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Cadernos da Escola de ComunicaçãoUNIBRASIL

Número 1 - Out/Nov 2003

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Conversa com Décio PignatariA idéia de realizar uma entrevista na revista do Curso

de Comunicação da UniBrasil apareceu no primeiro debatedo conselho editorial. Era preciso torná-la mais leve e atraen-te, sem o monotonismo e a sisudez de algumas publicaçõesacadêmicas.

Para o primeiro número foi escolhido o professor DécioPignatari, que está morando há algum tempo em Curitiba e éum dos principais pensadores da linguagem e da comunica-ção em atividade no país. Interessava saber o que pensava umdos precursores dos estudos semiológicos no Brasil.

Em junho de 2003 os professores João AugustoMoliani1 (Redação), Cleusa Gomes (História), Graciela PresasAreu (Teoria da Comunicação) e Hugo Abati (Fotografia) con-vidaram Pignatari para um almoço. A conversa começou pelabebida e a informação de que ele prefere os vinhos franceses,em especial os bordeaux, fruto de sua passagem pela Europaentre 1954 e 1956. Mas, fora de lá aprecia a vinícola chilena.

Como entrada foi servida uma salada leve sobre a for-mação do entrevistado, um homem, que se formou advoga-do e acabou poeta, publicitário e doutor em Comunicaçãopela PUC de São Paulo e suas relações com grandes nomesda literatura nacional e internacional.. Passou-se então para a

discussão do campo da pesquisaem comunicação e linguagem e anecessária interação com outrasáreas, que fez as vezes de pratoprincipal. A sobremesa foi feitada reafirmação da liberdadecomo cerne da criação e dos no-vos projetos de Pignatari.

Foram quase três horas deuma agradável conversa em umdia de inverno que servimos ago-ra aos leitores.

Hugo

Aba

ti

EntrevistaDécio Pignatari é um dos cria-dores da poesia concretistabrasileira na década de 50. Em1952 fundou o GrupoNoigandres, com Augusto deCampos e Haroldo de Cam-pos, que publicou cinco anto-logias poéticas. Nas décadasseguintes, traduziu várias obrasem francês, inglês e russo. Foium dos criadores da editora eda revista Invenção, lançadaem 1962 como veículo da Po-esia Concreta. Foi membro-fundador da Associação Inter-nacionalde Semiótica, em Paris (Fran-ça), em 1969. Nas décadas de1980 e 1990 colaborou emvários periódicos, entre osquais a Folha de S. Paulo, efoi professor de Semiótica eComunicação da FAU/USP.Publicou vários livros de ensai-os, entre eles Cultura Pós-Na-cionalista (1998). Sua obrapoética inclui os livrosCarrossel, Exercício Findo,Poesia pois é Poesia, 1950/1975 e Poetc, 1976/1986. Naárea da Linguagem publicouInformação, Linguagem e Co-municação, Semiótica e Lite-ratura, Pobre Brasil!, Letras,Artes, Mídia e Errâncias, entreoutros.

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13Como um bacharel em direito se transforma emum dos maiores pensadores da área da lingua-gem. Não é conflitante a formação do advoga-do, que distende o uso da linguagem, para asua, que busca o sumo da palavra?

Eu tive sorte de ter um bom curso se-cundário no Mackenzie, onde eu fiz o ginásioe o científico. Isso era uma coisa muito rara.As escolas públicas eram sinistras. Por exem-plo, ninguém fazia ginástica. No Mackenzieera uma maravilha, as meninas de pernas defora fazendo ginástica. Era saudável. Além domais tinha uma biblioteca maravilhosa, que eraonde eu passava todo o tempo. A escola pú-blica era escura, horrível. Naquela época omeu negócio era direito. Eu era poeta român-tico. Entrei, me desencantei.

Naquele tempo os artistas não tinhamlugar para ir, o universo de formação acadê-mica era absolutamente limitado. Mas, alémdisso também havia o sonho romântico. Euera adolescente e nas arcadas do largo de SãoFrancisco haviam passado os meus gurus. Ho-mens como Castro Alves, Álvares de Azeve-do e Fagundes Varela. Então, curiosamente eue os irmãos Campos1 fomos para Direito. Eulogo percebi que não era aquilo. Um dos meuscolegas, o Dante Moreira Leite, logo saiu dalie fez novo vestibular para filosofia. Eu disseque não adiantava, a filosofia vai formar críti-cos, e não criadores. Por incrível que pareçaos escritores vêm da área de medicina, de di-reito, de jornalismo.

