu-se a uma variação negativa média de 14,4 U/l no grupo 3TC enquanto no grupo de controlo, em média, a ALT subiu 12,1 U/l (p<0.05).

Quadro 6 – Valores analíticos finais

Variável3TC

(n±DP)Controlo(n±DP)

p

Hemoglobina (g/dl) 14,2±1,0 14,2±1,5 0.967

Variação da hemoglobina 0,1±1,4 0.3±1,4 0.599

Leucócitos (n/mm3) 6575±2902 5733±1721 0.197

Variação de leucócitos 1338±2429 65±2502 0.072

Plaquetas (n.103/mm3) 192±73,7 195±72,2 0.903

Variação de plaquetas 21±46 21±44 0.998

ALT (U/l) 30,6±14,2 54,5±68,8 0.115

Variação de ALT -14,3±31,3 12,1±50,4 <0.05

No registo de toxicidades com probabilidade razo-ável de serem atribuíveis à terapêutica antirretrovírica, encontraram-se elevações das transaminases apenas no grupo controlo (cinco doentes com subida entre duas vezes e meia e dez vezes o limite superior da normalidade). Trombocitopenia foi o único outro evento encontrado, num doente do grupo 3TC e em dois do grupo controlo.

Às 36 semanas, 59.1% dos doentes do grupo 3TC estavam em supressão vírica completa contra 56.7% do grupo controlo, uma diferença sem significado estatístico.

Foram registadas apenas duas intercorrências oportunistas, uma em cada grupo. No grupo 3TC, a um doente foi diagnosticado um linfoma não- -Hodgkin e no grupo controlo foi diagnosticada uma tuberculose pulmonar.

A comparação da resposta imunológica e virológica entre os dois grupos está sintetizada no quadro 7. Não se verificaram diferenças com significado estatístico entre os dois grupos.

Quadro 7 – Respostas imunológica e virológica compara-das

Variável 3TC Controlo p

Células CD4 finais

(n/mm3±DP) 372.7±198 314.4±179 0.273

Variação na contagem de

células CD4 60.3±149 60.6±126 0.993

Cargas víricas finais

(cópias/ml) 750±1432 3250±9147 0.211

Variação da carga vírica -63206±141737 -33864±89974 0.366

Carga vírica (log10) 1.27±1.51 1.40±1.66 0.776

Variação da carga vírica (log10)

-2.55±1.48 -2.43±1.85 0.801

Quadro 4 – Mutações encontradas no recrutamento (NS – não significativo)

Grupo de mutações Nº3TC

n (%)Controlo

n (%)Χ2

Mutações de análogos da timidina (TAMs)

0123456

7 (31.8)2 (9.1)4 (18.2)2 (9.1)5 (22.7)1 (4.5)1 (4.5)

13 (43.3)6 (20.0)6 (20.0)2 (6.7)3 (10.0)

00

0,469 (NS)

Outras mutações de resistência aos INTR(excepto M184V)

012

10 (45.5)10 (45.5)2 (9.1)

23 (76.7)6 (20.0)1 (3.3)

0,069 (NS)

Mutações de resistência aos INNTR

01234

11 (50.0)2 (9.1)7 (31.8)1 (4.5)1 (4.5)

18 (60.0)6 (20.0)4 (13.3)2 (6.7)

0

0,317 (NS)

Mutações da protease

01234567

2 (9.1)1 (4.5)4 (18.2)1 (4.5)1 (4.5)5 (22.7)5 (22.7)3 (13.6)

3 (10.0)1 (3.3)7 (23.3)4 (13.3)4 (13.3)3 10.0)7 (23.3)1 (3.3)

0,618 (NS)

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2174

Procedeu-se à estratificação dos doentes por valor final de carga vírica (sendo o cut-off de 1000 cópias/ml) e de contagem de linfócitos CD4 (cut-off de 350/mm3) e aplicou-se o teste do qui-quadrado. Mais uma vez as diferenças não se revelaram estatisticamente significativas, como se pode verificar nos quadros 8 e 9.

Quadro 8 – Diferenças entre os dois grupos por classe de CD4

Grupo

CD4 finais

χ2<350/mm3

n (%)<350/mm3

n (%)

3TC 12 (54.5%) 10 (45.5%) 0.253

Controlo 21 (70%) 9 (30%)

Quadro 9 – Diferenças entre os dois grupos por classe de carga vírica

Grupo

Carga vírica final

χ2<1000 cópias/mln (%)

<1000 cópias/mln (%)

3TC 18 (81.8%) 4 (18.2%) 0.653

Controlo 23 (76.7%) 7 (23.3%)

Comparação entre subgrupos

Não encontrando diferenças significativas na amostra global, procedeu-se à divisão desta em subgrupos, para estudo da influência da estratégia de manter lamivudina/emtricitabina em doentes com a mutação M184V, reunidos pelas seguintes especificidades:

•SubtipoBdoVIH/subtiposnãoB•Presençademutações associadas a análogos

da timidina (igual ou inferior a três/superior a três)

•Número total demutações da transcriptasereversa (igual ou inferior a quatro/superior a quatro)

•Cargavíricainicial,estratificadaporclasses(infe-rior ou igual a 1000, entre 1001 e 10000, entre 10001 e 100000, superior a 100000 cópias/ml)

•ContageminicialdelinfócitosCD4,estratificadapor classes (inferior a 200, entre 200 e 349, superior ou igual a 350/mm3)

Para o primeiro subgrupo considerado, dividida a amostra pelo subtipo de vírus infectante (b e não-b), encontramos um número semelhante de doentes infectados pelo subtipo b do VIH com contagens

de CD4 superiores a 350/mm3 no final do estudo, respectivamente 37.5% para o grupo controlo e 40% para o grupo 3TC. Já para aqueles infectados por subtipos não-b (g, c ou d), notaram-se 50% de doentes com valores de CD4 finais acima de 350/mm3 no grupo 3TC contra 21.4% no grupo con-trolo (quadro 10). Esta diferença não é, no entanto, estatisticamente significativa.

Quadro 10 – Comparação por subtipo VIH quanto ao número final de linfócitos CD4

CD4 finaisGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

subtipo b<350 10 (62.5%) 6 (60%)

0.899>350 6 (37.5%) 4 (40%)

subtipos não-b<350 11 (78.6%) 6 (50%)

0.127>350 3 (21.4%) 6 (50%)

Estudando o valor final da carga vírica nos mesmos subgrupos de doentes, verificou-se que, para o subtipo b, a maioria dos doentes dos dois grupos atingiram cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml (93.4% no grupo controlo e 80% no grupo 3TC). Para os doentes portadores de VIH dos subtipos não-b, 83.3% no grupo 3TC conseguiu cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml, contra 57.1% no grupo controlo. Mais uma vez, não há significado estatístico nesta diferença (quadro 11).

Quadro 11 – Comparação por subtipo VIH quanto à carga vírica (CV) final

CV finalGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

subtipo b<1000 15 (93.4%) 8 (80%)

0.286>1000 1 (6.6%) 2 (20%)

subtipos não-b<1000 8 (57.1%) 10 (83.3%)

0.149>1000 6 (42.9%) 2 (16.7%)

Dividiu-se a amostra em dois subgrupos, o pri-meiro com um número de mutações associadas a análogos da timidina igual ou inferior a três e o segundocommaisdetrêsdessasmutações.Quantoà contagem final de células CD4, 29.6 % dos doentes do grupo controlo com um número de TAM inferior ou igual a três terminaram o estudo com mais de 350 linfócitos CD4 por mm3, percentagem semelhante à encontrada para o grupo 3TC (33.3%).

Já no subgrupo de doentes infectados por vírus albergando mais de 3 TAM, as percentagens encontradas divergem, sendo 71.4% os doentes

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 175

que terminaram com mais de 350 linfócitos CD4 por mm3 no grupo 3TC e 33.3% no grupo controlo (quadro 12).

Quadro 12 – Comparação pela quantidade de TAM quanto ao número final de linfócitos CD4

CD4 finaisGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

TAM≤3<350 19 (70.4%) 10 (66.7%)

0.804>350 8 (29.6%) 5 (33.3%)

TAM>3<350 2 (66.7%) 2 (28.6%)

0.260>350 1 (33.3%) 5 (71.4%)

Uma diferença sem significado estatístico, no entanto. Os mesmos subgrupos, quando compara-dos quanto à carga vírica final, comportaram-se do seguinte modo: 74.1% no grupo controlo e 93.3% n grupo 3TC acabaram com cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml quando eram portadores de três ou menos TAM; 100% no grupo controlo e 57.1% no grupo 3TC fizeram o mesmo sendo portadores de mais de três TAM (quadro 13).

Quadro 13 – Comparação pela quantidade de TAM quanto à carga vírica final

CV finalGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

TAM≤3<1000 20 (74.1%) 14 (93.3%)

0.128>1000 7 (25.9%) 1 (6.7%)

TAM>3<1000 3 (100%) 4 (57.1%)

0.175>1000 0 (0%) 3 (42.9%)

Em ambos os casos, os testes aproximaram-se do valor de significância estatística sem contudo o atingir.

Outra divisão foi efectuada a partir do número total de mutações da transcriptase reversa, tendo-se optado por um cut-off de quatro.

Nos dois subgrupos, quanto à contagem final de linfócitos CD4, não foram encontradas diferenças com significado estatístico. De qualquer modo, mais doentes do grupo 3TC, quer com mais de quatro mutações da transcriptase reversa quer com menos, terminaram com uma contagem superior a 350 CD4/mm3 (quadro 14).Quando os dois subgrupos foram comparados

quanto à carga vírica final, todos os doentes do grupo 3TC atingiram valores inferiores a 1000 cópias/ml quando tinham um número igual ou inferior a quatro mutações contra 68.2% dos doentes do

grupo controlo (p=0.054). Se estivessem presentes mais de quatro mutações da transcriptase reversa, passou-se o contrário: todos os doentes do grupo controlo terminaram com menos de 1000 cópias/ml contra 69.2% do grupo 3TC, como se pode verificar no quadro 15 (p=0.081)

Quadro 15 – Comparação pela quantidade de mutações da transcriptase reversa quanto à carga vírica final

CV finalGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

Mutações TR≤4<1000 15 (68.2%) 9 (100%)

0.054>1000 7 (31.8%) 0 (0%)

Mutações TR>4<1000 8 (100%) 9 (69.2%)

0.081>1000 0 (0%) 4 (30.8%)

Ao associar os doentes por classe de carga vírica inicial, o que se pode visualizar nos quadros 16 e 17, notou-se não haver diferenças significativas entre os dois grupos.

Quadro 16 – Comparação pela carga vírica inicial quanto ao número final de linfócitos CD4

CV inicial CD4 finaisGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

≤1000<350 3 (100%) 2 (66.7%)

0.273>350 0 (0%) 1 (33.3%)

1001-10000<350 10 (58.8%) 5 (41.7%)

0.362>350 7 (41.2%) 7 (58.3%)

10001-100000<350 5 (71.4%) 3 (100%)

0.301>350 2 (28.6%) 0 (0%)

>100000<350 3 (100%) 2 (50%)

0.147>350 0 (0%) 2 (50%)

De realçar, no entanto, que para cargas víricas elevadas (acima de 100000 cópias/ml) o grupo 3TC comporta-se melhor, atingindo em 50% dos casos mais de 350 linfócitos CD4 por mm3 contra nenhum caso no grupo controlo, embora se trate

Quadro 14 – Comparação pela quantidade de mutações da transcriptase reversa quanto ao número final de linfócitos CD4

CD4 finaisGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

Mutações TR≤4<350 16 (72.7%) 6 (66.7%)

0.736>350 6 (27.3%) 3 (33.3%)

Mutações TR>4<350 5 (62.5%) 6 (46.2%)

0.466>350 3 (37.5%) 7 (53.8%)

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2176

de uma amostra muito pequena nessa classe de carga vírica inicial.

A associação pela classe de linfócitos CD4 ini-ciais, representada nos quadros 18 e 19, também não revelou diferenças com significado estatístico entre os dois grupos, nem quanto à contagem de linfócitos CD4 no final do estudo nem quanto às cargas víricas finais.

Discussão

Sabe-se que, em Portugal, 85% dos doentes têm entre 20 e 49 anos (dados do Centro de Vigilância

Epidemiológica de Doenças Transmissíveis). Nos dois grupos do estudo praticamente não estão representados doentes com menos de 30 anos, provavelmente por força dos critérios de selecção, nomeadamente a necessidade de ter experiência prévia de toma de antirretrovíricos de tal forma que condicionasse falência terapêutica. Ambos os grupos deste estudo têm uma média etária perto dos 40 anos (44.7 anos no grupo 3TC e 39.9 anos no grupo controlo), sobreponível à média etária dos doentes inscritos na consulta específica para a infecção VIH do Hospital S. Marcos, que é de 40.1 anos.

Pelo mesmo motivo, a duração da infecção VIH nos dois grupos é superior a seis anos para mais de 80% dos doentes, não havendo nenhum infectado há menos de um ano, embora até aos três anos existissem três doentes no grupo 3TC e dois no grupo controlo.

Os doentes participantes neste estudo possuíam uma experiência de terapêutica antirretrovírica que variou entre os seis e os 153 meses, com a mediana nos quatro anos (48.5 meses). Com menos de um ano de terapêutica cumprida encontraram-se sete doentes, seis dos quais medicados com um esquema de dois inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa e um inibidor não nucleosídeo da transcriptase reversa. Conhecendo-se a baixa barreira genética desta última classe, este facto parece indiciar adesão pouco adequada, hipótese suportada pela ocorrência em todos os doentes menos um de pelo menos duas mutações de resistência aos INNTR.

Na avaliação inicial não se encontraram dife-renças com significado estatístico em nenhum dos parâmetros laboratoriais testados, com todos os p superiores a 0.3.

Inclusivamente, a média dos log10 de carga vírica determinados para cada grupo são praticamente coincidentes (3.83 e 3.84). Daqui se conclui que, no início do estudo, os dois grupos eram semelhantes quanto à demografia, tempo de infecção pelo VIH, tempo de exposição aos antirretrovíricos e estado imunológico e virológico.Quanto ao tipo de terapêutica prévia, pode-se

dizer que todos os doentes do grupo controlo foram medicados de acordo com as recomendações em vigor para terapêuticas de primeira linha: combina-ções de dois inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa e um inibidor da protease (em 60% dos casos) ou um inibidor não nucleosídeo da transcriptase reversa (em 40% dos casos).

O inibidor da protease mais utilizado foi o nelfi-navir, fruto da época em que iniciaram a terapêutica,

Quadro 17 – Comparação pela carga vírica inicial quanto à carga vírica final

CV inicial CV finalGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

≤1000<1000 2 (66.7%) 3 (100%)

0.273>1000 1 (33.3%) 0 (0%)

1001-10000<1000 12 (70.6%) 10 (83.3%)

0.430>1000 5 (29.4%) 2 (16.7%)

10001-100000 <1000 6 (85.7%) 2 (66.7%) 0.490

>1000 1 (14.3%) 1 (33.3%)

>100000 <1000 3 (100%) 3 (75%) 0.350

>1000 0 (0%) 1 (25%)

Quadro 18 – Comparação pela contagem de CD4 inicial quanto ao número final de linfócitos CD4

CD4 iniciais CD4 finaisGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

≤200<350 11 (91.7%) 7 (87.5%)

0.653>350 1 (8.3%) 1 (12.5%)

201-350<350 10 (83.3%) 4 (66.7%)

0.407>350 2 (16.7%) 2 (33.3%)

>350<350 0 (0%) 1 (12.5%)

0.571>350 6 (100%) 7 (87.5%)

Quadro 19 – Comparação pela contagem de CD4 inicial quanto à carga vírica final

CD4 iniciais CV finalGrupo a que pertence

χ2Controlo 3TC

≤200<1000 9 (75%) 7 (87.5%)

0.707>1000 3 (25%) 1 (12.5%)

201-350<1000 9 (75%) 5 (83.3%)

0.688>1000 3 (25%) 1 (16.7%)

>350<1000 5 (83.3%) 6 (75%)

0.494>1000 1 (16.7%) 2 (25%)

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 177

sendo raros os casos de IP potenciado com ritona-vir. Do lado do grupo 3TC, dois doentes estavam medicados com um esquema composto unicamente por inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa (abacavir, lamivudina e zidovudina), associação que também foi recomendada no início da década. Os restantes seguiram o esquema habitual de dois INTR associados a IP ou INNTR.

