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CADERNO DE TEXTOS 2016 ABORTO

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CADERNO DE TEXTOS

2016

ABORTO

Joana, com 17namorando a mais de um mês

já pagou até boquetemas sexo ela não fez“não quero putaria”

mas o namoradinho ria“não quero nem saber

você vai fazer, se me amasó quero saber de papai

falava o papaihaha

a Joana também! por baixo do namorado!com mamãe

na minha cama”no outro dia

o pai tava por baixoela sendo despida

ele peladoe apesar de tudo que diziam

ela sabia que não era um pecado“coloca a camisinha”“sem é mais gostoso,

ele benze o meu gozo”Joana não queria, mas acabaram fazendo

“Deus, eu fico te devendo”mas Deus não perdoou…chazinho não funcionou!será que engravidou???

(será, amor? amor?)é só reza pra deus:

fizeram na féa pílula falhou!Joana enjoou!

namorado fugiuputa que me pariu!“o que eu vou fazer?

pra quem eu vou contar?não quero esse filho, eu vou é me matar!

não… vou falar pra Maria, do salãoela vai entender a minha situação”

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Joana contou todos os lances“não conta pra ninguém”“não conta pra ninguém”“não conta pra ninguém”“não conta pra ninguém”“não conta pra ninguém!”

todo mundo já sabe do teu neném!“vagabunda, engravidou na adolescência!

vadia sem consciência!olha lá? ela falou em abortar!

será que ela pensou em se matar?Joana…

na hora tava bom?abortar?

assume (assume!)assume (assume!)assume (assume!)assume (assume!)

e lava esse teu perfume de vagabundaesconde essa buceta

cobre a essa tua bunda!cala essa boca e ANDA DE BURCA!”

não tem mais ninguémtá pior que prostituta

sem família, e com nenémpapai vai me espancar

Joana chorava,e agora? e agora?mas ah, tem jeito

…mamãe me ensinou a tricotar.

sangue e choro… no chão do banheiromorreu mais uma vagabunda

aos olhos do Brasil inteiroaborto sem sucessopaís sem progresso

…me trás mais um chá de canela

que a próxima vai ser a Gabriela.(Autoria: Vini Giordani)

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Apre s e nt a ç ã o A redução da maioridade penal. Criminalização da “heterofobia”. Eduardo Cunha. A exclusãodo debate sobre gênero no Plano Nacional de Educação (PNE) e o projeto de lei “Escola SemPartido”. O ajuste fiscal incidindo sobre os que menos têm condições de pagar por ele. Em meio atantos ataques aos nossos direitos conquistados e aos direitos humanos, é impossível que nãonos questionemos: o que serão das políticas públicas para os grupos oprimidos? E o que serãodesses grupos em si? Como resistir em meio a uma crise que evidencia, para além da falênciapolítico-econômica de um projeto falacioso de conciliação de classes, um retrocesso emtermos de conquistas e manutenção de nossos direitos fundamentais? Nesse contexto, urgeque olhemos para nós mesmos e avancemos no sentido de construir políticas públicas quepensem as populações mais vulneráveis. E, sendo assim, não podemos deixar de analisar quala situação da mulher na sociedade em que vivemos, o que já conquistamos e no que ainda pre-cisamos avançar. 2015 foi um ano em que o movimento de mulheres floresceu. Vivemos o que foi chamado de“Primavera Feminista”. Vimos as ruas sendo tomadas por mulheres, que passaram a atuarcomo vanguarda nas lutas de esquerda por direitos e contra os cortes que estavam sendofeitos a passos largos pelo governo federal. Vimos as mulheres formulando política, formandolideranças e ocupando mais e mais espaços. Diante disso, vimos algumas reivindicaçõeshistóricas do movimento feminista reaparecerem com força, como a garantia derepresentatividade na política, o aumento das creches nas universidades, a luta contra acultura de estupro. E, à luz da retomada da discussão sobre o Estatuto do Nascituro e datramitação do PL 5069 de Cunha, vimos reacender a luta pela descriminalização do aborto. Diante disso tudo e entendendo que a discussão sobre o abortamento e as condiçõescolocadas para que as mulheres o façam perpassa pelos acúmulos em saúde da mulher,direitos humanos, educação, opressões e tanto outros assuntos que nos movem na luta poruma sociedade sem violência de gênero, apresentamos esse caderno que apresenta uma sériede textos sobre o aborto no Brasil e suas especificidades. Esperamos que ele seja útil nofomento do debate nas escolas médicas por todo país e que se constitua como mais uma baseteórica para a luta pelos direitos das mulheres.

S a u d a ç õ e s e s t u d a n t i s e f e m i n i s t a s ,C o o r d e n a ç ã o d e C u l t u r a 2 0 1 5 / 2 0 1 6

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Posicionamento da DENEM

“A favor da descriminalização do aborto e da regulamentação do direito ao aborto a todas as

mulheres, instituindo serviços seguros e livres e com a devida assistência e acompanhamento,

por considerar que o aborto é uma questão de saúde pública que afeta, principalmente,

mulheres negras e pobres.”