Eu fiz um acordo com meu pai. Comoele dava um terreno em Osasco e construíauma casinha para todo filho que casava, eu pedia minha parte em dinheiro. Eu queria ir em-bora, queria viajar, queria embora daqui. De

Osasco, de São Paulo, do Brasil. Foi pós-dita-dura de Vargas, ele tinha voltado ao poder. Asperspectivas eram péssimas. O meu pai disse:‘Então você tira o diploma. Se você tiver odiploma, viaja.’

Então eu larguei dois anos, fui fazer arte.Deixei de ser romântico e me tornei moder-no. Só que precisava do dinheiro para poderviajar. Então voltei e, meu Deus, o quanto es-tudei no quinto ano. Eu estudei tanto. Enfimconsegui terminar o curso e peguei o meu di-ploma. Apanhei a minha companheira e fuiembora.Os Campos seguiram a área do Di-reito, foi bom para eles. Para mim não servia.

Eu fiquei dois anos na Europa. Depoisdesse tempo eu queria voltar, mas precisavatrabalhar. Minha mulher já tinha voltado an-tes. Eu estava voltando sem emprego e comfamília. Passei em Sevilha e tive uma tempora-da com o João Cabral de Melo Neto, comquem tinha em comum a poesia e a paixãopor “los toros”. Ele me disse: ‘Olha, pelo quevocê diz dessa poesia nova que está desenvol-vendo, você se daria bem em publicidade”.

Não deu outra. Eu voltei com idéiasnovas, e dividindo a casa dos meus pais, e fuitrabalhar com publicidade numa multinacional:a Grampt2. Depois trabalhei na Thompson,na PanAm. Eu fui publicitário profissional du-rante 15 anos.

Mas você também foi jornalista...

Sim eu comecei, inclusive, como jorna-lista. Fui cronista esportivo, o Cláudio Abramoque me chamou. Mas sempre estive muito li-gado ao jornal como colaborador. Nunca fui umjornalista profissional, no sentido estrito da

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14palavra. Fui colaborador em muitos jornais,em São Paulo, Rio, Porto Alegre e outros lugares.

Hoje se discute muito a formação dojornalista. Questionando até a necessidade deum diploma específico para essa formação.

Necessário o diploma não é, mas hojeconvém. Por que olha, exceto as grandes ex-ceções, você reconhece logo a cabeça de quemnão tem curso superior. Mesmo no Brasil. Vocêpercebe as lacunas culturais. Não basta o di-ploma para você ser um bom jornalista, masse você for um bom jornalista com diploma,você vai ser top.

O estudo, enfim é muito importante,em todas as áreas. Uma pessoa que pretendaestudar música, oboé, por exemplo, tem quese dedicar muito para se tornar uma boaoboeista. Pelo menos oito anos. Já os escrito-res ou artistas ou poetas acham que não temque estudar não. É que nem gente de comuni-cação que acha que não tem que estudar nada.Tem que estudar sim! Você tem que entendero que é informação, não apenas o blábláblá.Entender que fenômeno é esse. Qual a lin-guagem adequada para cada canal, etc.

O especialista antigamente era o caraque mais se especializava em um campo es-treito. Sabendo cada vez mais sobre cada vezmenos. Hoje o especialista é aquele que maisconhece outros campos além do seu, porquea sua solução está em outro lugar muitas ve-zes. É a intersemioticidade.

Mas, parece haver uma orientação, apartir de Brasília, para limitar os campos depesquisa em comunicação.

A orientação atual criou uma polêmi-ca. Eles começaram a lidar com o problemada comunicação post festum, isto é, depoisque ela aconteceu. As primeiras traduções detextos de comunicação de McLuhan (Michael)e Eco (Umberto) começaram na década de60. Eu mesmo passei a formar, com Eco,Roland Barthes, Jakobson e outros a Associa-ção Internacional de Semiótica, em 1969. Aífoi que começou o debate da comunicaçãono Brasil. A primeira disciplina da área, cha-mada Teoria da Informação, foi criada no Riode Janeiro, em uma escola nova, a ESDI (Es-cola Superior de Desenho Industrial). Dessecurso surgiu meu primeiro livro “Informa-ção, Linguagem e Comunicação”, hoje na 25ª

“A minha preferência é pelos vinhosfranceses, não os de alto nível, que eu

não conheço. Mas são os vinhosbordeaux. Quando estou fora da Europa

eu prefiro os vinhos chilenos.”