Neste estudo, 54.5% dos vírus do grupo 3TC e 46.7% dos vírus do grupo controlo não eram do tipo b. A grande maioria entre estes VIH não-b era do subtipo g, que representou cerca de 40% dos vírus de ambos os grupos. Isto está de acordo com aquilo que se pensa para a realidade portuguesa, diferente da americana e até da europeia ocidental, onde o subtipo b é predominante. Num estudo de Duque e colaboradores (21), o subtipo b representou 58.06% de todos os subtipos. As estirpes não-b representaram 30.10%, estando estas distribuídas pelos seguintes subtipos: subtipo g com 20.43%, subtipo c com 5.37%, subtipo d com 3.22% e subtipo f com 1.07%. Os subtipos não-b, predominantemente originários de África, foram sendo progressivamente introduzidos no país. Actualmente, no entanto, este tipo de infecções é adquirido em Portugal. As implicações da diversidade genética encontrada, em termos de diagnóstico, susceptibilidade à terapêu-tica antirretrovírica e prevalência de mutações de resistência, não são ainda totalmente conhecidas. Como os testes estão padronizados para o subtipo b, aquele que é maioritário nos países onde esses testes são desenvolvidos, a sua interpretação poderá ser distinta em localizações geográficas onde a população vírica seja diferente.

As mutações da transcriptase reversa encontra-das nos testes de genotipagem efectuados foram registadas apenas se fossem consideradas como associadas a resistência. As mutações de análogos da timidina foram tratadas à parte, dado o seu impacto na resistência do VIH ao AZT, d4T e ABC. Este tipo de mutações acumula-se progressivamente nos doentes expostos ao AZT ou ao d4T, desta maneira provocando níveis crescentes de resistên-cia. A presença da mutação M184V parece estar associada a um menor número de TAM e a sua ocorrência simultânea em doentes tratados condi-ciona aumento da susceptibilidade aos análogos da timidina (22).

Apenas as mutações major da protease, definidas como aquelas que codificam alterações da estrutura da enzima que inibem a ligação dos inibidores da protease (23), foram consideradas. Foram associadas

num só grupo, porque são independentes da história terapêutica de cada doente no tocante a inibidores da transcriptase reversa, dependendo apenas da exposição a inibidores da protease.

As terapêuticas propostas aos doentes de ambos os grupos foram baseadas no melhor julgamento possível, após obtenção de um teste genotípico. Como todos os doentes se encontravam em falência terapêutica, a opção mais frequente foi alterar de IP para INNTR e vice-versa, mantendo um núcleo de INTR. A estratificação pela terapêutica antirretrovírica prescrita aos doentes à entrada para o estudo não mostrou diferenças entre os vários esquemas utili-zados (INTR+IP, INTR+INNTR, IP+INNTR, só IP e as três classes simultaneamente – dados não exibidos) quanto à evolução imunológica ou virológica nas 36 semanas do estudo.

No final do período do estudo, os parâmetros analíticos avaliados e as respectivas variações não revelaram diferenças com significado estatístico, excepto na variação da ALT, com subida média de 12.1 U/l no grupo controlo e descida média de 14.3 U/l no grupo 3TC (p <0.05). Provavelmente, isto deve-se a um uso mais frequente de inibidores da protease no grupo controlo (77% dos doentes) que no grupo 3TC (68% dos doentes), sabendo-se que estes medicamentos encerram mais potencial de hepatotoxicidade.

No registo de toxicidades ocorridas, encontraram- -se subidas significativas das transaminases (acima de duas vezes e meia o limite superior do normal), exclusivamente no grupo controlo (em cinco doentes, com subida máxima de dez vezes o limite superior do normal num caso) e trombocitopenia em três doentes, dois do grupo controlo e um no grupo 3TC. Daqui se infere que a opção por manter lamivudina no esquema terapêutico não oferece nenhum risco em termos de toxicidade, sendo esta dependente dos outros fármacos que compõe o dito esquema. Isto está de acordo com o perfil favorável que a lamivudina exibe em termos de efeitos secundários.

Em ambos os grupos se conseguiram boas per-centagens de supressões víricas completas, 59.1% no grupo 3TC e 56.7% no grupo controlo, reflexo de estarmos perante doentes ainda com opções terapêuticas válidas, sendo poucos (cinco no grupo 3TC e dois no grupo controlo) os que estavam infectados com vírus resistentes a três classes simul-taneamente. O tempo de observação (36 semanas) também pode ter contribuído para este achado, já que é um intervalo curto, em que se pode admitir eficácia de biterapia.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2178

O facto de terem ocorrido apenas duas intercor-rências oportunistas, uma em cada grupo, também se prende com estes dados, aliados ao facto dos doentes estarem medicados, pelo menos teoricamente, com esquemas eficazes e seleccionados a partir dos perfis genotípicos dos vírus infectantes e apenas quatro e cinco doentes, respectivamente do grupo 3TC e do grupo controlo, terem iniciado o estudo com menos de 100 linfócitos CD4/mm3.

Na comparação entre os dois grupos, os parâmetros mais relevantes seriam sempre o estado final imuno-lógico e virológico, ou seja, a contagem de células CD4 e a carga vírica e respectivas variações.

Da consulta dos resultados ressalta que não se encontraram diferenças com significado estatístico entre os dois grupos, embora se verifique uma tendência favorável ao grupo 3TC na carga vírica final, na variação da carga vírica e na contagem de linfócitos CD4, embora quanto a este último critério, a variação de CD4 tenha sido praticamente sobre-ponível. Eventualmente, com uma amostra maior, essa tendência passaria a ter significado estatístico, sobretudo na resposta virológica, uma vez que a variação da contagem de células CD4 é igual nos dois grupos. No grupo 3TC, a média inicial é ligei-ramente superior quanto a este parâmetro, pelo que, logicamente, a média final é também superior. Como a resposta virológica é consistentemente melhor não só no grupo 3TC mas, como veremos adiante, também nos subgrupos formados a partir desse grupo, pode-se considerar que a diferença entre tendência e significado estatístico prende-se com a falta de poder estatístico provocado pelo reduzido número de doentes em cada grupo e subgrupo.

Ao estratificar os doentes, tanto pela carga vírica final como pela contagem de linfócitos CD4, optou- -se pelos valores que pareciam mais lógicos: 1000 cópias/ml para a carga vírica, valor adoptado na definição de falência terapêutica e 350 CD4/mm3, critério actualmente aceite para recomendar início de terapêuticaantirretrovírica.Quandosecompararamas classes assim obtidas, em ambas a situações (CD4 e carga vírica), a tendência é favorável ao grupo 3TC mas sem atingir significado estatístico. Com efeito, 45.5 % dos doentes terminaram o estudo com contagens de CD4 acima de 350/mm3 contra 30% do grupo controlo. Ao avaliar a carga vírica, verificou-se que 81.8% dos doentes do grupo 3TC tinham cargas inferiores a 1000 cópias/ml ao completar o estudo contra 76.7% do grupo controlo.

Com os resultados analisados até aqui, apenas podemos concluir pela não inferioridade da estratégia

de adição de lamivudina aos esquemas antirretrovíri-cos desenhados para doentes em falência terapêutica infectados por vírus portadores da mutação M184V, com a intenção de manter um vírus teoricamente menos agressivo e com menor capacidade de repli-cação.

Não se tendo concluído pela superioridade da manutenção de lamivudina na amostra geral, procurou-se determinar se haveria vantagem nessa estratégia em algum subgrupo de doentes. Os doentes de ambos os grupos foram divididos em subgrupos de acordo com os seguintes critérios:

a)QuantoaosubtipodeVIH(bounão-b)b)Quantoaonúmerodemutaçõesdeanálogos

da timidina (cut-off igual a três)c)Quantoaonúmerototaldemutaçõesdatrans-

criptase reversa, excluindo a M184V (cut-off igual a quatro)

d)Quantoàcargavíricainiciale)QuantoàcontageminicialdelinfócitosCD4

Quandosesubdividiramecompararamosdoisgrupos do estudo pelo subtipo do VIH, b ou não- -b, a resposta imunológica e virológica não foram exactamente iguais.

No subtipo b verificaram-se excelentes respostas virológicas, com 93.4% dos doentes do grupo con-trolo e 80% dos doentes do grupo 3TC a terminarem o estudo com cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml (p=0.286). Se o VIH fosse de um subtipo não-b (g em 81% dos casos), a percentagem de doentes com cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml desceu para 57.1% no grupo controlo, contra a manutenção da proporção (83.3%) no grupo 3TC. Na figura 5, numa escala logarítmica, visualiza-se a diferença entre estes subgrupos.

Embora não estatisticamente significativa (p=0.149), a diferença é suficientemente acentuada para merecer reflexão: a estratégia de manter a lamivudina em

Figura 5 – Diferenças entre as cargas víricas finais por subtipo de VIH

1016N =

Carga vírica às 36 semanas (subtipo b)

3TCControlo

Log

carg

a ví

rica

5

4

3

2

1

0

-11214N =

Carga vírica às 36 semanas (subtipos não-b)

3TCControlo

Log

carg

a ví

rica

5

4

3

2

1

0

-1

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 179

doentes infectados por vírus portadores da mutação M184V poderá ser mais eficaz se o VIH não for do subtipo b. A favor desta hipótese, há os dados referentes à resposta imunológica dentro dos mesmos subgrupos. Enquanto para o subtipo b não houve diferença (37.5% dos doentes do grupo controlo com contagem de linfócitos CD4 acima de 350/mm3 contra 40% no grupo 3TC), nos doentes infectados com VIH dos outros subtipos essa percentagem subiu para 50% nos doentes do grupo 3TC e desceu para apenas 21.4% nos doentes do grupo controlo. Na figura 6, é visualizável esta diferença, mostrando-se o resultado da contagem de linfócitos CD4 no fim do estudo.

Também aqui esta diferença não atingiu significado estatístico (p=0.127), mas aproximou-se de modo a sugeri-lo. Pensamos que o tamanho reduzido da amostra não permitiu a força necessária para poder comprovar esta hipótese.

O cut-off que dividiu os doentes em relação ao número de mutações de análogos da timidina foi estabelecido em três porque alguns autores demons-traram que a associação desse número de TAM com a mutação M184V confere resistência alargada e cruzada à classe dos inibidores nucleosídeos (24-26).

A análise estatística revelou uma tendência para vantagem do grupo 3TC no tocante à contagem final de linfócitos CD4 se os doentes estivessem

infectados com VIH portadores de um número de TAM superior a três, conforme a figura 7.

Já no que diz respeito à carga vírica com que os doentes atingiram as 36 semanas, um maior número de TAM traduziu-se tendencialmente em desvantagem para quem fez parte do grupo 3TC (figura 8).

Em ambos os casos, as diferenças não assumiram significado estatístico (respectivamente p=0.260 e 0.175). Se o número presente de TAM fosse igual ou inferior a três, o comportamento quanto à contagem final de CD4 era de equivalência e, quanto à carga vírica final, era de vantagem para o grupo 3TC (93.3% dos doentes com cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml contra 74.1% do grupo controlo, p=0.128)

Se considerarmos as mutações da transcriptase reversa como um grupo só, independentemente de serem de análogos da timidina ou não, os resultados obtidos são semelhantes, ao aplicar um cut-off de quatro.

Conforme se pode verificar na figura 9, existe uma ligeira tendência a que o grupo 3TC alcance maior

Figura 6 – Diferença entre as contagens de células CD4 por subtipos de VIH

1214N =

Contagem final de células CD4+ (subtipos não-b)

3TCControlo

CD

4/m

l

1000

800

600

400

200

01016N =

Contagem final de células CD4+ (subtipo b)

3TCControlo

CD

4/m

l

1000

800

600

400

200

0

Figura 7 – Comparação entre as contagens finais de CD4 para doentes quanto ao número de TAM (cut-off =3)

1527N =

Contagem de células CD4 às 36 semanas

3TCControlo

CD4/

ml

800

700

600

500

400

300

200

100

073N =

Contagem de Células CD4 às 36 semanas

3TCControlo

CD4/

ml

900

800

700

600

500

400

300

200

100

0

TAM 3 TAM>3

Figura 8 – Comparação entre as cargas víricas finais (escala logarítmica) para doentes quanto ao número de TAM (cut-off=3)

73N =

TAM maior ou igual a 3

3TCControlo

Log

garg

a ví

rica

fin

al

4

3

2

1

01527N =

TAM menor que 3

3TCControlo

Log

carg

a ví

rica

fin

al

5

4

3

2

1

0

TAM 3 TAM>3

Figura 9 – Comparação entre as contagens finais de CD4 para doentes com menos ou mais de quatro mutações da transcriptase reversa

922N =

Menos que 4 mutações da TR

3TCControlo

CD

4/m

l, finai

s

1000

900

800

700

600

500

400

300

200

100

0138N =

Mais de 4 mutações da TR

3TCControlo

CD

4/m

l, finai

s

1000

900

800

700

600

500

400

300

200

100

0

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2180

VIH (com a eventual excepção da associação M41L/L210W/T215F (28)), quanto mais elevado for o seu número mais incompleta é essa susceptibilidade. O VIH com M184V também tem susceptibilidade aumentada ao tenofovir comparativamente ao vírus selvagem, resultando em maior eficácia virológica (12).

Neste estudo, os doentes que tinham uma ou duas TAM e iniciaram AZT, d4T ou TDF como parte do seu regime antirretrovírico, alcançaram cargas víricas inferiores a 1000 cópias/ml em 76.9% dos casos, o que só ocorreu em 41.7% das situações em que os doentes estavam infectados com VIH portadores de três ou mais TAM.

O resultado final, imunológico ou virológico, parece ser independente da carga vírica e da contagem de linfócitos CD4 iniciais, quando se comparam os dois grupos. Com efeito, em nenhum dos escalões, quer de carga vírica, quer de número de linfócitos CD4, se verificaram diferenças estatis-ticamente significativas no final das 36 semanas do estudo, não permitindo emitir uma recomendação para a continuação do uso de lamivudina ou emtri-citabina baseada nesses parâmetros.

A utilidade destes dois antirretrovíricos na presença da mutação M184V poderá assim estar limitada aos doentes a quem só se pode oferecer regimes tera-pêuticos incompletamente supressores, por questões de tolerabilidade ou de ausência de opções por resistência. Não esquecer que um regime de segunda linha deve ter como objectivo alcançar a supressão completa da carga vírica.

limitações e enviesamentos

Os cálculos efectuados para que o tamanho da amostra permitisse poder suficiente para as conclu-sões serem significativas apontavam para 25 a 30 doentes em cada grupo.

Conquanto nos grupos principais esse número fosse atingido, na análise por subgrupos trabalhou-se com amostras mais reduzidas. Como consequência, nesta discussão e nas conclusões, referem-se apenas tendências que, com amostras mais numerosas, pode-riam eventualmente assumir significado estatístico.

Algumas variáveis confundidoras não puderam ser controladas completamente, sendo o maior exemplo a adesão dos doentes à terapêutica. Esta foi ava-liada, no caso do grupo 3TC, por entrevista directa durante a consulta e, no caso do grupo controlo, por dedução a partir da consulta do processo clínico. Dois doentes foram retirados da selecção por não

número de linfócitos CD4 quando estão presentes mais de quatro mutações da transcriptase reversa.

Na figura 10, que se refere à carga vírica final, a tendência inverte-se: quando o número de muta-ções presente é igual ou inferior a quatro, o benefício é para o grupo 3TC cuja média de 191 cópias/ml (variação entre 0 e 948) é inferior às 4423 cópias/ml (variação entre 0 e 40562) do grupo controlo. Aqui, obtém-se significado estatístico na diferença (p=0.05).

