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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

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CADERNOSDE

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Uma publicação do Projeto de Formação de ProfessoresIndígenas - 3º Grau Indígena.

Comissão Editorial- Prof. Ms. Antonio Francisco Malheiros- Profª. Ms. Carmen Lúcia da Silva- Prof. Dr. Elias Januário- Prof. Félix Rondon Adugoenau- Prof. Dr. Marcus Antonio Rezende Maia- Profª. Ms. Renata Bortoletto- Profª. Drª. Roseli de Alvarenga Corrêa

Cadernos de Educação Escolar Indígena3º Grau Indígena - Nº. 01, V. 01, 2002

Barra do Bugres - MT

PROJETO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS 3º GRAU INDÍGENA

Barra do Bugres - MT 2002

CADERNOSDE

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Catalogação: Cleide de Albuquerque MoreiraBibliotecária/CRB 1100

Revisão final: Karla Bento de CarvalhoProjeto Gráfico: Fernando Selleri Silva

UNEMAT - Universidade do Estado de Mato GrossoCoordenação do 3º Grau Indígena

Campus Universitário de Barra do BugresCaixa Postal nº 92

78390-000 - Barra do Bugres/MT - BrasilTelefone: (65) [email protected]

Dados internacionais de catalogaçãoBiblioteca “Curt Nimuendajú”

FUNAI - Fundação Nacional do ÍndioDepartamento de Educação

DEDOC - Departamento de DocumentaçãoSEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1º Andar

70390-025 - Brasília/DF - BrasilTelefone: (61) 313-3730/226-5128

[email protected]

SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato GrossoSuperintendência de Desenvolvimento e Formação de

Professores na EducaçãoTravessa B, S/N - Centro Político Administrativo

78055-917 - Cuiabá/MT - BrasilTelefone: (65) 613-1021

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - 3º GRAU IN-DÍGENA. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, 2002 -

Semestral

ISSN 1677-0277

1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de MatoGrosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III.Departamento de Documentação / FUNAI.

CDU 572.95 (81) : 37

SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................ 7Lucas ‘Ruri’õ

Experiência do 3º Grau Indígena ........................... 9Elias Januário

Ensino superior para índios: um novo paradigma na edu-cação ............................................................................. 15Susana Martelletti Grillo Guimarães

Ciências Sociais no Projeto 3º Grau Indígena: focos prin-cipais ....................................................................... 25Francisca Novantino de Ângelo

A educação e a diversidade cultural ........................ 34Severiá Maria Idioriê Xavante

Exercitando o Ser .......................................................... 41Bruna Franchetto, Marcus Maia, Filomena Sandalo & LucianaR. Storto

A construção do conhecimento lingüístico: do saber dofalante à pesquisa .............................................................. 47Glaydson Artur do Vale Freitas

A importância da educação diferenciada nas aldeias doBrasil ................................................................................ 79Zoraide Primerano Arguello et alii

Invariantes culturais: conceitos de estética e beleza naCiência da Computação ................................................... 84Carlos Alfredo Arguello

Etnoconhecimento na escola indígena ..................... 92José de Alencar Simoni et alii

Conversando com a natureza .................................... 100

Roseli de Alvarenga CorrêaA educação matemática nos Cursos de Licenciatura e a

formação de professores indígenas ............................ 114Andila Inácio Belforte

A trajetória da liberdade ........................................... 123

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APRESENTAÇÃO

“Estudar na Universidade, para mim, é o reconheci-mento da nossa capacidade, da nossa autonomia e dasnossas diferenças culturais e lingüísticas. É o adeus à ex-clusão dos índios na história, na política e na educação. Po-deremos agora lutar mais pelos nossos direitos, mostrandoo quanto somos inteligentes. Estar na Universidade signifi-ca mudanças na nossa história e a possibilidade de ganharnovos espaços”.

Jeronimo de Oliveira Santos (Professor Bakairi)

O Projeto 3º Grau Indígena é parte constituinte deum Programa de Formação de Professores Indígenasimplementado em Mato Grosso, que propõe abrir novos ca-minhos e estabelecer novas possibilidades na forma de pen-sar e trabalhar com a educação escolar indígena.

A criação de cursos superiores específicos e dife-renciados para a formação de professores indígenas signifi-ca a oportunidade de empreender um diálogo interculturalna construção de novos paradigmas, por meio da compre-ensão da alteridade. Representa a abertura de um espaçoonde frutificará a investigação científica e a preparação téc-nica de um novo ator social, com habilidades de redefinir asrelações sociais de poder existentes, a partir de instrumen-tos teóricos e analíticos que permitam a compreensão domundo ocidental, respeitando a cosmovisão e os valoresculturais das diferentes etnias.

Um projeto dessa amplitude, além de recursos finan-ceiros e parcerias, requer uma ampla rede de profissionaisespecializados engajados na sua implementação, possibili-tando que a diversidade dialogue, complemente-se e reve-ja-se na construção de novos conceitos.

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Um dos pontos importantes para a consolidação deum programa dessa natureza reside na criação de um es-paço onde possam ser registradas e divulgadas as experi-ências vividas e as reflexões realizadas acerca do processode ensino-aprendizagem na formação de professores indí-genas.

Imbuídos dessa premissa, criamos o Caderno deEducação Escolar Indígena, com o propósito de oportunizara apresentação a um público mais amplo, as realizações eexperiências vividas por professores e acadêmicos no pro-cesso de formação específica, continuada e em serviço, emparticular no que tange à formação em nível superior, bus-cando desse modo contribuir para legitimar as abordagensa respeito da formação de professores indígenas, vislum-brando a abertura de novas possibilidades nessa área.

Será, acima de tudo, uma oportunidade de encontrode educadores e educandos que trazem consigo diferentesexperiências no campo do ensino, da aprendizagem, dapesquisa, da prática pedagógica, da execução de políticaspúblicas e do exercício da cidadania. Também será um mo-mento oportuno para realizarmos uma avaliação das nos-sas formas inovadoras de trabalhar a educação escolar in-dígena.

Sendo assim, estamos lançando a primeira ediçãodo Caderno de Educação Escolar Indígena, publicação nas-cida no contexto do Projeto 3º Grau Indígena, que terá operfil de textos abertos, elaborados a partir das experiênciasde docentes, técnicos e acadêmicos, procurando, na pers-pectiva da interculturalidade, partilhar os nossos saberes,com vistas a fomentar o debate que envolve as políticaspúblicas em educação escolar presentes nos programas enas escolas indígenas brasileiras.

Elias JanuárioCoordenador do 3º Grau Indígena

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EXPERIÊNCIA DO 3º GRAU INDÍGENA

Lucas ‘Ruri’õ*

O Projeto de Formação de Professores Indígenas -3º Grau Indígena, é resultado da antiga reivindicação dosprofessores indígenas, por ocasião da ConferênciaAmeríndia de Educação e do Congresso de Professores doBrasil, promovido pela SEDUC, em Cuiabá em 1997. O go-verno do estado proporcionou uma iniciativa inédita na his-tória do Brasil, publicando o decreto nº. 1.842/97, instituindouma Comissão Interinstitucional e Paritária, com a finalida-de de formular um anteprojeto de cursos específicos e dife-renciados. Na oportunidade, fui nomeado para fazer parteda comissão recém-criada, representando o povo Xavante,sabendo da responsabilidade e compromisso sério median-te a demanda dos professores pelo 3º Grau, ancorada pelaconstrução e reconstrução de pedagogias, metodologias econhecimento milenares de cada povo, visando ao comple-mento destes. Aconteciam reuniões plenárias, onde esta-vam representantes de vários segmentos, como FUNAI,UNEMAT, UFMT, SEDUC, CEI, CEE, Representantes Indí-genas (Bororo, Xavante, Kura-Bakairi, Paresi).

Na reunião, todos podiam contribuir, sugerir e con-testar quando discordavam de alguma idéia que não fosseatender à expectativa das comunidades indígenas, come-çando pelo currículo, pela proposta pedagógica e os temas

* Acadêmico do 3º Grau Indígena, professor Xavante da Aldeia Abelinha, T I SãoMarcos, Mato Grosso. Membro da Comissão Interistitucional e Paritária.

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norteadores do futuro Projeto, tão sonhado e espera-do.

Foi discutida a forma seletiva (vestibular) para ingres-sar no 3º Grau, aguardado com ansiedade pelos concorren-tes às 200 vagas, sendo 180 vagas para professores indí-genas do estado de Mato Grosso e 20 vagas para professo-res indígenas de outros Estados. Eu, como representante,não podia desperdiçar o momento oportuno para explanaros anseios, as expectativas dos professores Xavante den-tro do projeto em construção.

O anteprojeto, estando na fase de conclusão, a Co-missão Interinstitucional realizou a sua última reunião plená-ria, para fazer a leitura das contribuições e pareceres quechegavam de vários estados do Brasil a fim de formular me-lhor o Projeto de Formação de Professores Indígenas, con-siderado como “inédito e pioneiro” na história do Brasil. Otrabalho da Comissão Interinstitucional e Paritária foi muitoimportante na história do 3º Grau Indígena, garantindo a cir-culação de informações ao alcance de todos os professoresindígenas a respeito do 3º Grau em andamento.

Chegando o edital do 3º Grau Indígena, todos os pro-fessores fizeram preparação em diversos setores: FUNAI,estado e Município.

Os professores da rede estadual e municipal esta-vam sendo preparados pelos salesianos, pelos técnicos daFUNAI e por pessoas conhecidas.

Cada dia que passava, os professores faziam o má-ximo de esforço para concorrer ao vestibular indígena, con-siderado o primeiro do país. Chegando o dia 30 de março,os professores indígenas do estado de Mato Grosso presta-ram o vestibular em diferentes lugares: Sangradouro/MT,Meruri/MT, Campinápolis/MT, Água Boa/MT, São Marcos/MT,Pakuera/MT, Barra do Bugres/MT, Rondonópolis/MT, Xingu/

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MT e Araguaia/MT.Entrando, na sala de aula, os professores estavam

cheios de emoção e medo, pois pela primeira vez estáva-mos realizando um vestibular indígena na história do Brasil.Cada vestibulando saía em silêncio e preocupado se pas-saria ou reprovaria. Naquela noite, ninguém pôde comemo-rar o resultado ainda, a comunidade e os velhos não para-vam de chamar a atenção dos professores de cada aldeia.

Aos 30 dias de abril de 2002, saiu o resultado dasprovas. O clima de alegria e emoção tomou conta de muitosprofessores que conseguiram passar, enquanto outros fica-ram decepcionados e tristes.

O primeiro dia de aula começou no auditório, onde ocoordenador do 3º Grau Indígena, Sr. Elias Januário, fez opronunciamento e, em seguida, a professora Luciana Storto,consultora da Área de Línguas, Artes e Literaturas I, convi-dou os colegas para compor a mesa-redonda e dar conti-nuidade às atividades propriamente ditas. A professoraLuciana Storto apresentou o currículo específico e diferenci-ado a todos os acadêmicos, para que tomassem conheci-mento dele e pudessem comentá-lo. Recebemos os horári-os para acompanhar os procedimentos das aulas, cujotemática da primeira etapa foi Gênese.

A aula inaugural ocorreu no dia 09 de julho de 2001,com a presença do Sr. Dante de Oliveira, Governador doestado, e outras autoridades locais e regionais, prestigiandoa cerimônia. Os acadêmicos fizeram apresentações cultu-rais diante da mesa de autoridades e do públicobarrabugrense. Nos dias 24/07 a 25/07 de 2001, fizemos aoficina sobre Política de Saúde Indígena, promovida pelo 3ºgrau Indígena, possibilitando o conhecimento profundo daquestão.

Ainda na primeira semana de Língua, Artes e Litera-

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turas I, aconteceu a eleição do Colegiado de Acadê-micos, com objetivo de representar os acadêmicos indíge-nas e apoiar a coordenação geral, garantindo ordem e cum-primento do regimento interno do Projeto por parte dos aca-dêmicos. Cada período que passava era discutido erediscutido na reunião com as diversas etnias.

A etapa encerrou com Ciências Sociais, discutindoPolítica e Economia, mostrando as diferenças de comporta-mentos, relações de classe e hierarquização dentro da pró-pria classe social, envolvendo comentários e atividades desala. Depois da aula, aconteceu a “Noite Cultural”, agrade-cemos os professores e autoridades presentes pelo carinho,apoio e respeito para com os acadêmicos indígenas queacabaram de encerrar a I Etapa Intensiva do 3º grau Indíge-na, no âmbito da UNEMAT de Barra do Bugres/MT.

O Coordenador e a equipe de professores auxiliarestêm percorrido as aldeias indígenas para realizar a Etapa deEstudos Cooperados, com os professores do 3º Grau. Atéagora tem dado resultado, conforme comentário e exposi-ção das experiências nesta I Etapa Intensiva. Dando pros-seguimento aos estudos presenciais, os acadêmicos de-monstraram crescimento intelectual, responsabilidade ecompromisso sério com o Projeto, entregando em dia asatividades da Etapa Intermediária na secretaria.

Na II Etapa, as aulas começaram com algumas mu-danças, adequando-se cada vez mais à metodologia e di-nâmica dos trabalhos, possibilitando maior participação e dis-cussão no contexto de um determinado assunto, cujatemática foi Tempo. As aulas de Línguas, Artes e LiteraturasII foram intercaladas com encontros no auditório, em segui-da retornando para a sala de aula. As aulas sempre tinhaminício às 07:30 horas da manhã, sendo que o café da ma-nhã era servido das 06:00 h. às 06:30 da manhã.

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Antes era muito difícil para acordar bem cedo, paratomar café e aguardar o horário de saída do ônibus; aospoucos fomos acostumando com o horário de verão, queterminou no mês de fevereiro. Neste Projeto, todos nós sen-timos logo no início a pontualidade, responsabilidade, com-promisso das pessoas envolvidas no 3º Grau Indígena, co-meçando da coordenação do projeto; escola agrícola, o si-neiro, as cozinheiras, os motoristas e os professores; no fim,todo mundo gostou de apoiar o bom andamento do curso eda boa formação de todos nós acadêmicos.

O 3º Grau Indígena tem promovido momentos delazer e relaxamento para os alunos, reabastecendo a ener-gia consumida durante a semana. Tivemos ampla satisfa-ção de visitar a aldeia dos Pareci em Tangará da Serra –MT, e conhecer um clube que tem piscina para tomar ba-nho. Desta vez, tivemos aulas práticas para desenvolver asprimeiras experiências na área de Ciências Matemática eda Natureza (Química, Física, Biologia e Computação). Gos-tamos muito de realizar as experiências, que ajudarão a tra-balhar melhor com nossos alunos das escolas Indígenas.

Na aula de computação, gravamos em disquetes ostrabalhos dos alunos da Etapa Intermediária, que em brevesairá na página completa do livro didático para subsidiar edinamizar a nossa prática pedagógica nas aldeias. É impres-sionante ver a paciência, o carinho e capacidade de apren-der e entender o ritmo dos alunos, sendo que o 3º grau estátrabalhando com 36 etnias distribuídas em 13 estados daFederação. Portanto, o 3º Grau Indígena estácorrespondendo às expectativas dos professores das co-munidades Indígenas e está descrevendo a sua própria his-tória inédita em consonância de todos os envolvidos.

Desde que entrei no 3º Grau Indígena, estou ficandomais equilibrado, criativo e com visão crítica sobre as coisas

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que antes eram difíceis de entender e ter respostasimediatas.

O meu sonho por uma educação específica e dife-renciada está cada vez mais próximo neste 3º Grau Indíge-na. Os meus colegas estão percebendo e sentindo a dife-rença das aulas que ainda prevalecem no sistema conven-cional.

Os conhecimentos adquiridos no 3º Grau em breveterão efeitos na vida de todos nós. Por enquanto, estamossó começando.

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ENSINO SUPERIOR PARA ÍNDIOS: UM NOVOPARADIGMA NA EDUCAÇÃO

Elias Januário*

Educação, cada povo, cada sociedade tem a sua.Ela tem sido a base para a transmissão de conhecimentos ede valores nos diferentes grupos sociais presentes no Esta-do brasileiro, seja através de padrões formais ou informais.Ela é como uma planta que vai crescendo, enraizando-se,tomando corpo, florescendo e frutificando.

Assim tem sido a educação escolar indígena em MatoGrosso. Começou pequena, frágil, tímida e com o tempo foicrescendo, tornando-se uma necessidade, um instrumentode luta dos povos indígenas. Nasceu no contexto dos proje-tos de formação de professores leigos, como o Inajá, o Ho-mem-Natureza e o Geração, em meados da década 80, atétomar corpo, em 1996, na forma de cursos de MagistérioEspecífico e Diferenciado, como o Projeto Tucum e oUrucum/Pedra Brilhante. Das reflexões advindas das eta-pas do Projeto Tucum, floresceram as discussões acercada formação de professores indígenas em nível superior.Um trabalho árduo e ousado de mais de quatro anos, reali-zado pela Comissão Interinstitucional e Paritária, que tinhaa participação efetiva de representantes indígenas. A partirdesse esforço coletivo, surgiram as três primeiras Licencia-turas Específicas e Diferenciadas para a Formação de Pro-

* Dr. em Educação, Docente no Departamento de História da UNEMAT, Coordena-dor do 3º Grau Indígena.

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fessores Indígenas do país, através do Projeto 3º Grau Indí-gena, uma proposta implementada pela SEDUC, UNEMATe FUNAI no estado de Mato Grosso, que atende 200 profes-sores indígenas de 36 etnias e 13 estados da Federação.

O Vestibular Indígena, o primeiro do país, realizadoem duas etapas, nos dias 30 de março e 05 de abril de 2001,com 570 candidatos inscritos, onde estiveram presentes ín-dios de 14 estados brasileiros, foi, sem dúvida, uma vitóriada cidadania e do respeito à diferença.

Colocar o Projeto 3º Grau Indígena em prática foi umlongo caminho. Uma trajetória de luta política, de articula-ção do movimento dos professores indígenas por meio demobilizações e reuniões apoiadas pelo Conselho de Educa-ção Escolar Indígena de Mato Grosso. Enfim, foi uma lutapela cidadania e pela busca da regulamentação dos direitosdos índios no campo da educação.

A Constituição de 1988 representou um marco nadefinição das relações entre o poder público e as socieda-des indígenas. Foi a partir desse documento que o Estadobrasileiro reconheceu oficialmente a existência de diferen-tes sociedades indígenas no interior da nação, garantindoaos ameríndios o direito de ser e de viver conforme suas

Vestibular Indígena, março de 2001.

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formas de organização social, costumes, línguas, crenças etradições. Reconheceu também o direito originário sobre asterras que tradicionalmente ocupavam. Outro aspecto im-portante presente neste documento encontra-se no artigo210, que assegura às sociedades indígenas o direito a umaeducação escolar específica e diferenciada, bilíngüe eintercultural, reconhecendo a utilização das línguas nativase dos seus processos próprios de aprendizagem.

A Constituição Federal representa o primeiro textoque explicita a relação do Estado com os povos indígenas,reconhecendo a diversidade étnica e o respeito à diferença,afastando-se, desse modo, do caráter integracionista pre-conizado durante vários séculos, em todo o país.

Essa mudança de paradigma na relação entre o Es-tado brasileiro e as sociedades indígenas teve amplos refle-xos no contexto da educação escolar, abrindo novas possi-bilidades de se pensar uma nova escola indígena, longe dasdoutrinas positivistas, civilizatórias e evangelizadoras que atéentão se faziam presentes na educação ofertada às popula-ções indígenas.

Para Nietta Monte “... é como se as vozes das socie-dades indígenas, há séculos silenciadas pelas políticas edu-cacionais, finalmente pudessem formular e explicitar seuprojeto de escola, fazê-lo ecoar e reproduzir, ainda que so-bre intenso debate e conflito, em forma de novas propostasde políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado Bra-sileiro” (Monte, 2000).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB/1996,veio reforçar a legislação educacional, disposta na Consti-tuição Federal, acentuando a diferenciação da escola indí-gena das demais escolas do sistema de ensino brasileiro,incentivando uma educação bilíngüe, intercultural, com ca-lendários adequados às particularidades locais e aos proje-

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tos societários de cada comunidade.A educação escolar específica e diferenciada não se

trata de uma educação de qualidade inferior, de uma forma-ção menor do que a formação presente nas escolas dosnão-índios. O que ocorre é exatamente o contrário. Ao servoltada para as especificidades e as diversidades, ela setransforma em uma educação de qualidade, uma educaçãoque atende aos anseios e expectativas de cada grupo soci-al. Uma educação na qual se aprende “o saber do branco”sem esquecer ou desmerecer “o saber do índio”.

A base dessa educação específica e diferenciada éa interculturalidade, isto é, o diálogo entre as culturas, o in-tercâmbio positivo e enriquecedor entre as diversas socie-dades, sem que uma se sobreponha em relação à outra.

A educação intercultural valoriza o desenvolvimentode estratégias que promovem a construção das identidadesparticulares e o reconhecimento das diferenças. Trabalhana perspectiva de que as instituições educativas reconhe-çam o papel ativo do educando na elaboração, escolha eatuação das estratégias pedagógicas. Essa prática educa-cional está constantemente repensando as funções, os con-teúdos e os métodos escolares, de modo a afastar-se docaráter monocultural presente no universo escolar.

A educação diferenciada voltada para as populaçõesindígenas pressupõe uma constante reflexão de sua práticapedagógica, constituindo-se em um processo que tem comoponto de partida e de chegada a perspectiva das comunida-des indígenas. Nela, busca-se a afirmação étnica de cadapovo, valorizando as línguas, os costumes e as tradições.

Na elaboração dos projetos de educação específicae intercultural no Brasil, precisa-se levar em conta aespecificidade da formação histórica e social do povo brasi-leiro. É essencial desenvolver um modelo de formação de

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professores indígenas que não ensinem apenas os conteú-dos universais, mas que introduzam, na escola, conteúdospróprios da cultura indígena, que valorizem e reafirmem osaber de cada povo.

Por meio do ensino voltado à realidade da cada co-munidade, estaremos dando subsídios para que os índiosestabeleçam limites da integração com a sociedadeenvolvente. A escola é o portal de entrada para esse mundoque está fora da aldeia. É nesse sentido que a escola ganhao interesse dos índios. A grande demanda é conhecer omundo do branco: os códigos, os valores. É preciso dar con-dições para que se estabeleça esse contato de forma posi-tiva e enriquecedora (Grupioni, 2000).

É preciso uma troca, um diálogo entre culturas dife-rentes. Com essa educação, os índios terão condições delidar com nossa sociedade.

Nessa nova proposta de educação incentiva-se arelação entre ensino e pesquisa, rompendo com a práticaescolar reprodutivista, elitista e chanceladora de conheci-mentos presentes na educação brasileira de um modo ge-ral. Em um processo educacional voltado para a realidadesociocultural de cada povo, a aprendizagem estará intima-mente relacionada com a produção do conhecimento. A in-vestigação abrirá caminho para a criação de espaços decomunicação e troca de experiências, garantindo a perma-nente ressignificação de novos conhecimentos.

A integração entre ensino e pesquisa possibilita afas-tar-se do lugar comum da sala de aula, onde geralmenteacontecem as atividades didático-pedagógicas; proporcio-na o rompimento da prática escolar reprodutivista, condu-zindo à abertura de novas fronteiras pedagógicas. Formam-se docentes cujas atividades se ampliam para além da salade aula (Albuquerque, 1997).