Hugo

Aba

ti

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15edição.

Nos anos 70 surgiram os primeiros cur-sos de pós-graduação. Como não havia massacrítica, os professores catedráticos que aceita-vam alunos formados como orientandos já se-riam doutores. Eu fui orientando do AntonioCândido, junto com Aroldo de Campos, e medoutorei em 1973. A partir dos anos 70 surgi-ram os primeiros professores na área e depoisos primeiros cursos de pós-graduação. Em1974/75 foi organizado o curso de Teoria Li-terária pela Lucréscia Ferrara, que tratava decomunicação e semiótica3, foi o primeiro depós-graduação na iniciativa privada.

Gente de outras áreas passou a ir para aárea de comunicação. Literatura, cinema, arte,etc. Isso alarmou o MEC. Pois eles queremrestringir o campo comunicacional. Bom, sóessa história de se restringir o campo de estu-dos já mostra que somos um país emergente.Imagine no Canadá, Inglaterra, Estados Unidosou Japão o governo dizer para a universidade oque é comunicação. Seria ridículo. É a univer-sidade que deve dizer o que é comunicação.

Segundo, reconhecendo realisticamen-te que nós somos subdesenvolvidos no cam-po universitário, admito uma orientação, ummonitoramento do MEC para os cursos no-vos, que são cursos de fronteira, nos quais nãose tem massa crítica de professores e se im-provisa muito. Mas é um absurdo que issotambém aconteça com os pioneiros, que en-sinaram àqueles que estão no MEC hoje oque é comunicação.

Chegou-se ao absurdo de tentar impe-dir que tenha semiótica no curso de comuni-cação. Além de mim várias pessoas protesta-

ram, como o Muniz Sodré, no Rio, e oArlindo Machado, em São Paulo. Derruba-sea autonomia universitária, inclusive. Mas o pro-blema maior está nas avaliações, que são altaspara os que seguem direitinho o que eles que-rem e baixas para os rebeldes. Além do cortede bolsas, etc. Especialmente para as particu-lares.

O MEC está indo na direção errada.Ao privilegiar a pessoa que faz a graduação, omestrado e o doutorado na mesma área limi-ta profundamente a possibilidade de abrir es-paços novos.

Em 1968 você criticava a proliferação dos cur-sos de comunicação dizendo que “na maioria nãopassam de uma mistura degradante depsicologismos, métodos audiovisuais e relaçõespúblicas”. Se isso tornou-se realidade, não foi omotivador d a ação do MEC?

Não. Isso foi meu temor na época. Deum lado eu temia que o universo verbal, deliteratura, tomasse conta da comunicação e deoutro lado a turma de psicologia e sociologia,que também viriam com esse tipo de aborda-gem. Por isso eu publiquei o meu livro, paramostrar que é necessário estudar o fenômenoda comunicação antes de mais nada.

A comunicação para mim é formadapor um tripé: teoria da informação,semiótica/semiologia e mídia. Agora, nadaimpede que você aborde isso a partir deoutro universo, o que eu chamo de aborda-gens heteronômicas – sociológica, psicológi-ca, histórica, econômica, etc – desde que seentenda o processo da comunicação e o pro-blema das linguagens, pois não existe comu-

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16nicação sem linguagem. Felizmente não ocor-reu o que eu temia. O universo verbal nãoavançou para o lado da comunicação a nãoser como um aporte lateral.

Agora o problema é outro. É o perigodo dirigismo, um dirigismo grave. Está haven-do uma pressão muito grande, quando na ver-dade isso é um erro. São as universidades, oscursos, que devem oferecer a visão que elesquerem para que as pessoas escolham.

Mas o aluno não tem consciência, ou tem poucaconsciência das diferentes linhas. Como ele faz?

Não é bem assim. Hoje existem obraspúblicas em todos os campos do saber. Seele está interessado em arte e comunicação elevai se informar minimamente. Hoje com a Neté tudo mais fácil. Qual é o programa de pós-graduação da Federal, da UniBrasil, da Tuiuti?Os interessados lêem o programa e vêemqual é a linha.