Quando o número demutações é superior aquatro, a vantagem tende para o grupo controlo, com uma média de 24 cópias/ml (variação entre 0 e 118), inferior à média de 1137 cópias/ml (variação entre 0 e 4344) do grupo 3TC (p=0.081).

Independentemente do número de mutações da transcriptase reversa, parece registar-se uma tendência para haver vantagem imunológica para o grupo 3TC. Verifica-se uma tendência para vantagem virológica no grupo 3TC apenas em presença de um número moderado de mutações (inferior a três TAM ou a quatro mutações da transcriptase reversa no total, além da M184V). Se esse número de mutações for ultrapassado, o beneficiado é o grupo controlo.

Como explicar o comportamento destes subgru-pos, formados a partir do número de mutações da transcriptase reversa, quer sejam de análogos da timidina, quer sejam consideradas globalmente?

Sabe-se que as TAM conferem resistência por permitir a remoção dos inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa através de pirofosforólise. A mutação M184V da transcriptase reversa compro-mete essa remoção, reduzindo a resistência induzida por aquelas mutações. Assim, o VIH portador de M184V é mais susceptível aos análogos da timidina (AZT e d4T) se não tiver TAM e recupera alguma da susceptibilidade perdida se as tiver (27). Como as TAM não prejudicam a capacidade replicativa do

Figura 10 – Comparação entre as cargas víricas finais (escala logarítmica) para doentes com menos ou mais de quatro mutações da transcriptase reversa

922N =

Menos que 4 mutações da TR

3TCControlo

Log

carg

a ví

rica

fin

al

5

4

3

2

1

0138N =

Mais de 4 mutações da TR

3TCControlo

Log

carg

a ví

rica

fin

al

4

3

2

1

0

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 181

reversa (por exemplo K65R ou L74V) (24-26) não pode ser testada porque as representações de cada combinação eram reduzidas, da ordem dos dois ou três doentes.

Concluindo, a generalização dos resultados do presente estudo é limitada por várias razões. Em primeiro lugar, pelo tamanho da amostra. Sem dúvida que o poder estatístico é reduzido quando se faz a análise por subgrupos, já que falamos em amostras com pouco mais de uma dezena de indivíduos.

Em segundo lugar, pela heterogeneidade dos perfis de mutações presentes nos doentes. Não foi possível controlar o impacto individual das diferentes mutações, nomeadamente das mutações de análogos da timidina, sobre a capacidade replicativa do vírus, podendo então especular-se sobre a possibilidade de todos os resultados encontrados serem ou não devi-dos apenas à manutenção da mutação M184V.

Perspectivas futuras

O estudo COLATE (18) não provou utilidade para a lamivudina em doentes infectados com vírus portadores da mutação M184V porque procurou demonstrar que ela seria benéfica como parte de um regime de segunda ou terceira linha, tentando atingir supressão virológica completa, mas em doentes com outras opções terapêuticas.

De qualquer modo, chegamos a resultados dife-rentes do estudo COLATE, que concluiu que a inclusão de lamivudina num novo esquema após a falência de um regime terapêutico que contivesse lamivudina não proporcionava benefício virológico adicional. Em ambos os casos, a maior parte dos doentes atingiram a supressão vírica completa, mas é de realçar que no estudo COLATE foram fornecidos três ou mais antirretrovíricos “activos” aos doentes. É muito provável que este facto tenha obscurecido um potencial benefício da continuação da terapêutica com lamivudina.

Provavelmente, o efeito antirretrovírico da lami-vudina manter-se-á independentemente da toma de um análogo da timidina ou da presença de TAM (29) o que significa que não será precisa a existência de análogos da timidina, como o AZT ou o d4T, no esquema antirretrovírico dos doentes para obter os benefícios da manutenção da lamivudina em presença da mutação M184V.

Esta estratégia tem, no entanto, a vantagem suple-mentar de preservar ou aumentar a susceptibilidade do VIH ao AZT e encerra o potencial de comprometer a capacidade replicativa do vírus. Pensamos que a

garantirem adesão satisfatória, mas este tipo de aferição é sempre subjectiva.

Outra variável com potencial confundidor diz respeito à terapêutica antirretrovírica, quer prévia quer iniciada após recrutamento para o estudo. A sua heterogeneidade poderia acarretar vieses de interpretação dos resultados, sobretudo pela influência do restante esquema terapêutico (além da lamivudina/emtricitabina) na resposta virológica.

A estratificação e análise por tipo de esquema antirretrovírico não revelaram diferenças entre os dois grupos no presente estudo. Mas há um outro ponto relativo à terapêutica que merece reflexão: é possível que o facto de os doentes fazerem três drogas activas (as escolhidas pelo teste de genoti-pagem) obscureça o potencial benefício da adição de 3TC ou FTC. Para esclarecer isto, seria necessário prolongar a duração do estudo por mais tempo, o que poderia diminuir este efeito.

Em alguns estudos a exposição prévia a abacavir ou didanosina foi considerada critério de exclusão para o recrutamento de doentes, pela possibilidade de qualquer um destes inibidores nucleosídeos da transcriptase reversa poder seleccionar a mutação M184V (29). Neste, não achamos pertinente impor tal critério, uma vez que o objectivo consistia em avaliar se a manutenção de uma população vírica portadora da mutação M184V conferia um benefício explorável para o tratamento da infecção VIH, através da pressão selectiva exercida pela toma de lamivu-dina ou emtricitabina. Isto independentemente do modo como a mutação em questão tivesse emergido, havendo até a possibilidade de haver transmissão de vírus já mutado a doentes nunca expostos a antirretrovíricos. Neste estudo, no entanto, todos os 52 doentes estiveram medicados previamente com lamivudina ou emtricitabina.

Um viés a considerar seria o causado pela possi-bilidade de manter a M184V nos doentes do grupo controlo que fossem medicados com didanosina e/ouabacavir.Quantoàdidanosina,foidemonstradoque, só por si, este fármaco não consegue manter amutaçãoM184V (30).Quanto ao abacavir, elefoi prescrito a dois doentes do grupo controlo e em nenhum foi possível avaliar se a substituição M184V persistia às 36 semanas, uma vez que ambos possuíam cargas víricas indetectáveis nessa altura.Quantoàinfluênciadeoutrasmutaçõesdogenoma

do VIH na sua capacidade replicativa, as combina-ções de M184V com outras mutações específicas que se sabe conferirem resistências cruzadas dentro da classe dos inibidores nucleosídeos da transcriptase

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2182

Conclusões gerais

A epidemia VIH/SIDA é um problema global. Atinge as diferentes regiões de forma desigual, praticamente uma epidemia a duas velocidades, mas continua em expansão a nível planetário. Em todas as regiões definidas pela OMS houve crescimento do número de infecções.

A terapêutica actualmente existente é potente e tem grande eficácia quando usada em combinação mas não erradica o vírus. Nas regiões onde ela é comportável, emergiram problemas graves, quanto a efeitos laterais e toxicidades e quanto ao surgimento de resistências. Como consequência destes dois factores e mesmo contando com as novas classes de antirretrovíricos em introdução actualmente, haverá sempre doentes a quem não poderemos oferecer senão terapêuticas de resgate impossibilitadas de atingir supressão completa da replicação vírica.

A incapacidade de atingir o objectivo da supres-são completa da replicação vírica é relativamente comum na prática clínica (pode atingir uma taxa de 40 a 70%). Em casos seleccionados é preferível manter uma terapêutica incompletamente supressora que suspendê-la totalmente, o que provocaria uma deterioração imunológica rápida e um aumento da carga vírica, aumento esse sobretudo à custa de estirpes selvagens, com mais capacidade replicativa e logo mais potencial patogénico.

Os testes de resistências são um meio auxiliar e um alicerce importantes para decisões quanto às terapêuticas a prescrever, mas a determinação do genótipo do vírus não tem correspondência exacta com a sua capacidade replicativa e patogénica, sobretudo em VIH de subtipos não-b.

Para a lamivudina, em associação com outros antirretrovíricos, está demonstrada uma diminuição da morbilidade e mortalidade relacionadas com a infecção VIH/SIDA. O seu benefício parece estender- -se mesmo aos vírus portadores da mutação M184V, a qual lhe confere resistência de alto nível.

A mutação M184V tem as características que a tornam ideal para o estudo de um potencial benefício clínico, imunológico e virológico obtido com a manu-tenção em esquemas terapêuticos de antirretrovíricos aos quais o VIH tem susceptibilidade diminuída, pela rapidez e consistência com que esta mutação é seleccionada pela exposição à lamivudina em doentes com supressão vírica incompleta.

A hipótese colocada neste trabalho foi a de que a adição de lamivudina (ou emtricitabina) em infecções causadas por VIH portadores da substituição M184V

inclusão de lamivudina em esquemas de segunda linha ou superiores será de encorajar, desde que cumpridas algumas premissas e salvaguardada a impossibilidade de conseguir uma supressão vírica completa. Desde logo, porque tem a capacidade de evitar monoterapia com inibidores da protease ou inibidores não nucleosídeos da transcriptase reversa, dada a sua actividade antirretrovírica residual. Este dado foi observado inicialmente em estudos de monoterapia (19) e depois em estudos de terapêutica tripla. Por exemplo, o estudo Trilege mostrou que a retirada da lamivudina do esquema terapêutico dos doentes conduzia a uma subida da carga vírica mais acentuada que a verificada nos doentes que mantiveram 3TC (31).

Já os estudos AVANTI, 2 e 3, demonstraram que a presença de mutações relacionadas com a resis-tência à zidovudina, na ausência da M184V, estava relacionada com um efeito negativo na supressão da carga vírica (32).

O potencial benefício da manutenção da mutação M184V em doentes muito experimentados quanto a antirretrovíricos ainda é tema de discussão, mas esta estratégia torna-se ainda mais atractiva se recordarmos que a lamivudina e a emtricitabina não seleccionam outras mutações e que há escassez de novos inibi-dores nucleosídeos em desenvolvimento.

A lamivudina (e a emtricitabina) poderão então ser úteis, como Castagna (19) e Campbell (29) con-cluíram, como parte de regimes incompletamente supressores por falta de outras opções, em subgrupos de doentes definidos.

Serão necessários mais estudos prospectivos, com outra força estatística, tanto pelo tamanho da amostra como pela duração em tempo, preferencialmente randomizados e controlados, para definir correcta-mente esses subgrupos.

De entre esses subgrupos, destacam-se as associa-ções de mutações da transcriptase reversa capazes de comprometer significativamente a capacidade replicativa do VIH, como a associação entre as mutações M184V e K65R (33).

De qualquer modo, nunca é demais recordar que a lamivudina ou qualquer outro antirretrovírico nunca devem ser deliberadamente utilizados para seleccionar esta ou aquela mutação. Devem sem-pre ser empregues para o seu propósito original: supressão da replicação vírica.

Impacto da selecção e manutenção da mutação M184V na resposta ao tratamento antirretrovírico 183

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Concluiu-se que:•A estratégia de adição de lamivudina ou emtrici-

tabina aos esquemas antirretrovíricos desenhados para doentes em falência terapêutica infectados por vírus portadores da mutação M184V não é inferior à prática habitual de suspensão.

•Não há toxicidade acrescentada pormanter3TC ou FTC.

•Da análise por subgrupos, verificou-se queem doentes infectados por VIH de subtipos não-b há tendência para benefício imunológico e virológico com a manutenção de 3TC ou FTC.

•Verifica-se tambémuma tendência para van-tagem virológica no grupo 3TC mas apenas em presença de um número moderado de mutações (igual ou inferior a três TAM ou a quatro mutações da transcriptase reversa no total, além da M184V).

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Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 185-190

Abstract

Since the end of the xx century, Neuroethics emerged as a new field of interdisciplinary research, with the purpose to reflect on the ethical challenges brought by neuroscientific and neurotechnological latest advances. This article aims to present the main key philosophical questions arising from neuroethics and tries to show how they can be unified in the broad philosophical problem of personal identity. In order to sustain it, this article has three core ideas:1) both the brain and the mind are considered as the birth place of personal identity, as all brain medical manipulation may affect the mind’s nature and content, therefore, it may also affect personal identity; 2) moreover, direct and medical brain manipulation puts into a new perspective the philosophical issue of human freedom and responsibility; 3) finally, since disease may disrupt personal identity, it also raises issues regarding the ethics of physician-patient relationships.

Keywords: neuroethics, philosophy, neurosciences, technology, personal identity, brain, mind.

Resumo

Nos finais do século xx, a Neuroética surgiu como um novo domínio de investigação interdisciplinar, com vista a reflectir sobre os desafios éticos que os avanços neurocientíficos e neurotecnológicos mais recentes vieram colocar. O presente artigo tem como objectivo apresentar as principais questões filosóficas decorrentes da neuroética e mostrar como podem ser subsumidas no amplo problema filosófico da identidade pessoal. Este artigo procura desenvolver esta perspectiva a partir de três ideias centrais: 1) o cérebro e a mente podem ser considerados a origem da identidade pessoal; como toda a intervenção cerebral pode afectar a natureza e o conteúdo da mente, segue-se que pode alterar a identidade pessoal; 2) por seu turno, a manipulação médica e directa do cérebro coloca, sob uma nova perspectiva, o problema filosófico da liberdade e responsabilidade humana; 3) finalmente, como a doença é factor de desestabilização da identidade pessoal, também levanta problemas relativos à ética da relação médico-paciente.

Palavras-Chave: neuroética, filosofia, neurociências, tec-nologia, identidade pessoal, cérebro, mente.

Identidade Pessoal e Neuroética: o novo desafio da FilosofiaPersonal Identity and Neuroethics: the new challenge of Philosophy

Sara Margarida de Matos Roma Fernandes*Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa

Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia

* [email protected]

O presente artigo está integrado no projecto de doutoramento da autora e corresponde a uma comunicação apresentada no 5º Encontro Nacional de Professores de Filosofia, A Filosofia na Prática (2007).

«É antes do ópio que a minh’alma é doente.[…] É um remédio.Sou um convalescente do Momento.Moro no rés-do-chão do pensamentoE ver passar a Vida faz-me tédio.[…]Levo o dia a fumar, a beber coisas,Drogas americanas que entontecem,[…] DessemMelhor cérebro aos meus nervos como rosas.»

Álvaro de Campos (1)

Longe de ter a intenção de explorar a relação factual ou meramente ficcional de Fernando Pessoa, bem como de muitos autores de diferentes domínios da cultura, com a farmacologia e todo o tipo de estimulantes cerebrais, o poema remete-nos para a questão da manipulação do nosso cérebro e, numa visão mais ampla, do nosso corpo e da nossa vida. Testemunhos de civilizações antigas, como a chinesa, revelam como o recurso a drogas, para efeitos terapêuticos e alucinatórios, constitui uma prática da humanidade.

Sempre se reflectiu, em termos académicos, sobre a sua natureza e os seus múltiplos efeitos, mas no nosso tempo, especialmente no novo milénio, este debate tem assumido amplas dimensões, em virtude do progresso das neurociências verificado nas últimas

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Farah, «a relação do Si com o cérebro é mais directa do que com o genoma» (4). [Por outro lado,] as intervenções neurais são mais facilmente concreti-zadas que as genéticas» (5).

Tanto a genética como as neurociências estudam os fundamentos biológicos da identidade pessoal, mas enquanto os geneticistas promoveram o debate académico e público desde o início das suas inves-tigações sobre o ADN, a comunidade neurocientífica tem permanecido mais fechada a uma reflexão sobre os efeitos das suas descobertas e criações tecnológicas na natureza e vida humanas. É agora tempo de começar a examinar essas implicações a partir de um diálogo interdisciplinar, em especial com a comunidade filosófica (4).

O crescente progresso neurocientífico tem permi-tido uma melhor compreensão da relação mente/cérebro, das diferenças entre uma actividade cerebral considerada normal e outra afectada por doenças do foro cerebral. Estes avanços são significativos, dado que as doenças neurológicas e psiquiátricas afectam, segundo Walter Glannon, perto de 400 milhões de pessoas da população mundial (6). A título de exemplo, a tecnologia mais avançada permite aceder às bases neurológicas tanto da actividade mental normal como de psicopatologias, muito antes de os seus sintomas aparecerem no sujeito. A estimulação eléctrica do cérebro pode auxiliar pessoas com desordens motoras, como sucede com a doença de Parkinson, a ganharem algum controlo sobre o seu corpo.