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Por meio da educação diferenciada, busca-se afas-tar do ensino monoculturalista, presente no sistema tradici-onal de ensino brasileiro, que prima pela reprodução de umaordem social estratificada da sociedade, onde as classeshegemônicas reproduzem seus valores e seus princípios deorientação da conduta social, e as culturas dos grupos soci-ais minoritários são estereotipadas ou silenciadas (Bandei-ra, 1995).

Deve-se caminhar para uma educação que promo-va uma melhoria da qualidade de vida dos educandos. Nãoadianta aprender por aprender, tem que ter um sentido, umautilidade. É fundamental ensinar o que é preciso aprenderpara ser cidadão, para decidir, planejar e expor suas idéias.Para que possa ter participação na sociedade em que vive.Tem que habilitar o profissional-docente, pessoa capaz deatuar como agente transformador da realidade em que seinsere.

Com uma educação específica e diferenciada pre-tende-se, na verdade, ter um ensino de qualidade, dialógicoe problematizador, que conceba a educação como uma prá-tica para a liberdade. A sala de aula passa a ser um espaçode reflexão e construção coletiva do conhecimento, de per-

Aula de Ciências Matemática e da Natureza.

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cepção de outras lógicas, onde as diferenças são respeita-das. Um lugar de troca, de compreensão das diferentes con-cepções de ser e estar no mundo.

Por meio dos cursos de Licenciatura Indígena, os pro-fessores indíos serão instrumentalizados de modo que, apartir daí, possam buscar os conhecimentos que conside-ram importantes na sua vida. É preciso estar atento paraque o ensinado em sala de aula, pelos professores não-ín-dios, tenha ressonância na escola da aldeia. É fundamentalfazer emergir o conhecimento de que são portadores, valo-rizar esses conhecimentos, estabelecer a relação senso co-mum/saber científico sem perder a riqueza e a especificidadedo conhecimento empírico.

Uma educação específica e diferenciada não deveser implementada apenas para as populações indígenas,deve ser implementada nas diferentes regiões do Brasil, umavez que somos uma nação plural, constituída pela miscige-nação de diferentes povos que vieram para esse país dedimensões continentais. Não se pode pensar em um siste-ma de ensino único para o Brasil, em propostashomogeneizadoras de ensino-aprendizagem – que cami-nham para a exclusão, a modelagem conceitual e oinsucesso escolar – quando, na verdade, somos um paísmultiétnico e pluricultural.

Educação específica e diferenciada representa o ca-minho para o reconhecimento da cidadania plena, para orespeito à diferença e para a busca de um futuro com maio-res possibilidades de igualdade social.

O Projeto de Formação de Professores Indígenasem Nível Superior – 3º Grau Indígena, trata-se de um proje-to constituinte, que está abrindo caminho, procurando esta-belecer o diálogo entre as diferenças étnicas e culturais, unin-do o saber do índio ao do não-índio, possibilitando a visibili-

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dade das diferentes lógicas e nos abrindo para lidarmos comas nossas intolerâncias cognitivas.

A presença de 200 professores indígenas, de 36etnias, na Universidade, significa o reconhecimento públicoda existência de outras identidades e de outras formas desaber que não apenas a do “homem branco”. Significa aoportunidade de empreender o fortalecimento e a valoriza-ção da auto-estima dos povos indígenas do Brasil, fustigadapelo processo colonizador empreendido nos últimos sécu-los.

Aula Inaugural, 09 de julho de 2001.

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Acadêmicos do Projeto, I Etapa de Estudos Presenciais.

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Por meio do 3º Grau Indígena estão sendo oferecidos

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três cursos de licenciatura, nas áreas de Ciências Matemá-tica e da Natureza, Ciências Sociais e Línguas, Artes e Lite-raturas.

Com uma educação diferenciada, estaremos nosafastando da possibilidade de reproduzirmos as formas tra-dicionais da sociedade ocidental ver e pensar o mundo. Paraisso, é imprescindível conceber a cultura como permanenteprocesso de transformação, como algo dinâmico, em cons-tante ressignificação.

Outro aspecto importante da educação diferenciadareside na garantia da permanência do professor indígenaem contato com sua comunidade de origem, fazendo comque ele desenvolva habilidades e conhecimentos moldadosnas relações com o seu povo. Desse modo, o ensino passaa ser contextualizado, com amplas possibilidades de desen-volver as competências necessárias em cada formador.

Será na perspectiva da problematização e da inves-tigação, com uma postura dialógica de entendimento e com-preensão dos modos de inteligibilidade dos professores ín-dios, que estaremos estabelecendo um novo paradigma naforma de pensar a diversidade no campo da educação.

O projeto do 3º Grau Indígena será semente que fru-tificará no futuro, que deixará em cada um de nós o privilé-gio de estarmos frente a frente com a própria humanidade ea sensação de termos participado desse movimento pelacidadania e pelo respeito à diferença.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Judite G. “Parceladas: uma proposta deintegração entre ensino e pesquisa”.In: Revista Edusp. SãoPaulo: Edusp, 1997.

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BANDEIRA, M. de Lourdes. Antropologia: Diversidade e Edu-cação, Nº. 4, Cuiabá: Ed. UFMT, 1995.

GRUPIONI, Luíz D. Benzi. In: Jornal do MEC. Ano XVII, Nº02, Brasília: Abril, 2000.

MONTE, Nietta L. “Os Outros, Quem Somos? Formação deProfessores Indígenas e Identidades Culturais”. In: Cader-nos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, nº111, 2000.

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CIÊNCIAS SOCIAIS NO PROJETO 3º GRAU INDÍGENA:FOCOS PRINCIPAIS

Susana M. Grillo Guimarães*

Duas orientações principais balizam a equipe da áreade Ciências Sociais, envolvida com o desafio que represen-ta este projeto ao qual estamos nos dedicando. A primeira étrabalhar no sentido de construir a autonomia intelectual dosprofessores indígenas para formularem os projetos político-pedagógicos das suas escolas. A segunda é o exercício deconstrução de propostas curriculares interculturais – discus-são em que desembocamos necessariamente, quando noscolocamos a teorizar e a praticar a educação diferenciada eespecífica, derivada do princípio do reconhecimento da di-versidade sociocultural.

Isso porque acreditamos que o Projeto 3º Grau Indí-gena, por ser uma iniciativa pioneira, terá que gerar discus-sões e inovações na área da formação de professores paraa prática pedagógica, em contexto de interculturalidade -espaço de conhecimento e atuação recentes na história dopaís, associados à redemocratização do Estado brasileirocom foco nos direitos humanos, à afirmação dos povos indí-genas e à redefinição de seus direitos.

Nesse sentido, o objetivo e compromisso a seremalcançados pela área de Ciências Sociais, nas licenciaturaspara a formação de professores indígenas, é colaborar para

* Indigenista, com Mestrado em Educação, Consultora e Docente na Etapa deCiências Sociais I.

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que se efetive a autonomia intelectual dos professores naformulação dos projetos político-pedagógicos de suas es-colas. Autonomia compreendida como um processo de afir-mação de sujeitos e horizontes educativos ligados à temáticados direitos de povos minoritários, inseridos num EstadoNacional, que legisla e estrutura sistemas e processos deeducação escolarizada. Este Estado, em decorrência domovimento social pela afirmação dos direitos dos povos in-dígenas1, vem, a partir da década passada, redefinindo di-retrizes para uma política educacional a ser desenvolvidano contexto da pluralidade cultural, constituindo umparadigma que se pauta por reconhecer, no espaço da edu-cação escolarizada, a inserção dos universos culturais indí-genas, via atenção a seus processos próprios de aprendi-zagem e à utilização das línguas indígenas no Ensino Fun-damental. Estas estratégias, no campo educacional, tam-bém derivam ao Estado se atribuir o dever de proteger asmanifestações culturais de matrizes indígenas2.

As diretrizes gerais da educação escolar indígena3,que ficam postas, então, são indicativas de possibilidadesabertas – interculturalidade, diferenciação, especificidade ebilingüismo – para a prática pedagógica, em contexto desócio-diversidade, ampliadas e confirmadas com o que dis-pôs, como princípio, a LDB-96, quanto à construção do pro-jeto político-pedagógico pelos professores, em articulaçãocom suas comunidades4 .

1 Necessário dizer que esse quadro sustentador de pontos inovadores foi seconstituindo a partir da mobilização política de representantes dos povos indíge-nas para fazer valer seus direitos, tendo como aliados organizações da socieda-de civil que tinham como pauta de atuação a defesa dos direitos de minoriasétnicas submetidas a uma política colonialista de negação da pluralidade cultural.2 Constituição Federal, artigo 215, § 1º, e artigo 216.3 Diretrizes para uma política nacional de educação escolar indígena, MEC, 1993.4 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 3.394/96), artigo3º, inciso III,e artigo 13, incisos I e VI.

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O norteamento da equipe de Ciências Sociais, comvistas a favorecer a autonomia intelectual dos professoresindígenas, decorre da diretriz com que trabalharemos, queé a da valorização da sócio-diversidade, revendo edesconstruindo práticas pedagógicas que por muito tempoestiveram a serviço da dominação cultural, do apagamentoda diferença cultural (Sacristán, 1995:84).

Pretendemos, então, desenvolver nosso trabalho naperspectiva de oferecer instrumentais teórico-práticos aosprofessores que sejam competentes para fundamentar suasopções, escolhas políticas, experimentações, que vão de-terminar a construção dos projetos político-pedagógicos nassuas escolas (Giroux & McLaren, 1995:145). Esperamos,com isso, auxiliar os professores para que se tornem prota-gonistas, juntos com suas comunidades, na problematizaçãoe definição do papel que a instituição escolar terá para seupovo, na sua gestão e organização e nas decisões quantoaos princípios da proposta curricular.

Entendemos que a escola pode desempenhar umimportante papel ao se tornar um espaço de reflexão e cons-trução de conhecimento sobre a realidade interétnica, suahistória e fator (a realidade) de reordenamentos econômi-cos, políticos, sociais e culturais a partir das relações sociaiscomplexas que ficam postas.

A formação do professor deve, portanto, desempe-nhar uma importante função de ampliar o quadro de análisee conhecimento sobre a situação atual, vivida por cada povo,que possa historicizar o processo, apontar caminhos, alter-nativas, afirmar sonhos, definir ações positivas, orientar dis-putas por novos espaços, novas formas de maior e melhorinteração com a sociedade majoritária.

Para isso, pensamos em trabalhar os fundamentosque regem as práticas pedagógicas, muitas vezes não

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explicitados, nem conhecidos, que são as concepções dehumanidade (Braggio, 1992:7), sociedade, tempo/espaço,conceitos de cultura, colonialismo, dinamismo social, aquisi-ção de conhecimento etc. É no desvelamento dessas con-cepções e na problematização de conhecimentos que ori-entam o trabalho pedagógico crítico que alcançaremos osprincípios da especificidade, da diferenciação e dainterculturalidade que definem a educação escolar indíge-na. A renovação da prática pedagógica se concretizará apartir do conhecimento e da análise crítica sobre as heran-ças deixadas por modelos homogeneizantes, presentes naspráticas organizativas e metodologias vividas por professo-res e alunos (Sacristán, 1995:104), mudando processosexternos e internos à sala de aula desenvolvidos na educa-ção institucionalizada (idem, p. 88).

A partir dessas bases, estaremos ajudando a formarum perfil de professor que analise criticamente o papel daeducação escolar (Giroux & McLaren, 1995:146); conheçaa história da educação escolar, em sua comunidade, e comoela deve ser transformada, para estar a serviço dos projetosde futuro vislumbrados por seu povo; seja capaz de analisarmateriais didáticos disponíveis e de produzi-los a partir deuma política editorial definida com sua comunidade que ul-trapasse e/ou amplie modelos tradicionais de materiais di-dático-pedagógicos; seja capaz de organizar e gerenciar aescola de sua comunidade; seja capaz de traduzir eoperacionalizar, na proposta curricular, seus interesses e ex-pectativas. É fundamental fazer com que a escola estejavoltada para focos específicos e diferenciados de cada povoindígena, tendo como pressuposto uma visão dinâmica eflexível do suporte que poderá estar dando. É fundamentaltornarmos as escolas das aldeias escolas comunitárias, aber-tas, flexíveis, críticas, propositivas, dinamizadoras de refle-

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xões e projetos5.Quando falamos de proposta curricular intercultural,

estamos nos referindo, em primeiro lugar, a um amplo e com-plexo problema – a capacidade de a educação escolarizada,cujo modelo tradicional é homogeneizante e eurocêntrico,acolher a diversidade. Em segundo lugar, o tratamentosimplificador que essa questão geralmente apresenta(Sacristán, 1995:82). Devemos estar atentos para entenderque não se trata somente de relacionar itens de conteúdosque seriam considerados pertinentes para a abordagem dadiversidade sociocultural. O resultado dessa estratégia égerar a expressão de aspectos reificadores de cultura, to-mando, muitas vezes, a cultura como uma referência a sis-temas isolados e monolíticos, sem intercâmbios, trocas so-ciais. Desse modo, a perspectiva de uma proposta curricularintercultural deve ser ampliada e complexificada.

Esta proposta não pode estar separada das condi-ções sociais, políticas e econômicas concretas de cada povo(Sacristán, 1995:93). Cada situação é singular e deve imporum direcionamento para a sua construção. Além desse as-pecto, temos também a própria organização do tempo eespaço e também uma leitura de prioridades e interessesque podem não ser coincidentes com nossas visões e prá-ticas curriculares. A proposta curricular intercultural exige quenovas representações estejam contempladas, novos ato-res participem de sua elaboração. Assim, têm que estarprevistas e equacionadas estratégias para a participação deatores sociais antes afastados dessas práticas.

Desse modo, espera-se que os professores-cursistasparticipem da avaliação do Projeto do 3º Grau Indígena, nadiscussão sobre a organização e metodologias vivenciadas

5 Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas, MEC, 1998.

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nas etapas intensivas, nos estudos que são propostos, naanálise da situação da educação escolar indígena em cadapovo – um conjunto de práticas importantes para o exercí-cio de uma pedagogia crítica.

Nesse aspecto, a formatação do Projeto do 3º GrauIndígena constituiu-se em exercício de prática de planeja-mento educacional intercultural, quando professores indíge-nas da Comissão Interinstitucional e Paritária, criada paraformular o anteprojeto de cursos específicos para a forma-ção de professores indígenas, participaram das discussõese deliberações quanto às diretrizes gerais dos cursos6.

Na montagem da proposta curricular intercultural,teremos que tratar de questões com as quais não estamosfamiliarizados e sobre as quais se construíram preconceitose visões equivocadas, como o papel da escrita, a naturezaágrafa dos povos indígenas (Vidal, 1992:13), o valor comodocumento legitimador para os materiais escritos (Oliveira,2001:24), o não tratamento da oralidade, entre outros.

Nesse aspecto, pretendemos colocar em discussãoa primazia que a cultura escrita vem assumindo em váriosprojetos de educação escolar indígena, é claro que a servi-ço da afirmação da diversidade sociocultural, mas não po-demos deixar de reconhecer que os povos indígenas se va-leram de outro produto cultural para resistir ao processo decolonialismo. Estamos falando da cultura de transmissão viaoralidade que, proponho, passe a ser analisada e estudadacom toda a importância que a cultura escrita tem nas práti-cas pedagógicas. Impomos o mundo da cultura escrita, semantes tratar, ou entender, o universo, o alcance da oralidade.Trabalhamos com a suposição generalizada de que a escri-

6 Goveno do Estado de Mato Grosso. Projeto de Cursos de Licenciatura Especí-ficos para a Formação de Professores Indígenas. Cuiabá: SEDUC-MT, UNEMAT,FUNAI, 2001.

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ta tem um valor em si e através dela se atinge o domínio deoutros códigos da sociedade ocidental. Uma conseqüênciadesse tratamento naturalizador dos produtos culturais dasociedade majoritária é anular uma dimensão política quedeveria ter um peso maior nas discussões sobre educaçãointercultural (Guimarães, 2001:111). Temos que nos recor-dar que as sociedades indígenas, nos dias de hoje, aindatêm na oralidade um forte mecanismo de reprodução social.O estudo da força e dinamismo dessa forma de reproduçãosociocultural ainda é pouco desenvolvido. Cabe a perguntaque me faço freqüentemente: dado que não conhecemoscom profundidade o universo da oralidade, tanto em termosgerais quanto em termos específicos a uma sociedade de-terminada, não teríamos que estar abrindo espaços de re-flexão e discussão entre nós e os professores em formaçãosobre questões ligadas à escrita e à oralidade como cons-truções culturais específicas, de resultados diferentes e comdiferentes valores internos? Assim, estamos nas oficinas deprodução de textos escritos, nos cursos, constituindo prestí-gio para autores indígenas que vão se tornando experts, e osão na verdade, empregando com competência crescentea linguagem escrita, formando sua individualização a partirde um instrumento socializado e já repleto de cânones. E oprestígio de pessoas da comunidade, construído ao longode uma vida inteira em saberem manejar o discurso oral, odomínio da oratória, o carisma em prender a atenção e afantasia de ouvintes, a revelação de um aprendizado sofri-do e permanente de uma vida inteira? A raridade e a rique-za de uma pessoa como essa dentro de uma pequena co-munidade. A pedagogia crítica indígena deve pesquisar aoralidade, seu valor e uso como instrumento pedagógico.

Com isso, nossa pauta está definida em torno dosseguintes pontos-chave: autonomia intelectual dos profes-

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sores indígenas, educação intercultural, análise crítica dosprocessos organizativos e das metodologias na história daeducação escolar indígena, pesquisa sobre oralidade comoproduto e estratégia social, a diversidade na educaçãoescolarizada, a interdependência entre os diversos camposde conhecimento.

Creio que o Projeto de Cursos de Licenciatura Espe-cíficos para Professores Indígenas poderá contribuir para aproblematização e teorização dessas questões num cená-rio de verdadeiro diálogo intercultural.

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A EDUCAÇÃO E A DIVERSIDADE CULTURAL

Francisca Novatino P. de Ângelo*

Para falarmos sobre a educação e a diversidade cul-tural, se faz necessário situarmos e reconhecermos os avan-ços na atualidade, partindo da escola civilizatória ecatequizadora, até a conquista dos direitos constitucionais.

Era um Estado “brasileiro-europeu” que pensavanuma escola para índios, com a finalidade de “civilizar”, atra-vés da transmissão dos conhecimentos e dos valores dasociedade ocidental. Nesse contexto, as línguas indígenasforam consideradas importantes pelos colonizadores paraesse processo, na tradução ou como meio de facilitar acatequização dos povos. Esse pensamento de acreditar queos povos indígenas eram seres humanos que atendiam auma lógica de desenvolvimento biológico, ou seja, que associedades indígenas, sem escrita, são atrasadas, primiti-vas, que seguiriam uma evolução biológica até atingirem acivilização, atravessou séculos e trouxe grandes conseqü-ências e perdas irreparáveis para os ameríndios. Essa teo-ria fazia parte da política de colonização da época. Quantospovos desapareceram baseados nesse entendimentoeurocêntrico? Fomos julgados, ao longo da história, comoselvagens e primitivos, tratados a ferro e a fogo. Acostuma-ram-se a nos tratar como se fôssemos todos iguais, como

* Índia Paresi, Historiadora, Presidente do Conselho de Educação Escolar Indíge-na de Mato Grosso, Professora Auxiliar na Etapa de Ciências Sociais I. Textoapresentado em palestra proferida durante o Congresso Brasileiro de Qualifica-ção na Educação - Formação Profissional, outubro de 2001.

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se não existisse a diferença entre os povos. Diante disso,surgiram variados tipos de preconceito, que justificaram otratamento violento sofrido nesses séculos.

Daí surgiu o processo de escolarização, dentro deuma política indígenista integracionista, que estabeleceu,com os povos indígenas, relações com o Estado lusitano,numa prática de controle político e civilizatório, aliado aoproselitismo religioso dos missionários jesuítas.

A educação escolar foi utilizada como uma ferramentade catequização, como aliada na discriminação e na visãoideológica do “índio”, que influenciou a formação do povobrasileiro. São construções ideológicas de desvalorizaçãoda imagem do outro, feitas pelo “branco europeu”, que fo-ram inseridas nos currículos escolares, e se perpetuarampor muitos séculos, contribuindo para o massacre culturaldos povos.

Outra idéia era acreditar que o “índio” não tinha pas-sado histórico, conhecimento e até alma. Eramdesconsideradas as narrativas históricas dos povos, relaci-onando-os há um tempo primitivo. A imposição do processoescolar entre os povos destruiu conhecimentos milenares,guardados na memória coletiva de cada povo e importantespara a humanidade. Por isso, muitos povos foram extintos eoutros sobreviveram, mas perderam parte de elementos cul-turais como a língua e o território, porque foram obrigados anegar sua identidade para serem tratados como brasileiros.

Desde esse tempo, fomos negados também na cons-trução da história deste país, tratados como gente de acor-do com a conveniência dos europeus. Quando havia resis-tência por parte dos povos, a declaração de guerra justacontra estes era inevitável, tornando-se uma luta desigual.A educação escolar e o manual didático reforçou e difundiuessa tese no ensino público. Por muito tempo a educação

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escolar indígena permaneceu na responsabilidade de missi-onários de diversas ordens, apoiados pelo Estado brasileiro.

No século passado, a SIL – Sociedade Internacionalda Lingüística, instituição religiosa, que tinha a missão deeducar os índios e salvar as suas almas, se utilizou das lín-guas indígenas para o convertimento religioso e civilizatório,através da imposição de adotar normas gramaticais e siste-mas de tradução das histórias bíblicas, mas partindo dosvalores, princípios e conceitos da sociedade ocidental. Mui-tos povos tiveram sua língua escrita, mas o preço pago porisso foi a conversão religiosa, descaracterizando a sua cul-tura. Dessa forma, surge o monitor bilingüe, um professorindígena, domesticado e submisso, criado para servir aosinteresses da missão religiosa e na alfabetização da línguaindígena, que somente serviria para a leitura da bíblia. Todoesse pensamento de “civilizar”, “integrar” os povos à socie-dade nacional, herança deixada pelos colonizadores, influ-enciou a visão do Estado, através da legislação e da políticaindígenista, criando uma tutela assistencialista de caráterdependente.

A partir da década de setenta, houve mudan-ças, nesse contexto, em nível internacional e nacional, coma mobilização e reorganização dos povos indígenas, apoia-dos por entidades e em colaboração com os demais seg-mentos. As relações dos povos indígenas, com a socieda-de civil, foram estabelecidas através da articulação entre asorganizações não-governamentais, conquistando espaçossociais e políticos, contrariando as ações integracionistasdo Estado brasileiro.

A escola passou a ser pensada dentro dos direitoshumanos e sociais, foi reconhecida a diversidade cultural eas experiências sócio-políticas, lingüísticas e pedagógicasna valorização do saber tradicional dos povos. Reconhecen-

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do a educação comunitária dos conhecimentos construídos,ao longo destes séculos, dos processos próprios de apren-dizagem e a visão de mundo de cada povo. Alguns órgãosdo Estado apoiaram e passaram a discutir a educação es-colar, dentro de uma nova visão de respeito à educaçãointercultural e de afirmação étnica. Os índios, numa neces-sidade de se apropriar dos conhecimentos da sociedade na-cional e para fazer valer esses direitos, se organizaram nabusca da sua autodeterminação.