O problema é de ignorância. Os nos-sos padrões de segundo e terceiro graus sãomuito baixos. Todos os anos os jornais notici-am as mesmas histórias: das provas ridículasdos vestibulares. Como se de resto, afinal aignorância jornalística também é enorme, or-tografia fosse gramática. Mas a verdade é, poroutro lado, os jovens chegam ao portal da uni-versidade sem saber ler, escrever ou calcularadequadamente. E não sabem outras coisas.Se vc perguntar o que é parlamentarismo, elesnão sabem. Qual a diferença entre o regimedos EUA e do Brasil com relação à Françaeles não sabem...

Mas você já falava disso em 1968. Houve algu-

ma mudança daquela época para cá?

Houve muitas mudanças. É preciso cri-ticar sempre essa área que está sempre mal.Não tem sentido que um adolescente depoisde 11 anos de escola chegue ao vestibular semsaber ler e escrever decentemente. É culpa dosjovens? Eles são imbecis, por acaso? Não. Aculpa é dos sistemas e processos de ensi-no, do baixo nível dos professores e da suamá remuneração.

Falta investimento em capacitação dosprofessores, em novos sistemas de ensino, queeu chamo de software. Os governantes pen-sam apenas no hardware, na construção da es-cola, não em sua função ou viabilidade. Porisso o nível é baixo. Por outro lado, nós me-lhoramos muito. A quantidade acabou geran-do a qualidade, porque o ensino superior noBrasil só tem pouco mais de meio século. Tem80 anos como universidade mesmo.

Nos melhores cursos, se você apanhardissertações de mestrado, de bons alunos, elesdão de cinco a zero em todas as teses de cate-dráticos até os anos 70. Hoje quase qualqueraluno de mestrado é superior a todos os cate-dráticos que existiam antes dos anos 50. Mas,pouco a pouco, o MEC quer acabar com omestrado, fazendo doutorado diretamente,seguindo o mundo americano, onde o queimporta é o PhD.

Eu acredito que se deva manter omestrado, porque o problema não é de título,é da pesquisa. O acadêmico tem que aprendera pesquisar e o mestrado é o primeiro traba-lho importante de pesquisa para ele. Profes-sor tem que ser pesquisador. Cursos novosdevem manter o mestrado. Deixar apenas o

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doutorado só se for em cursos que já temdeterminado nível, que tenha base. O proble-ma é que os burocratas querem essa trans-formação por decreto.

Há uma subserviência exagerada às políticas pú-blicas de ensino ditadas pelo MEC?

É um engano pensar que eles vão dei-xar a área da educação sem influência política.O problema é que o Brasil tem norma paratudo. Mas as questões ideológicas existem emtodo o mundo. Se algum pesquisador de re-nome escrever que Deus não existe, por exem-plo, em muitas universidades como Oxford ouYale ele não será contratado. Então, por issonão se fala nesse assunto nessas universida-des. Quando eles precisam de um grande pro-fessor que seja ateu é dito para ele não falarsobre isso e só então o contratam.

O que é preciso fazer, então?

É necessário atacar os dirigentes quemantém o povo ignorante. O Brasil insisteem manter o povo na ignorância. Mas háavanços, como o número de estudantes uni-

versitários. Fruto do fortalecimento da clas-se média. E há outras áreas que precisam avan-çar. Até o Lula falou algo que eu já dizia, so-bre a atualização os sindicatos. O nível docapitalismo é outro e precisamos de in-vestimento em pesquisa.

Na área científica, por exemplo, o caraque falou que era preciso dar força para amatemática e a física foi xingado. Mas ele es-tava certo. Matemática é a ciência das ciências.Na área da biologia o Brasil está indo bem.Mas é preciso investir colossalmente na áreadas ciências, em pesquisa e tecnologia.Pesquisa é tudo!

Você acredita que essa postura passa pela ques-tão ideológica?

Tudo é ideologia. Eu fiz um pequenoartigo que trata de interpretante, ideologia epoder. Estudar o interpretante, que muita gentepensa que é uma pessoa. Não é uma pessoa. Areligião pode ser um interpretante. Ela coman-da as suas ações. Nós temos valores moraiscristãos que comandam o nosso comporta-mento. E eles conferem os macro significa-

“Também não sou um bom garfo. Eusó não como três coisas:

dobradinha, jiló e quiabo. Mas soumetido a cozinhar certas coisas.

Faço bem um bom feijão preto, ummolho a milanesa ou ao sugo,

algumas carnes e outras coisasmais simples. Aprendi com Alfredo

Volpi e com sua companheira,Judith, a fazer sopa de agrião.”