Certos antidepressivos podem tornar-se capazes de regenerar neurónios e respectivas conexões destruídas pela depressão e esquizofrenia; sabemos que o uso de certos fármacos pode alterar as funções cognitivas do sujeito, como a concentração e a memória, mas suponhamos que, no futuro, conseguíamos desen-volver um medicamento que alterava características da sua personalidade, tornando-a, por exemplo, «menos tímida, mais honesta, mais intelectualmente estimulante, com um bom sentido de humor» (7). Qual seria o limite ético de legitimidade de umaintervenção no cérebro?

Estes são apenas alguns exemplos que manifestam como os avanços neurotecnológicos possibilitam a compreensão e a intervenção nos correlatos men-tais, o que levanta questões éticas importantes, pois estas técnicas têm como objecto o cérebro e, ao intervirem directamente na origem da mente humana, afectam também a identidade pessoal, podendo contribuir para a restabelecer ou para a alterar profundamente.

décadas, mais concretamente, na capacidade de compreender e de controlar o cérebro através da neurotecnologia. Esta evolução notável fez surgir novas questões filosóficas e abriu inevitavelmente um debate académico sem precedentes, nos domínios metafísico, ético e do direito. É neste contexto que surge a neuroética. A Neuroética é uma disciplina muito recente, tendo nascido no século XXI, a partir do diálogo entre a bioética e as neurociências (2).

A questão central da neuroética é comum à genética contemporânea e relaciona-se directamente com o problema da identidade pessoal, o problema de saber o que torna cada indivíduo único e insubstituível ao longo de toda a sua vida, permitindo, simultanea-mente, diferenciá-lo dos restantes. A reflexão ética das ciências do cérebro lida directamente com o nosso sentido do Si, com o que é central no nosso ser, na nossa mais profunda intimidade, para lá da nossa aparência, da nossa fisionomia física.

Como refere Patricia Churchland, se pensarmos a identidade pessoal de um ponto de vista neuroló-gico, não a devemos entender como uma entidade individual, estática e imutável, algo como uma subs-tância. Antes como um conjunto de capacidades multidimensionais, em virtude de incluir desde a «representação do corpo próprio [à] representação da própria vida mental do cérebro», englobando experiências e informações tão diversas, como a nossa biografia, a vivência da nossa corporeidade, do espaço e do tempo, o nosso papel e estatuto social relativamente à exterioridade social (3).

Ora será precisamente este domínio mais íntimo de cada um de nós que as neurociências serão futuramente capazes de alterar de múltiplas maneiras. Quandoaneurotecnologiapudermedir,classificar,manipular o comportamento e até a personalidade através de imagens, estimulações químicas, eléctri-cas ou de implantes e intervenções cirúrgicas, vai desafiar a nossa concepção de identidade pessoal, liberdade e responsabilidade, bem como fornecer novos critérios e instrumentos de reflexão para a comunidade académica.

Não nos podemos esquecer de que a experiên-cia fenomenológica da identidade, a consciência de quem somos é, na sua fase mais imediata, a experiência da unidade de todos os nossos estados mentais. Por isso, a manipulação e intervenção cerebral podem afectar a natureza e o conteúdo da mente e, consequentemente, a nossa identidade.

É certo que a genética tem providenciado um campo bastante fértil de reflexão sobre a subjecti-vidade mas, como sustenta polemicamente Martha

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mais eficazes serão também os tratamentos neuro-lógicos e psiquiátricos.

Mas podemos imaginar facilmente outros usos potenciais do diagnóstico cerebral eticamente mais polémicos. Pensemos na possibilidade de alguém cometer um crime no futuro e a sua defesa argu-mentar juridicamente que o seu comportamento resultou de um impulso incontrolável. Suponha-se, agora, que a mesma pessoa é submetida a exames neurológicos pormenorizados e estes diagnosticam uma lesão no córtex pré-frontal, área que regula as decisões e acções, tendo um papel importante no raciocínio prático, na decisão racional, bem como no controlo dos impulsos. É inevitável a pergunta: será que o ofensor teve um comportamento livre e, por conseguinte, deverá ser responsabilizado pela morte que causou? (6)

É um objectivo comum às neurociências e à filosofia ter uma compreensão geral sobre a diferença neural entre alguém que está a ter um comportamento que podemos identificar com liberdade de escolha e alguém a quem falta essa liberdade. A questão filosófica que se levanta é a seguinte: será que o conhecimento dos mecanismos causais do cérebro implicam ou anulam a liberdade e a responsabili-dade do agente? será que uma nova biologia do cérebro nos torna menos livres e responsáveis pelo nosso comportamento? Facilmente percebemos que a resposta filosófica a esta pergunta está dependente dos estudos empíricos da neurologia e dos avanços progressivos na compreensão do fundamento neu-robiológico do comportamento humano.

O diagnóstico neurológico coloca-nos também problemas éticos na sua interpretação e divulgação. A questão da privacidade é aqui crucial: até que ponto será do interesse da pessoa ter informação sobre si – as suas características neurológicas e psicológicas – disponível aos outros? Numa situação limite, podemos sempre perguntar se será legítimo submeter o cérebro de suspeitos criminosos a testes neurológicos de detecção de mentiras.

Como a memória não é um conjunto de informa-ções fixas, mas é continuamente reconstruída sempre que as recordações são relembradas e recontadas, como poderemos identificar um testemunho fide-digno? Por outro lado, mesmo que seja possível detectar a mentira, as nossas preferências, as nossas qualidades e defeitos a partir da imagiologia, no futuro, esta prática não significará uma ameaça à privacidade e liberdade pessoais? (5)

O interesse recente nas descobertas de anomalias neurológicas acidentais em adultos e crianças –

Pensadores como Paul Root Wolpe e Fukuyama já nos reenviam, a este propósito, para um nível da existência pós-humano ou transhumano, uma fase de desenvolvimento em que o próprio homem assume o controlo da sua evolução, ao alterar propositada e directivamente o seu organismo (8) (9). Tal como a genética que já se encontra a trabalhar no sentido de se transplantarem órgãos geneticamente modificados de uma espécie para outra, quando for possível manipular tecnologicamente o cérebro, seremos inevitavelmente confrontados com a pergunta: qual o limite da intervenção que nos permita estar perante o eu natural ou o eu tecnológico?, poderemos delimitar essa fronteira ou o eu já será, nesse momento, uma fusão das duas componentes?

Podemos alargar os nossos horizontes e pensarmo- -nos segundo pontos de vista insuspeitáveis até às últimas décadas. Entrámos numa época repleta de novos significados por revelar e, para fazer face a estes novos enigmas neurotecnológicos, é indis-pensável a contribuição da filosofia, dado que a biotecnologia já não pode ser entendida como um mero instrumento destinado a melhorar as funções humanas básicas, antes um potencial criador de novas naturezas e identidades.

Certas tecnologias poderão ser um auxílio extra-ordinário à medicina tradicional, mas outras podem trazer riscos e consequências difíceis de prever. Por isso é urgente a filosofia reflectir, em articulação com as neurociências, sobre o que é a identidade pessoal e o que será no futuro, bem como o que torna uma vida significativa no contexto dos novos cenários enunciados atrás. Esta deve ser uma tarefa conjunta das duas disciplinas e, no limite, da neu-roética, porque este é o campo último de reflexão neurocientífica que nos coloca as questões éticas mais recentes, como: que tipo de mente temos? e, consequentemente, o que é a identidade? que consequências positivas/negativas poderão advir do uso de certas tecnologias?

Podemos ainda identificar outras questões éticas nas áreas principais da neurociência clínica – diag-nóstico, previsão e intervenção – que são objecto de reflexão da neuroética e se relacionam directamente com o problema da identidade pessoal:

Por um lado, são óbvios os benefícios que uma tecnologia cada vez mais sofisticada poderá trazer para o diagnóstico de anomalias neurológicas. Na verdade, quanto mais precisas forem, por exemplo, as imagens, maiores probabilidades existem de intervir com sucesso, a nível farmacológico e cirúrgico, nas regiões cerebrais afectadas e, consequentemente,

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entre os benefícios a curto prazo e os riscos (alguns previsíveis) a longo prazo?

Devemos assim perguntar e reflectir filosofica-mente sobre as questões seguintes: qual o limite ético da criação e utilização de fármacos? Se é ético desenvolver um medicamento que melhore a memória, quem poderá e deverá usá-lo? E será ético, por exemplo, criar um medicamento que nos faça esquecer as recordações dolorosas? Será legítimo colocar um chip no cérebro de alguém, de forma a melhorar o seu desempenho académico num exame? (7) E que consequências terão estas medidas ao nível da identidade pessoal?

A neuroética deve ser encarada como esse campo de reflexão responsável pela passagem do plano científico/descritivo para o plano normativo; que poderá fixar os critérios e as regras de participação na investigação e intervenção no cérebro. Constitui uma nova disciplina que reflecte e avalia as descobertas das neurociências, a sua capacidade de melhorar o bem-estar dos seres humanos, em termos de bom/mau, justo/injusto, bem como a coerência e significado de interpretações como «normal» e «anormal».

A reflexão neuroética é particularmente interes-sante e importante nos dias de hoje, porque recorre a casos da experiência ou imagináveis cientificamente que polemizam a realidade interpretada de forma estanque. Por exemplo: um médico pode considerar ético informar o paciente sobre a seriedade da sua doença, mas o que deverá fazer se o doente é depressivo e manifesta tendências suicidas? Como respeitar e contribuir medicamente para a preser-vação da identidade do paciente? Um neurocien-tista pode considerar ético avisar alguém sobre a fragilidade do seu organismo e a probabilidade elevada de desenvolver doenças neurobiológicas futuras, como Alzheimer ou Parkinson, mas o que fazer se o paciente tiver dificuldades em lidar com a incerteza? (7)

Outro dos temas importantes na neuroética relaciona-se com o consentimento informado: os pais poderão, por exemplo, dar um consentimento competente em relação aos seus filhos doentes? Ou estarão demasiadamente ligados, emocionalmente, aos seus filhos, ao ponto de os impedir de fazer tal juízo? Se não forem os pais, quem deverá ser aautoridadeemtermosdedecisão?Quempoderádecidir legitimamente? Por exemplo, se o cérebro de uma pessoa sofrer uma lesão, e essa pessoa não puder dar o seu consentimento informado, quem

anomalias com significação potencialmente clínica não suspeita até ao diagnóstico – renovou o debate ético sobre a responsabilidade dos clínicos e dos investigadores, bem como das próprias instituições onde os exames são realizados, dado ser sempre desejável uma atitude que favoreça os interesses dos pacientes e voluntários sãos. Como dizer e o que dizer aos pacientes a quem foram diagnosticadas anomalias cerebrais?

Por outro lado, ao nível da previsão, podemos reflectir sobre a possibilidade de se identificar neuro-logicamente uma tendência para desenvolver certos comportamentos específicos, por exemplo, anti-sociais. Devemos perguntar ainda sobre os critérios éticos que poderiam presidir à sua interpretação e os efeitos que esse diagnóstico preventivo poderia ter: isolamento da pessoa em causa, tratamento voluntário ou forçado? (10)

Relativamente aos critérios subjacentes à inter-venção psiconeurológica devemos perguntar: quais são as regras éticas e legais que devem regular o ‘tratamento’ com vista à mudança de comportamentos anti-sociais, por exemplo, o comportamento de comprovados criminosos?

Ao nível da intervenção neurológica devemos reflectir ainda sobre o limite, a fronteira do bom uso de fármacos e de outras modalidades de mani-pulação do sistema nervoso. Como sugere Martha Farah, se há tratamentos destinados a restabelecer a ‘normalidade’ que pouco ou nenhum efeito têm em sistemas nervosos considerados normais, outros tratamentos farmacológicos estão a ser utilizados em vários domínios psicológicos, como o melho-ramento do temperamento, da cognição (atenção e memória) (5).

A questão de saber quando e como tratar estas capacidades é muito complexa, dado que não é fácil estabelecer a fronteira entre um funcionamento normal da atenção e uma disfunção na atenção provocada, por exemplo, por uma desordem hipe-ractiva. De acordo com a maioria dos especialistas, o controlo e a manipulação farmacológica da atenção das crianças tornou-se praticamente uma rotina em algumas sociedades: pais que desejam que os seus filhos tenham um desempenho elevado nos estudos podem pressionar os médicos para o uso de medicação, e a Escola, nomeadamente nós, os professores, também agradecemos uma maior capa-cidade de concentração nas nossas aulas por parte da turma (5). Mas não nos podemos esquecer de pensar sobre o seguinte: como avaliar e ponderar

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3. Churchland P S, Neuroscience: Reflections on the Neural Basis of Morality. In Marcus S J, editor. Neuroethics – Mapping the field, San Francisco/California: The Dana Press; 2002. p. 20-33

4. Farah M. J, Wolpe P R. Monitoring and Manipulating Brain Function: New Neuroscience Technologies and Their Ethical Implications, In Glannon W, editor. Defining right and wrong in brain science – essential readings in neuroethics, 1st ed. New York/Washington: The Dana Press; 2007. p. 37-57

5. Farah, M J., Emerging ethical issues in neuroscience, In Glannon W, editor. Defining right and wrong in brain science – essential readings in neuroethics, 1st ed. New York/Washington: The Dana Press; 2007. p. 19-36

6. Glannon W. Neuroethics. Bioethics 2006, 20(1): 37-52

7. Safire W, Visions for a New Field of “Neuroethics”, Glannon W, editor. Defining right and wrong in brain science – essential readings in neuroethics, 1st ed. New York/Washington: The Dana Press; 2007. p. 7-11

8. Wolpe, P R,Neurotechnology, Cyborgs and the Sense of Self, In Marcus S J, editor. Neuroethics – Mapping the field, San Francisco/California: The Dana Press; 2002. p. 159-191

9. Fukuyama F. O nosso futuro pós-humano – consequências da revolução tecnológica. 1.ª ed. Lisboa: Quetzal Editores; 2002

10. Mobley W. Summary of the Conference, In Marcus S J, editor. Neuroethics – Mapping the field, San Francisco/California: The Dana Press; 2002. p. 2002

deverá participar na decisão sobre o futuro clínico dessa pessoa?

Estas são as questões principais da neuroética. Como facilmente verificamos, os neuroeticistas ainda se situam, no presente, num nível inicial da investi-gação, por isso têm-se preocupado sobretudo com a justificação teórica do seu campo a partir de um levantamento de questões bioéticas próprias, e não tanto com a criação de teorias coerentes.

Há certas teses consensuais para a maioria dos neuroéticos, como as seguintes:

A bioética tem por finalidade providenciar o bem comum e a supressão do sofrimento, pelo que o poder da neurotecnologia deve ser condicionado. A tarefa dos bioeticistas consiste em auxiliar refle-xivamente a sociedade a determinar esses condi-cionalismos.

A neurotecnologia é útil na compreensão e pre-visão da vida mental. A análise comportamental é insuficiente para medir o estado cognitivo de alguém, especialmente de pacientes com os sistemas verbal/motor danificados.

A ciência e a filosofia constituem as abordagens privilegiadas da neuroética, mas a arte (em especial, a literatura e o cinema) contém visões inovadoras sobre o funcionamento/manipulação cerebrais e, consequentemente, sobre a identidade pessoal.

Embora os avanços neurotecnológicos no diagnós-tico e tratamento sejam visíveis, a actividade cerebral permanece profundamente misteriosa; por isso os neurocientistas têm reservas quanto ao esforço em desenvolver, por exemplo, a memória e a cognição em indivíduos sem patologias evidentes.

Para finalizar, a maioria das questões filosóficas propostas não foi respondida nem por filósofos, nem por cientistas de outras áreas; por isso, é tão urgente a reflexão, o debate conjunto entre a comunidade filosófica e a neurocientífica. É indispensável uma sólida fundamentação neuroética que permita, de forma consensual e convicta, lidar com o horizonte de possibilidades aliciantes oferecido pelo desenvol-vimento neurotecnológico do século XXI.