Na minha experiência como militante do movimentoindígena, participar desse momento histórico de reconheci-mento da valorização da cultura indígena na Constituiçãobrasileira foi valioso para a afirmação da identidade negadaaos nossos antepassados. São conquistas que mostrarama nossa resistência a séculos de opressão, garantindo paraas novas gerações um futuro promissor de liberdade. A par-tir daí, muitos povos surgiram do silêncio secular imposto.Sabemos que a luta continua num novo contexto, a educa-ção será um campo de novas conquistas, em busca da rea-lização do projeto coletivo de cada povo.

Neste cenário nacional de mudanças de paradigmasobre a educação escolar, os povos aprenderam a se orga-nizar e a reivindicar seus direitos de cidadania, reconhecen-do que, mesmo sendo originários e nativos desta terra, naprática, a cidadania não existia. Os movimentos sociais fo-ram importantes na contribuição para a mobilização indíge-na e a sensibilização da consciência de setores da socieda-de brasileira. Surgiram várias entidades que apoiaram e co-laboraram com os povos indígenas nesse momento de or-ganização e articulação dos espaços sociais e políticos coma sociedade civil.

No entanto, a experiência dessa história contribuiuimensamente na luta pelos nossos objetivos, a escola é

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nosso verdadeiro instrumento de consolidação dos direitosconquistados. Não basta apenas adquirir os conhecimen-tos, é necessário que seja garantida também a realizaçãodo projeto social para construirmos a escola indígena cida-dã. Um espaço importante para novas gerações com espíri-to crítico e participativo, que contemple a valorização da cul-tura indígena.

Esse é nosso grande desafio, diante das exigênciasda sociedade ocidental, sendo também desafio da escolapública dos não-indígenas para garantir um ensino de qua-lidade para todos e, ao mesmo tempo, respeitar a diversida-de regional, social e cultural. Trata-se de construir uma novaescola pública com a participação de seus beneficiários, comnovas posturas na política educacional. Sabemos que a his-tória dos nossos antepassados, guardados na memória co-letiva de cada povo, será o alerta da experiência vivida pelocontato. Cada povo construirá sua própria escola indígena,baseada nessas experiências. Considerando as práticas pe-dagógicas e os conhecimentos adquiridos ao longo desseprocesso, estarão construindo a vida comunitária, em que aeducação escolar se insere juntamente com a educação in-dígena, atendendo às necessidades de cada povo. Os sis-temas educativos indígenas são processos tradicionais detransmissão e aprendizagem de conhecimentos, nos quaisos mestres são a família e o contexto social-cultural da co-munidade. A participação da comunidade na elaboração doplanejamento curricular e político pedagógico requer a pre-sença da escola nesse processo, para congregar os proje-tos societários. Pois se trata de valorização da cultura, forta-lecimento da identidade e desenvolvimento sócio-econômi-co. Portanto, a verdadeira escola indígena será aquela pen-sada, elaborada e gerenciada pelo povo indígena. De acor-do com seus anseios, expectativas e modos de organiza-

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ção política e social, voltada para seu futuro. Sendo um pro-jeto coletivo, essa escola indígena específica e diferenciadaserá construída para efetivo exercício da cidadania e da au-tonomia. Para isso, as instituições públicas responsáveisdevem centrar esforços para providenciar estratégias de par-ticipação, sob pena de cometer a negação dos direitos cons-titucionais.

No contexto atual, a sociedade nacional também temo desafio de redefinir suas posturas, seus conceitos políti-cos e sociais, para garantir às minorias o direito à igualdadee à diferença.

Num país como o Brasil, pluricultural e multiétnico,mas marcado pela desigualdade social, corrigir os erros dopassado requer uma tomada de decisões e mudanças nasações governamentais e uma reflexão profunda na históriabrasileira. A educação pode ser um dos instrumentos peda-gógicos sociais para construir as relações interculturais, ba-seado no diálogo entre as culturas.

Os povos indígenas têm muito a contribuir na buscade um mundo melhor para a humanidade. É partindo da igual-dade, da diferença e da parceria que podemos criar o novo.Esse novo só poderá ser criado se a sociedade nacionaloferecer a oportunidade aos povos de mostrarem a sua ca-pacidade e competência de gerenciar seu próprio destino.Enfim, trata-se de construir também novas concepções deentender o outro dentro da sua potencialidade individual ecoletiva.

Concluo que a relação positiva entre educação e di-versidade cultural são fundamentais para as mudanças depolíticas, de ações, de posturas e de idéias equivocadasque degeneram as sociedades. A educação tem o dever deeducar e reeducar a sociedade para o convívio com a dife-rença entre as sociedades indígenas e a sociedade ociden-

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tal, mostrando as diferenças existentes entre as sociedadesindígenas e também na própria sociedade ocidental. Sãoconsiderações importantes que queremos como povo, cul-turalmente diferenciado, para o convívio com diálogo e comrespeito mútuo.

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EXERCITANDO O SER

Severiá Maria Idioriê Xavante*

Sou índia Karajá e Javaé. Cursei Letras Modernas eLiteraturas Correspondentes, Goiânia/GO. Cresci emGoiânia, com minha família adotiva. Aos 9 anos, perdi mi-nha mãe, de sarampo. Aos 12, meu pai morreu. Não sei acausa de sua morte até hoje. Esqueci a língua Karajá, faloPortuguês, entendo e falo um pouco de Inglês e estou apren-dendo a língua Xavante.

Aos 6 anos de idade, eu senti que precisava sair deminha aldeia. Não sabia o porquê. O tempo e as experiênci-as fora da aldeia me fizeram sentir que a inquietude se de-via aos últimos dias de vida de minha família. Iríamos come-çar a sobreviver. E a sobrevida me inquietava. Não sabiacomo poderia assegurar o nosso direito à vida. Senti queera necessário ampliar meus conhecimentos sobre o mun-do que me cercava. Entender tudo, refletir, escolher os ca-minhos e buscar soluções. Meu objetivo: estudar e voltarpara meu povo. Minha educação escolar não foi específica,nem diferenciada. Aprendi a falar Português e a ler. E “co-nheci” o mundo, lendo.

Aos 19 anos, comecei a trabalhar como monitora decrianças, próximo a uma favela. Tive várias dúvidas quantoà minha profissão, igual a qualquer jovem branca.

A única certeza que eu tinha: não quero ser profes-sora. Minha família, de classe média, me convenceu a estu-

* Índia Karajá e Javaé, Professora Auxiliar na Etapa de Línguas, Artes e LiteraturaI.

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dar Magistério, porque consegui uma bolsa de estudos deInglês. Há muito tempo queria aprender Inglês. Para minhasurpresa, adorei estudar temas referentes à educação. Pres-tei vestibular para Direito na Universidade Federal. Não pas-sei. Prestei para Letras. Todos sabiam que assim que euterminasse os estudos retornaria à aldeia.

Senti que precisava voltar ao meu povo, porém nãodesejava ir primeiro ao Karajá ou Javaé. Busquei informa-ções sobre os projetos da universidade.

Foi aí que começou a grande guinada. Tinha novosquestionamentos e reflexões. Sempre tinha tido a certezade que minha formação me auxiliaria na aldeia. Na prática,visitando e trabalhando em um Projeto de Educação, emuma aldeia Krahó, em Tocantins, constatei o quanto os con-ceitos da cultura “branca” estavam impregnados em mim. Avisão de mundo, o conceito de higiene, beleza física e sexu-alidade eram diferentes do povo indígena. Entrei em conta-to com o preconceito “pesado” dos não-índios. Vi o ódio e oespanto nos olhos das pessoas não-índias.

Na aldeia, constatei que meus conhecimentos urba-nos não me permitiriam sobreviver. Não conhecia o cerra-do, não sabia fazer fogo ou buscar alimentos.

Em casa, comecei a refletir sobre aquilo que iria mefazer novamente feliz. Confrontei as diferenças dos conhe-cimentos e sentimentos. Pude ver quem eu era, minha es-sência.

Deixei meu coração me guiar e vi que nunca haviadeixado de “ouvir os tambores”, as vozes do meu povo. Sentique tinha sido formada para colocar o meu conhecimento àdisposição do meu povo. Juntos poderíamos afirmar, cadavez mais, nossa identidade, nossa capacidade de exercernossa cidadania, continuar o exercício de ser.

Casei-me com um índio Xavante. Tenho uma filha

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lindíssima chamada Clara. Xavante e Karajá são inimigostradicionais. Xavante é caçador. Karajá é pescador. Xavanteé sociedade patriarcal. Karajá, sociedade matriarcal. Come-çava minha formação. Os Xavante são considerados guer-reiros ferozes pela sociedade envolvente.

Porém, nunca conheci uma família mais carinhosa,mais gentil, mais risonha, mais respeitosa. O “inimigo” meensinou o quanto é importante trabalhar as diferenças parafazer este mundo um pouco melhor. Ensinou-me que a mis-são mais nobre é trabalhar pela paz, pela felicidade de to-dos. Que nós devemos aprender com os erros.

Comecei a trabalhar com projetos de meio-ambien-te. Iniciamos a implementação do Projeto Jaburu, na Reser-va Xavante Rio das Mortes, Aldeia Pimentel Barbosa. A filo-sofia do projeto estava fundamentada nos costumes tradici-onais de caça e foi pensada pelos anciãos Warodi e Sibupá.Este projeto consistia em verificar as causas da diminuiçãodos animais cinegéticos (animais de caça) utilizados pelosXavante. Uma vez detectadas as causas, buscar as solu-ções. Para os Xavante, a caça não é apenas um alimentofísico, mas sobretudo um alimento espiritual. Se não há caça,não há sonho. Se não há sonho, não há Xavante.

Ao desenvolvermos este projeto, começamos um di-álogo com a sociedade envolvente. Começamos um pro-cesso educacional e de sensibilização. Nosso objetivo eraque a sociedade nos conhecesse e nos passasse a respei-tar como pessoas de cultura diferenciada, mas pertencenteà sociedade brasileira contemporânea. Recebemos váriosamigos na aldeia, pessoas e povos do Brasil e do exterior.Fizemos palestras e exposições. Lançamos, junto com oNúcleo de Cultura Indígena, o CD Etenhiritipá, cantos datradição Xavante. Participamos do lançamento do CD Txai,de Milton Nascimento, e gravamos uma participação no CD

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Roots, da banda de rock Sepultura. Aprendemos e ensina-mos muito. Foi um processo de aprendizagem muito rico.

Até 1994, eu não havia iniciado meus trabalhos deeducação escolar por pura insegurança. Iniciei algumas ati-vidades de educação ambiental. Não queria atrapalhar o pro-cesso educacional próprio da comunidade Xavante. Quan-do via as crianças brincando, aprendendo, fazendo o exer-cício de ser eu me perguntava: Qual é o papel do profes-sor? Para que a escola? Os conhecimentos tradicionais nãosão suficientes para fazê-los cidadão Xavante/brasileiro eviverem bem?

Durante a minha formação nos conhecimentosXavante, comecei a viver segundo a visão daquele povo.No início, tive resistência. Afinal, eu tinha estudado na cida-de. Eu sabia muita coisa. Não queria voltar ao “primitivo”.Foram processos internos de aprendizagem: o que é es-sencial, o que é dispensável. Ainda estou em formação.Estou melhorando meu nível de compreensão do mundo erespeitando a visão das outras pessoas. Mudando aquiloque é possível em mim. Confesso que é um processo difícil,nem sempre alegre. Porém, é bem gratificante. E estouaprendendo que, quando as coisas não são fáceis, a me-lhor coisa é dar um mergulho no rio e dar umas boas garga-lhadas. Depois, sentar e ouvir os velhos vendo um céu todoestrelado. Ver, sentir, ouvir, falar e perguntar tudo que sequeira saber.

É necessário assegurar a continuação do conheci-mento tradicional.

É importante garantir a continuidade dos conhecimen-tos tradicionais e possibilitar o acesso aos conhecimentosuniversais. É necessária a ampliação do conhecimento so-bre os “não-índios” para entendermos as suas atitudes. Masé fundamental que a formação na aldeia, a formação tradici-

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onal, assegure o exercício de ser: continuar sentindo o orgu-lho de ser Karajá, Xavante, Bororo, Potiguara. Somente des-sa forma seremos respeitados como pessoa, povo perten-cente à grande “raça humana”, que tem o direito de exercitara diferença de pensamento e expressão cultural. É neces-sário que o povo indígena sinta e analise a sua realidade e osseus objetivos para poder executar ações positivas que for-taleçam sua identidade. É este o nosso desafio maior.

Ao mesmo tempo, é necessário conseguirmos alia-dos da sociedade envolvente. É importante podermos con-tar com pessoas da sociedade não-índia, para trabalharmosjuntos às questões educacionais. Pessoas que entendam econheçam o processo histórico ocorrido no país. Isto por-que pude constatar na prática os preconceitos diários quesofremos quando estamos na cidade. Diariamente, temosque provar que somos gente.

Para analisar a formação em educação escolar indí-gena, é fundamental a ampliação de nossa visão para ob-servar todos os aspectos. Cada povo deve pensar sua rea-lidade de educação escolar. Há que se pensar em algunspontos:

- Qual é a importância da escola e do professor paraa comunidade?

- Qual é o compromisso pessoal de cada membroda comunidade em relação à escola?

- O que é ser educador/professor?- Quais são os objetivos da educação oferecida na

escola?- Quais são os conhecimentos e as atitudes que o

educador/professor devem ter?- Como trabalhar com pesquisadores, amigos, uni-

versidade, poder público e privado? É necessário buscarparceiros?

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Estes são alguns pontos que devemos observar paraa definição do tipo de educação escolar que permite ao nos-so povo continuar o exercício de ser: ser gente feliz.

É através da análise destes vários aspectos que po-deremos executar ações positivas que consolidem uma edu-cação escolar diferenciada e específica. Uma educaçãoescolar que deve primar pela alta qualidade de trabalho ede profissionais da educação. Uma educação escolar quebusque analisar sua realidade e a sociedade em que se estáinserida. E, deste modo, busque soluções inteligentes e ade-quadas para os problemas.

Para nosso povo, aprende-se fazendo, exercitando,observando o outro. Vivendo um contínuo exercício de ser.

Uma hora sendo mestre, outra hora sendo aluno.

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A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO LINGÜÍSTICO:DO SABER DO FALANTE À PESQUISA

Bruna Franchetto*Marcus Maia**

Filomena Sandalo***Luciana R. Storto****

“Pensar na língua... você me tirou do escuro” (tre-cho da carta enviada da aldeia, em 28 de agosto de 2001,pelo professor indígena Mutuá Mehinaku - Kuikuro, para aProfª. Bruna Franchetto).

Introdução

Neste artigo, pretendemos apresentar e justificar al-gumas das idéias ou linhas de força da nossa proposta decurrículo para uma área de conhecimento definida como “Lín-guas, Artes e Literatura”, definição que recebemos dacoordenadoria do 3º Grau Indígena da Universidade do Es-tado de Mato Grosso (UNEMAT) e cuja concepção implícitapassamos a moldar e redefinir. Começamos a refletir e aprocurar operacionalizar o que seria falar, tratar, ensinar,aprender sobre Línguas ao plural, Artes ao plural, Literaturaao singular, em um curso dirigido para um público de profes-sores indígenas em nível universitário (Licenciatura). Este* Museu Nacional-UFRJ, Docente na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I.** Museu Nacional-UFRJ, Docente na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I.*** IEL-Unicamp, Docente na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I.**** Museu Nacional-UFRJ, Consultora e Docente na Etapa de Línguas, Artes eLiteraturas I.

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artigo descreve o projeto proposto e executado para a pri-meira etapa letiva, centrada no tema Gênese, na qual esco-lhemos conhecer as definições que os alunos têm de “lín-gua”, focalizando nossos esforços na discussão de precon-ceitos sobre o que seriam “linguagem”, “dialeto”, “gíria” e“gramática”.

Deparamo-nos com desafios um tanto assustadores.Primeiramente, o caráter intensivo do período letivo (60 ho-ras-aula distribuídas em aproximadamente 8 dias por se-mestre) impossibilitaria a discussão de textos longos e difi-cultaria a assimilação do conteúdo, dada a concentração detemas que seriam discutidos em poucos dias. Tal dificulda-de é real, imposta pelo fato de que os alunos são profissio-nais que já atuam nas suas aldeias, como professores, du-rante 10 meses ao ano. Por isso, o currículo de Línguas,Artes e Literatura teria que ser elaborado tendo em vistaque sua execução se daria em um período restrito a, aproxi-madamente, duas semanas ao ano.

Em segundo lugar, nos questionamos sobre os te-mas que seriam privilegiados no currículo. Decidimos que oestudo das línguas em particular e da ciência lingüística emgeral é fundamental, pois grande parte do conteúdo doscursos de Línguas, Artes e Literatura envolve, como veículoou como objeto de estudo, as línguas indígenas faladas pelosalunos, ao lado, evidentemente, do Português. Isto é óbvioquando o objeto de estudos é língua ou literatura. Já na áreade artes, tem-se como objetos de estudo, além da tradiçãooral, a música, a dança, os adornos, a pintura corporal, osartefatos, as máscaras e as diversas atividades e entidadesque um determinado povo venha a entender como “arte”,como estética, ou como “o belo”.

Um terceiro desafio enfrentado foi que tipo de profis-sional formar e o que produzir (textos, pesquisas,

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monografias etc.). O nosso objetivo com o curso de Línguas,Artes e Literatura é formar professores indígenas em nívelde 3o Grau aptos a apreciar, analisar, questionar e criar for-mas lingüísticas, artísticas e literárias em geral, com ênfasenas línguas, artes e tradições orais das etnias representa-das na sala de aula. Para tanto, estamos seguros de que énecessário provocar e acordar o estudante indígena para asua própria capacidade enquanto pesquisador e produtorde conhecimento, pois acreditamos que a construção da edu-cação diferenciada se dá com base na autonomia dos po-vos em questão. Dados os limites que se impõem, nossaidéia é que cada estudante se concentre em sua próprialíngua ou no Português regional, lendo algumas obras rele-vantes e tendo como foco a pesquisa ativa e participante. Aprodução dos conhecimentos resultantes desse processoinvestigativo será redigida em forma de material didático, emníveis variados.

Proposta do currículo de Línguas

Desenvolveremos, neste artigo, uma reflexão sobreo tema “Línguas”, deixando a discussão do currículo de “Ar-tes e Literatura” para uma próxima publicação, uma vez quedecidimos dedicar a maior parte do primeiro ano do cursoao estudo da lingüística, do Português padrão e das línguasindígenas faladas pelos alunos. Passemos à justificativa doestudo das línguas, tendo sido colocado como ponto departida e linha-mestra da área.

Há 28 línguas indígenas faladas pelos estudantesmatriculados no primeiro ano das licenciaturas, sem contaras etnias representadas que não utilizam mais a sua línguaindígena original, mas que pretendem documentá-la eresgatá-la na medida do possível:

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Línguas faladas por alunos:- Juruna, Kamayurá, Tapirapé, Apiaká, Kayabi, Irantxe,Nambikwara, Sabanê, Tukano, Tikuna, Kuikuro, Mehinako,Munduruku, Matipu, Kalapalo, Ikpeng, Bakairi, Trumai, Paresi,Baniwa, Karajá, Bororo, Xavante, Rikbaktsa, Suyá, Kaingang,Kaxinawá, e Manchineri.

Etnias cujas línguas não são mais faladas:- Tapeba, Tuxá, Potiguara, Pataxó, Tupinikim, Wassu Cocal,Umutina.

Outras etnias:- Baré e Baniwa (falantes de Nheengatu).

Frente a esta riqueza lingüística, dedicaremos a maiorparte do primeiro ano do curso ao estudo da fonética efonologia destas línguas e do Português e, no segundo ano,aprofundando posteriormente a morfologia, morfossintaxe,a sintaxe e a análise do discurso das mesmas.

Propomos uma série de passos ordenados em umaseqüência lógica ou ligados por nexos compreensíveis. Oentendimento, mesmo que preliminar, da estrutura lingüísti-ca, com seus princípios e regras naturais, permite um olharmais apurado diante dos sistemas de expressão material,gestual, rítmica, ritual. O entendimento da dialética entreuniversal e particular nas línguas permite apreciar a diversi-dade não aleatória das manifestações que nós chamamoscomo artísticas. Conhecer a língua é pré-requisito para falarde análise do discurso; uma análise do discurso atenta aoscontextos sociais e culturais permite falar dos gêneros dearte verbal, sua universalidade e especificidades, como anarrativa (mítica, ficcional, histórica), a oratória, a poética,

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etc. O ritmo está nas línguas e nas formas de arte verbal,sobretudo em sociedades de tradição oral (mas não somen-te). Ritmo, simetria, representação (em seus vários níveis)atravessam a linguagem, as línguas e as artes. Considera-mos que esta maneira de construir as relações entre as trêssub-áreas – uma entre as possíveis – é interessante, nãotrivial, para docentes e discentes.

Como vimos acima, a diversidade e riqueza lingüísti-cas representadas são enormes, e não podem ser ignora-das. Pelo contrário, devem ser reconhecidas, pensadas, ava-liadas em todas as suas dimensões. Apesar de haver umaretórica a favor da manutenção desta diversidade entre lin-güistas, pedagogos e professores atuando junto às comuni-dades indígenas, na nossa prática, percebemos uma difi-culdade de que esta diversidade e riqueza sejam levadas asério. O levantamento do MEC sobre a situação das esco-las indígenas brasileiras constatou que a presença e o usodas línguas nativas, no espaço-tempo da escola, são aindaincipientes, ou perigosamente excluídos. A valorização dadiversidade deve vir acompanhada pela valorização do alu-no como ser pensante e capaz de avaliar e decidir por simesmo sobre questões cruciais que envolvem diretamenteo estudo da língua, como por exemplo a ortografia de sualíngua indígena. Isso se dá na relação professor-aluno, quedeve estimular a dignificação do saber tradicional, a partici-pação, o debate e a reciprocidade. Procuraremos experi-mentar uma metodologia de ensino que trate seriamente oconhecimento, no nosso caso, principalmente o conhecimen-to lingüístico, e que evite, conscientemente, toda forma depaternalismo.

Na nossa experiência, os momentos mais gratifican-tes, nos cursos de formação de professores, foram momen-tos em que falamos como lingüistas, e nossos alunos, uma

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vez despidos de timidez, sentido de inferioridade etc., senti-ram-se capazes de fazer de suas línguas um objeto de re-flexão e de estudo, deslanchando processos de descober-tas, com reflexos positivos de longo alcance. Esperamos queum primeiro resultado prático dos estudos na área de lín-guas no 3º Grau Indígena seja a instrumentalização dos alu-nos para lidar com algumas das questões técnicas que es-tão por trás das ortografias: a saber, as noções de fone efonema. Num segundo momento, trabalharemos com no-ções chaves da morfologia, sintaxe e análise do discurso.Nosso objetivo final é que a produção de conhecimento porparte dos estudantes, resultante das pesquisas desenvolvi-das, volte-se, naturalmente, à realidade da escola indígena,que na maioria dos casos é ou pretende ser uma escolabilíngüe.