Hugo

Aba

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18dos. Por outro lado há uma luta pela chama-da verdade com a ciência ou a arte.

O fim das ideologias não existe. O queexiste é o fim das ideologias como nós as en-tendíamos até agora. É impossível eliminá-las.O que é preciso é introduzir cada vez maisum teor de liberdade. Precisamos de uma ide-ologia variável, elástica, cuja perspectiva bási-ca é a abertura. Se ela tiver forças, se alimenta-rá da abertura e não do fechamento. Uma ide-ologia que se enriquece no contato, na media-ção, no debate.

A grande coisa é a liberdade. É ondenasce a criação e você supera as ideologias.Ultimamente eu estou muito interessado emHeidegger. Primeiro eu li a grande biografiado Safranski4. Agora estou buscando “O ca-minho do bosque”, que aqui chamam de “Ocaminho do campo”. Ele pensa a linguagem.O título que o tornou famoso em alemão -“O ser e o tempo” - é poesia. Ele sabia do queestava falando. É uma paranomásia.

Mas o curioso é que o discurso que elefaz é que o nada é a natureza do próprio ser, éo berço da liberdade. A liberdade está ligada a

esse próprio processo de você eventualmenteimaginar um nada. Isso é fascinante. E, porisso, deveriam obrigar todo mundo da novaideologia a ler o poema Liberte5 do Eliard, queé lindo. Ele foi jogado pelos aviões da RAFna França ocupada pelos nazistas. E trata doamor à liberdade.

Você falou que a quantidade acabou gerando aqualidade. Isso se deve às novas tecnologias?

O que acontece com a net, por exem-plo, é que ela é uma multiplicação de todos osmeios em um momento em que a quantidadegera a qualidade. O que está mudando é a es-cala de pessoas que estão entrando nesse uni-verso. Se antes havia um artista para 100 habi-tantes, hoje tem 10 artistas para 100 habitan-tes. Mudou a escala. Aí está a importância da net.

Há um mundo anônimo querendo semanifestar através da mídia. Mas hoje há ní-veis para todo o tipo de artistas, no rádio, nojornal, na televisão e começam a surgir coisasnovas. Outro dia eu fotografei um grafite es-pantoso em um muro do bosque do Papa. Erauma perfeição, de um domínio técnico espan-

“Eu me coloco como um estranho. Eu gosto da posiçãodos grandes físicos quando estão em reunião. Eles têmque colocar tudo no quadro negro. O computador serve

para muita coisa, mas não para aquela discussão. Todosaqueles símbolos no quadro negro para eles são icônicos.O grande problema que ninguém entende, nem na psicolo-gia nem em nada, que é o problema icônico. Hoje eu soujurássico. Eu não escrevo nem à máquina, eu escrevo à

mão, com caneta tinteiro. Acho uma maravilha.”

Hugo

Aba

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19toso. Nada a ver com essas gangues depichadores que emporcalham as cidades.

A mídia interliga a linguagem, ao sig-no, à arte aos grupos e massas, mesmo os ex-cluídos, essa turma dos novos coletivos queestão surgindo. Vejamos a exposição de Rodinou os Guerreiros de Xi’an6, em que mais demeio milhão de pessoas foi visitar. O que acon-tece é que o universo da arte, do que se chamaarte hoje, está sofrendo mais uma mutação.Hoje está sob a égide do consumo. É ele quecomanda o processo artístico.

O Paulo Coelho na Academia Brasileira de Le-tras seria resultado dessa nova visão da arte?

O Paulo Coelho e a Academia se mere-cem. Mas ele é um fenômeno mundial. Umautor que não precisa de feira de livros paravender livros. Mas literariamente não repre-senta nada. É o mesmo caso daquele médium,o Chico Xavier, que também vendia milhõesmas não tem nada a ver com literatura. Esserepertório é da classe média baixa, que buscaas grandes verdades fora do cristianismo.

Em um artigo recente o senhor levantaalguns nomes, inclusive um rapaz deParanavaí7, e, ao contrário do que se imagina emesmo com todo esse pessimismo com rela-ção às letras no Brasil, consegue perceber tra-ços de inventividade na poesia contemporânea...