Bibliografia

1. Campos, A., Livro de Versos. 1.ª ed. Lisboa: Círculo de Leitores; 1993

2. Illes J, Racine E. Imaging or Imagining? A Neuroethics Challenge Informed by Genetics. In Glannon W, editor. Defining right and wrong in brain science – essential readings in neuroethics, 1st ed. New York/Washington: The Dana Press; 2007. p. 140-62

Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 191-198

Abstract

Deaf culture, a notion that refers to the way in which members of Deaf linguistic minorities view themselves and the world, is a recent concept in the international scientific community. In Portugal deafness is still widely seen merely in its biological dimension, through a pathological conception based on the absence or decrease of the sense of hearing. This does not relate do the way Deaf people see themselves. This study presents the Deaf person as an individual who conceives of himself as experiencing a positive existence, one with a language and culture which are separate from the majority’s.

Love is responsible for weaving affective ties between human beings, building relational networks that become the cultural and social fabric in which we all live. This qualitative study analyses the role of Portuguese Sign Language (LGP) and Deaf culture play in the offset of love relationships that occur in the lives of 10 Deaf young informants, and their views on friendship and romantic love. Data was collected by means of questionnaires applied to the participants. Results reveal that they believe that, when choosing potential friends or romantic partners, an open attitude towards diversity, showing respect for Deaf culture, its values and its language is determinant.

Keywords: deafness, deaf-mutism, marital relationships, friends, love, culture, minority groups

Resumo

A cultura Surda, conceito que abarca a visão que os membros das comunidades linguísticas minoritárias Surdas detêm de si mesmos e do mundo, é um conceito recente na comunidade científica internacional. Em Portugal ainda se perspectiva muito a surdez na sua dimensão biológica, por meio de uma concepção patológica baseada na ausência ou diminuição do sentido da audição. Esta não corresponde à visão que as pessoas Surdas têm de si próprias. Este trabalho apresenta a pessoa Surda como um indívíduo que se concebe a si mesmo como experienciando uma existência positiva, com uma língua e cultura destacadas das da maioria populacional.

O papel do amor nas vidas humanas é o de tecer laços afectivos entre os indivíduos, construindo redes relacionais que se tornam no tecido cultural e social em que vivemos. Neste estudo qualitativo analisa-se o papel que a Língua Gestual Portuguesa (LGP) e a cultura Surda têm no florescimento das relações de amor que ocorrem na vida de 10 jovens Surdos e o modo como os sujeitos pensam a amizade e o amor romântico. A informação recolhida através de inquéritos por questionário aos participantes revela que, na escolha de potenciais amigos ou parceiros românticos, uma atitude de abertura para com a diversidade e de respeito para com a cultura Surda, os seus valores e língua é, para eles, determinante.

Palavras Chave: surdez, surdez-mutismo, relações matri-moniais, amigos, amor, cultura, grupos minoritários

Amor Surdo: realidade cultural? O papel da língua Gestual Portuguesa e da Cultura Surda no comportamento afectivo de 10 jovens SurdosThe deaf love: cultural reality? The role of Portuguese sign language and deaf culture in the affective behaviour of 10 deaf youth

Joana Morêdo Pereira*Instituto de Ciências da Saúde – Universidade Católica Portuguesa

Trabalho realizado para obtenção do grau de Mestre do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa

* E-mail: [email protected]

Introdução

As sociedades humanas compreendem cada vez mais uma miscelânea de membros que acarretam consigo tradições culturais díspares. Urge colocar em marcha um movimento de literacia cultural que torne mais flexíveis as fronteiras da mente dos indivíduos,

predispondo-os a uma abertura face a realidades culturais diferentes da sua (Hall, 1976).

A vida diária de uma pessoa ouvinte não lhe dá acesso ao que significa ser-se Surdo.1 Como

1 O termo “Surdo” é usado neste estudo como um conceito que descreve uma realidade linguístico-cultural, a de ser-se membro de um grupo minoritário com a sua própria língua e cultura: a comunidade Surda. Difere do termo “surdo”, que apenas se refere a uma realidade auditiva e biológica (Ladd, 2003).

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O termo cultura Surda tem vindo a ser utilizado academicamente com uma conotação fortemente taxonómica, como uma amálgama de traços e com-portamentos Surdos que se apresentam em contraste com traços e comportamentos ouvintes. Porém, para se alcançar uma definição mais complexa deste conceito urge investir em linhas de investigação que se foquem na cultura Surda per se, explorando os finos detalhes do seu dinamismo interno (Ladd, 2003).

A cultura foi sempre um objecto de estudo difícil. Especialistas de diferentes áreas do conhecimento oferecem soluções de definição que se versam em distintos parâmetros: aglomerados de traços cultu-rais, aspectos históricos e sociais, valores, relações psicológicas entre o indivíduo e a sua comunidade, estrutura da comunidade e símbolos. Com uma tão grande multiplicidade de abordagens torna-se complicado chegar a um consenso. De facto, já em 1962, Krueber e Kluckhonn haviam identificado 164 definições para o termo ‘cultura’.

No entanto, e fazendo um apanhado global de algumas das dimensões que constam da abrangência semântica do termo, podemos dizer que cultura é um evento exclusivo da humanidade, um todo complexo, adquirido e partilhado pelos membros de um dado grupo, transmitido de geração em geração, permi-tindo uma adaptação do grupo às condicionantes externas ao mesmo. Compreende a existência de padrões comportamentais definidos, veiculados por símbolos; é a teoria que os membros do grupo têm quanto às regras que regem o funcionamento da sua comunidade e às ideias dessa comunidade sobre o mundo. Cultura é a percepção que um grupo tem de si mesmo e das suas perspectivas quanto ao futuro, é um produto de uma rede relacional, permitindo a estruturação de identidades e ilustrando uma visão do mundo específica, cujos significados são espelhados e transportados pela língua e comportamentos não verbais dos membros do grupo (Ladd, 2003; Hall, 1959, 1976, 2006; Maxwell-McCaw et al., 2000).

Cultura Surda e Comunidade Surda

Podemos enquadrar a cultura Surda em todas estas instâncias. De facto, as pessoas Surdas relacionam- -se entre si e partilham a experiência comum de serem Surdos, bem como uma história comum. A transmissão cultural sucede, de uma geração para a seguinte, embora apenas em cerca de 5% a 10% dos casos aconteça dentro de uma mesma família, nos reduzidos casos em que crianças Surdas

parte de uma maioria populacional que se expressa numa língua oral, veiculada pela vibração do ar, em sequências sonoras que formam significados, a pessoa ouvinte constrói uma ideia de que ser- -se Surdo é viver uma vida como a sua, mas sem som (Ladd, 2003). É uma ideia que a aterroriza, pois a ausência de som privá-la-ia da comunicação estruturada e do contacto com o outro, algo que traria isolamento e infelicidade. Porém, as pessoas Surdas “afinal não vivem a mais negra solidão, estão ‘bem, obrigado’” (Cabral, 2005), coabitam mundos culturais onde se gestua a mesma língua, onde se partilham vivências, onde se sentem livres do constante tumulto de comunicar num mundo ouvinte que funciona de um modo diferente do seu, onde se sentem em casa, felizes. As línguas gestuais utilizadas nas comunidades Surdas variam de país para país, e os “Surdos, em muitas das comunidades do mundo ocidental, postulam que as suas línguas gestuais retêm e reflectem o seu modo de vida, as suas perspectivas e o seu modo de pensar e conceber a realidade” (Pereira, 2008:9). De facto, “each language reflects a unique world-view and culture complex, mirroring the manner in which a speech community has resolved its problems in dealing with the world and has formulated its thinking, its system of philosophy and understanding of the world around it” (Wurm, 2001:13).

Enquadramento do tema

Cultura e cultura Surda

A ideia de cultura Surda surge na literatura com Stokoe, cujo trabalho no domínio da linguística menciona a existência de uma realidade cultural Surda (Stokoe et al., 1965) e, nas décadas que se seguem, vários autores (Schlesinger e Meadow, 1971; Baker e Cokely, 1980) referem a surdez como uma condição que extravasa o biológico e compreende uma pertença a uma comunidade que utiliza uma língua gestual, tem padrões maritais endogâmicos e uma história comum (in Ladd, 2003). Padden (1980, in Ladd, 2003) publica a primeira definição para o conceito de cultura Surda como uma “realidade feita de comportamentos aprendidos imersos numa língua específica e valores específicos” (Pereira, 2008:41) à qual Kannapel (1992, in Ladd, 2003) acrescenta que “as percepções (introspecções) conduzem à construção dos valores e das normas, sendo todos estes baseados em experiências compartilhadas e comuns” (Pereira, 2008).

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gestual nacional do que da língua oral do seu país (Lane et al., 1996).

A cultura Surda cabe, assim sendo, no conceito de cultura real embora possua determinadas carac-terísticas que a distinguem das restantes culturas humanas. O seu estatuto não geográfico e diaspórico, a transmissão cultural reduzida em ambiente familiar, as ideias erróneas ainda largamente difundidas nas sociedades ouvintes, levam às dificuldades de acei-tação que o termo tem enfrentado. Concepciona-se ainda o sujeito Surdo como um ser isolado, munido de um defeito, desprovido de língua e, portanto, cognitivamente incompleto.

Para além destas questões, existe ainda a ausência do desenvolvimento cultural involuntário em todos os membros da comunidade Surda. Nas definições convencionais de cultura surge a ideia de que o processo individual de socialização e de acultura-ção começa aquando do nascimento (Ladd, 2003). O que acontece com as pessoas Surdas filhas de pais ouvintes é que o acesso e sentimento de identificação com uma cultura Surda ocorre mais tarde na vida e não é totalmente involuntário; os sujeitos vivem uma realidade mais próxima do biculturalismo, procurando relacionar-se e manter a sua fidelidade para com a cultura Surda enquanto tentam manter um estado harmonioso como membros da sociedade ouvinte em que vivem, modelando neste processo a sua identidade (Maxwell-McCaw et al., 2000).

Uma minoria cultural é um grupo de pessoas menor em número do que a restante população de um determinado estado, cujos membros têm características étnicas, linguísticas ou religiosas que contrastam com as da maioria envolvente e que, como grupo, tende a salvaguardar e proteger a sua identidade social e os traços culturais que a definem (Skutnabb-Kangas e Philipson, 1994). Os membros de uma minoria cultural crescem e desenvolvem-se de modo separado dos da maioria populacional.

As culturas Surdas enquadram-se na definição de minoria cultural, pois é possível encontrar todos os traços supracitados nas comunidades Surdas. Tratam- -se, na verdade, de grupos menores cujo dinamismo se processa no seio de culturas maioritárias ouvintes; são compostos por sujeitos que procuram proteger as línguas gestuais que utilizam e a identidade Surda da qual têm orgulho; crescem e evoluem separada-mente da maioria ouvinte através das comunidades que se formam em escolas de Surdos, e através da própria língua gestual com que se comunicam. Como línguas de aquisição e acesso natural para a pessoa Surda, constituem sistemas nos quais se

nascem em famílias de pais Surdos (Kyle e Woll, 1985). Para as restantes 90% a 95% das crianças Surdas, filhas de pais ouvintes, a cultura Surda é-lhes transmitida por via das Escolas de Surdos e organizações da comunidade Surda, tais como asso-ciações e eventos (Ladd, 2003). A comunidade Surda vive rodeada pela maioria ouvinte, pelo que certos traços culturais Surdos terão surgido como forma de adaptação à comunidade maioritária envolvente. “A cultura Surda reage às características das culturas ouvintes definindo, por contraste e necessidade, as suas próprias características” (Pereira, 2008: 43). O oralismo, sistema criado pela comunidade ouvinte, cuja intenção foi a eliminação das línguas gestuais e a imposição da oralidade como única forma de comunicação para a pessoa Surda, levou a mudanças profundas na comunidade Surda, sentimentos de revolta e rejeição para com a maioria ouvinte, que ainda hoje podemos observar em conversa com uma pessoa Surda de meia-idade ou mais velha. Sendo culturas que vivem ‘paredes meias’, a cultura ouvinte e a cultura Surda absorvem aspectos uma da outra e reagem, redefinindo-se continuamente (Ladd, 2003). A alta prioridade dada pelas comunidades Surdas à concepção de futuros alternativos está patente nas numerosas acções que as suas organizações encabe-çam de forma a divulgar e a manter o seu estatuto de minorias culturais e linguísticas; almejando contrariar a concepção simplista imposta pelo modelo médico, que apenas observa a diferença auditiva, abstraindo- -se da intensa vivência comum, em comunidade, em tradições, arte e valores. Tudo isto é veiculado pela LGP e traduz-se na modelação de uma identidade específica nas pessoas culturalmente Surdas.

Foquemo-nos na questão das línguas humanas veicularem a cultura na qual estão inseridas. Turner (1990) argumenta que uma língua diferente suporta a existência de uma visão do mundo diferente e, portanto, no caso da comunidade Surda, as línguas gestuais são prova viva da realidade cultural Surda. Trata-se de sistemas altamente complexos, estrutura-dos e ricos em significado cultural, línguas completas, organizadas numa modalidade vísuo-espacial, isto é, utilizando a luz como canal de comunicação. A língua gestual chega até à pessoa Surda de dife-rentes maneiras, variando com o trajecto de vida que a pessoa percorre, trajecto esse que define a aquisição linguística do indivíduo. As pessoas Surdas podem ser monolingues em língua gestual, bilingues com um domínio maior da língua oral do seu país do que da língua gestual nacional, ou ainda bilingues com um domínio maior da língua

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alcançar (Alberoni, 2003). O amor é a mais completa resposta para o problema da existência humana e os seres humanos desejam envolver-se numa relação de proximidade com o outro, como modo de partilharem quem são e acederem aos traços que definem o outro, transformando-se repetidamente (Fromm, 2002).

A amizade e o amor romântico estão interligados pois para que o último seja bem sucedido, deverá existir de base uma amizade sólida (Greeley, 1991; McGinnis, 1979) e o processo através do qual uma pessoa se aproxima de outra nestes dois tipos de amor não difere muito (Morrow, 2000).

As línguas têm um papel determinante aquando do florescimento de uma nova relação, pois captu-rar a atenção do outro, expressando pensamentos e partilhando percursos pessoais, envolve muita utilização dos sistemas linguísticos (Alberoni, 2003). Por outro lado, o modo como fazemos uso da língua diz muito acerca de quem somos ao nosso interlocutor, sobre o nosso percurso, nível intelectual e personalidade. Os signos são um instrumento de mediçãoparaavaliarumpotencialparceiro(Quirk,2006) e saber falar ‘apropriadamente’ – respeitando as normas definidas pela cultura – é importante na construção de relacionamentos de sucesso (Stevens, 1997).

Assim sendo cultura, linguagem e amor são conceitos que se influenciam mutuamente nas sociedades humanas e as comunidades Surdas não são excepção.

Método

Natureza e Objectivos

O presente estudo teve como principais objectivos conhecer o modo como na Comunidade Surda Portu-guesa os jovens se relacionam entre si, explorando as circunstâncias em que as relações de amor e amizade se iniciam para um grupo de 10 jovens, de modo a compreender a forma como os valores culturais Surdos e a LGP se manifestam no florescimento destes relacionamentos.

Tratou-se de uma investigação qualitativa de carác-ter etnográfico na qual se utilizou como instrumento metodológico de recolha de dados o inquérito por questionário. Este foi construído tendo como base sete perguntas de investigação focalizadas em maté-rias como a definição de amor, a sua função na vida dos Surdos, os papéis de género, os critérios de selecção de um potencial amigo ou parceiro

criam, movimentam e desenvolvem valores distintos dos de uma maioria que utiliza línguas que, no seu registo oral, não estão inteiramente disponíveis ao indivíduo Surdo (Ladd, 2003).

Os primeiros registos sobre a LGP datam do final do século XV (Almeida, 2007) e as expressões culturais Surdas que, à semelhança do que sucede noutras comunidades Surdas do mundo ocidental, se manifestam em áreas como a pintura, o humor, a poesia ou o desporto Surdos, existem devido à forte interacção que existe entre as pessoas Surdas (Ladd, 2003), interacção essa que é em parte possibilitada pela comunicação em língua gestual.