A língua é, por sua vez, um saber implícito, um obje-to natural que está estruturado de acordo com princípios (uni-versais ou não) e que pode e deve ser estudada pelos pró-prios falantes, que a carregam consigo a todo o momento,inconscientes das regularidades que estão nela contidas.Pretendemos, desde a primeira aula, discutir esta concep-ção de linguagem/línguas, chamando a atenção do alunosobre esta coexistência não aleatória entre o universal e oparticular, entre o consciente e o inconsciente, entre o saberimplícito e o saber normativizado. Em suma, o objetivo des-te primeiro encontro será provocar e acordar o falante paraa sua própria capacidade enquanto pesquisador e produtorde conhecimento.

Um outro tema a ser discutido será odesmantelamento dos preconceitos inferioridade-superiori-dade, pobreza-riqueza, instabilidade-estabilidade, bem comoo desmantelamento da idéia de que variação dialetal é algonegativo, de que existe apenas uma única forma certa de

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falar, o incômodo diante dos diversos registros, diante dasmudanças geracionais etc. Buscaremos apresentar tudo issocomo fenômenos lingüísticos corriqueiros com significadossociais e culturais, não como anomalias que caracterizamlínguas de tradição oral ou “inferiores”. Assim, o estudo téc-nico da lingüística caminhará, neste currículo, lado a ladocom uma problematização sobre o uso político de certasnoções lingüísticas equivocadas.

Finalmente, trataremos do uso do Português padrão,dentro do currículo, através de exercícios de leitura, inter-pretação e escrita, além de aulas expositivas, em que osprincipais problemas encontrados, na produção de textos,serão discutidos. Estudar o Português é uma reivindicaçãodos alunos, que sentem a necessidade de comunicar-se deforma efetiva com a sociedade envolvente na sua buscapela cidadania. Para tanto, atividades de estímulo à leitura eescrita serão propostas também dentro da etapa intermedi-ária, principalmente através do exercício de elaboração dedocumentos úteis, assim como cartas, memorandos, ofíci-os e projetos. Além da falta de familiaridade com o mundoda escrita, o que é natural em culturas de tradição oral, osalunos do 3º Grau Indígena apresentam dificuldades relaci-onadas ao fato de serem falantes do Português como se-gunda língua. O currículo trata esses fatos como naturais, eprocura trabalhar as dificuldades que surgem, no uso doPortuguês, como típicas de qualquer aprendizado de segun-da língua.

As aulas serão organizadas da seguinte forma: es-pera-se introduzir todo e qualquer tema através de discus-sões iniciais em grupo, nas quais o professor estimulará odebate sobre cada tópico ao fazer perguntas que permitamaos estudantes pensar sobre questões relacionadas ao con-teúdo que se pretende estudar. Durante a discussão, o pro-

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fessor fará notas no quadro negro, com o objetivo de resu-mir as diversas opiniões emitidas e as questões levantadas.O que se está buscando com este exercício é mapear asexpectativas, os sentimentos, as crenças e a experiência detodos os alunos sobre os pontos em discussão. Após esteprimeiro momento de problematização, o professor deveráfazer conexões entre a realidade do aluno e o conteúdo aser discutido, procurando utilizar os exemplos levantados nadiscussão para introduzir os conceitos a ser estudados. Naexposição dos conceitos, o professor deverá, sempre quepossível, estimular a participação dos alunos para que a aulanão seja desinteressante ou distante da realidade do aluno.De fato, o professor visará obter a participação ativa dosalunos na construção dos conceitos e em sua formulaçãonas diferentes línguas. Em algum momento, os alunos de-verão trabalhar em grupo por, pelo menos, uma hora, pro-curando resolver algum problema específico relacionado aoconteúdo. Idealmente, os professores estarão sempre infor-mados das questões levantadas nas salas de aula de seuscolegas, em busca de um constante aprimoramento da di-dática utilizada.

Uma fase importante do Projeto 3º Grau Indígena éa chamada “etapa não presencial” ou “etapa intermediária”,quando os alunos, de volta às aldeias e, por sua vez, pro-fessores, devem, em princípio, continuar um processo deformação, contando com visitas dos professores auxiliarese de um professor titular. Durante esta fase, os conteúdosdiscutidos nas etapas presenciais serão trabalhados atra-vés de pesquisas interdisciplinares, bem como de exercíci-os específicos de cada área. A proficiência em língua portu-guesa, tão almejada pelos alunos, será igualmente traba-lhada nessas etapas, através de exercícios variados de lei-tura, interpretação e redação. Neste sentido, serão elabora-

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dos manuais de leitura e produção de textos, utilizando-se,inclusive, práticas e textos relevantes para as outras áreasdo projeto, cujos docentes deverão também empenhar-sena tarefa de capacitação oral e escrita dos alunos. Espera-se que os professores auxiliares participem das aulas, estu-dando, pesquisando e resolvendo exercícios, da mesmaforma que os alunos. Deve-se encorajar o maior contatopossível entre estudantes e professores auxiliares, inclusi-ve além do tempo transcorrido nas áreas e nas aldeias, paragarantir uma continuidade e progressão do trabalho. Umaavaliação real dos resultados obtidos, das dificuldades e umaeventual reformulação do papel e da atuação dos professo-res auxiliares deverão ser realizadas, periodicamente, noinício de cada período presencial. Não podemos esquecerque, como quase tudo no campo da chamada educaçãoindígena, estamos vivendo uma experiência, percorrendoum terreno ainda muito pouco explorado, construindo e re-construindo práticas a todo momento.

Outra questão importante, ainda a ser melhor defini-da, diz respeito às chamadas atividades transversais, ouseja, as atividades que estabelecerão pontes entre a áreade “Línguas, Artes e Literatura” e as duas outras áreas doprojeto do 3º Grau Indígena, a saber, as áreas de “CiênciasSociais” e de “Ciências Matemática e da Natureza”. A nossaproposta a esse respeito é a de se constituírem, ao longodos cinco anos em que se desenvolverá o projeto, bancosde dados lexicais, indexando itens vocabulares das diferen-tes línguas, relevantes para as três áreas do projeto. A ên-fase na produção dessas bases de dados recairá sobre oseu processo de elaboração pelos alunos, que poderão, ori-entados pelos professores do 3º Grau, propor, coletar, defi-nir, transcrever, traduzir, comparar e analisar os verbetes,passando a dominar não apenas os seus conteúdos, mas

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também todas as fases do processo de dicionarização einformatização. Os verbetes poderão incluir as seguintes in-formações: entrada lexical na ortografia de cada língua, trans-crição fonética, transcrição fonêmica, categoria gramatical,termo equivalente ou definição em Português, definição nalíngua indígena, sinônimos, variantes dialetais, informaçõessobre contextos de uso, gêneros de fala, exemplos. Essasbases poderão vir a se tornar verdadeiros dicionários enci-clopédicos, incluindo quadros sistemáticos de classificação,fotografias e desenhos de diferentes aspectos das culturasindígenas, tais como fauna e flora, artes e artefatos, cerâmi-ca, cestaria, plumária, objetos rituais, máscaras, padrões depintura corporal, jogos etc., bem como coleções de mitos ecantos, com tradução livre e interlinear, além de um registrode biografias, fatos históricos, aldeias passadas e presen-tes, sítios históricos etc. Os materiais produzidos poderãoser levados para as aldeias, servindo de material didáticosuplementar para as escolas. Por outro lado, atividades es-colares e de pesquisa, nas aldeias, poderão ser planejadas,de modo que as crianças indígenas, bem como anciãos,lideranças e outros membros das comunidades indígenaspossam também participar da construção dos verbetes, sen-do consultados pelos alunos do 3º Grau a respeito de dife-rentes aspectos, tais como sua melhor conceituação, sinô-nimos, variantes de pronúncia, representações iconográficasetc. Assim, essas bases – além de permitirem a integraçãodas três áreas do projeto em um projeto comum – valoriza-rão a atuação dos alunos como pesquisadores, estimula-rão o envolvimento das comunidades indígenas nas ativida-des do 3º Grau e poderão mesmo vir a contribuir, efetiva-mente, para a documentação e preservacão dos etno-co-nhecimentos sobre a língua, a história e a cultura de cadasociedade indígena.

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Conteúdo do currículo: justificando a opção pela gra-mática descritiva

No primeiro período (Gênese), colocado em práticaem julho de 2001, discutiu-se um conjunto de atitudes emrelação à linguagem destinadas a provocar reflexão e pos-tura crítica, sem as quais torna-se impossível um conheci-mento de tipo científico que o terceiro grau necessita pro-mover. Isto porque o conhecimento científico sobre a lingua-gem exige rupturas com princípios normativistas que funda-mentam o tipo de saber que ainda domina o ensino de lín-guas no segundo grau. Assim, trataram-se conceitos bási-cos como o conceito de língua e de linguagem, gramática(descritiva e normativa), dialeto, variação lingüística, conta-to lingüístico, mudança lingüística. Neste período, também,questionou-se fortemente o papel da escola como lugar parase ensinar exclusivamente o Português padrão e, neste pon-to, discutiram-se atitudes tidas pela ciência atual como “pre-conceitos lingüísticos”. Por exemplo, a premissa de que exis-tem línguas puras e línguas corrompidas, que certas pesso-as não sabem falar sua língua nativa corretamente e queexistem línguas primitivas e línguas complexas. Em resu-mo, o conteúdo da discussão se resumiu a uma única gran-de idéia, como definido por Possenti (1997: 95), a de:

“...fazer com que o ensino de português deixe de servisto como uma transmissão de conteúdos prontos, e pas-se a ser uma tarefa de construção de conhecimento por partedos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser aúnica fonte autorizada de informações, motivações e san-ções. O ensino deveria subordinar-se à aprendizagem”.

O exercício de reflexões como as esboçadas aqui,em conjunto com professores indígenas, tem sido extrema-

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mente produtivo e, por vezes, surpreendente, ao se consta-tar como muitas dessas questões são na verdade conheci-das e dominadas com agilidade pelos professores. Assim,com base na nossa própria experiência, a relativização dosconceitos que estão por trás do termo gramática (descritiva/normativa), o ensino produtivo e o ensino prescritivo, o estu-do das variações diacrônicas, diastráticas, diatópicas ediafásicas1, a noção de norma, são todos tópicos que susci-taram, nos professores índios, intervenções entusiasmadas.Eles estão sempre prontos a dar novos exemplos e a pro-por detalhamentos extremamente criativos, o que torna omomento do encontro entre lingüista e professor indígenauma experiência verdadeiramente fascinante.

Além disso, se a responsabilidade social, que desdesempre tem caracterizado a lingüística indígena, no Brasil,nos permite imaginar que o Terceiro Grau Indígena pode terum papel na questão da preservação e da revitalização daslínguas e culturas indígenas, o exercício desses fundamen-tos teóricos, certamente, poderia nos servir de base sólidapara desenvolver um programa de estudos da linguagemefetivamente científico e engajado.

Após a discussão de pressupostos básicos, nossofoco de discussão será uma introdução à descriçãofonológica de cada uma das línguas representadas na salade aula. O primeiro passo, nessa direção, será uma introdu-ção à fonética articulatória e à transcrição fonética. É neces-sário que todos os alunos se desliguem das garras da orto-grafia do Português e/ou de suas línguas nativas. Várias daslínguas representadas no 3º Grau Indígena já contam comum ou mais sistemas ortográficos desenvolvidos ou em de-senvolvimento, que podem refletir conflitos políticos entre

1 Respectivamente, variação da linguagem ao longo do tempo, de estratos sociais,no espaço e nas diferentes situações de fala.

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agentes ou agências do mundo não-indígena ou internos àspróprias comunidades. Sentimentos de insegurança e de-sânimo podem resultar do encontro dos próprios falantescom diferentes sistemas ortográficos. Libertar-se da referên-cia compulsória à escrita é fundamental para que haja umdesligamento da visão normativa do ensino tradicional e paraque se desenvolva sensibilidade para uma postura de des-crição. O segundo passo será uma introdução à análisefonológica segmental e prosódica. Não pretendemos fazer,entretanto, uma apresentação exaustiva de todos os mode-los de análise fonológica, nem mesmo uma descrição exaus-tiva de cada língua e do Português; limitar-nos-emos a apre-sentar alguns pressupostos e instrumentos de análisefonológica que guiarão um falante nativo a construir um co-nhecimento explícito e objetivo de sua língua. Para a cons-trução deste conhecimento, teremos como inspiração o fatode que o conhecimento que os falantes têm sobre a gramá-tica de sua língua nativa independe de instrução formal.

Reflexões sobre uma postura epistemológica a respeitoda linguagem

A experiência ao longo de vários anos em progra-mas de educação indígena e também em formação de pro-fessores não-índios em campus avançados da UNEMAT temnos convencido não só da importância pedagógica, mastambém da urgência política de se proceder aoredimensionamento de conceitos fundamentais que possamrestabelecer um substrato teórico adequado para se pensarquestões descritivas na área da linguagem. A relevânciadessas noções é ainda mais dramática para as populaçõesindígenas que, por assim dizer, estão “sofrendo na pele” (ouseria mais adequado dizer na carne e na alma?), aqui e ago-

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ra, as conseqüências do preconceito de quem, por exemplo,ainda crê que suas línguas são “gírias” ou “dialetos primiti-vos”, manejados por “ignorantes” que cumpre “civilizar”, comojá se ouviu de professores atuando em cidades próximas àsaldeias Karajá, por exemplo. Preconceitos que, se não fo-ram elaborados na própria escola, deixaram, no mínimo, deser corrigidos por ela.

Do nosso ponto de vista, um objetivo central na for-mação de professores - indígenas ou não - para atuar naárea de linguagem deve ser o de desenvolverem, desde oinício, a compreensão do conhecimento tácito do falante,evitando distorções conceituais que, embora superadas hápelo menos meio século na história da lingüística, ainda pro-duzem efeitos na educação escolar, onde os frutos do tra-balho científico têm chegado sistematicamente com atraso.Ilustraremos esse tipo de conhecimento a seguir, com al-guns exemplos de Abaurre & Sandalo (em preparação):

Os falantes de Português estão habituados a ou-vir e a utilizar construções como:

(1) Jorge pensa que João disse que ___ é honesto.(2) Jorge pensa que João disse que ele é honesto.

Em (1) o sujeito oculto de “é honesto” é João, masem (2) “ele” pode ser Jorge. O falante sabe que quando opronome “ele” está oculto na posição de sujeito da últimaoração subordinada em (1), o referente deve ser necessari-amente o sujeito da primeira subordinada (neste caso, João).Sabe, também, que se esse mesmo pronome estiver explí-cito, como em (2), seu referente pode ser o sujeito da ora-ção principal. Todo falante de Português tem esse tipo deconhecimento, embora ele não lhe tenha sido transmitidoexplicitamente nem durante o processo de aquisição da lin-

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guagem, nem durante a fase de escolarização. Como nota-do por Abaurre & Sandalo, poder-se-ia argumentar que areferência de um pronome oculto, como em (1), pode sermemorizada pelos falantes, isto é, poderia ser o caso desempre se tomar como referente do pronome o núcleo dosintagma nominal mais próximo, à esquerda. Isso, no en-tanto, não é verdadeiro, como se pode verificar pela ambi-güidade na qual se baseia a piada abaixo:

(3) - Sua mãe tá aí. Você não vai receber? - Receber por quê? Por acaso ela me deve algu-

ma coisa?

O que faz rir, na piada, é justamente o fato de o fa-lante, apesar de saber que a interpretação preferencial, nocaso, é aquela que toma como referente do pronome ocultoo termo “mãe”, que é o núcleo do sintagma nominal maispróximo à esquerda, sabe também que há uma outra inter-pretação possível nesse contexto: a que toma como refe-rente do pronome oculto algo que também poderia ser com-plemento do verbo “receber” (por exemplo, “dinheiro”), ouseja, algo que não está explícito no discurso. É do conflitoentre essas duas interpretações do referente do pronomeoculto que resulta o humor nessa troca verbal.

O conhecimento pressuposto para a compreensãode piadas como essa também não supõe, como no exem-plo anterior, nenhum tipo de instrução formal. Trata-se da-quilo que sabemos sem saber que sabemos. Os exemplos,acima, focalizam problemas de natureza sintática. O mes-mo tipo de conhecimento tácito caracteriza, também, a rela-ção estabelecida pelo falante com outros módulos da gra-mática, como a fonologia. Este primeiro momento de estudode descrição das línguas faladas pelos nossos alunos será

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uma reflexão sobre o conhecimento fonológico tácito dos fa-lantes como base para uma busca dos segmentosfonológicos contrastivos de cada uma das línguas represen-tadas no 3º Grau Indígena.

Devemos também ressaltar que a metodologia quepretendemos empregar tem relevância para a aquisição deuma segunda língua. A aquisição de uma segunda línguaenvolve, muitas vezes, transferência de aspectos da primei-ra língua. Sabe-se que o Português não permite que umasílaba seja travada por uma consoante oclusiva. É bastantecomum que um falante de Português, aprendendo Inglêscomo segunda língua, transfira esta restrição para sua pro-núncia do Inglês, pronunciando palavras inglesas como[æskt] (asked) ‘perguntou’ como [æskiti]. Este fenômeno érotulado de sotaque. Não se rotula um falante de Portuguêsde incapaz de aprender uma segunda língua por transferiruma regra de sua língua nativa para a língua sendo adquiri-da.

O exemplo, acima, apresenta um fato de transferên-cia fonológica, mas transferência gramatical também ocor-re. Vimos nos exemplos, acima, que é possível se omitir oobjeto direto em sentenças da língua portuguesa. É comumque falantes nativos do Português, falando Inglês, tambémomitam o objeto em Inglês, apesar de este fenômeno nãoser permitido nesta língua. Este fato é entendido como trans-ferência e não causa perplexidade nos professores de In-glês para falantes de Português. Isto porque estas duas lín-guas são amplamente conhecidas. Entretanto, certas difi-culdades encontradas por falantes de línguas indígenas, aoadquirirem o Português como segunda língua causam, mui-tas vezes, perplexidade. Para clarificar esta afirmação, rela-tamos brevemente a experiência documentada em Sandalo& Gordon (1999).

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Cinqüenta crianças de quatro a catorze anos foramsubmetidas a um teste de interpretação de texto dentro daescola indígena Kadiwéu. Trinta crianças falantes de Portu-guês como primeira língua foram submetidas ao mesmo testeem São Paulo. Neste experimento, os seguintes textos aserem interpretados foram apresentados:

Estória 1: A mãe de João estava muito ocupada. Portanto,ela pediu para João lavar a louça para ela. Ela disse:

- Por favor João, lave a louça.Mais tarde ela voltou para ver se João já tinha termi-

nado o trabalho.E apresentamos a seguinte frase, perguntando quem

era o sujeito oculto (i.e. quem disse que João lavou a lou-ça?):

(1) ____ disse que João já lavou a louça?

Estória 2: Um dia Paulo estava dirigindo um carro, quandoele viu José atravessando a rua. Neste momento, Paulo bre-cou. José caiu.

E apresentamos a seguinte frase, perguntando quemera o sujeito oculto (i.e. quem disse que o carro atropelouJosé?):

(2) ____ disse que o carro atropelou José?

Os resultados mostram que 100% das criançasKadiwéu (4-7 anos) e 77% de adolescentes Kadiwéu (8-14anos) responderam que João disse que João lavou a louça.Apenas 30% deles respondeu que José disse que o carroatropelou José. Para as crianças paulistas, as frases foraminterpretadas como A mãe disse que João já lavou a louça ePaulo disse que o carro atropelou José. Este resultado re-flete a estrutura sintática da língua Kadiwéu, que permite

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um tipo de referência que o Português proíbe.A questão da dimensão da diversidade lingüística é

ignorada freqüentemente na formação de professores indí-genas. Uma tarefa dos professores indígenas é ensinarPortuguês para crianças que não falam Português como lín-gua nativa. A importância de uma conscientização sobre di-versidade lingüística e descrição das línguas brasileiras têm,portanto, neste lugar, uma importância singular. Uma maiorconscientização de fatos de suas línguas nativas e um me-lhor aprendizado do Português parece fundamental para quese evite uma completa opressão e exploração destes pelacultura dominante, bem como para que os índios seconscientizem de sua própria riqueza cultural e participemativamente em sua manutenção. Os professores atuandoem áreas indígenas, em sua maioria, não estão conscien-tes da grande diferença existente entre línguas européias elínguas chamadas de “polissintéticas”, como o Kadiwéu, notocante à interpretação de sujeitos ocultos.2

Em línguas como o Português, um substantivo, naoração subordinada, não pode jamais ser entendido comoalgo na oração principal, mas isto é possível em línguaspolissintéticas, desde que algumas restrições sejam respei-tadas (Sandalo 2001). Os falantes de línguas polissintéticastransferem este fato para o Português da mesma maneiraque falantes do Português transferem para o Inglês fatos desua língua nativa. Transferência lingüística ocorre em todosos processos de aquisição de segunda língua e nada tem a

2 Note que nem todas as línguas nativas das Américas são polissintéticas. Nãosabemos ainda quantas línguas polissintéticas existem no Brasil. Segundo Sapir(1921), uma língua polissintética, como seu nome implica, é mais que ordinaria-mente sintética. A elaboração de uma palavra é extrema. Conceitos que nós nuncasonharíamos em tratar de uma maneira subordinada são simbolizados por afixosderivacionais ou mudanças “simbólicas” no elemento radical, enquanto noções maisabstratas, incluindo relações sintáticas, podem ser também transmitidas pela pala-vra. Ver Baker (1995) e Sandalo (1997) para uma discussão detalhada dos fatosdestas línguas.

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ver com uma incapacidade de interpretar textos. Como gran-de parte de lingüistas e educadores não estão conscientesdesta diferença tipológica entre línguas polissintéticas e lín-guas flexionais como as línguas românicas, eles pouco en-tendem o porquê de alunos falantes de línguas polissintéticasterem grande dificuldade na interpretação de textos em Por-tuguês e/ou Espanhol durante a escolarização primária. Oconhecimento e entendimento da diversidade lingüística éfundamental para a educação indígena. Não temos, mes-mo enquanto lingüistas, um conhecimento total da diversi-dade existente no Brasil. É, portanto, crucial que formemosprofessores-pesquisadores.

Se, ao discutirmos o conhecimento tácito de um fa-lante nativo, não podemos também ignorar a questão dauniversalidade lingüística, uma vez que vemos a linguagemcomo fenômeno da natureza. A linguagem humana é umacapacidade única; todos os seres humanos – e apenas osseres humanos – a possuem. Esta capacidade é a mesmanos cerca de seis bilhões de pessoas existentes no mundoe pode ser considerada uma faculdade própria da mentehumana, que nos permite adquirir e usar diferentes línguas.As cerca de seis mil línguas faladas, hoje, no mundo, bemcomo as milhares de línguas que já não são mais faladas,ou as línguas que ainda vão ser criadas, são ou serão todasprodutos dessa mesma capacidade da mente humana. Di-zer que essa capacidade é inata significa que não a apren-demos no curso de nossa experiência de vida, mas já nas-cemos com ela. Os macacos, por exemplo, não possuemesta capacidade, embora possam chegar a compreender eusar códigos complexos para a comunicação entre si e comos humanos. As formas de comunicação animal não têm,de qualquer maneira, as características fundamentais da lin-guagem humana. É por isso que aos dois, três anos, uma

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criança humana é capaz de falar frases que nunca ouviuantes, fazer perguntas, pedidos, comentários originais e cri-ativos que não são apenas a repetição de frases iguais aque ouviu em sua volta, como fazem os papagaios, porexemplo. Já o macaco ou o papagaio, por mais espertosque possam ser, não sabem falar realmente, não têm essafaculdade interna, e é por essa razão que até podem apren-der a reconhecer ou produzir algumas palavras isoladas, masnão são capazes de formar frases originais.