Os poetas têm uma sofisticação. Elesconhecem tão bem outras áreas, coisas que osromancistas não conhecem. E isso é de tradi-ção no Brasil e no mundo. Todos os poetasestão abertos a outros signos, a outras artes. Aprosa brasileira é do terceiro nível, não no sen-

tido depreciativo. Eu não gosto de usar pejo-rativamente terceira categoria, quarta catego-ria. Gosto de usar primeiro nível, segundo ní-vel, como acontece no futebol ou no carna-val. Você pode ser excelente na sua faixa. Porisso eu divido em níveis.

Na prosa brasileira, esquerdofrênicosou nacionalistas sempre combateram a expe-rimentação. O único que foi grande porqueexperimentou foi João Guimarães Rosa. Osoutros foram contra. A prosa latinoamericanafez uma revolução por causa disso. Todo omundo hispânico tem formação surrealista.Eles começaram a ler James Joyce e descobri-ram a experimentação da linguagem e daí sur-giu o grande boom latino americano. Se vocêpegar desde Lessama Lima8, Carpandieu, Ca-breira Infante, Otávio Paz todos eles abriramseu universo. Encontrei Otávio Paz em Parisencantado com essas coisas novas dasemiologia e do estruturalismo. Felicidade delede, já famoso, se encantar com o que é novo.E os brasileiros ficavam a reboque dos latino-americanos.

Já a poesia brasileira está atualizada.Pode-se ver que os poetas são influenciadospelos language poetics americanos. Quando umpoeta está falando de Paul Klee, ele sabe quemé Paul Klee, os prosadores só sabem falar doque já é aceito. Portanto, sou obrigado a dis-cordar de você. Os poetas não estão fazendouma coisa nova, mas eles chegaram a um altonível de sofisticação, até internacional, e se li-gam ao mundo realmente.

Mas não há inovação?

O período não é de inovação. Há mo-

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20mentos em que é possível fazer boas obrasdentro de um patamar já conquistado. As ino-vações são localizadas. Está havendo um nú-mero muito grande de escritores, poetas, ar-tistas visuais mulheres. Nem na França, nemnos Estados Unidos há tanta mulher com altopadrão como no Brasil.

Como conseqüência direta as artes vi-suais estão no primeiro nível. Eles se infor-mam do que está acontecendo em todo omundo, graças às bienais, aos museus e as ar-tes visuais no Brasil tem o nível mais elevadode todas as artes. A música brasileira, a músicaerudita, a de alto repertório é a que mais so-fre. É uma miséria neste país, é uma desgraça.Com tudo que o Gil tem uma ótima intenção,desde que não fique só incentivando o folclore.

E você está produzindo poesia neste momento?

A minha preocupação agora é a prosa.Eu tenho um romance aqui na garganta e pre-ciso fazer esse romance. Além disso devo pu-blicar uma conferência que fiz na PUC/SPsobre teoria da prosa. Uma aluna gravou e quemandou as fitas para mim e talvez eu publi-que aqui, pela editora do Campana (Fábio)9.Tem também uma peça de teatro que eu pas-sei o último verão escrevendo. É sobre Ma-chado e Carolina. Uma ficção sobre o relacio-namento de uma portuguesa branca que se ca-sou com um brasileiro negro. Eles foram pre-cursores de um conflito que no século 20 ga-nhou força.

Tenho um projeto para a Fundação Cul-tural para produzir a edição crítica e comenta-da do Catatau10, além de outros projetos comocadernos de cultura, baratos e econômicos. O

Leminski existe porque ele foi atrás da infor-mação. Quando ele abriu mão da informaçãoele piorou. O melhor Leminski não é o que aspessoas conhecem, o grande Leminski é o doCatatau, que ninguém lê porque ninguém en-tende. Ele levou oito anos para escrever e de-pois disse chega, passou a fazer poeminhas –teve a bebida e tudo - e ficou famoso.

Lembro do Leminski de 1963, quandohouve uma grande exposição de poesia visualem Minas Gerais, com expositores de todo opaís. De repente apareceu lá esse cabocloachinesado, com 17 para 18 anos, e estava atrásda informação. Não foi ver ninguém decla-mando nem nada. Logo depois eu publicariauma revista e lancei o Leminski na Invenção.Mas Borges (Jorge Luís) já dizia que a fama éa pior das incompreensões. Você fica famosopelo que tem de pior. A teoria da informaçãomostra isso, pois um repertório mais baixoatinge um público maior. À medida que sobea informação estrutural se reduz o auditório,isso é normal.

Notas