Relações de Amor

O amor é um dos tipos de interacção que ocorre entre os membros de uma comunidade. Faz parte de um leque de emoções que são próprias dos seres humanos e que os ajuda a sobreviver enquanto espécie. As emoções organizam o conhecimento que temos do mundo porque nos permitem dar um certo valor a objectos, pessoas ou experiências (Pinto, 2005). O amor é um conjunto de senti-mentos positivos para com o outro, uma realidade universal, que acontece a qualquer ser humano, independentemente do seu berço cultural e tem uma base biológica (Quirk, 2006). Não obstante,a cultura desempenha um papel na definição dos comportamentos que os indivíduos adoptam (Gleit-man, 1986) em qualquer situação da vida, bem como no amor. O comportamento humano na esfera do amor sofre transformações ao longo do tempo, que geram alterações nas estruturas sociais. A título de exemplo temos a alteração no estatuto laboral da mulher, o aumento no número de divórcios e uma divisão de tarefas mais equilibrada no lar do casal (Amâncio e Wall, 2004; Torres, 2000).

O amor pode ser de diferentes tipos, entre os quais encontramos a amizade e o amor romântico; impede o isolamento dos indívíduos, reduzindo a vulnerabilidade dos mesmos e dando propensão à continuidadedaespécie(Quirk,2006).Aspessoastendem a definir uma amizade de qualidade como uma mistura de componentes como a confiança, a honestidade, o respeito, a compreensão e aceitação do outro (Rabin, 1996). Para a escolha de um parceiro, seja este para fins de amizade ou amor romântico, dispomos de critérios pessoais mas também de base cultural. As pessoas tendem a escolher alguém com quem se sintam mais como elas próprias, ou ainda, como a melhor versão de si mesmas que desejam

Amor Surdo: realidade cultural? O papel da Língua Gestual Portuguesa e da Cultura Surda… 195

sócios do Centro de Jovens Surdos, em Lisboa. Todos os sujeitos habitam a área metropolitana da Grande Lisboa. Dos 10 participantes, 5 são filhos de pais Surdos e 5 filhos de pais ouvintes.

O inquérito por questionário foi aplicado em cenários informais, na área da Grande Lisboa, que variaram de acordo com a disponibilidade do par-ticipante. A duração de cada sessão foi aproxima-damente de 2 horas e meia.

Os dados obtidos foram analisados de acordo com o tipo de questão de que provinham: escolha múltipla, escala ou aberta. Nos primeiros dois casos as respostas foram contabilizadas e interpretadas e no terceiro os textos produzidos pelos participantes foram sujeitos a análise de conteúdo, mais especi-ficamente análise temática.

Resultados

Devido à natureza qualitativa desta investigação, os resultados obtidos são apenas aplicáveis ao grupo de participantes estudado e não são generalizáveis à totalidade dos jovens Surdos Portugueses ou à comunidade Surda Portuguesa.

O amor surge definido como um fim a atingir na vida dos participantes, a maioria dos quais con-sideram que encontrar uma ‘alma gémea’ na vida amorosa é dos principais objectivos nas suas vidas. Trata-se de uma colecção de sentimentos positivos de carácter universal, que tem o poder de mudar as malhas sociais, pois a sua presença leva à ausência de conflito entre os seres humanos. São identificados vários tipos de amor como o amor pela família, pelas crianças, a amizade e o amor romântico. Surge porém uma tipologia própria dos membros das comunidades Surdas: O Amor pelos Surdos nacional e internacionalmente, o sentimento de irmandande, de povo à escala mundial, que os membros destas comunidades têm uns para com os outros.

O amor é descrito como tendo a função de pre-venir o isolamento e trazer felicidade na vida das pessoas Surdas; é dito que nos faz crescer e evoluir pois é através dele que partilhamos quem somos com os outros e dos outros recebemos conhecimento novo; traz consigo a possibilidade de continuidade da espécie humana; e uma comunicação eficaz é referida como essencial a relações de sucesso.

Os papéis de género são identificados pelo grupo como sendo diferentes, sendo menciona-das características e ideais tradicionais relativos ao comportamento de homens e mulheres. Alguns participantes mencionam pensar que as diferenças

romântico, os espaços em que estas relações se iniciam, a importância da LGP no processo e os pontos de vista dos informantes acerca das relações Surdo/Surdo e Surdo/ouvinte.

De forma a construir um instrumento de reco-lha de dados eficaz, foi conduzida uma entrevista exploratória a um líder Surdo, reconhecido como tal pela comunidade Surda, cujo testemunho influiu na escolha dos tópicos a constar do questionário. A autora dispôs também do acompanhamento por parte de um grupo de líderes Surdos com conheci-mento profundo da cultura Surda e da LGP, essencial para colmatar lacunas provenientes do estatuto ouvinte da investigadora.

O inquérito por questionário foi construído em Língua Portuguesa mas traduzido para LGP aquando da sua aplicação aos participantes, em sessões individuais. Da sua estrutura constaram questões fechadas, questões de escala e questões abertas. Não é usual a inclusão de questões abertas na estrutura de inquéritos por questionário. Porém, a escassa literatura que existe acerca do tema em estudo impossibilitou o estabelecimento de categorias de resposta para questões fechadas e, consequentemente, optou-se por registar de forma livre os testemunhos dos participantes. Do ques-tionário constaram três partes: Informação Pessoal, Língua e Pertença Cultural e Relações de Amor. As respostas dadas foram classificadas, para efeitos de análise, em Perguntas de Caracterização do Participante e Perguntas de Experiência Relacional, tendo as primeiras fornecido informação detalhada acerca do grupo de sujeitos e as segundas fornecido dados para resposta às questões de investigação do estudo.

Participantes e Recolha de Dados

Foram convidados 10 jovens Surdos, de idades compreendidas entre os 22 e os 32 anos, 5 do sexo feminino e 5 do sexo masculino. Procurou-se obter um grupo heterogéneo a diversos níveis: proveniência de diferentes meios sócio-económicos, trajectos pessoais díspares, diferentes estatutos rela-cionais (com ou sem relação de amor romântico, com ou sem amigos/parceiros românticos ouvintes), formas de aquisição e utilização linguística (LGP, Língua Portuguesa e idiomas estrangeiros orais ou gestuais).

Como critérios de selecção estiveram uma alta fluência em LGP, um carácter dinâmico e interventivo na comunidade Surda Portuguesa, e o estatuto de

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obstante, alguns participantes mencionam que, mesmo assim, qualquer uma destas relações pode alcançar o sucesso independentemente da origem cultural dos membros da díade. Desde que a pessoa ouvinte revele interesse para com a cultura Surda e demonstre respeito para com a herança histórica e linguística dos Surdos, envolvendo-se na comunidade Surda, ‘tudo é possível’.

Conclusões

Relativamente ao papel da LGP no florescimento das relações de amizade e amor romântico para os jovens Surdos, registou-se uma grande variedade de dados obtidos. Para os membros deste grupo, a fluência em LGP parece não ser um requisito obrigatório no outro para a existência de relaciona-mentos destes tipos. Alguns informantes requerem, principalmente, respeito pela sua cultura e identidade diferentes.

Os resultados desta pesquisa surgem pontuados por referências a alguns valores da cultura Surda, mencionados na esfera do amor romântico e da amizade: uma comunicação clara e eficaz, a valoriza-ção da LGP, a importância do acesso à informação, a compreensão e o respeito para com a experiência e a língua Surdas, e a abertura à diversidade.

Os participantes deste estudo enfatizam que uma atitude de abertura para com as suas necessidades enquanto pessoas Surdas, que incluem a LGP e a cultura Surda, é preferível nos indivíduos com quem estabelecem laços de amizade e de amor romântico.

Conclui-se que “o conhecimento sobre a cultura Surda e possivelmente o conhecimento de LGP, dependendo da preferência da pessoa Surda, da sua personalidade e estatuto de língua (bilingue ou monolingue), parecem de facto aproximar as comunidades ouvinte e Surda, permitindo um intercâmbio mútuo de informação e, com ele, uma compreensão mútua mais profunda das diferenças e semelhanças entre pessoas Surdas e ouvintes” (Pereira, 2008: 137).

Seria importante complementar as introspecções fornecidas pelo presente estudo através da criação de linhas de investigação orientadas para a exploração dos diversos tipos de amor na comunidade Surda Portuguesa. De certo trariam à luz conhecimento relevante e aplicável na vida das pessoas Surdas, em domínios como a Educação, as famílias, a vida laboral e a própria vida associativa nestas comunidades. Um olhar atento quanto às restantes esferas culturais

são mais acentuadas em indivíduos idosos do que por entre os jovens Surdos da sua geração.

De todas as hipóteses de locais e circunstâncias para encontrar novos parceiros na amizade e no amor romântico constantes do inquérito por ques-tionário efectuado, o grupo selecciona apena duas: Associações de Surdos/Eventos Surdos e Escolas. São estes, de facto, os locais nos quais aglomerados da comunidade Surda existem e onde as relações se tecem numa língua e cultura comuns.

Os participantes do estudo enumeram uma série de critérios para a escolha de potenciais parceiros na amizade e no amor romântico, critérios esses baseados nas suas preferências pessoais como o humor, a criatividade ou a inteligência. No entanto, é revelada uma preferência por gestuantes fluentes ou pessoas com uma atitude Surda, ou seja, com conhecimento da cultura Surda ou, pelo menos, com abertura e interesse acerca do mundo dos Surdos.

A Língua Gestual Portuguesa é identificada como muito importante no estabelecimento de uma comu-nicação com pessoas Surdas ou ouvintes, é descrita como a ‘língua rainha’ da comunidade Surda, dotada de uma riqueza incomensurável para os participan-tes. É através dela que se torna possível educar a comunidade ouvinte com o objectivo de deitar por terra velhos preconceitos para com os Surdos, e renovar a concepção da pessoa Surda para uma imagem de um indivíduo completo, com uma língua e cultura próprias, um membro de uma ‘nação imaginada’ (Anderson, 1983) sem pátria geográfica mas com um património linguístico e histórico único. Para estes membros da comunidade Surda a LGP permite ainda o precioso acesso à informação sobre a sociedade em geral, e crianças e jovens acedem a uma identidade e cultura minoritária via esta língua vísuo-espacial.Quandoquestionadosacercadosseuspontosde

vista quanto a relações de amizade e amor romântico entre duas pessoas Surdas e entre uma pessoa Surda e uma pessoa ouvinte, as respostas obtidas permitem a elaboração de um perfil válido para o grupo quanto à natureza destes dois tipos de relacionamentos. É dito que as relações, sejam elas de amizade ou amor romântico, entre dois membros da cultura Surda tendem a ser mais profundas devido à existência de uma língua e cultura comuns, ao invés do que tende a suceder em relacionamentos entre um membro do Mundo Surdo e outro do Mundo Ouvinte. Aqui, as relações tendem a ser mais superficiais devido à questão da barreira linguística e cultural que se ergue entre os dois intervenientes na relação. Não

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Estudar a comunidade Surda Portuguesa, bem como as restantes comunidades Surdas do mundo, não é apenas produzir conhecimento acerca das culturas humanas, é contribuir para a sensibilização das sociedades ouvintes e, consequentemente, para uma melhoria na qualidade de vida das pessoas Surdas.

Mantenhamos em mente que olhar para a diversi-dade não se trata de olhar o outro, focando a nossa atenção no que ele/a não tem quando comparado a nós mesmos; olhar para a diversidade significa colocarmos um desafio a nós próprios: o de aprender uma nova perspectiva e mudarmos para, assim sendo, crescer como seres humanos.

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Cadernos de Saúde Vol. 1 N.º 2 – pp. 199-204

Abstract

This study was designed to analyze the results of translation / validation of the Spiritual Assessment Scale and study its psychometric properties. The original instrument, called Spiritual Assessment Scale was developed by Elizabeth O’Brien (1999), with the aim of assessing the spiritual Well-Being. There was a study of methodological research, starting from the Spiritual Assessment Scale.

The instrument was validated in a sample of 210 patients. After the analysis of homogeneity items, 2 items were removed from the original scale, staying the Spiritual Assessment Scale formed by nineteen items. The scale is composed by three factors corresponding to the three concepts that make up the Spiritual Well-Being (Personal Faith, Religious Practice and Spiritual Contentment). The results tell us this is a reliable and valid scale for assessment of the Spiritual Well-Being, although it suggests the need for further studies of revalidation.

Keywords: Spirituality, scale, nursing, holism, spiritual care, spiritual well-being

Resumo

O presente estudo teve como objectivo analisar os resultados da tradução/validação da Escala de Avaliação Espiritual e estudar as suas propriedades psicométricas. O instrumento original, denominado Spiritual Assessment Scale foi desenvolvido por Elizabeth O’Brien (1999), com o objectivo de avaliar o bem-estar espiritual. Partindo da Spiritual Assessment Scale, procedeu-se a um estudo de investigação metodológica.

O instrumento foi validado numa amostra de 210 pacientes. Após a análise da homogeneidade dos itens, suprimiram-se dois itens da escala original, ficando a escala de avaliação espiritual constituída por dezanove itens. A escala é composta por três factores correspondentes aos três conceitos que compõem o Spiritual Well-Being (Fé Pessoal, Prática Religiosa e Paz Espiritual). Os resultados indiciaram estarmos perante uma escala fiável e válida para a avaliação do bem estar-espiritual, embora se sugira a necessidade de novos estudos de revalidação.

Palavras-chave: Espiritualidade, escala, enfermagem, holismo, cuidado espiritual, bem-estar espiritual

O processo de avaliação dos níveis de bem-estar espiritual: um contributo para a sua validaçãoThe evaluation of spiritual well-being: validating an approach

Ana Cristina Caramelo Rego

* [email protected] Trabalho realizado no âmbito do Mestrado em Ciências da

Fala do Instituto de Ciências da Saúde, Universidade Católica Portuguesa

Introdução

A investigação sobre temas religiosos e espirituais tornou-se, nestes últimos anos, mais “respeitável”, devido às crescentes provas de que a espiritualidade e a religião têm efectivamente importância para a saúde e para doença. Os estudos efectuados pelos diferentes profissionais de saúde, especialmente aqueles na área da doença crónica incluíram fre-quentemente os conceitos da espiritualidade, da religião, e/ou da prática religiosa como as variáveis chaves em uma maior matriz (1-14).

Na literatura encontram-se diversos instrumentos de avaliação de necessidades espirituais, utilizados com diferentes populações e abordando diversas áreas, como concluiu Amado (15), não existindo nenhum em língua portuguesa, validado para a nossa população. A autora que nos sugeriu uma maior viabilidade de transposição da problemá-tica da Espiritualidade para o campo profissional de Enfermagem foi Elizabeth O’Brien (enfermeira e professora na Catholic Univerity of América). A escala que apresenta, a Spiritual Assessment Scale (SAS) (16), abrange uma definição mais ampla de espiritualidade, numa perspectiva holística que inclui a prática religiosa, o que lhe dá uma vantagem sobre a maioria dos instrumentos de medida de avaliação espiritual, como defende Delaney (17).

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geral da opinião pessoal da fé de um paciente, do tipo de suporte espiritual que recebe das práticas religiosas, e o tipo e o grau de paz/angústia espiritual que o paciente naquele momento experimenta.

De acordo com a autora da escala, nos cuidados de enfermagem holísticos, o Spiritual Well-Being é aludido como um aspecto integrado na universali-dade do ser humano, caracterizado pelo significado e pelaesperança.Quandoumindivíduonãoconsegue“experimentar” o bem-estar espiritual, sérios “spiritual maladies” podem ocorrer, como por ex., depressão, solidão, a ansiedade existencial e vida desprovida de significado (16).

Feita a escolha do instrumento de medida, foi pedida autorização para a sua tradução e validação à autora da escala, que se obteve em Fevereiro de 2006.