Se a linguagem fosse aprendida como em um jogode repetição, só seríamos capazes de falar o que ouvimos,mas - de fato - quando falamos uma língua demonstramossaber muito mais do que aquilo que ouvimos. Essa proprie-dade da nossa capacidade de linguagem é conhecida peloslingüistas como infinitude discreta, ou seja, somos capazesde produzir um número infinito de expressões gramaticais apartir de um conjunto finito de elementos e princípioslingüísticos. Essa propriedade se manifesta também no nos-so conhecimento de matemática: quantos números pode-mos formar? Qual é o fim dos números? Todos sabemosque podemos formar infinitos números com apenas dez al-garismos. É assim também com os sons das línguas: comvinte ou trinta sons podemos produzir quantas palavras? Nãodá nem para contar porque não tem fim. Ninguém nos ensi-nou essa capacidade. Esse conhecimento já veio com o ser“gente”, é uma das propriedades fundamentais da lingua-gem humana.

A criança, quando chega na escola, já sabe tudo isso.E muito mais. Mas havia quem achasse que a cabeça dacriança fosse como uma caixa vazia, uma folha de papel embranco, na qual se escreve o saber, de fora para dentro.Essa teoria, conhecida como “comportamentalismo”, defen-dida pelo psicólogo norte-americano B.F. Skinner, foi desafi-

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ada por um lingüista, também norte-americano, chamadoNoam Chomsky, na metade do século XX, com argumen-tos como esses que estamos considerando aqui. Skinnerachava que o fenômeno da linguagem humana podia serexplicado “de fora para dentro”, isto é, a criança receberiaos estímulos lingüísticos do ambiente e então produziria suasrespostas verbais. Chomsky (1996) demonstrou que os es-tímulos ambientais são “pobres” quando comparados à com-plexidade do comportamento verbal exibido pelas crianças.Tome, por exemplo, uma frase com apenas dez palavras:“Tente recombinar qualquer período simples formado porumas dez palavras”. Você tem idéia de quantas combina-ções seriam matematicamente possíveis com essas dezpalavras? Pois são exatamente 3.628.800 combinaçõespossíveis, das quais apenas uma combinação é gramatical!Como se pode haver aprendido tamanha restriçãocombinatória? Certamente não por meio de instruções oucorreções de pais e professores. Nascemos com uma es-trutura inata poderosa que nos permite eliminar milhões depossibilidades combinatórias. Assim, sabemos que uma fra-se como (1) é bem formada, enquanto que (2) não é:

(1) Tente recombinar qualquer período simples for-mado por umas dez palavras

(2)* Palavras dez umas por formado simples períodoqualquer recombinar tente

Mesmo alguém que nunca pisou em uma escola sabeque a frase (2) não é uma frase bem formada em Portugu-ês, sem que ninguém tenha ensinado isso a ele. Um analfa-beto também não formaria uma frase composta apenas porsubstantivos lado a lado, como “lápis mesa sala professorescola”. Ele certamente usaria esses substantivos junto com

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palavras de outras classes gramaticais, como, artigos, pre-posições, verbos etc.: “O lápis está sobre a mesa da sala doprofessor na escola”. Mas como ele faz isso, se nem mes-mo foi à escola para aprender o que é substantivo, artigo,preposição, verbo etc.? Novamente, a resposta é que eletem o conhecimento implícito dessas classes, não é a esco-la que vai lhe ensinar isso. A escola vai apenas explicitaresse conhecimento, ajudá-lo a se tornar consciente de quan-ta coisa ele já sabe, mas nem sabia que sabia!

Mas se ninguém nos ensina sistematicamente no-ções importantíssimas e essenciais para o manejo da lin-guagem, como as que examinamos acima, como é que po-demos adquirir uma língua? A resposta, como vimos, é quesabemos tanto porque já nascemos sabendo. Obviamente,não é que já nasçamos sabendo falar Português ou Inglêsou Xavante. Já nascemos com princípios lógicos universaisque se aplicam a qualquer uma das línguas humanas e épor isso que somos capazes de adquirir qualquer uma des-sas línguas de maneira tão rápida e uniforme. Seja qual fora língua, em torno de um ano, falamos palavras isoladas;em torno de um ano e meio, começamos a juntar palavras ecom cerca de três, quatro anos, já adquirimos basicamentea gramática da língua. Claro que aprendemos novas pala-vras e mesmo construções gramaticais ao longo de toda anossa vida, mas a aquisição das estruturas fundamentaisse dá de maneira muito semelhante para todos os sereshumanos, não importando sua raça, classe social, naciona-lidade, gênero etc. Embora os dados que recebemos do am-biente sejam pobres, isto é, assistemáticos e fragmentados,conseguimos adquirir uma língua porque nascemos comprincípios gerais que nos ajudam a organizar os estímulosverbais deficientes em estruturas complexas. Vimos tambémque esse processo se dá de maneira bastante homogênea

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para todas as crianças, independentemente do meio em quesejam criadas. Esse processo natural e espontâneo é quese chama de aquisição da linguagem, devendo ser diferen-ciado do termo “aprendizagem”.

A aquisição é o que ocorre à criança exposta a estí-mulos lingüísticos: a faculdade da linguagem ativamenteopera sobre esses estímulos, produzindo a aquisição de umalíngua específica. Esses princípios universais são tambémchamados de Gramática Universal por alguns lingüistas.Observe-se que a Gramática Universal só é acessada demaneira natural e espontânea até um certo período da vida,conhecido como período crítico da aquisição. Esse período,que se situa em torno da puberdade, atua como verdadeirodivisor de águas para a aquisição. Note-se que, após a pu-berdade, pode-se aprender, mas não adquirir uma língua. Oprocesso de aprendizagem de uma língua, ao contrário daaquisição, depende de esforço, exercício, prática, e, geral-mente, não se obtém resultados tão bons. É o que ocorreno aprendizado de uma língua estrangeira: submetemo-nosa um processo qualitativamente diverso daquele levado aefeito na aquisição, um processo muito menos natural, quedepende de nossas habilidades individuais e exige empe-nho sistemático durante longo período, ao fim do qual o re-sultado jamais é equivalente ao do falante nativo que adqui-riu a língua na infância.

Dois outros conceitos que convém distinguir para evi-tar desde logo ambigüidades na compreensão das ques-tões lingüísticas são os conceitos de competência gramati-cal e desempenho lingüístico. A competência gramatical éum saber abstrato que temos em nossa mente. Ao adquirir-mos uma língua específica, os princípios da Gramática Uni-versal interagem com os dados da língua e o resultado é umcomplexo de parâmetros, isto é, especificações particulares

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dos princípios gerais. Esse saber ou competência lingüísti-ca é acessado toda vez que precisamos produzir ou com-preender frases. O uso desse saber em uma situação defala específica é que constitui o desempenho lingüístico.Assim, pode-se dizer que, se a competência é um saber, odesempenho é um saber fazer.

Uma comparação que costuma ser usada para tor-nar mais clara essa diferença é a de alguém que faz umaconta grande de dividir, por exemplo. Ele sabe os procedi-mentos, as regras de como realizar aquela operação mate-mática, entretanto, às vezes, ele erra. Pode estar cansado,pode ter se distraído, errou ao fazer um uso de seu saber.Seu problema foi de desempenho, não de competência. Issotambém ocorre ao falarmos, isto é, quando colocamos emuso nosso saber lingüístico. Por exemplo, já ouvi alguémdizer “Vou tortar a corta”, quando, na verdade queria dizer“Vou cortar a torta”. Vamos analisar esses dados? Comodescrever e explicar o que está acontecendo? Houve umatroca do [ t ] pelo [ k ], não foi? Vocês já ouviram coisasassim? Agora, será que o falante não sabe como se pro-nunciam as palavras “cortar” e “torta”? Será que é um pro-blema do saber lingüístico, isto é, um problema de compe-tência? Provavelmente, não, pois, geralmente, ao cometerum “deslize de língua” como este, o falante se corrige imedi-atamente. O que parece estar ocorrendo é um problema dedesempenho: o falante conhece os vocábulos, mas confun-diu certos traços de sua representação fônica ao acessá-los.

Também, ao construirmos períodos compostos porvárias orações, podemos encontrar certos problemas. Porexemplo, podemos formar, em Português, um período como(3), em que há uma oração adjetiva encaixada na oraçãoprincipal:

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(2) O aluno [que o professor aprovou] saiu.

A frase (3) é, sem dúvida, bem formada; estáconstruída de acordo com as regras da gramática da línguaportuguesa. Podemos aplicar a mesma regra de encaixe deoração adjetiva para qualificar o constituinte “o professor”da oração adjetiva. Aí, temos:

(3) O aluno [que o professor [que o novo diretor con-tratou] aprovou] saiu.

Agora, a nossa compreensão da frase ficou um tan-to problemática. Por quê? A regra foi a mesma que aplica-mos em (3) e, no entanto, temos dificuldade em compreen-der a frase! Não há dúvida que a frase é bem formada, istoé, construída em conformidade com as regras da língua por-tuguesa. Então, o que está acontecendo é um problema dedesempenho - os limites de nossa memória tornam difícilestabelecer as relações. Há várias frases abertas ao mes-mo tempo e, quando chegamos aos verbos “contratou, apro-vou, saiu”, confundimo-nos para predicar cada um ao sujei-to adequado: o aluno saiu, o professor aprovou e o diretorcontratou. Diz-se, então, que a frase (4) é gramatical, masnão aceitável, sendo a gramaticalidade um critério de com-petência e a aceitabilidade um critério de desempenho.

Nosso conhecimento da gramática envolve diferen-tes conhecimentos. Por exemplo, um falante de Portuguêssabe que uma seqüência de sons como “mave” ou “sale”são possíveis nesta língua, embora não sejam usadas comopalavras. Por outro lado, o falante rejeitaria seqüências como“mbae” ou “at” como sendo legítimas em Português. Da mes-ma forma, um falante de Karajá saberia dizer que palavras

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como “rori” ou “lie” poderiam existir em sua língua, enquantoque formas como “bnik” ou “nga” não poderiam ser Karajá.

Conclusão

À guisa de conclusão, apresentamos um breve rela-tório da primeira etapa presencial do curso de Línguas, Ar-tes e Literatura, em que conceitos fundamentais dasociolingüística foram introduzidos, seguidos de uma discus-são da fonética articulatória. Nosso objetivo com este currí-culo foi o de instrumentalizar os alunos em alguns conceitosfundamentais da lingüística, que possibilitarão tanto a pes-quisa em línguas indígenas quanto uma melhor fundamen-tação dos projetos político-pedagógicos que estes deverãodesenvolver durante os cinco anos de duração do TerceiroGrau Indígena.

Nesta primeira etapa (Gênese), o curso de Línguas,Artes e Literatura buscou discutir as diversas noções de gra-mática, língua, linguagem e fala presentes na realidade dosalunos indígenas, visando a questionar o modelo tradicionalde gramática ao introduzir como problematizadores os con-ceitos sociolingüísticos de variação e dialeto, e como práti-ca de pesquisa a gramática descritiva de diversas variantesdo Português falado e das línguas indígenas. Para tanto,foram apresentadas as ferramentas da fonética articulatória,em especial o Alfabeto Internacional de Fonética, que foiaplicado imediatamente em trabalhos descritivos dos sonsde línguas indígenas e do Português regional falado. Alémde possibilitar aos estudantes falantes de línguas indígenasa descrição dos sons das suas línguas maternas, a fonéti-ca, aliada à análise fonológica (que será estudada em janei-ro de 2002) permitirá que eles tenham o instrumental neces-sário para entender as questões técnicas que estão por trás

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das ortografias.O Português padrão foi contemplado, no currículo,

dentro das atividades de leitura e produção de textos, princi-palmente através da discussão explícita de problemas re-correntes nesta produção (típicas do processo de aquisiçãode uma segunda língua), como ausência de concordânciaverbal (pessoa e número) e nominal (gênero e número), au-sência de artigo, utilização de coloquialismos etc. A pedi-dos, daremos continuidade a este trabalho ao longo dos cincoanos do programa, através de atividades de leitura e escritanas etapas presenciais e intermediárias, visando a umamelhoria significativa na expressão oral e escrita do Portu-guês padrão dos alunos. Está incluída na lista de atividadesdos cursos para as etapas futuras a produção de algunstextos identificados pelos alunos como fundamentais para asua formação: memorandos, ofícios, cartas pessoais, car-tas dirigidas a autoridades, atas, projetos, relatórios emonografias científicas.

Ficou bastante claro, durante esta primeira etapa, queo domínio do Português padrão é entendido, pelos alunosindígenas, como uma das formas mais eficazes de se con-seguir o reconhecimento e o respeito da sociedadeenvolvente. Por isso, o currículo do curso de Línguas, Artese Literatura foi modificado para incluir um tratamento espe-cial a esta variante do Português, sem perder de vista o fatode que não se trata de uma forma superior da língua, masapenas de uma variante que tem prestígio social, já que éconsiderada a norma culta.

Nesse espírito, foram discutidas as diferenças entrelíngua falada e língua escrita. Identificou-se o Portuguêspadrão estudado nas escolas, com o Português escrito, umavariante da língua que, pelo menos no Brasil, não chega aser falada por segmento algum da população. Por exemplo,

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nem mesmo o Presidente da República, no conforto de seular, ao conversar com os seus familiares, utiliza sentençastípicas do Português padrão como “eu o vi”, pois no Portu-guês falado no Brasil utiliza-se a sentença “eu vi ele”. A fór-mula lingüística considerada a norma culta foi adotada comouma convenção nas reuniões periódicas entre Portugal e oBrasil que discutem a ortografia e gramática do Portuguêsescrito. Esta norma culta está mais adaptada às variantesdo Português falado em Portugal do que às variantes doPortuguês falado no Brasil.

Foram discutidas, também, em sala de aula, as defi-nições de gramática descritiva e gramática normativa (tam-bém chamada de gramática prescritiva ou tradicional). Estaúltima pode ser definida como o sistema de regras da línguapadronizada, normativizada, solidificada, que deve ser apren-dida e memorizada, já que não corresponde à língua faladapelas pessoas no seu dia-a-dia. Esta variante da língua éutilizada oralmente apenas em situações específicas queexigem o uso da norma culta - por exemplo, na imprensa,em discursos, palestras, em debates políticos e acadêmi-cos etc. Mesmo nestas situações, ela não é sempre utiliza-da de acordo com as regras estabelecidas. Ou seja, mes-mo os políticos, professores e jornalistas desconhecem oudeixam de usar todas as convenções desta língua padroni-zada. Vem daí o desconforto que a maioria das pessoastêm com relação ao Português ensinado na escola. Elas per-cebem que, apesar de serem falantes de Português, o seuPortuguês falado é criticado por não se adequar à normaculta. O curso procurou esclarecer esta questão ao deixarbem claro que: (1) o Português falado é uma variante dife-rente do Português padrão; (2) o último é uma variante cria-da a partir de convenções baseadas na escrita da língua;(3) nenhuma variante é melhor ou pior do que outra, do pon-

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to de vista lingüístico, pois todas as variantes de uma línguatêm regras e regularidades, só que as únicas regras quesão valorizadas pela sociedade são as regras do Portuguêspadrão. Já a gramática descritiva é o sistema que descreveuma determinada variante da língua da forma que ela é fala-da, descobrindo as regras subjacentes à língua, regras asquais são utilizadas pelos falantes inconscientemente. Ape-sar de a maioria das pessoas não saberem disso, a gramá-tica descritiva é o objeto de estudo da maioria das pesqui-sas lingüísticas realizadas nas universidades hoje em dia. Ocurrículo do curso de Línguas proposto para o 3o Grau Indí-gena propõe-se a privilegiar a gramática descritiva das lín-guas indígenas e do Português regional dos alunos.

Neste momento da discussão, entramos na noçãode gramática internalizada, ou seja, o saber inconsciente quequalquer falante tem de sua língua mãe. Esta gramáticainternalizada é adquirida pelo falante no contexto social, poisninguém nasce sabendo uma determinada língua, mas aomesmo tempo, depende do patrimônio genético do ser hu-mano, já que apenas os seres humanos têm a capacidadede comunicar-se através da linguagem.

Esta afirmação nos leva a um novo tema: a definiçãode linguagem, língua e fala de cada um dos estudantes, re-presentando as visões de mundo de suas comunidades. Estetópico foi desenvolvido em sala de aula e resultou na elabo-ração de cartazes com os termos utilizados nas diversaslínguas indígenas para os três conceitos. Pretendemos, nofuturo, aprofundar esta pesquisa, para que seja possívelentender quais são, para os grupos étnicos representadosna sala de aula, as diversas concepções do falar, do comu-nicar-se, e das capacidades existentes para tanto. Planeja-se que os resultados desta pesquisa sejam incorporadosaos materiais didáticos que serão elaborados pelos estu-

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dantes para as escolas indígenas no decorrer dos trabalhosinterdisciplinares do 3º Grau Indígena.

As atividades de pesquisa que serão realizadas pe-los alunos, no segundo semestre, estarão centradas no es-tudo dos sons da sua língua nativa, em busca da definiçãodos fonemas. Este processo pode culminar eventualmentena discussão das ortografias existentes e idealmente na pro-posta de uma ortografia preliminar para as línguas que ain-da não possuem um sistema de escrita. Estas discussões epropostas devem surgir dos próprios alunos e/ou a partir dasdemandas das comunidades de falantes3. Após este primeiropasso4, serão registrados em áudio e de forma escrita al-guns “textos” tradicionais da cultura oral, que serão analisa-dos do ponto de vista da morfologia, da sintaxe e do discur-so no segundo semestre, e no segundo ano do curso (julho2001 e janeiro 2002). Dicionários enciclopédicos prelimina-res das línguas serão elaborados desde o primeiro ano, comoexercício, e como material a ser utilizado nas escolas indí-genas. Sugerimos, ainda, que a totalidade dos trabalhos eexercícios realizados pelos estudantes no decorrer do cur-so sejam retrabalhados para ser utilizados como materialdidático nas escolas das quais eles são professores.

3 Se a língua em questão já tiver uma ortografia que está sendo utilizada pelacomunidade, não haverá necessidade de se criar uma ortografia.4 Devemos ter em mente o fato de que o estudo dos sons e fonemas de uma língua,bem como a elaboração de uma ortografia, são processos complexos, que envol-vem conhecimento técnico e discussão política. Portanto, não é claro que haverátempo hábil para concluir estes processos durante o primeiro semestre, ou mesmodurante o primeiro ano. Procuraremos mobilizar o grupo de lingüistas que estuda(ou estudou) as línguas representadas no 3º grau indígena para auxiliar na viabilizaçãodo projeto, mas caso não seja possível a definição de uma ortografia para algumaslínguas até julho de 2002, iniciaremos o segundo ano do curso registrando estaslínguas em transcrição fonética ou fonêmica.

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Bibliografia utilizada na primeira etapa presencial (Gê-nese)

FAUSTO, C. História. Índios do Brasil 1, capítulo 3. Brasília:MEC, 1999.

FRANCHETTO, B. As Línguas Indígenas. In: Índios do Bra-sil 2, capítulo 2. Brasília: MEC, 1999.

MUSSALIM, Fernanda e Anna Christina Bentes (orgs.) In-trodução à Lingüística 2. Capítulo 8 (autoria de Marina CéliaMendonça). Editora Cortez, 2001.

POSSENTI, Sírio. Porque (Não) Ensinar Gramática na Es-cola. ALB: Mercado de Letras, 1996.

Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas.Capítulo de Línguas. Ministério da Educação e Desporto,Secretaria de Educação Fundamental, 1988.

SILVA, Thaïs Cristófaro. Fonética e Fonologia do Portugu-ês: Roteiro de Estudos e Guia de Exercícios. Editora Con-texto.

Bibliografia Geral

ABAURRE, Maria Bernadete & SANDALO, Maria FilomenaSpatti. Fonologia Gerativa: da Teoria Padrão à Otimalidade(em preparação).

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na esco-la. Mercado das Letras, 1997.

CHOMSKY, Noam. Knowledge of Language, its nature, origin,and use. New York: Praeger, 1986.

SANDALO, Maria Filomena. (no prelo). A violação da Con-

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dição C em Kadiweu. Revista Delta.

SANDALO, Maria Filomena Spatti & GORDON, Peter.Acquisition and Creolization of Condition C “violations” inKadiwéu and Portuguese. In Cadernos de EstudosLingüísticos 36. UNICAMP, 1999.

SAPIR, Edward. Language. New York, Hartcourt, Brace &World, 1921.

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A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO DIFERENCIADA NASALDEIAS DO BRASIL

Glaydson Artur do Vale Freitas*

O nosso Brasil, como todos já devem saber, é muitorico, tanto em minerais quanto em culturas. Culturas estasque devem ter o seu merecido lugar, tanto na sociedadequanto no cotidiano, e nós, índios deste maravilhoso país,também temos o direito de poder ter um espaço para a nos-sa cultura e também para a nossa educação. Para isso, ébom destacar que a história do Brasil não começou no des-cobrimento, e sim começou conosco, índios! Ou seja, des-de que o nosso país começou a ser povoado pelos portu-gueses, holandeses, pelos escravos oriundos da África etc.Tanto nossa cultura como a forma de educarmos nossosfilhos foram aos poucos sendo tomadas de nós, começa-mos a ser presos, humilhados e forçados a aprender umacultura e língua que realmente não queríamos.

Isso acarretou a perda de muitos povos, e a misturade culturas, que culminaram com o fim de muitos rituais emnossas aldeias. Isso não só se deu no Descobrimento, tam-bém se repete nos dias atuais (em muitas aldeias), ondenossos filhos aprendem uma história errônea de nosso povo,onde o mais importante é o Descobrimento, e não os que jámoravam aqui, nós, índios. Tendo em vista todos os acon-tecimentos que nos rodearam, começou um processo em

* Acadêmico do 3º Grau Indígena, pertencente à etnia Wassu Cocal do estado deAlagoas.

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busca de uma saída para que pudéssemos resgatar a cultu-ra de nosso povo, surgindo assim um projeto que para mui-tos é um sonho, para outros, uma mera invenção de alguémque queria popularidade, ou sua vida na história atual. Maspara nós uma necessidade, uma forma de mostrar que oíndio é capaz, que pode exercer funções, pode ser um advo-gado, ou qualquer coisa que seja, sem perder sua cultura.Que é igual a todos e tão capaz quanto qualquer outro cida-dão ou cidadã.