População e Amostra

A validação da tradução de um instrumento exige uma população semelhante àquela que foi utilizada na validação original. Estabeleceu-se que a população deste estudo seria constituída por doentes oncoló-gicos e foi pedida autorização para o mesmo ao Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil, EPE – Porto (IPO). A selecção desta Instituição baseou-se no facto de o IPO-Porto ter por missão primordial a prestação de cuidados de saúde hos-pitalares oncológicos à população, com tradição de qualidade, humanismo e eficiência; ser uma Insti-tuição predominantemente dedicada à Oncologia, marcada pelo carácter crónico das situações, onde nem sempre se pode curar, mas sempre se deve cuidar. Outro factor relevante para a escolha desta instituição residiu no facto de, na altura, ser o local de trabalho da investigadora, o que, de certo modo, poderia ajudar na recolha de dados.

Foi utilizada uma amostra de conveniência tendo sido apenas definido como critério de exclusão eventual estado de deterioração neurológica ou cognitiva dos pacientes, impeditiva do preenchimento do questionário.

Determinou-se o tamanho mínimo da amostra de acordo com Pestana e Gageiro (19), em 105 pacientes.

Fases do estudo

Considerou-se que o processo de validação de um instrumento deve agrupar um conjunto de pro-cedimentos que garantam que a versão utilizada na cultura para que está a ser validada meça de forma

Nesta investigação estudaram-se as qualidades psicométricas da SAS. Pretendeu-se saber se esta escala, na tradução feita, mede o que pretende medir: se proporciona uma visão ampla e geral da concepção pessoal da fé de um paciente, do tipo de suporte espiritual que recebe das práticas religiosas, e o tipo e o grau de paz/angústia espiritual que o paciente naquele momento experimenta. Trata-se portanto de um estudo metodológico, que se torna tanto mais relevante quanto o campo de estudos em que se insere é relativamente novo (18), como é o caso da espiritualidade na pesquisa de enfermagem, em Portugal.

Material e Métodos

A escala em estudo

O instrumento estandardizado “Spiritual Assess-ment Scale” (SAS), criado para medir a construção do Spiritual Well-Being, é uma escala tipo Likert que contém no total 21 itens, organizados em três sub-escalas: Fé Pessoal – 7 itens; Prática Religiosa – 7 itens; Paz Espiritual – 7 itens.

Na SAS, as questões podem ser classificadas em cinco categorias: CT – concorda totalmente; C – concorda; I – indeciso; D – discorda; DT – discorda totalmente. A SAS está construída de maneira que quanto maior a pontuação obtida, melhor é, na globalidade, o bem estar-espiritual do sujeito.

De modo a reduzir ao mínimo o enviesamento, as duas primeiras sub-escalas da SAS são expressas de forma positiva, em que o “concordo totalmente” corresponde a 5 pontos, o “concordo” a 4 pontos, o “indeciso” a 3 pontos, o “discordo” a 2 pontos e o “discordo totalmente” corresponde a 1 ponto. A terceira sub-escala da SAS é exposta de forma negativa; para a análise estatística, os scores são invertidos. Esta escala tem a vantagem de ser mais fácil de responder e de poder ser submetida a tratamentos estatísticos mais rigorosos.

A construção medida pela SAS, construção do Spiritual Well-Being, inclui ambas as dimensões – espiritualidade e religiosidade –, definidas operacio-nalmente nos termos de três conceitos comedidos: Fé Pessoal, Prática Religiosa e Paz Espiritual. A dimensão da “espiritualidade” do Spiritual Well-Being é ava-liado nos termos dos conceitos da Fé Pessoal e Paz Espiritual, a religiosidade do construto é reflectida no conceito da Prática Religiosa.

A SAS assume crença num Ser Supremo ou Deus. Este instrumento proporciona uma visão ampla e

O processo de avaliação dos níveis de bem-estar espiritual: um contributo para a sua validação 201

Após a realização da reflexão falada foi tido por conveniente a realização de um pré-teste antes da aplicação do questionário. O objectivo foi determinar se o questionário estava redigido com clareza, sem tendenciosidade, se solicitava o tipo de informação pretendida e se a apresentação permitia um cor-recto preenchimento. Similarmente pretendemos identificar as hipotéticas falhas que o instrumento pudesse conter e conhecer os tempos médios de preenchimento do questionário, tendo em conta essencialmente que os pacientes oncológicos por vezes se reservam relativamente ao seu estado de saúde, pelo que nem sempre é fácil obter a sua colaboração e disponibilidade.

O pré-teste foi realizado a um total de 50 pacientes oncológicos. Este procedimento decorreu na primeira quinzena de Outubro de 2006. Foi solicitado a cada paciente que registasse as alterações que considerasse necessárias, mas sempre sem desvirtuar o número e o conteúdo original dos itens. Os resultados obtidos depois da aplicação do pré-teste permitiram manter o instrumento de colheita de dados conforme estava elaborado, não tendo sido necessário proceder a alterações, pelo que considerámos o instrumento pronto para avaliação.

Equivalência psicométrica da SAS

Sabemos que uma nova tradução necessita de ser submetida aos mesmos procedimentos psico-métricos que é suposto a versão original ter sofrido (20). Outros autores defendem que a validade e a fidelidade são dois requisitos indispensáveis e os mais importantes para considerar e avaliar um instrumento (18).

Para avaliarmos as qualidades psicométricas da SAS, foram efectuados estudos de fidelidade e vali-dade que, no seu conjunto, nos indicam o grau de generalização que os resultados poderão alcançar. A fidelidade da SAS foi estimada segundo a consistência interna, com base na correlação média entre todos os itens e a nota total, através do coeficiente alfa de Cronbach. A validade do construto da SAS foi verificada através da análise factorial.

Recolha de dados

Foi formalizado o pedido de autorização para a colheita de dados na instituição já referida, obtida em Outubro de 2006, para efectuar a colheita de dados no Serviço de Oncologia Médica.

apropriada o/os conceitos em estudo o que exige equivalência linguística, conceptual e psicométrica.

A técnica utilizada para garantir a qualidade da tradução foi a retroversão ou método inverso. A tradu- ção de inglês para português da SAS foi efectuada por dois tradutores profissionais portugueses fluentes em inglês e em linguística. Um tradutor fez a tradução da SAS de Inglês para Português, sendo de seguida feita a retroversão da escala de Português para Inglês por outra tradutora independente, sem conhecimento prévio da escala original.

Durante o período de tradução foram realizadas algumas reuniões com os tradutores a fim de escla-recer questões relacionados com a equivalência da tradução do item, ou seja, se a tradução mantém o mesmo significado da versão original. Foi-lhes explicado o objectivo do instrumento de medida e as intenções subjacentes à concepção de cada item. Estas reuniões foram essenciais porque a simples tradução com respeito rigoroso, apenas em dimensões lexicais, iria dar origem a questionários diferentes.

Em virtude do construto poder não ser idêntico nas duas culturas (americana e portuguesa) houve necessidade de se estabelecer se os conceitos em análise existiam; e ao existir, se eram interpretados de modo semelhante nas duas culturas (equivalência conceptual).

Durante a realização da tradução, para além das reuniões da autora do trabalho com os tradutores, foram realizadas reuniões com peritos na área dos conceitos em estudo (estudiosos da área da espi-ritualidade), para além da pesquisa bibliográfica sobre o construto na Língua Portuguesa, tendo sido definidos os principais conceitos que faziam parte do instrumento. No decurso destes momentos de partilha, emergiram mudanças de contextualização na escala.

Ao compararmos todas as versões (original, tra-dução e retroversão) encontramos discrepâncias nos itens que compõem a escala, pelo que todo o processo foi novamente reincidido, mas com diferentes tradutores.

Posteriormente, efectivámos a comparação das versões obtidas – original, nova tradução e respectiva retroversão; deparando-nos com uma retroversão idêntica à versão a partir da qual se iniciou a tradu-ção, pelo que se passou ao passo seguinte – Reflexão falada (Thinking Aloud) da versão traduzida. Esta teve como objectivos testar o formato e aparência visual; a compreensão das instruções; a compreensão dos diferentes itens; a receptividade e adesão aos conteúdos.

C a d e r n o s d e S a ú d e Vo l . 1 N . º 2202

No nosso estudo, os itens 17 e 18 apresentaram correlações inferiores a 0,20. O alfa de Cronbach, em ambos os estudos efectuados, apresentou valores elevados(Quadro2).

Através da análise dos componentes principais, com rotação de varimax, extraímos 3 factores com valor próprio (eigenvalue) superior a 1, tal como adveio, exactamente o mesmo número de factores, no estudo efectuado por O’Brien (16).

O primeiro Factor explicou 45,737% da variância total, e saturou os 9 itens que avaliam a Fé Pessoal – na escala original são 7 itens; na versão portuguesa os itens 13 e 14 saturaram neste factor.

O segundo Factor expôs 14, 489% da variância total, e saturou 5 itens que avaliam as Práticas Reli-giosas – na escala original são 7 itens. O terceiro Factor explanou 6,159% da variância total, e saturou 5 itens que avaliam a Paz Espiritual – na escala original são 7 itens; na versão portuguesa os itens 17 e 18 foram suprimidos. Embora a saturação do item 15 fosse baixa neste factor, porque também apresentava uma saturação superior (-0,436) no Factor II; decidimos optar pelo Factor III porque a questão que avalia é mais adequada a avaliar a Paz Espiritual. A diferença entre as duas saturações é próxima de 0,20 o que permitiu optar pelo factor que considerámos mais adequado. Também contribuiu para esta opção o facto de apresentar correlação negativacomoFactorII(Quadro3).

Embora a construção medida pela SAS, construção do Spiritual Well-Being, seja um construto opera-cionalizado em três conceitos – Fé Pessoal, Prática Religiosa e Paz Espiritual – estes apresentaram-se, neste estudo, de forma homogénea, correlacionados positivaesignificativamente(Quadro4).

A correlação entre idade e o Bem-estar Espiritual, a idade e a Fé Pessoal, e entre a idade e as Práticas Religiosas é positiva e estatisticamente muito sig-nificativa. No entanto, verificou-se uma correlação negativa estatisticamente significativa entre Idade e PazEspiritual(Quadro5).

Discussão dos resultados

A SAS, na versão portuguesa, ficou instituída pelos 19 itens, pelo que a versão portugesa da SAS diverge da apresentada por O’Brien (16) que contém 21 itens. No nosso estudo, os itens 17 e 18 apresentaram correlações inferiores a 0,20, pelo que tivemos que os suprimir, já que só as correlações superiores a 0,20 revelam que os itens medem o mesmo construto (21).

Durante o processo de distribuição e recolha dos questionários foi assídua a presença da investiga-dora junto dos pacientes, efectuada a apresentação, assim como o âmbito da pesquisa, numa linguagem acessível e compreensível. Solicitou-se a colaboração dos pacientes, dando uma explicação sobre o que consistia a sua participação, sobre o questionário e a forma do seu preenchimento, de maneira a participarem livremente e com pleno conhecimento de causa. Antes da assinatura do termo de consen-timento Informado, foi efectuado o esclarecimento de dúvidas. Todos os pacientes tinham consciência do seu direito de se retirar em qualquer momento da investigação apesar de terem aceitado participar, sem o dever de justificar a sua retirada e sem serem penalizados por isso e que, se o desejassem, teriam igualmente acesso aos resultados do estudo. Foi-lhes garantida a confidencialidade de tudo o que disseram ou questionaram.

A cada paciente foi pedido que respondesse a todas as questões, conforme o explicado no pro-cedimento de preenchimento e, que no final, nos entregasse devidamente preenchido. A distribuição e a consecutiva recolha do instrumento de colheita de dados (questionário) iniciou-se em 16 de Outubro de 2006, tendo sido estipulado o prazo de dois meses para a sua conclusão. Este tempo não foi suficiente, para obter o número de pacientes necessários à amostra.

Foi então obtida autorização para efectuar a colheita de dados no Hospital Dia da mesma ins-tituição. As condições que influenciaram a escolha deste serviço prenderam-se com factores de ordem prática, nomeadamente, ser um serviço de regime ambulatório com uma enorme capacidade e rota-tividade de pacientes oncológicos, facto que nos garantia, à partida, a recolha de dados no tempo disponível.

A receptividade global dos pacientes portadores de doença oncológica ao estudo foi bastante satisfatória. Foram incluídos na amostra todos os doentes que consentiram participar no estudo. A amostra ficou constituída por 210 pacientes, constatando-se o dobro da amostra mínima inicialmente conjecturada.

Resultados

A avaliação das qualidades psicométricas da SAS foi efectuada com base em dados recolhidos numa população semelhante à população empregada por O’Brien(Quadro1).Emboramaior,amédiadeidadesé semelhante e o intervalo de idades também.

O processo de avaliação dos níveis de bem-estar espiritual: um contributo para a sua validação 203

Quadro 1 – Caracterização da Amostra

Nosso Estudo Estudo Original

Pacientes portadores de doenças crónicas

210 182

Sexo Feminino

127 143

Sexo Masculino

83 36

Média de Idades

52 49

Pessoa mais idosa

83 89

Pessoa mais jovem

16 19

Quadro 2 – Fidelidade da SAS

Nosso Estudo Estudo Original

Homogeneidade (correlação de cada item com a nota global)

19 itens 21 itens

Consistência interna (α de Cronbach)

0,89 0,92

Quadro 3 – Validade do Construto da SAS (Análise de Componentes Principais)

Nosso Estudo Estudo Original

Extracção de factores

3 3

Saturação - Factor I (Fé Pessoal)

9 7

Saturação - Factor II (Práticas Religiosas)

5 7

Saturação - Factor III (Paz Espiritual)

5 7

Quadro 4 – Coeficientes do α Conbrach para as Sub-Esca-las

Nosso Estudo Estudo Original

Fé Pessoal

0,95 0,89

Prática Religiosa

0,82 0,89

Paz Espiritual

0,75 0,76

Quadro 5 – Espiritualidade dos Inquiridos por Sexo e Idade

VariáveisBem-estar Espiritual

Fé Pessoal

Práticas Religiosas

Paz Espiritual

SexoMasculino + + + +

Feminino ++ ++ + ++

Idade ++ ++ ++ -

Após o estudo da escala, analisámos a espiritua- lidade dos inquiridos por sexo e idade, ou seja, detectámos variáveis que parecem influenciar a espiritualidade. Na nossa amostra, poderá afirmar-se que as mulheres apresentaram valores de Bem- -estar Espiritual mais elevados do que os homens. O mesmo sucedeu em relação à Fé Pessoal e à Paz Espiritual. Relativamente às Práticas Religiosas não existiram diferenças estatisticamente significativas entre os sexos.

Os resultados obtidos reflectiram uma amostra populacional portuguesa com um sentido fortemente positivo do bem-estar espiritual (Spiritual Well-Being). Estes dados não podem ser generalizados pois dizem respeito apenas a esta amostra, neste contexto específico pelo que se considera pertinente a realização de mais estudos, com um número superior de participantes.

A metodologia adoptada e os dados obtidos na nossa amostra são aceitáveis para a finalidade deste estudo, pelo que podemos afirmar que as sub-escalas reflectem boas características psicométricas. Tal permite-nos sugerir que a escala pode ser utilizada com confiança em futuros estudos. A SAS é um instrumento fiável, preciso e utilizável, que permite medir a construção do Spiritual Well-Being.