A criação de uma educação diferenciada trouxe-nosuma esperança, uma luz. Esperança que abraçamos e aca-lentamos como um de nossos filhos, esperança esta que(no meu ponto de vista) é a maior conquista de todos ostempos para os índios. Esta porta nos traz mais um fôlegode vida, mais uma chance de podermos sobreviver nos diasatuais, de podermos mudar a nossa história, sem que nos-sos filhos percam sua origem, cultura e língua. É interes-sante ressaltar que, a cada cultura que se perde, um povo éperdido, e já está na hora de todos nos olharem não comoum tipo de habitante diferente, pois temos direitos e obriga-ções como qualquer outro cidadão desta nação, somos tãobrasileiros quanto os demais.

A princípio, encaramos esta educação diferenciadacom um pouco de indiferença, pois era difícil para nós acre-ditarmos nesta realidade, ou se achávamos algo que nãoperduraria, ou que não teria fim, como todas as esperançasque nos deram. A minha comunidade, por exemplo, nãoestava crendo de início, quando recebemos a informaçãode que se abriria um vestibular entre os índios de diversoscantos do país, soou como mais uma viagem que certosíndios de nossa comunidade fariam para “conhecer” o MatoGrosso, porém o que estava no coração de três índios deAlagoas, e não só no nosso coração, mas no coração de

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todos os “parentes” que vieram fazer a prova de seleção,era uma chance, não de ter um curso superior, e sim umaperfeiçoamento na nossa área de ensino, para podermosser mais dinâmicos e proveitosos em nossas aldeias.

Após alguns empecilhos e barreiras rompidas comsucessos, conseguimos chegar, assim também pelo menosum dos que tinham vindo de Alagoas teve sucesso na pro-va. Eu, nisso, não me sinto vitorioso ou melhor que ninguém,pois pesa sobre os meus ombros a responsabilidade de umpovo. Quando viajo da minha aldeia para cá, em Barra doBugres, para estudar, me sinto como se toda a comunidadedependesse de mim, e quando retorno estou certo de quemais uma etapa foi cumprida, que uma parte da caminhadafoi concluída, e se Deus quiser estarei a terminar o restantedesta caminhada. No pódio, sei que só subirei, aliás, que sósubiremos (eu e minha comunidade) quando formado esti-ver. Para isso lutarei com todas as minhas forças, forças deum povo, forte, corajoso e que sabe fazer das impossibilida-des vitórias.

Já para mim está sendo uma experiência extraordi-nária, pois estamos em contínua troca de informações comos demais índios deste país, estamos a trocar idéias, expe-riências e a existir uma participação ampla em nosso meio,pois não mais olhamos para os demais como índios quenão conhecemos, e sim como “irmãos”, “parentes” que tan-to nós precisamos deles quanto eles de nós, pois na reali-dade nós somos um povo, e um povo vive em harmonia,apesar das diferenças culturais, regionais, e até sociais. Maso certo é sabermos que estamos no caminho certo, queestamos em um rumo, que jamais deve haver preconceitos.Já bastam os preconceitos que sofremos todos os dias dosnão-índios, já bastam as perseguições que nós estamos apassar, e é certo que, se nós continuarmos assim, sucumbi-

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remos no que mais tememos... a solidão.

Fugi da realidade, pelos dias e pelas noites,Fugi da realidade, pelos arcos dos anos,Fugi da realidade, pelas ruas em labirintos

Com o meu próprio egoísmo;e em meio a lágrimas

Fugi da realidade e sob contínua risada,sobre esperanças imaculadas corri

E atingido caíPrecipitando-me em sombras colossais, então, mevi só...

Ao passar dos dias, meses e anos, começamos apensar que estamos nadando contra uma correnteza quenão tem fim, começamos a nos deparar com situações quesão a cada dia inusitadas para nós, paramos e pensamosentão, o que fazer? Até existem momentos em nossas vi-das que nós nos indagamos “será que esta luta terá um re-sultado?”. Bom, o tempo dirá, pois o mesmo é o “Senhor darazão” e com certeza, após trilharmos por este caminho, quenão é diferente para nós, após vermos que tudo que nósfizemos servirá de legado para os demais povos que vie-rem a ler tal trabalho, pensamento ou reflexão deixados parauma posterior turma de alunos, ou até mesmo para a nossacomunidade, nos sentiremos orgulhosos e, aí sim, nos sen-tiremos felizes por ter cumprido uma missão como índios,guerreiros, como povo.

Também se faz necessário destacar que esta não ée nem será somente mais uma conquista, e, sim, uma entretantas conquistas do povo indígena, pois aos poucos asportas se abrem e barreiras do preconceito são desfeitaspara que mais uma vez prossigamos caminhando a passos

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firmes e seguros para a meta e destino tão esperados e al-mejados. Que esta educação diferenciada não fique e nemestagne, tornando inútil a nossa luta e a luta de tantos quederam sangue e sonharam com este momento que estamosvivendo. Assim, um dia, poderemos ver índios advogados,médicos, engenheiros etc; a lutarem por suas causas e adedicarem suas vidas (como já dedicam) por uma vida dig-na, justa para todos os povos desta nação.

É esta a esperança que permeia o coração dosKarajá, Rikbatsa, Bakairi, Xavante, Juruna, Pataxó, Tapeba,Wassu... Esperança esta que sonhamos a cada dia e ma-nhã, que contamos com a ajuda de pessoas que se dedi-cam e se juntam a nós, para que possamos lutar, perseve-rar, insistir, rompendo os horizontes do preconceito, das de-sigualdades sociais e culturais que tanto nos afligem.

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INVARIANTES CULTURAIS: CONCEITOS DE ESTÉTI-CA E BELEZA NA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO

Zoraide Primerano Arguello*Rodrigo Fernando Shimazu**

João Batista Desto***Lauro Ojeda***

José Fernandes Torres da Cunha***Maria Terezinha R. E. Conciani***

Dentro do Projeto 3o Grau Indígena, se inclui, a pedi-do dos alunos, um curso de computação, pelo qual temos oprazer de sermos responsáveis.

Incluído na área de Ciências, teve seu primeiro ciclode aulas juntamente com as demais matérias, durante a pri-meira etapa intensiva, realizada em julho de 2001. As aulastiveram lugar nas instalações da UNEMAT, em Barra doBugres, no laboratório de informática. Os 200 alunos foramdivididos em grupos de 40, trabalhando com dois cursistaspor computador. Em nosso primeiro contato com os alunos,constatamos que, para mais de 95% deles, essa foi a pri-meira oportunidade de utilizarem um computador.

A inserção das aulas de computação, no Projeto 3ºGrau, foi motivada em resposta às expectativas manifesta-das pela maioria dos candidatos, através reconhecimento

* Drª. em Física, Docente de Informática Aplicada ao Ensino de Ciências. Docentena Etapa de Ciências Matemática e da Natureza I.** Docente da UNEMAT, Professor Auxiliar na Etapa de Ciências Matemática e daNatureza I.*** Graduandos da UNEMAT, Monitores na Etapa de Ciências Matemática e da Na-tureza I.

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do uso de computadores como uma ferramenta de funda-mental importância na vida moderna.

As aulas de computação deverão sempre integrar-se com as demais matérias de Ciências, sem no entantoperder seu objetivo direto e imediato de munir os alunos dosconhecimentos básicos de computação para uso emeditoração eletrônica, arquivos de som e de imagens, traba-lhos gráficos, banco de dados, programação simples emultimídia.

O necessário treinamento, nesses tópicos, será feitopela execução de tarefas referentes a temas de interessecultural e local, escolhidos pelos alunos, entre os quais cita-mos, por exemplo:

- a produção de material didático para uso em esco-las;

- a preservação da memória (não somente da cultu-ra indígena, como do próprio curso), através da preparaçãode shows de slides, editoração de livros ou textos didáticossimples;

- apresentações gráficas multimídia via Power Pointou análogo;

- editoração de jornais ou seminários que tanto divul-guem o dia-a-dia das aldeias como seja um fórum para dis-cussão de seus problemas quotidianos e exercício de cida-dania.

Dada sua generalidade, esses tópicos podem serexecutados em cooperação não apenas dentro do grupo deCiências como também, sem restrição alguma, com as de-mais áreas do curso do 3º Grau.

Dentro dessa ótica, o curso de computação poderá edeverá se caracterizar por uma função integradora de todosos esforços do Projeto. Em realidade, esse é um dos fatoresque fazem com que o computador tenha um uso irrestrito

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em nossa sociedade e será forçosamente assim, com ascomunidades indígenas.

Reconhecendo o computador, como nada mais queuma ferramenta. A expectativa do curso é ensinar seu ma-nejo e aplicação corretos, estimulando que seu uso seja es-colhido pelos alunos, garantindo, assim, a preservação cul-tural à qual nos referimos anteriormente.

Com o propósito de que os alunos desenvolvessema habilidade de “viajar”, confortavelmente, nas “rotas” do com-putador, nossa principal meta, nessa primeira etapa, foi con-seguir que eles, em sua maioria pessoas já adultas e mes-mo lideranças em suas aldeias, desenvolvessem a coorde-nação motora indispensável ao uso eficiente do mouse. Paratanto, propusemos três atividades, todas altamente depen-dentes da utilização do mouse: ligar e desligar corretamenteo computador, a partir do menu “Iniciar” localizar e reconhe-cer as características gerais de programas Windows, prati-car com os programas Calculadora e Paint.

Embora, em todas essas etapas, tivéssemos opor-tunidade de constatar a capacidade de aprendizado dos alu-nos, que puderam utilizar os computadores por não maisque um total de 20 horas, foi no decorrer da terceira etapa,mais precisamente, ao trabalharem com o Paint (por cercade 10 horas), que fomos inquestionavelmente levados àsobservações que motivam este artigo.

O Paint, como é sabido, é um dos mais simples pro-gramas que permitem desenhar com o computador. Embo-ra possua algumas ferramentas auxiliares, a realização dosdesenhos fica fortemente dependente da habilidade no usodo Mouse, isto é; da coordenação necessária para movê-lo,convenientemente, enquanto se olha a tela do monitor. Oprocedimento é bastante distinto do desenhar comum, emque o desenho é feito na mesma superfície para a qual olha-

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mos, como quando se utiliza lápis e papel, pintura com pin-cel em tela etc.

Esta é a primeira dificuldade a ser vencida pelo con-dicionamento. Somente após essa etapa é possível real-mente desenhar, sendo que essa tarefa pode e deve sersimplificada pelo uso das “ferramentas” fornecidas pelo pro-grama. Embora criadas para facilitar várias tarefas, dese-nhar com essas “ferramentas”, no início, apresenta-se comouma segunda barreira a ser dominada, pois trata-se de umconceito inerente ao uso de computadores e portanto com-pletamente desconhecido para os alunos. Apesar de todasas dificuldades do processo, das quais somente menciona-mos umas poucas, os resultados obtidos foram bastanteentusiasmantes. Esses resultados não demonstraram ape-nas a compreensão prática da técnica, mas também, gra-ças ao alto nível de elaboração de muitos dos desenhosapresentados, no final da etapa, permitiram-nos observar oque denominamos “Invariantes Culturais dos Conceitos deEstética e Beleza”.

Em conformidade com a principal diretriz, adotadano curso de 3º Grau, de que é fundamental que se busquesempre estimular a auto-estima pela valorização e preser-vação cultural, solicitamos que os alunos, como exercício,elaborassem desenhos preferencialmente sobre temas desua cultura. Parece-nos, portanto, válido considerar que seusdesenhos se alicercem nesses conceitos, consideração essaque fundamentará todas as conclusões seguintes.

Ao analisarmos os exercícios, observamos que a mai-oria deles demonstra que o domínio do mouse foi efetivado.Mesmo alunos que apresentam dificuldades com o Portu-guês parecem se entender bem com o computador, comomostram as figuras 1, 2 e 3. Observe que essas figuras fo-ram feitas com o programa Paint e a mão livre.

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As figuras 4, 5, 6 e 7 mostram os conceitos de pro-fundidade e composição.

Fig. 1

Fig. 2 Fig.3

Fig. 4 Fig.5

Fig. 6

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As figuras seguintes, tanto nos desenhos geraiscomo nos culturalmente específicos, testemunham a impor-tância do sofisticado conceito de simetria.

Fig. 7

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Tudo o que foi mostrado, em todas as figuras acima,com referência aos conceitos de profundidade, composiçãoe simetria, tanto nos trabalhos desenhados a mão livre comonaqueles em que foram utilizadas ferramentas do progra-ma, compõe uma pequena amostra do que, de início, deno-minamos de “Invariantes Culturais“, pois podem ser encon-trados nas mais diversas culturas, como uma linguagemcomum que as irmanam em suas expressões de estética ede beleza, desde os tempos imemoriais até hoje em dia.

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ETNOCONHECIMENTO NA ESCOLA INDÍGENA

Carlos A. Argüello*

O etnoconhecimento é peça fundamental na nossaproposta de construção de uma escola indígena, que sejaalgo mais que uma escola de brancos pensada para índios.Propomos uma escola que incorpore o saber dos anciãos,as características da educação indígena ancestral, integra-da à comunidade, e que resgate da escola do branco ossaberes necessários a seu empowerment e a prática da Edu-cação Libertadora.

O dicionário Aurélio (Ferreira, 1975) traz, como pri-meira acepção da palavra escola: estabelecimento públicoou privado onde se ministra, sistematicamente, ensino cole-tivo. “Estabelecimento de Ensino Coletivo” pressupõe algunsprofessores, muitos alunos, em local determinado.

A escola indígena tem o direito legal de ser uma es-cola diferenciada. Isto lhe confere um grau de liberdade paraorganizar seus currículos, administrar seus horários, possi-bilidade de organização bilíngüe com direito à alfabetizaçãona 1a língua etc.

A Escola Indígena é responsabilidade última dosmunicípios e dos estados, tendo que se enquadrar nas dire-trizes de orientações básicas educacionais da Federação.

A tendência geral hoje, é de que os professores dasescolas indígenas sejam índios, e prioritariamente que per-

* Dr. em Física, Consultor e Docente na Etapa de Ciências Matemática e da Natu-reza I. Texto apresentado em palestra na Sociedade Brasileira de Física, 2001,Natal.

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tençam à mesma etnia dos alunos. Mesmo assim, a escolaindígena é a escola do branco para o índio. É a mesma es-cola que o branco pensou para ele, mas a serviço do índio.Esta escola possuirá, então, muitos dos defeitos que possuia escola do branco, a que está ligada geneticamente, al-guns suavizados pelo direito à diferenciação. A escola dobranco prestigia o pensamento cartesiano, o reducionismomecanicista, a disciplinaridade, traz implícita a idéia ou prin-cípios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o acúmulo,o consumismo, a competição e, apesar de propiciar a utili-zação dos meios globais de informação, ignora seu entornoimediato, ignora o conteúdo cultural dos seus alunos e fami-liares e tende a uma padronização estéril.

As correções de rumo, necessárias, foram realiza-das dentro do marco da pulverização disciplinar e do apeloa tendências para as quais nem os professores, nem asescolas, estão preparados: transdisciplinaridade e visõesestreitas de ambientalismo.

Escola indígena

A escola, como uma estrutura humana, conceitual,onde se aprende, sempre esteve presente na educação in-dígena, não propiciando um ensino coletivo, mas, sim, umaeducação artesanal, preceptoral, individualizada,contextualizada e onde se fomenta o Fazer.

Professores são a família e a família estendida.Esta escola, baseada na oralidade e na prática exaus-

tiva, não pressupõe competitividade, não é dividida em dis-ciplinas e predispõe ao afloramento do pensamento com-plexo. No momento, esta escola está em perigo de extinção.O recente aparecimento da figura do jovem professor índioassalariado cria outras instâncias de poder, saber, comuni-

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cação e liderança que perturbam a estrutura ancestral (Ban-deira, 1997). Os anciões, os sábios, os antigos mestres sesentem ignorantes frente aos avanços da “Nova Educação”,propiciada pela “Escola para Índios”.

Aqui, eu quero relatar duas experiências, duas situa-ções vividas em locais completamente diferentes e distan-tes. Um, na escola das etnias Baniwa – Coripaco, nas mar-gens do rio Içana, afluente do rio Negro, nas terras indíge-nas do Alto Rio Negro, estado do Amazonas, perto da fron-teira com a Colômbia, em meados do ano 2000. Outra, naetapa de preparação das atividades dos cursos de Licenci-atura para professores indígenas, no Campus de Barra doBugres, da Universidade do Estado de Mato Grosso, emMaio de 2001. Em ambas as ocasiões, antigas liderançasindígenas, sábios anciões, fizeram discursos parecidos, so-licitando publicamente que instruíssemos os jovens profes-sores das suas etnias para que estes não fossem tão igno-rantes como eles. Mas não são esses anciões, os detento-res do conhecimento indígena, que nenhum indígena en-quanto tal deve ignorar? Não são eles os detentores do quea academia chama de etnoconhecimentos? Não são eles,os que conhecem os segredos da mata, dos rios, dos ani-mais, os que curam as doenças, os que conhecem os se-gredos do céu, conhecem o calendário astronômico que regena Terra as chuvas, as migrações das aves, as piracemas,as enchentes, o tempo certo de plantar? Não são eles osque conhecem os rituais, as danças, as cerimonias, os quefalam com os Deuses? Não são eles que conhecem o se-gredo da caça e são os melhores artesãos? Quem destruiua sua auto-estima, quem modificou os seus valores de jul-gamento? Não será a escola evangelizadora, que os queriacristãos? Não será a escola integracionista, que os queriaintegrados, indiferenciados? Não serão as diferentes esco-

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las, que os queriam tratoristas, cortadores de cana, engre-nagens microscópicas na grande máquina da economiabranca? Não será também a Escola Indígena, na sua ver-são “Escola para Índios”? Prestigiando em demasia os co-nhecimentos e a cultura do branco em detrimento das pró-prias? Quero citar, aqui, uma experiência que está no come-ço e irá frutificar somente dentro de cinco anos. Espero, en-tão, daqui a cinco anos, podermos nos encontrar para infor-mar e prestar contas. É nosso empenho e trabalho formarprofessores indígenas no 3o grau, licenciados em várias áre-as do conhecimento. Coube-me a delicada tarefa de coor-denar a área de Ciências Matemática e da Natureza dessasLicenciaturas diferenciadas.

Os cursos são ministrados em etapas intensivas, noCampus de Barra do Bugres (MT), para 200 professoresíndios, de 36 etnias diferentes.

Nas etapas intermediárias, o professor índio, enquan-to leciona na sua escola, realiza tarefas, trabalhos e pesqui-sas ligadas ao seu curso universitário. Nestas etapas inter-mediárias, também recebe, em sua aldeia, na sua escola, avisita e a orientação da equipe de professores do curso (do-centes), que, desse modo, também interagem com a comu-nidade.

O trabalho na etapa intermediária visa a resgatar paraa escola os conhecimentos ancestrais indígenas, valorizaros detentores dos diferentes saberes, diminuir a separaçãoescola – comunidade, permitir a docentes e professores in-dígenas um conhecimento melhor da realidade das aldeiase das escolas, estabelecer o diálogo direto com a comuni-dade.

Nestes momentos, o olho atento e treinado do do-cente poderá detectar junto à comunidade saberes, valo-res, práticas, que poderão ser objeto de estudo sistematiza-

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do, com a finalidade de sua incorporação escolar.Darei um exemplo.Junto com as Professoras Marta Azevedo e Judite

Albuquerque, realizamos, na Escola Paanhali1, da etniaBaniwa, um trabalho de resgate, junto aos professores daescola, do Calendário astronômico Baniwa. Trouxemos paraas discussões vários anciões, que deram sua importantecontribuição.

Em etapa posterior, reunimo-nos em São Gabriel daCachoeira (AM), com alguns desses professores indígenase mais cinco anciões. Trabalhamos durante vários dias, atéestabelecer, em forma definitiva, um calendário natural cir-cular, e um calendário astronômico, explicados em Baniwae em Português.

Da riqueza do calendário natural surgiram importan-tes ensinamentos, como por exemplo o de equilíbrio ecoló-gico, presa – predador, na sua versão indígena, as conste-lações Baniwa foram “traduzidas” às constelações acadê-micas e vice – versa, possibilitando o diálogo intelectual e amotivação para seguir estudando o céu, os fenômenos as-tronômicos, climáticos etc., simultaneamente, a partir dosdiversos olhares.

É interessante comentar que a introdução do com-putador e um programa de simulação do céu encantou osmais velhos que, em pouco tempo, foram capazes de utili-zar este novo instrumento sem constrangimento nenhum.

Cito esta passagem como um exemplo de saberescomplementares.

Nossa proposta é incorporar, nas atividades da es-cola, a comunidade, os velhos mestres, seus saberes eensinamentos, os conhecimentos tribais, enfim, derrubar os

1 No rio Içana - Amazonas

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muros2 que a escola do branco possui e que a separa dacomunidade e realidade que a rodeia, e que a escola paraíndios, como citei anteriormente, herdou em algum grau. Emcontrapartida vejo a escola para índios como uma forma de“potencialização” ao estilo Freiriano.

Segundo Paulo Freire, potencialização ouempowerment é um processo que “permite ao estudante in-terrogar e seletivamente se apropriar daqueles aspectos dacultura dominante, que vão lhe prover as bases para novasdefinições e transformações, em vez de meramente servir àampla ordem social estabelecida”. Continuando com PauloFreire, nosso grande mestre, gostaria de citar, da Pedago-gia do Oprimido, a seguinte afirmação:

“Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mes-mo. Os homens se educam entre si mediatizados pelo mun-do!” (Freire, 1992).

Comentar esta sentença inspiradora ocuparia horas,mas vamos nos perguntar tão-somente: qual é esse mundomediatizador? Intermediador?

A experiência de vida da pessoa constrói seu mun-do, comunidades étnicas mais ou menos isoladas, cultural-mente definidas, produzem mundos individuais com altograu de semelhanças. Poderíamos, simplificando, então,idealizar um mundo “padrão” étnico ou tribal. Mas e o mun-do do professor indígena, aberto a outras experiências e vi-sões de mundo? E o mundo do professor de professoresindígenas? Como pode se conceber ou construir um mundomediatizador? Na nossa tradição educacional, a escola des-conhece e ignora o processo de mediatização por mundosque nem sequer ensina a ler.

Será necessário que, entre os mundos a dialogar,

2 Ref. Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola – Palestra “A Escola SemMuros”.

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exista uma interseção que gere o mundo comum que será omediatizador. Então, o diálogo de características interculturaisservirá para ampliar o mundo comum a ambos, num pro-cesso, cuja meta ideal, mas impossível, seja a união destesmundos individuais. É nossa intenção que a escola seja oespaço dialógico para a ação mediatizadora.

Note-se que esta iniciativa transborda os limites daeducação em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, daexperiência indígena na educação.

Parafraseando Bartomeu Melia (Ameríndia, 1998):“Não há um problema de educação indígena, há so-

luções indígenas ao problema da educação”.A abertura de 200 vagas para os cursos de licencia-

turas, reservados aos professores indígenas, equivaleriam,na população brasileira, à abertura de aproximadamente 100000 vagas, resguardando as proporções populacionais.

A necessidade de construir seu próprio material di-dático, textos, equipamentos, em constante diálogo com arealidade em volta, incluindo a pobreza, é um desafio, que,uma vez vencido, como tudo leva a pensar que o será, cons-tituir-se-á em modelo a ser seguido por outras instânciasfora da educação indígena.