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14. Vieira, M., Editorial, Servir. Jan/Abr, Vol. 55, 1-2, pp. 1-2, 2007

15. Vieira, M., Editorial, Servir. Mai-Jun, Vol. 55, 3, pp. 1-2, 2007

16. Vieira, M., Editorial, Servir. Jul/Out, Vol. 55, 4-5, pp. 1-2, 2007

17. Vieira, M., Editorial, Servir. Nov/Dez , Vol. 55, 6, pp. 1-2, 2007

18. Marques, P., Vieira, M., Princípios éticos gerais no agir em enfermagem: condicionamentos às intervenções de enfermagem promotoras de dignidade das pessoas em fim de vida, internadas em UCI, Bioethikos, Vol. I, 2, pp. 45-55, 2007

19. Rascol O, Dubois B, Castro-Caldas A, Senn S, Del Signore S, Lees A; Parkinson REGAIN Study Group Early piribedil monotherapy of Parkinson’s disease: A planned seven-month report of the REGAIN study, Mov Disorders, Dec; 21: 2110-5, 2006

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Produção científica do ICSDesde a sua formação em 2004

INSTITUTO DECIÊNCIAS DA SAÚDE

1. Artigos Publicados

1. Castro Caldas A., Nunes MV., Maestú F., Ortiz T., Simões R., Fernandes R., La Guia E., Garcia E., Gonçalves M, Learning orthography in adulthood: a magnetoencephalographic study; (aceite para publicação no Journal of Neuropsychology)

2. Lauterbach M., Martins I., Castro-Caldas A., Luís H., Amaral H., Leitão J., Martin M., Townes B., Rosenbaum G., DeRouen T., Neurological outcomes in children with/without mercury exposure from amalgam: seven years of observation from Casa Pia randomized trial; J. Am Dent Assoc Feb; 139(2): 138-145; 2008

3. Castro-Caldas A, Mineiro A, Da Confusio Linguarum a uma hermenêutica da pluralidade; Revista Portuguesa de Humanidades – Estudos Linguisticos, Vol 12 UCP; Braga, pp.236-248; 2008

4. Townes, B, Martins, IP, Castro-Caldas, A, Rosenbaum, G, DeRouen, T, Repeat Test Scores on Neurobehavioral Measures over an eight year period in a sample of Portuguese children, International Journal of Neuroscience, Jan;118(1):79-93, 2008

5. Duarte L. & Mineiro A. (2007) Terminologia em Língua Gestual Portuguesa: uma necessidade para a tradução? Processos de formação de Gestos em Ciências Naturais In: Encontro Comemorativo dos 50 anos do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), Lisboa, http://www.clul.ul.pt/artigos.php.

6. Petersson KM., Silva C., Castro-Caldas A., Ingvar M. & Reis A.,Literacy: a cultural influence on functional left-right differences in the inferior parietal cortex, European Journal of Neuroscience, Vol 26, pp 791-799, 2007

7. Martin M, Benton T, Bernando M, Woods J, Townes B, Luis H, Leitao J, Rosenbaum G, Castro-Caldas A, Pavao I, Rue TE, DeRouen T, The association of dental caries with blood leadinchildrenwhenadjustedforIQandneurobehavioralperformance, Science of the Total Environment 377, 159-164,2007

8. Mineiro A., A metáfora na terminologia portuguesa da náutica: um recurso cognitivo de língua e de cultura? In: (org.) Inocência Mata e Maria José Grosso: Pelas Oito Partidas da Língua Portuguesa: uma homenagem ao Professor João Malaca Casteleiro: Macau: Universidade de Macau / Instituto Politécnico de Macau / Departamento de Língua e Cultura Portuguesa da FLUL, 2007

C a d e r n o s d e S a ú d e V o l . 1 N . º 2206

4. Castro-Caldas, A. e A. Mendonça. (Eds), A Doença de Alzheimer e outras Demências em Portugal, Lisboa: Lidel, 2005

3. Capítulos publicados

1. Castro-Caldas, A. “Como se adapta o cérebro ao conheci-mento da ortografia” in Despertar para a Ciência – Novos Ciclos de Conferências, Gradiva, pp 13-45, 2007

2. Castro-Caldas A., “Cérebro, Transcendência e Humanismo” in Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, Borges A.(Eds), Campo das Letras, 2007

3. Castro-Caldas, A. “Relationship Between Functional Brain Organization and Education”. In International Handbook of Cross Cultural Neuropsychology. Uzzell, B., Ponton, M.O.and Ardila, A. (Eds), 2007

4. Castro-Caldas, A. “A insustentável solidão das microciências” in Novos Horizontes das Humanidades, UCP, 2006

5. Castro-Caldas, A. Os processos neurobiológicos subjacentes ao conhecimento da matemática» in Desastre no Ensino da Matemática: Como recuperar o tempo perdido, Crato, N. (Coord), Gradiva 2006

6. Castro-Caldas, A. As necessidades cognitivas da criança. in Mais Criança: as necessidades irredutíveis, João Gomes-Pedro (Ed), ACSM Editora, 2005

7. Castro-Caldas, A., Egas Moniz: Fundador de um escola de Investigação in: Estudos do Séc. XX nº5 2005

8. Castro-Caldas, A. A Ciência e a Tecnologia in Desafios à IgrejadeBentoXVI,CasadasLetras,CruzQuebrada,pp101-111, 2005

9. Castro-Caldas, A. O cérebro e as suas funções. in A Doença de Alzheimer e outras Demências em Portugal. A. Castro-Caldas e A. Mendonça. (Eds), Lisboa: Lidel, 2005

10. Castro-Caldas, A. A Língua Materna nos Primeiros Anos de Escolaridade: A Perspectiva das Ciências Neurocognitivas. in A Língua Portuguesa. Presente e Futuro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp 39-46, 2004

11. Castro-Caldas, A. O Leucótomo. in Circulação M.V. Alves e A. Barbosa (Eds)Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa, pp116-121, 2004

12. Castro-Caldas, A., Power in the Framework of Cognitive Neuroscience in Power in Focus: Perspectives from Multiple Disciplines. Subhash Durlabhji (Ed.) Wyndham Hall Press, pp 269-298, 2004

13. Castro-Caldas, A. «Neuropsicologia da Linguagem» in Neu-ropsicologia Hoje, V.M. Andrade, F.H. Santos e O. Bueno (Org), Editora Artes Médicas, pp 165-208, 2004

14. Castro-Caldas, A Existirá um Homem Neuronal? in Consciência e Cognição. Publicações da Faculdade de Filosofia – UCP, Braga, pp15-27, 2004

4. Mestrados defendidos

1. Dina Brígida Pereira Gaspar, Motivação para a Profissão Médica no Internato Complementar de Especialidade em Medicina Geral e Familiar

2. Fernando Manuel Pinto Ferreira Domingos, O Ensino Médico Pós-Graduado Baseado em Competências: Reflexão sobre o Modelo de Internato Médico

3. Susana Maria Fraga Homem de Gouveia, Avaliação multi-dimensional da voz

22. Lecour H., O desafio da patologia infecciosa. Editorial. Revista Portuguesa de Doenças Infecciosas; 1(2): 5-6, 2006

23. Lecour H., Mestrado em Saúde Pública – contributo para a sua história – Arquivos de Medicina –2006; 20 (4) Julho-Agosto: 127-9, 2006

24. Nunes E., Esclerose Múltipla. Uma Perspectiva Económica, Revista Temática do Instituto Superior de Saúde Egas Moniz – nº 5, 2006

25. Figueiredo A; Friedlander MR; Leite T; Os primeiros cinco anos de publicação da revista “AcontecEnfermagem”; Revista AcontecEnfermagem, Lisboa, Nº 12, pp. 17-21, 2006

26. Zurowsky B, Michel R, Nunes M V, Cornelius W, Castro-Caldas A, Büchel C, The imprint of literacy on motion processing brain areas, 12th Annual Meeting Human Brain Mapping – June 11-15 – Florence, Neuroimage, Vol 31, Supplement 1, 254 W-PM, 2006

27. Vieira, M., Representações da humanização de Cuidados de Enfermagem - Parte II, (In)Formar, Vol. XII, 37, pp. 38-41.

28. Amaral, T., Adaptação após lesão medular e reabilitação: uma revisão da literatura, (In)Formar, Vol. XI, 37, pp. 9-17, 2006

29. Differences in Neurobehavioral Performance: A Study of Portuguese Elementary School Children; International Journal of Neuroscience, 115; 1687-1709; 2005

30. Castro-Caldas, A. Investigare. Toxicodependências, 11, 15-20, 2005

31. Vieira, M., Representações da Humanização de Cuidados de Enfermagem - Parte I, (In)Formar, Vol. XI, 35, pp. 17-22, 2005

32. Amaral, T., Espiritualidade: Uma dimensão do Cuidar, (In)Formar, Vol. XI, 34, pp. 9-14, 2005

33. Neves, L., Alguns Constrangimentos Actuais à Humanização, (in)Formar, Vol. XI, 35, p. 00, 2005

34. Neves, L., Enfermagem e Desenvolvimento Humano da Pessoa, (In)Formar, Vol. XI, 34, pp. 00-00, 2005

35. Castro-Caldas, A. O Conceito de Dominância Cerebral Revisitado. Re(abilitar) Número 0: 17-33, 2004

36. Castro-Caldas, A. Targeting regions of interest for the study of the illiterate brain, International Journal of Psychology, 39, 5-17, 2004

37. Cavaco, S., Anderson, S. W., Allen, J. S., Castro-Caldas, A. & Damásio,H., The scope of Preserved Procedural Memory in Amnesia, Brain, 127,1853-1867, 2004

38. Coelho, M., Ferreira, J.J., Dias, B., Sampaio, C., Martins, I.P.,Castro-Caldas, A. Assessment of Time Perception: The Effect of Aging. JINS, 10, 332-341, 2004

39. Castro-Caldas, A. O Contributo da Neuroimagiologia para o Diagnóstico e Tratamento Fonoaudiológico. Pró-Fono, 16, 3-5, 2004

2. livros publicados

1. Castro Caldas, A., Viagem ao Cérebro e a algumas das suas competências, Campus do Saber, Lisboa: UCP Editora, 2008

2. Mineiro, A., As metáforas que constroem a terminologia náutica portuguesa, Academia de Marinha: Lisboa, ISBN: 978-972-781-101-4, 2007

3. Vieira, M., Ser Enfermeiro: Da compaixão à proficiência, Lisboa : Católica Editora, Colecção Campus do Saber, Vol:16, 972-54-0146-8, 2007

Pro d u ç ã o c ien tífica releva n te d o IC S 207

28. Carolina Mosca, Incidência da Diabetes Mellitus e da Dis-lipidemia em Doentes Infectados por VIH sob Terapêutica Anti-retrovírica

29. Maria Eduarda Augusto, O Impacto da Avaliação na Formação Médica – O caso específico de um Internato Médico

30. Ana Cristina Lima Mimoso Caramelo, A atenção ao espiritual – tradução e validação linguística e cultural da Spiritual Assesment Scale, um instrumento da avaliação espiritual

31. Susana Teresa Conceição de Almeida Santos Rebelo, Poesia em Língua Gestual Portuguesa – Estudo da Metáfora

32. José Paulo Mendes Guimarães de Macedo, As Tecnologias de Informação no ensino da Disciplina de Cirurgia Oral

33. Maria Teresa Franco Neto de Carvalho, Diversidade lexical e extensão frásica na escrita: comparação entre crianças surdas e normo-ouvintes (Terapia da Fala)

34. Susana Margarida de Oliveira Salgueiro, A Educação Musical e o Surdo: Implementação e Avaliação de um projecto para a aprendizagem do ritmo em alunos surdos do 1º e 2º ciclo do Ensino Básico (Língua Gestual Portuguesa)

35. Catarina Maria de Carvalho Afonso, Complexidade prosódica e segmentação de palavras em crianças entre os 4 e os 6 anos de idade (Terapia da Fala)

36. Nuno Filipe Dourado Laranjeira, Valor Educativo do eLearning como complemento ao ensino presencial da Patologia na Escola Superior de Saúde Egas Moniz (Educação Médica)

37. Cristina Maria da Silva Vareda, Estudo da competência comunicativa de crianças do 4º ano de escolaridade através da análise de narrativas orais (Terapia da Fala)

38. Helena Maria Prior Santos Costa Filipe, O E-learning aplicado a uma situação de Ensino-Aprendizagem em Medicina (Educação Médica)

39. Ana Catarina Baptista de Jesus, O efeito do Género, Idade e Escolaridade na nomeação de categorias semânticas em indivíduos sem lesão cerebral (Terapia da Fala)

4. Teresa Leonor de Vasconcelos Figueiredo, Avaliação da Introdução da Gestão no Currículo Médico Pré-Graduado

5. Maria Adelaide de Lima Serra, Educação Médica Contínua – Motivações e Metodologias de Ensino-Aprendizagem

6. Maria Leonor Ribeiro Ramalho, Descrição e Análise de um Sistema de Avaliação das Aprendizagens numa Faculdade de Medicina

7. Irene Maria Ferreira Collaço, Conhecimentos dos Jovens para a Prevenção da Infecção VIH/SIDA

8. Ana Maria Xeque Rodrigues, Percepção dos enfermeiros sobre as dificuldades vivenciadas na ressocialização da morte em contexto familiar

9. Sónia Marina Dias de Jesus Lima, Prevalência de Problemas Vocais nos Professores do EBI da Região de Lisboa

10 Ana Brígida Francisco Patrício, Sintomatologia Depressiva em Indivíduos com Afasia Crónica

11. Paula Cristina Grade Correia, Sob o Signo das Emoções: Expressões Faciais e Prosódia em Indivíduos com Perturbação Vocal

12. Rita Margarida Dourado Marques, Readmissões dos doentes dependentes no serviço de urgência

13. Augusto Cassul, Estudo da Implementação de um Curso em e-Learning numa Realidade Africana

14. Catarina Isabel dos Reis Silva Garcia, Tradução e validação de um instrumento de avaliação do risco de sobrecarga do familiar cuidador

15. Ana Cristina de Nóbrega Machado Gomes, Vinculação Mãe-Recém-Nascido: a influência da hospitalização por cirurgia cardíaca

16. Huguette Rodrigues Guerreiro, Processos fonológicos na fala da criança de cinco anos

17. Ana Margarida Nogueira Leitão Lima Grilo, Avaliação da Articulação Verbal em Crianças com Alteração da Oclusão Dentária

18. Rosalina Machado Segura, A voz da criança autista: o estímulo musical cantado como suporte à comunicação

19. Rui Manuel Fernandes, Identificação e Caracterização de Potenciais e-Learners – Um contributo para aplicação do e-learning à Educação Médica

20. Ana Leonor dos Santos Pereira, As cores da voz – Expressão das Emoções no Timbre da Voz Cantada

21. Patrícia Machado Nogueira, Desenvolvimento fonológico em crianças de 3 anos e 6 meses aos 4 anos e 6 meses de idade nascidas com baixo peso

22. Alexandre Manuel Câmara de Carvalho, Impacto da selecção e manutenção M184V na resposta ao tratamento antirretro-vírico

23. Dina Maria Somsen, A relação Mãe-Criança na infecção VIH/SIDA

24. Olga Maria Guedes Fortes, Características neuropsicológicas e psiquiátricas de doentes toxicodependentes VIH negativos e VIH positivos

25. José Diogo Ramalho Ortigão Ferreira Martins, Concepção e Desenho de um Curso de e-Learning sobre Sopros Cardiacos – e-Sopros

26. Joana Morêdo Pereira, Demonstrações de amor: Estudo do papel da Língua Gestual Portuguesa e da Cultura Surda no comportamento afectivo de 10 jovens surdos.

27. Mary Duro, Estudo das Alterações do Perfil Lipídico pela Terapia Anti-retrovírica de Alta Potência (HAART)

C a d e r n o s d e S a ú d e V o l . 1 N . º 2208

INSTITUTO DECIÊNCIAS DA SAÚDE

1.º ciclo

1. Licenciatura em Enfermagem

2. Mestrado integrado em Medicina Dentária

2.º ciclo

1. Mestrados em EnfermagemDe natureza profissional

Especialização em:• EnfermagemComunitária• EnfermagemMédico-Cirúrgica• EnfermagemdeSaúdeInfantilePediatria• EnfermagemdeSaúdeMentalePsiquiatria

De natureza académica (as mesmas do curso de doutoramento):

Especialização em:• GestãodeServiçosdeEnfermagem• EnfermagemAvançada

2. Mestrado em Cuidados Paliativos

3. Mestrado em Infecção em Cuidados de Saúde

4. Mestrado em Feridas e Viabilidade Tecidular

5. Mestrado em NeuropsicologiaEspecialização em:•NeuropsicologiadaInfânciaeAdolescência•NeuropsicologiadaIdadeAdultaeVelhice

3.º ciclo

1. Doutoramento em Enfermagem

2. Doutoramento em Ciências da Saúde

Cursos a abrir no ano lectivo de 2008/2009