A revalorização da escola, de uma escola cultural-mente comprometida, mas aceitando a perspectiva de Edu-cação Libertadora, poderá servir de modelo a outras minori-as, movimentos sociais, e, basicamente, à escola tradicio-nal, qualquer que seja o nível econômico dos seus alunos,para que, engajada social, crítica e construtivamente, torne-se uma solução e deixe de ser um problema.

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Bibliografia

BANDEIRA, Maria de Lourdes. “Formação de ProfessoresÍndios: Limites e possibilidades”. In: Urucum, Jenipapo e Giz.Cuiabá: CEI/MT, 1997.

FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1992.

MELIÁ, Bartolomeu. “Ação Pedagógica e Alteridade: PorUma Pedagogia da Diferença. In: Ameríndia. Cuiabá: CEI/MT, 1997.

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CONVERSANDO COM A NATUREZA

José de Alencar Simoni*Magno Amaldo da Silva**

Paulo Sérgio Vasconcelos de Oliveira**Márcia Regina Zottesso do Nascimento**

Matthieu Tubino***

Observações iniciais

O presente relato tem por objetivo apresentar umadas atividades de Ciências, realizadas durante a primeiraetapa de Formação dos Professores Indígenas, no Curso3º Grau Indígena, na Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT), Campus de Barra do Bugres, cujo tema centralera “Gênese”, realizado em Julho de 2001.

Também apresentamos os roteiros desta atividade euma série de observações objetivas sobre o desenvolvimen-to da mesma. Os cinco procedimentos descritos neste rela-to foram desenvolvidos num período de, aproximadamente,8 horas, em cinco turmas de 40 estudantes (professoresindígenas), sendo esta atividade, a primeira de uma sériedesenvolvida com estes alunos.

Neste relato, quando nos referirmos à palavra Ciên-cia, acompanhada de qualificativos como “não-indígena” e“branco”, estaremos fazendo referências à Ciência feita pela

* Professor Assistente Doutor – Instituto de Química, Universidade Estadual deCampinas, Docente na Etapa de Ciências Matemática e da Natureza I.** Professores Auxiliares na Etapa de Ciências Matemática e da Natureza I.*** Professor Titular – Instituto de Química, Universidade Estadual de Campinas.

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Sociedade Ocidental Moderna (Snively, 2001: 8).Apesar de tratarmos exclusivamente do tema Méto-

do Científico, nossa opinião não é a de que há apenas ummétodo de fazer Ciência, a intenção principal foi a deexemplificar uma das formas de se fazer Ciência, muitas ve-zes definida como: “A Ciência Moderna do Ocidente”(Snively, 2001: 8).

O presente trabalho foi elaborado e desenvolvido den-tro da visão de pesquisadores / professores da área de Ci-ências Exatas, e, portanto, tem seu componente mais fortesob este ponto de vista.

De nossa parte, embora este não tenha sido elabo-rado para um público específico, acreditamos que ele possaser entendido e utilizado por profissionais de diversas áreasdo conhecimento, inclusive por professores de escolas do“branco”. Neste último caso, os procedimentos experimen-tais descritos podem ser aplicados, com as devidas adapta-ções para o nível a que se destinarem.

Introdução

Toda investigação científica envolve aspectos expe-rimentais e mentais (Vineyard, 1949: 383). Ela é, simultane-amente, execução e raciocínio, observação e imaginação.A intenção de investigar alguma coisa, um fato, um fenôme-no ou uma “suposição” de algo que ainda não foi verificadosurge do fato de as pessoas tentarem explicar os “porquês”dos fenômenos que as intrigaram (CBA, 1969: 3-7).

Todos nós fazemos diversas observações todos osdias, entretanto, somente um número relativamente peque-no delas chama a nossa atenção. Este interesse pode tervárias causas. A mais elementar de todas é a diversão(Nuffield, 1968: 1). Qualquer indivíduo se diverte, quando

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verifica algum fato novo e consegue entender algo a seu res-peito. No entanto, muitas vezes, estamos interessados emexplicar fatos e observações que nos possibilitem entendero que foi visto e “tirar algum benefício disto”.

O sucesso que a espécie humana sentiu em sua bre-ve existência, na face da Terra, e a conseqüente formaçãodas primeiras cidades, bem como o acúmulo de pessoasnestas cidades, exigiram esforços redobrados para supriras necessidades de uma população cada vez mais cres-cente. De tudo isto, emergiu o que denominamos a “Ciênciado branco”, caracterizada pelo seu “método científico”. O“método científico” é um instrumento que o homem utilizapara entender a Natureza. A Natureza compreende todasas coisas que existem no Universo (Meis, 2000: 1).

O uso deste “método científico” mostrou-se extraor-dinariamente produtivo, possibilitando um maior conhecimen-to sobre a Terra e o Universo, além de aumentar a capaci-dade de produção de alimentos e remédios. Os resultadospositivos mais importantes deste método são a compreen-são do mundo em que vivemos e a formação e desenvolvi-mento dos hábitos mentais imprescindíveis na investigaçãodeste mundo.

Não queremos com isto dizer que somente este “mé-todo científico” pode levar ao conhecimento que, hoje, te-mos, nem que o mesmo tenha sido ou é utilizado só em“benefício” do homem que o criou. É fácil perceber que não.

Para que os professores indígenas pudessem com-preender o que significa “o método científico do branco” (en-tenda-se aqui a palavra branco em seu sentido mais amplo)é que propusemos a atividade que será descrita a seguir.Examinar um objeto fechado, como uma caixa ou um saco,contendo em seu interior objetos que são, entre si, seme-lhantes em alguns aspectos e muito diferentes em outros,

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além de estimular a curiosidade do estudante poderia daruma visão clara de como o “branco” faz Ciência, ou melhor,de como ele “conversa com a Natureza” e tenta entendê-la,explicá-la e tirar algum proveito disto.

Mas, afinal, quais são as características desta Ciên-cia? As duas principais características que distinguem a ex-perimentação científica das observações comuns são: o iso-lamento do fato estudado e o controle do mesmo. O cientis-ta não-indígena tenta separar ou isolar, de qualquer outracoisa, o seu objeto de estudo. Denomina-se, então, estaforma de “conversar com a Natureza”, como a experimenta-ção controlada.

Pode-se considerar que um experimento científicoseja, de algum modo, o resultado a questões como: “o queacontece?”, “Como acontece?”, “Com que freqüência istoacontece?”, “Quantos...?” Etc. As duas primeiras perguntaspreocupam-se com os aspectos qualitativos do fato ou fe-nômeno e as duas últimas com os quantitativos. Ambos ostipos de respostas podem ser dadas, dependendo da formacomo conduzimos nosso experimento.

Dois aspectos são importantes para o sucesso des-ta experimentação: a capacidade de fixar a atenção em tudoque está ocorrendo durante a experimentação e a habilida-de de juntar todos os dados e fatos acumulados e associá-los de forma adequada. Embora ambos os aspectos tenhamum componente individual, os mesmos podem ser, em cer-ta extensão, trabalhados e aprimorados (Le Chatelier, 1930:2584).

Objetivo

A atividade proposta teve como objetivos exploraros aspectos qualitativos e quantitativos do “método científi-

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co da Ciência do branco”, utilizando, num primeiro instante,ferramentas aparentemente simples, mas muito sensíveis,como os órgãos dos sentidos. Os aspectos qualitativos equantitativos poderiam ser explorados em sua plenitude, umavez que os “roteiros experimentais” eram totalmente aber-tos e “induzidos” a serem desenvolvidos na forma de pes-quisa para despertar o interesse do estudante para a inves-tigação científica. Despertar sua curiosidade para “desco-brir” coisas, utilizando o método científico. Este despertartambém poderia ser feito com outros tipos de atividadeslúdicas, como jogos de cartas (Ziegler, 1974: 532), ou comexperimentos mais específicos da Química (Hanson, 1981:4340) ou da Matemática (Sauls, 1990: 958).

Procurou-se mostrar as diversas possibilidades deinvestigação, inclusive com o uso da Estatística. A Química,como um caso particular de Ciências Matemática e da Natu-reza, foi totalmente contemplada, nesta atividade, sem, noentanto, permitir-se que fosse explorada de uma forma di-vorciada das outras áreas.

A exposição do trabalho executado pelos estudan-tes e o resultado prático obtido também tiveram um signifi-cado importante, pois serviram para estimular o poder desíntese e a forma de apresentação de resultados.

Descrição da atividade

Os alunos-professores foram divididos em grupos dequatro integrantes, totalizando 10 grupos por turma. Todoseles receberam apenas informações orais sobre o que es-tariam experimentando (pesquisando).

Cada etapa descrita, na seqüência, era informadaoralmente, assim que a anterior houvesse sido realizada ediscutida. Este método permitiu um maior diálogo com os

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estudantes e uma maior clareza na exposição dos objetivosexperimentais. Entendíamos, neste momento, que as orien-tações escritas poderiam ser assimiladas de maneira maislenta que as orais e, também, com possibilidades de seremmal interpretadas.

Procedimento 1Cada grupo receberia o objeto de estudo (todos os

objetos eram iguais). Este objeto, dois sacos plásticos nãotransparentes, tendo em seu interior 10 embalagens de fil-me fotográfico, contendo, cada uma destas embalagens, di-ferentes materiais comuns ao dia-a-dia das pessoas (sóli-dos, líquidos e gases), em seu interior. Eram materiais co-muns, como: sal, açúcar, água, polvilho, fubá, bicarbonatode sódio (não muito comum para os estudantes), óleo co-mestível, areia, pó de café, carvão moído, entre outros. Es-tas 10 embalagens estavam inseridas dentro de dois sacosplásticos, sobrepostos, não transparentes e fechados.

Não era permitido abrir os sacos nem apertar comforça as embalagens (nas instruções, eles não receberaminformações sobre o que eram estas embalagens). Utilizan-do as sensações do tato, audição e visão, os alunos deveri-am interagir com o objeto e conduzir suas observações. Nãohavia qualquer preocupação inicial com o tempo de execu-ção do experimento.

Depois de encerradas as observações, cada grupoelaboraria um documento escrito e relataria oralmente suasobservações. Todos os relatos seriam anotados no quadro,e um resultado final, representativo de toda a turma, seriadiscutido como o “resultado aceito”.

Procedimento 2Na seqüência, o saco, contendo os objetos, poderia

ser aberto, porém não era permitido que o seu interior fosse

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observado diretamente. Um frasco, por vez, seria retirado,destampado e as características de seu conteúdo observa-das e anotadas. O frasco voltaria para o saco e outro aluno,após mexer o conteúdo dos sacos, retiraria um outro frasco,podendo ou não ser o anterior, repetindo o mesmo procedi-mento.

Entre 30 e 50 amostragens deveriam ser feitas, osresultados anotados e uma previsão do que os frascos con-tinham seria feita por um tratamento estatístico. Aqui, o ob-jetivo específico era verificar que, mesmo sem experimen-tar o objeto por completo, ainda assim é possível inferir oumesmo confirmar uma propriedade do conjunto total.

Na seqüência, seria permitido abrir todos os frascos,observando-se e descrevendo-se seu conteúdo. Caracte-rísticas como cor e granulação eram as que se desejavaque fossem observadas. O resultado obtido seria compara-do com aquele feito pela amostragem.

Esta etapa do procedimento tinha como objetivo cen-tral fortalecer a idéia de que o “fazer Ciência”, como os bran-cos a entendem, significa, num momento inicial, observar eanotar de maneira metódica e clara os dados e os fatos per-tinentes. Além disso, havia a preocupação de se introduzir aestatística como uma possível ferramenta de investigação,e como ela pode ser aplicada e seus resultados interpreta-dos.

Procedimento 3Nesta etapa, desejava-se verificar a propriedade da

água em solubilizar cada um dos sólidos existentes dentrodas embalagens. Os alunos deveriam colocar uma certaquantidade de cada material em meio copo de água e verifi-car o que ocorria. Além da verificação desta propriedade, aquestão da conceituação dos materiais como solúveis, par-

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cialmente solúveis ou insolúveis também era parte dos obje-tivos desta parte da atividade.

Também agora, já havia uma certa preocupação emse ensinar algum conteúdo de Química, mesmo que de umaforma “disfarçada”, para não comprometer o objetivo maiorde toda a atividade.

Não havia qualquer preocupação com aspectosquantitativos, os volumes foram tomados como está descri-to e a quantidade de sólido, qualquer uma, entre uma colhercheia e uma “ponta de colher”.

Procedimento 4Nesta parte, cada sólido, separadamente, seria pos-

to em contato com uma solução de iodo, destas encontra-das em farmácia. A idéia era verificar que nem todos os pósde mesma característica (cor e granulação) apresentam to-das as propriedades semelhantes. Aqui, o conceito de rea-ção química (objetivo central da Ciência Química) foitenuamente utilizado. Por outro lado, sólidos tão diferentescomo farinha de trigo e farinha amarela de milho mostramresultados semelhantes com a solução de iodo.

A idéia que se queria ressaltar, nesta etapa, era a deque “as aparências enganam”. Sólidos de mesma cor, tex-tura e granulação (que corresponde aos testes iniciais) po-dem apresentar propriedades diferentes quando investiga-dos com outras ferramentas (testes posteriores), e algunssólidos que apresentam propriedades diferentes, nos testesiniciais (visão, tato), podem apresentar resultados semelhan-tes nos testes posteriores (solução de iodo).

Procedimento 5Os sólidos brancos e amarelos seriam colocados in-

dividualmente em uma colher protegida por papel alumínio

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e aquecidos ao fogo de uma chama. Alguns destes sólidosficariam negros como carvão e outros não, mostrando, ou-tra vez, que “as aparências enganam”.

O objetivo central, desta etapa, era o de mostrar queos materiais que se tornam negros ao aquecimento podemconter outras coisas em comum, no caso, “átomos de car-bono” em suas moléculas. Isto já era uma forma de se intro-duzir, despretensiosamente, a existência de “átomos de car-bono”. A idéia era “deixar no ar” as palavras: átomo e carbo-no, as quais seriam objetos de estudo nas próximas ativida-des sobre a gênese do universo.

Além disso, seria possível mostrar, também, uma dasmais antigas ferramentas do homem na investigação, se nãoa mais antiga: a ação do fogo sobre os materiais.

Para finalizar, deve-se acrescentar que este procedi-mento não foi realizado em todas as turmas e, onde ele foirealizado, o foi como demonstração.

Resultados e discussão

Procedimento 1Neste trabalho inicial, os alunos mostraram boa ca-

pacidade de análise do material recebido. A totalidade dosestudantes tentou atribuir uma identidade ao conteúdo con-tido nas embalagens, embora esta não tivesse sido nossapreocupação inicial.

Era desejável que comparassem o som provocadopelos diversos sólidos, no interior das embalagens, com al-guma coisa já conhecida. Observou-se que, embora todosos grupos tivessem usado esta estratégia de investigação,a grande maioria destes grupos, em suas apresentaçõesorais, não utilizou uma frase como: “isto se parece com”.Isto ficou evidente pelo fato de todos, sem nenhuma exce-

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ção, terem afirmado que os frascos encontrados, no interiordo saco plástico, eram embalagens de filme fotográfico.

Todos os grupos determinaram as dimensões dosfrascos, utilizando régua e isolando cada frasco.

Uma outra característica marcante foi o fato de quetodos os grupos, sem nenhuma exceção, estimaram a mas-sa do conjunto, embora isto não fosse uma das observa-ções desejadas ou relevantes, do nosso ponto de vista inici-al. Entretanto, isto evidencia a curiosidade intrínseca queestes estudantes possuem.

Ficou evidente que a maioria deles não tinha umaidéia clara de como e com o que estariam comparando aque-le objeto para estimar a sua massa. Acreditamos que estefato esteve associado à construção de uma balança rudi-mentar nas atividades de Física, já que vários grupos utili-zavam réguas na forma de alavanca para fazer esta estima-tiva.

Como alguns frascos de solução de iodo estavam àdisposição na mesa dos docentes e como se tratava de ma-terial “confiável” (na opinião deles), eles utilizaram algunsdestes frascos para fazer as comparações. Não há uma ex-plicação segura, dentro da lógica da “Ciência”, para que ado-tassem este procedimento, já que os rótulos destes frascosnão apresentavam o conteúdo em massa ou, muito menos,alguma grandeza que permitisse fazer comparações. É pos-sível que alguns alunos, tendo conhecimento prévio da den-sidade, especialmente da água, tenham se aventurado aestabelecer conexões como: densidade da água - volumeda solução - massa da solução - massa do frasco etc.

Alguns grupos utilizaram a régua como simples ala-vanca para fazer a estimativa. Nestes casos, eles simples-mente apoiavam parte da régua em uma mão e aplicavamuma força do lado oposto ao objeto que queriam determinar

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a massa. Embora isto não se configurasse como uma “boatécnica” na Ciência do branco, não fizemos qualquer interfe-rência neste sentido. Nosso papel restringiu-se em questio-nar os “como” e os “porquês” destas avaliações, de modo aestimular seu senso crítico na investigação.

Se fizermos uma analogia com o que ocorre com osestudantes brancos, veremos que o comportamento se re-pete. Neste caso, temos visto com bastante freqüência, porexemplo, que quando os estudantes brancos estão estu-dando reações químicas entre duas substâncias, basta quedeixemos de prestar atenção, por um momento, e os mes-mos passam a misturar três, quatro, cinco e até todos osreagentes disponíveis em um só frasco. Faz parte da natu-reza humana pôr em prática, o mais rápido possível, o co-nhecimento recém-adquirido na resolução de problemas no-vos. Isto se mostrou bem claro com os nossos estudantes-professores indígenas.

Procedimento 2Na seqüência, os alunos puderam abrir o saco e ob-

servar o seu conteúdo. Puderam contar as embalagens etambém abrir cada uma delas, verificar e descrever seusconteúdos. A idéia era verificar que observações corretaspodem nos aproximar dos resultados desejados, observa-ções incorretas, não. Ao relatarem seus resultados, e levan-do em conta todos os resultados da turma em conjunto,puderam sentir que a amostragem é uma ferramentapoderosíssima no “fazer Ciência”.

Antes de se permitir a abertura completa dos sacos(objeto de estudo), foi feita uma análise conjunta de todosos dados obtidos na amostragem estatística, evidenciandoque esta análise, o tamanho da amostragem e a repetiçãode resultados são características do “fazer Ciência” para o

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branco.Com a abertura dos potes, ficou evidente que, ago-

ra, o “fazer Ciência” utilizava uma ferramenta mais podero-sa: a visão. Inicialmente todos se preocuparam em dar aidentidade ao material contido em cada pote. Foi necessáriointervir, no sentido de que eles apenas se preocupassemcom a descrição do conteúdo, alguma coisa como: um póbranco de granulação bastante fina etc. Isto não foi um gran-de obstáculo para eles.

Aqui, devemos fazer um novo parênteses, o com-portamento dos estudantes repete o comportamento dos es-tudantes brancos, principalmente aqueles relativos aos es-tudantes brancos que já são professores. Em vários cursosde aperfeiçoamento, temos verificado a freqüente tentativadestes professores brancos em identificar sistemas com fer-ramentas que não o permitem. Em Ciência é o que classifi-camos como inferências. A mais comum delas é a afirma-ção “eu vejo as moléculas se afastando”, quando, na verda-de, estes professores estão apenas verificando um sólidocolorido se dispersar em um líquido.

No caso do trabalho com as amostragens e com osaspectos estatísticos, percebemos a grande dificuldade queos alunos têm com regra de três, proporções e porcenta-gem. Procuramos desenvolver algumas tarefas para quepudessem assimilar um pouco destas formas de apresenta-ção de resultados. No entanto, não nos ativemos muito nis-to, já que a Matemática estaria trabalhando estes aspectosnas suas atividades.

Procedimento 3O terceiro procedimento, nesta primeira atividade,

consistiu em observar a solubilidade dos sólidos presentesnas embalagens dentro do saco. O objetivo era continuar

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com a idéia de que a ciência nunca se esgota. A cada etapavencida, novas ferramentas são criadas e novos fatos e re-sultados devem ser obtidos, acumulados e analisados.

Como não havia nenhuma idéia em se fazer testescom muito rigor, sua realização e os resultados obtidos fo-ram apenas comentados em cada grupo. No entanto, o pro-cedimento aguçou a curiosidade dos alunos, principalmentena classificação dos materiais como insolúveis ou solúveis.Com certeza, o objetivo da atividade foi atingido, pois, alémde desenvolver a curiosidade sobre os aspectos dasolubilização, foi possível trabalhar um pouco o manuseiodos materiais, transferências, misturas e lavagem de mate-rial.

Procedimentos 4 e 5Teste com solução de iodo e também aquecimento

das amostras eram as propostas iniciais. No entanto, devi-do à pouca habilidade inicial dos alunos com as ferramentasque iríamos utilizar, assim como o envolvimento de certapericulosidade, resolvemos não fazer a atividade. Este as-pecto tem sido objeto de preocupação desde há muito tem-po (Young, 1957: 238). Acrescente-se o fato de que o anda-mento das atividades foi um pouco lento, em relação ao pre-visto inicialmente, e um tempo maior, nesta atividade, pode-ria comprometer o andamento das outras.

Em algumas turmas, estes testes foram realizadosna forma de demonstrações, mas não foi possível fazer ob-servações mais profundas, já que o tempo disponível nãopermitiu. Mesmo assim, optamos por desenvolver estes pro-cedimentos desta forma para, pelo menos, mostrar um pou-co mais sobre o método de “fazer Ciência” do não-indígena.

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A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NOS CURSOS DELICENCIATURA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

INDÍGENAS

Roseli de Alvarenga Corrêa*

A abordagem sobre esse assunto tem por meta in-centivar discussões com a comunidade educacional e, emparticular, com os professores e futuros professores alunosdos cursos de Licenciatura em Matemática, sobre algunsaspectos de uma realidade tão próxima de todos nós e ain-da tão desconhecida, que é a educação formal nas comuni-dades indígenas brasileiras. A questão que, no momento,eu destaco, pode ser colocada da seguinte forma: “Comoas Universidades e seus cursos de Licenciatura em Mate-mática posicionam-se frente à educação escolar indígena eà formação de professores indígenas”?

A intenção não é buscar uma resposta para essa per-gunta, mas, sim, refletir sobre ela. Para tal, alguns esclareci-mentos de ordem geral, envolvendo as questões da educa-ção escolar indígena – sem particularizar para grupos étni-cos específicos – fazem-se necessários nesse momento.

Dados quantitativos sobre os índios no Brasil nos in-formam que a grande variedade de grupos étnicos brasilei-ros, com história, saberes, cultura e, na maioria, com lín-guas próprias, somam aproximadamente 300 mil pessoas.Segundo o Referencial Curricular Nacional para as Escolas

* Doutora em Educação Matemática, Docente na Etapa de Ciências Matemática eda Natureza I.

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Indígenas (MEC, 1998), vivem atualmente, no Brasil, maisde 200 povos indígenas, com uma diversidade lingüísticade mais de 170 línguas, das 1200 originariamente existen-tes. Sobre a educação formal indígena, os dados nos dizemque existem, hoje, no Brasil, cerca de 1600 escolas indíge-nas e aproximadamente 76 mil alunos matriculados. Dosprofessores atuantes, num total de 2.859 professores, 71%,ou seja, 2.041, são professores indígenas.

Ao longo de sua história, os povos indígenas vêmelaborando “complexos sistemas de pensamentos e modospróprios de produzir, armazenar, expressar, transmitir, avali-ar e reelaborar seus conhecimentos e suas concepçõessobre o mundo, o homem e o sobrenatural” (RCNEI, 1998:22). Essa sabedoria, através das formas particulares tradici-onais de educação dos povos indígenas, é comunicada,transmitida e distribuída por seus membros para toda a co-munidade. Assim, sempre foi e ainda será, independente-mente da presença da escola na aldeia, pois, nas comuni-dades indígenas, ensinar e aprender “combinam espaços emomentos formais e informais” (RCNEI, 1998: 23), sendo aescola um desses espaços de aprendizagem formal.

Criada num panorama de negação da diferença, aescola indígena, desde sua origem, no Período Colonial atéeste século, esteve marcada por ações de catequização,civilização e integração. Ainda hoje, grande parte das esco-las indígenas “tem como tarefa principal a transformação dooutro em algo assim como um ‘similar’ que, por definição, éalgo sempre inferior ao ‘original’. (Silva e Azevedo, 1995:151). Com seus currículos idênticos aos das escolas dosnão-índios, os projetos tradicionais de educação escolar in-dígena “têm encarado as culturas dos povos criativos comoum signo inequívoco do ‘atraso’ a ser combatido pela piedo-sa atividade civilizatória” (Silva e Azevedo, 1995: 151).

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Nas últimas décadas, no entanto, os povos indíge-nas e, mais especialmente, os professores indígenas, vêmreivindicando a elaboração de novas propostas curricularespara suas escolas, “em substituição àqueles modelos deeducação que, ao longo da história, lhes vêm sendo impos-tos, já que tais modelos nunca corresponderam aos seusinteresses políticos e às pedagogias de suas culturas”(RCNEI, 1998: 11).

Satisfazendo aos próprios anseios atuais das comu-nidades indígenas, cada vez mais os professores índiosestão atuando nas escolas das aldeias. Tais mudanças es-tão, nos dias atuais, legalmente garantidas pela Constitui-ção de 1988, pela LDB de 1996 e, mais recentemente, pelaResolução CEB (Câmara de Educação Básica) de 1999, quefixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das Esco-las Indígenas e que, pouco a pouco, vêm sendo incorpora-das pelos diversos povos. Segundo a fala dos próprios pro-fessores da Comissão dos Professores Indígenas do Ama-zonas, Roraima e Acre, “A primeira coisa que a gente temque fazer para produzir um currículo é se juntar, conversar,discutir as idéias. É chegar na aldeia, depois desses encon-tros de professores, e conversar com a comunidade, comos outros professores. É mostrar que aquele currículo nãoestá bom, que é preciso mudar” (RCNEI, 1998: 13).

A educação Matemática na escola indígena

Pelo que a experiência tem me oferecido de conhe-cimento nessa área, pelo conhecimento que tenho do tra-balho de outros profissionais da educação, atuantes nasáreas indígenas, um curso de formação de professores in-dígenas tem que ser analisado, entendido, estruturado, de-senvolvido, também sob um ponto de vista específico, imerso

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nas características do grupo étnico, considerado em suasrelações sociais e culturais e levando em conta os valoresque são legitimados pelo grupo em sua atividade de ensino.

Atendendo aos próprios anseios dos povos indíge-nas quanto à necessidade de construírem seus currículoseducacionais mais voltados para a sua realidade e condi-zentes com as novas demandas, que as situações pós-con-tato impuseram, a Educação Matemática, desenvolvida emcursos de formação de professores indígenas, deve ter emvista as aspirações das comunidades indígenas e o respei-to às questões culturais do grupo. Assim, uma postura sem-pre atenta e aberta para aprender com os índios aspectosde sua vida cotidiana, de sua cultura, impõe-se ao docentede outra cultura, que pouco a pouco vai se apercebendo deoutras várias forças implicadas na questão educacional. Sãoquestões religiosas, políticas, ideológicas e outras, assumi-das pelos não-índios que, conscientemente ou não, confe-rem ao trabalho que realizam junto aos grupos indígenas,suas idéias, sua verdade.

Trabalhar na área de Matemática, num curso de for-mação de professores indígenas, fez-me por diversas ve-zes perguntar: “Por que aprender a matemática na escolaindígena?”, “ Que matemática deve ser ensinada e aprendi-da?”, “Como trabalhar a matemática na escola indígena?”,“Qual a finalidade da educação matemática na escola indí-gena e no cotidiano da aldeia?” e outras similares. Daí que,a reflexão, o questionamento, a análise crítica recai tambémsobre o nosso próprio trabalho, sobre como temos procura-do desenvolvê-lo, quais idéias o estruturam, qual é, enfim, afilosofia que nos move e nos faz criadores de estratégias deação para cada momento, para cada situação, para cadaevocação cultural e mística do grupo com o qual trabalha-mos.

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A Universidade e sua contribuição na formação de pro-fessores indígenas

A educação formal indígena e a Educação Matemá-tica na escola indígena, eu diria, está apenas começando aser pensada e exercida de forma diferenciada, de modo aassegurar “às comunidades indígenas também a utilizaçãode suas línguas maternas e processos próprios de aprendi-zagem”, segundo o que diz a Constituição de 1988, cap. III,seção I. As mudanças significativas iniciadas a partir da dé-cada de 70, época em que começaram a surgir, no Brasil,os movimentos propriamente indígenas e aqueles que re-sultaram na criação de entidades civis de apoio à causa in-dígena, começam a produzir seus frutos. No final dos anos80, as várias experiências de implantação de escolas indí-genas, com currículos e pedagogias próprias, já aconteci-am, juntamente com a produção de materiais didáticos es-pecíficos e produzidos pelos próprios índios. A partir de 90,além da intensificação da pesquisa acadêmica, particular-mente entre os lingüistas, antropólogos e sociólogos, estatorna-se mais reflexiva e crítica de seu próprio trabalho. Osdias atuais têm sido marcados por uma avaliação crítica dasexperiências educacionais diferenciadas construídas nas dé-cadas anteriores. Os debates, temas e problemas tornam-se mais específicos, sofrendo uma espécie de detalhamentoe sofisticação, tendo como fundo a diversidade de situações,de cultura e de propostas oferecidas pelas comunidades in-dígenas.

A bem da verdade, os estudos acadêmicos, em tor-no da educação escolar indígena, têm levantado mais ques-tões do que propriamente trazido algumas respostas defini-tivas, se estas existirem. O que se tem quase como um novo

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paradigma é que a diversidade dos povos, de línguas, deculturas, de espaços geográficos, de reivindicações, de ní-veis de contato, de aspirações, deve estar no cerne da cons-tituição de qualquer proposta curricular para a educação in-dígena, incluídas também a educação de minorias raciais esociais. Daí que os cursos de Licenciatura e, mais particu-larmente, os de Licenciatura em Matemática, necessitamampliar e/ou abrir espaços no sentido de incentivar e valori-zar os estudos e pesquisas nessas áreas mais carentes dadocência, ou seja, nas áreas voltadas para o que costuma-mos chamar de minorias (embora sejam maioria em neces-sidades e reivindicações): cursos de formação de professo-res leigos, cursos de formação de professores indígenas,cursos para jovens e adultos, cursos para a formação deprofessores alfabetizadores e outros.

A idéia que desejo proclamar é que, quando nossosalunos dos cursos de Licenciatura em Matemática e futurosdocentes, nessa área, tiverem a oportunidade de exercerdocência ou assessoria em cursos de formação de profes-sores, dentre os quais professores indígenas, que esse tra-balho não se inicie a partir da “estaca quase zero”, comotem acontecido com a maioria que trabalha ou já trabalhouem áreas indígenas. Se, há duas décadas, não tínhamosreferenciais teóricos que nos assegurassem melhor conhe-cer e estruturar nosso trabalho em áreas tão específicas,hoje, intensificam-se as pesquisas acadêmicas sobre asquestões da educação indígena, educação de jovens e adul-tos e outras. E a Educação Matemática, através de seuspesquisadores, está presente nesses campos, onde temdado a sua contribuição teórica através de teses, disserta-ções, artigos e livros. Que possam ser criados eimplementados, nos cursos de Licenciatura, em suas diver-sas áreas, os espaços de estudos e pesquisa necessários

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para que essas contribuições sejam analisadas criticamen-te, rediscutidas, reelaboradas segundo novas visões e no-vos momentos e que novas idéias possam estar sendo pro-postas, inspiradas pelos desejos das próprias comunidadespara sua educação formal específica.

A docência e assessoria para essa educação espe-cífica, como é a educação indígena, amplia-se a cada mo-mento e, se hoje já é realidade o 3º Grau Indígena em MatoGrosso – projeto pioneiro do Governo do Estado de MatoGrosso – outros estados do Brasil já estão se mobilizandopara implantar seus cursos de licenciatura, visando à for-mação de professores indígenas para o Ensino Fundamen-tal e Médio.

O que se nota é que, a cada momento, mais especi-alistas, na área de Educação Matemática, são solicitadospara realizarem trabalhos na educação formal indígena. Asuniversidades podem estar cumprindo o seu papel para coma sociedade brasileira, levando ao conhecimento de seusalunos e futuros professores a realidade das comunidadesindígenas, das comunidades minorias raciais, sociais, mui-tas vezes tão próximas de nós e, ao mesmo tempo, tão dis-tantes, dado o desconhecimento que temos delas, dada adesvalorização de sua língua e cultura e dada uma série decrenças e mitos que nos foram inculcados pelas geraçõesque nos antecederam e pelas escolas que freqüentamos.

Para concluir, devo dizer ainda que é desejo dos ín-dios serem conhecidos e valorizados em seu próprio país,assim como desejam o reconhecimento e a valorização desua escola por todos os segmentos educacionais do seumunicípio, estado e país. Sobre essa questão, assim os pro-fessores Ticuna da região do Alto Solimões, no Amazonas,se expressaram: “Nós, professores indígenas, queremos queo MEC repasse este referencial, chamado de RCNE/Indíge-

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na, para os estabelecimentos de ensino municipais e esta-duais. Assim, esses setores terão conhecimento das possi-bilidades de currículo para os povos indígenas do país eesses currículos poderão ser reconhecidos e valorizados pe-los órgãos envolvidos com a educação escolar de cada es-tado” (RCNEI, 1998: 14).

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A TRAJETÓRIA DA LIBERDADE

Andila Inácio Belforte*

Quando completei oito anos de idade, meu pai cha-mou-me um certo dia e me falou:

- “Filha, você já está uma mocinha e precisa come-çar a ir para a escola, pois precisa aprender a escrever”.

Falava de uma escola que o estado/RS, haviaconstruído para nós dentro da nossa aldeia, lá pelos anos50, na reserva indígena Correteiro, município de Água San-ta, no Rio Grande do Sul, aldeia natal da minha mãe, ondenasci.

Na manhã seguinte, lá fomos nós, eu e meu pai, parame apresentar ao professor e, provavelmente, efetuar a mi-nha matrícula. Agarrada na mão de meu pai, eu ia feliz, commeu primeiro caderninho, que minha mãe colocava dentrode um saco plástico, juntamente com um lápis, com umaborrachinha branca acoplada à ponta do lápis preto. Nãopodia imaginar que aquela alegria, logo se tornaria o meuprimeiro pesadelo a caminho da minha formação.

Meu pai cuidou de tudo, depois me deixou na escolae voltou para casa. Meu professor, que não era índio, melevou até a classe, como era chamada pelos brancos. Nosbancos sentavam duas crianças cada, e começou a falarcomigo, mas eu não entendia nada, quanto mais ele tenta-va se comunicar comigo, mais assustada eu ficava. Saí cor-rendo da sala, chorando desesperada, tomei o caminho de* Acadêmica do 3º Grau Indígena, pertencente à etnia Kaingáng, do estado do RioGrande do Sul.

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volta para minha casa.Nos próximos dois anos, em vão meu pai tentou me

fazer voltar para a escola, mas não me convenceu. No de-correr deste tempo, eu já havia aprendido a falar algumaspalavras em Português, então aceitei voltar para a escola.Apesar de ainda enfrentar muitas dificuldades de comunica-ção, com 16 anos terminei a 5ª série, chamado de cursoprimário.

Meu pai quis voltar para sua aldeia, que ficava dis-tante 36 Km, chamada Ligeiro, município de Charrua - RS,tínhamos lá muitos parentes e todos conheciam meu pai,que era natural de lá.

Quando eu me preparava para fazer o chamado Exa-me de Admissão, para prosseguir meus estudos no ginásio,de 6ª a 8ª série, o servidor da FUNAI responsável pela nos-sa reserva mandou chamar meu pai, que, chegando lá, re-cebeu a “ordem” para que me preparasse que em poucosdias a FUNAI me levaria para um colégio interno, em outrareserva indígena, chamada Guarita, localizada no municí-pio de Tenente Portela – RS.

Lá, a FUNAI, em convênio com a IECLB (Igreja deConfissão Luterana do Brasil), tinha criado uma escola paraformar monitores bilíngües, em nível de 1º Grau, chamadoCTPCC, (Centro de Treinamento Profissional ClaraComarão), e era para lá que iriam me levar.

Quando meu pai voltou e contou para minha mãe eeu, ele não conseguiu esconder sua tristeza e nem as lágri-mas que molharam seu rosto. Nós, Kaingáng, não nos se-paramos assim de nossos filhos, principalmente da filha mu-lher, que mesmo depois de casada pode continuar moran-do com os pais.

Fiquei tentada a não ir, mas certamente meu pai se-ria responsabilizado e penalizado. Outros dois rapazes que

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também já haviam terminado a 5ª série tinham sido “convo-cados”, então já não iria sozinha, agora éramos três Kaingángdaquela aldeia, fiquei mais encorajada.

Assim, no começo do ano de 1970, tivemos a nossaaula inaugural, com muitas autoridades presentes e maisou menos 30 jovens Kaingáng, fardados e perfilados, can-taram o Hino Nacional. Até este momento não sabíamospor que estávamos ali, ninguém nos dava nenhuma expli-cação.

Hoje, recordando aqueles momentos, penso que aliviramos uma página da nossa história, para nós mesmosescrevermos a outra “A Luta dos Professores Kaingáng”.

As normas disciplinares do colégio eram muito rígi-das, tínhamos horário marcado para tudo, nos tornamosescravos do relógio.

O frio chegou, aumentando ainda mais a saudadede casa, do calor humano das famílias e do fogo no chão,mas não podíamos fazer fogo para nos aquecer, porque elesdiziam que a fumaça fedia nas nossas roupas e cabelos.

Escrevia para meu pai, dizendo que estava sofrendomuito e passando fome, que viesse me buscar, mas tínha-mos que entregar a nossa correspondência para a direçãolevar para os correios, nossas cartas eram violadas e lidas,e nunca chegaram a seus destinos.

Ainda no primeiro semestre, levaram a maioria dasmoças embora, deixaram apenas cinco, chorei porque nãome levaram, também não sei até hoje porque fizeram isso.Sentimos muita falta delas, eram as mais velhas e com elasnós nos sentíamos mais protegidas.

Nos proibiram de falar com os nossos colegas e noscastigavam por qualquer coisa, eu então vivia de castigo,que era limpar e dormir na casa da diretora. Fazia muitasgravações da língua com ela. Não sabia por quê.

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Não tínhamos o costume de comer verduras e legu-mes como repolho, tomate, alface etc., essas coisas, entãoa diretora sentava à mesa e servia uma pratada de verdurapara eu comer primeiro, depois, então, ganhava arroz, fei-jão e carne, se não comesse acabava ficando sem comer.

Num fim de semana, fugimos para a mata, para co-lher nossas verduras e legumes. Na volta não nos deixarampreparar a nossa comida nas panelas da cozinha, como sefosse algo repugnante ou prejudicial à saúde, então nos to-maram para jogar fora. Passado algum tempo, descobrimosque tinham levado as nossas folhas para análise e desco-briram que as propriedades nutritivas delas superavam oespinafre, por isso, queriam saber onde encontramos paratirar as sementes. Respondemos que não era mais tempo eque não tem o tempo todo, nem tempo certo.

Aprendemos escrever nossa língua, e também re-cebemos aulas de datilografia e descobrimos que a máqui-na escrevia em Kaingáng, ficamos tão felizes que fizemosum jornal de circulação interna para comemorar.

Final do ano de 1972, nos formamos. Foi um aconte-cimento nacional e internacional. Não tínhamos clareza doque isso representava para nós, nem para os brancos, maspara eles era bem claro o que queriam, nos usar enquantoalfabetizadores da língua Kaingáng e que fariam o processode transição da língua Kaingáng para o Português em pou-co tempo e então os professores brancos fariam o resto,abreviar a integração dos Kaingáng à sociedade nacional,usando os índios e sua própria língua para nosdescaracterizar enquanto povo, mas não tínhamos clarezadisso.

Início de 1973, através de uma portaria conjunta, aFUNAI contratou todos nós para começarmos a atuar emnossas comunidades dos três estados da Região Sul,

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Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.Fomos discriminados por muitos professores da

FUNAI, que diziam que nós não tínhamos estudo para daraula, que tínhamos de fazer limpeza da escola.

Foi preciso passar 10 anos para percebermos quenão era essa escola que precisávamos, estava nos despin-do da nossa cultura, e não era isso que queríamos.

Precisava voltar a estudar, procurei uma escola de2º Grau Supletivo, apresentei a documentação exigida e efe-tivei a minha matricula, mas antes que começassem as au-las me chamaram na secretaria da escola, descobriram queo certificado de 1º Grau que recebi do CTPCC não era reco-nhecido pelo Conselho Estadual de Educação, submeteram-me a uma prova para que meus estudos fossem regulariza-dos.

Fui aprovada e pude então cursar o 2º Grau. Em doisanos de aulas freqüentadas, terminei em 1989 o EnsinoMédio, coroando meu sacrifício, pois trabalhava o dia inteirona FUNAI e à noite ia para a aula, isso sem falar que, nestaépoca, minhas filhas eram todas pequenas.

Contudo, continuamos, eu e meu povo, sendo trata-do como quem estava condenado a sempre depender dosoutros. Isso começou a me inquietar e, por conseqüência,em 1992, cinco Kaingáng fizeram vestibular na universida-de de Ijuí – RS, em cinco áreas estrategicamente escolhi-das, Direito, Enfermagem, Pedagogia, Agronomia e Histó-ria. Não conseguimos para Direito, mas ingressamos nasoutras quatro áreas. Eu me lembro que saiu um artigo numjornal que dizia: “Índios Invadem a Universidade”.

Para nossa decepção, apenas um terminou o curso,o de Enfermagem, que hoje trabalha em sua comunidade.

As causas da desistência dos outros três foram vári-as. Não conseguiram se acostumar na cidade e a condição

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financeira era precária para permanecer estudando.Quanto a mim, que cursava Pedagogia, tenho parti-

cularmente as minhas razões, desisti porque o que se trata-va no meu curso nada tinha a ver com meus anseios e ex-pectativas enquanto professora indígena, tinha tambémmuita dificuldade para acompanhar a turma, era tudo muitocorrido, os professores falavam demais e me perdia no meiode tantas falas, e depois, o professor saía e nem pergunta-va se alguém ficou com alguma dúvida, em seguida aplica-va a prova. Era como se diz: “cada um por si e Deus paratodos”. Era assim, um querendo ser melhor que o outro. De-sanimei e larguei a faculdade. Me doeu muito, porque sabiao que representava para mim e para meu povo a minha for-mação no 3º Grau, eu estava abrindo mão da única formade poder ajudar a mudar o rumo da educação escolar indí-gena do povo Kaingáng.

Minha preocupação maior era com os professoresque alfabetizavam na nossa língua, pois desde que come-çamos a trabalhar nunca tivemos uma pessoa preparadapara nos ajudar nas nossas dificuldades na língua Kaingáng.Sentia muito não ter terminado meu curso, mesmo que nãome ajudasse muito, mas estaria mais apta para fazer frenteàs investidas dos professores brancos.

Enquanto queríamos as garantias do ensino diferen-ciado para conservar a nossa cultura, não tínhamos quemnos ajudasse nas nossas dificuldades do ensino bilíngüe,propriamente dito, o que ainda estava segurando pelo me-nos a língua, e eu via que os professores indígenas, pelasdificuldades enfrentadas na alfabetização da língua e porfalta de orientação e material didático apropriado, estavamdeixando a língua e alfabetizando em Português, por ter maisrecursos de que lançar mão.

Não pensava mais que pudesse ajudar os professo-

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res Kaingáng, quem sabe algum dia alguém dos nossos che-gue lá, para fazer este trabalho, mas quem sabe tarde de-mais, para um povo que gradativamente está deixando defalar sua língua, como é o caso do povo Kaingáng.

Assim como dentro da FUNAI existem aqueles ser-vidores relapsos, temos a sorte que existem algumas pou-cas pessoas que têm uma visão diferente de nós e nos têmajudado dentro das suas limitações. Assim sendo, alguémda FUNAI teve acesso ao material informativo sobre uma talUniversidade Indígena, e mandou-me pelo correio. Contin-ha os formulários para inscrições, corri atrás e consegui ins-crever três professores da minha aldeia, tudo na correria,pois as inscrições já estavam se encerrando.

Quando se aproximou o dia do vestibular, a FUNAIde Chapecó - SC, providenciou as nossas passagens e em-barcamos rumo a Cuiabá - MT, mais precisamente para Barrado Bugres – MT, e 09 Kaingáng para pleitear 20 vagas paraos outros Estados. Quando vi o Campus da UNEMAT cheiode índios das mais diferentes etnias, percebi que não iriaser fácil.

Passados alguns dias, já em minha aldeia, fui avisa-da que eu havia passado no vestibular. Efetuei minha matrí-cula por fax, e fiquei sabendo que apenas três Kaingángtinham sido classificados, somente eu da minha aldeia.

Quando chegou o dia, viemos nós três para fazer a IEtapa, outra vez estava cheia de esperança, senti mais umavez a importância de voltar a sonhar.

Começaram as aulas. De cara, começamos a estu-dar as nossas origens, nossos povos, culturas e línguas, 36etnias diferentes. Os sons de cada língua estão sendo estu-dados aqui. Suas representações gráficas e fonéticas. Cadaetnia está descobrindo a estrutura de sua língua,etnomatemática etc. Aqui, não estamos brigando com a

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máquina de escrever para falar Kaingáng, estamos numaverdadeira “guerra”, de línguas cruzadas com o “computa-dor”, porque estamos querendo que fale não apenasKaingáng, mas 36 línguas indígenas diferentes, faladas pe-los acadêmicos do 3º Grau Indígena.

Enfim, posso dizer que estou realizando o meu mai-or sonho, de fazer o meu 3º Grau, e principalmente especí-fico, porque sei que assim poderei ajudar, num futuro bempróximo, na formação do nosso povo. Posso ver jovens comorgulho de sua origem, com espírito crítico, imunes à mani-pulação dos brancos, com clareza das artimanhas da políti-ca indigenista quanto da política indígena e dos nossos pro-blemas, para que, numa tarefa conjunta, possam conduzir omeu povo com segurança pelo caminho da nossa tão so-nhada “autonomia intelectual”.