(Posicionamento aprovado na plenária final do 46º Encontro Científico dos Estudantes de

Medicia, ocorrido em Fortaleza, em junho/2016)

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Sumário

Por que precisamos pensar a descriminalização do aborto? ___________________ pg 7

Maria Renata Mencacci Costa

Enquanto houver racismo para as mulheres negras, o aborto sempre será inseguro,

desumano e criminalizado _________________________________________pg 13

Emanuelle Goes

Só engravida quem quer?__________________________________________pg 17

Coletivo das Blogueiras Feministas

Regulação do aborto no Brasil: como é hoje e o que mudaria com o PL 5069__pg 21

Flora Sartorelli V. de Souza e Jéssica da Mata

O aborto das escravas: um ato de resistência____________________________pg 27

Jéssica Ipólito

Uso de métodos medicamentosos no aborto clandestino__________________pg 30

Flora Passini

Falando de Aborto com a Sociedade sob a Perspectiva da Educação Popular__pg 34

Yvana Hafizza Snege de Carvalho

Por que precisamos pensar a descriminalização do aborto?Maria Renata Mencacci Costa

Estudante da Faculdade de Medicina da USP

Coordenação de Cultura 2015/2016

Coordenação Regional Sul-2 2015

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A descriminalização do abortamento é uma reivindicação histórica do movimento femi-nista. Desde de a década de 1970, as mulheres já se marcavam fortemente sua posição a favor da legalização do procedimento nos casos não previstos em lei. Naquela época, o posiciona-mento baseava-se, como aponta Scavone, no princípio do direito individual. Apropriar-se do próprio corpo significava, para as mulheres, também poder escolher sobre a maternidade ou a não-maternidade. Atualmente, é necessário que compreendamos o abortamento como uma questão que ultrapassa o campo das liberdades individuais, entendendo que a libertação real só existe quando há avanço da liberdade no cam-po coletivo. Portanto, discutir o aborto da per-spectiva feminista, hoje, deve necessariamente significar entender a quem a penalização pelo aborto atinge, quais as motivações para a luta pela descriminalização e como embasá-las na interseccionalidade das opressões. Além dis-so, significa caminhar no sentido da laicidade do Estado e da superação de preceitos morais e culturais que limitam às mulheres ao papel so-cial da maternidade.

“Meu corpo, minhas regras”: o que isso quer dizer?

Em 1995, foi realizada a IV Conferência Mundi-al da Mulher. A grande inovação das discussões que ocorreram naquele momento está ligada ao fato de que os direitos sexuais e reproduti-

vos passaram não apenas a serem reconhecidos como direitos, mas a serem entendidos da per-spectiva dos direitos humanos. Assim, passa-mos a entender que é dever do Estado garantir esses direitos em respeito à liberdade e autode-terminação de cada mulher, sem violência ou coerção. Com base nisso, uma vez que a crim-inalização do aborto viola o direito de autode-terminação reprodutiva das mulheres, devemos entendê-la, como ponto de partida, como uma violação de direitos humanos.

A violação do direito da mulher ao próprio corpo que simboliza a criminalização do aborto passa por dois pontos fundamentais: (1) o abor-tamento significa uma mulher que vivenciou sua sexualidade de maneira desviante, ou seja, fora do casamento e (2) o abortamento significa a negação da maternidade.

Para compreendermos o primeiro ponto de início, precisamos entender quais os símbo-los do aborto para as mulheres de ontem e de hoje. Marilena Chauí coloca que o aborto é um procedimento punitivo, um castigo imposto às mulheres com o intuito de “normalizar uma conduta desviante”. Chauí retoma e explica a figura do açougueiro: “não usam anestésicos, não há antissepsia, o local de ‘trabalho’ é or-ganizado de forma a marcar sua ilegalidade e nele prevalece o estilo ‘linha de montagem’ ou ‘supermercado’. Usam linguagem agressiva, cul-pabilizadora. Fazem propostas obscenas para as

mulheres ainda estendidas nas mesas de cirurg-ia. Em suma: transformam o aborto num ato de castigo e punição. ”

É fundamental que coloquemos, então, que essa punição está inexoravelmente ligada à con-strução da sexualidade da mulher. Uma mulher que aborta desliga sua vida sexual de sua vida reprodutiva de forma definitiva. Nesse ponto, precisamos lembrar que a sexualidade da mul-her não passa por um processo de construção ao longo da história, mas sim de destruição. Sempre colocada em oposição ao homem, a sexualidade da mulher é anulada e minada con-stantemente, de modo a criar-se o entendimen-to de o que o sexo, para a mulher, serve única e exclusivamente para a procriação, ignorando-se completamente a plena capacidade da mulher de sentir prazer e de criar laços afetivos com base no envolvimento físico-sexual. Sendo as-sim, a mulher que aborta escancara o primeiro pecado cometido pela mulher: o reconheci-mento de sua própria sexualidade.

O segundo ponto, aqui colocado como funda-mentador do aborto como castigo, nos leva a contestar a maternidade compulsória como um destino ao qual as mulheres estão fadadas.

A maternidade não pode ser entendida como uma escolha individual, mas sim como uma imposição social que é tomada como “natural”. Ser mãe cumpre, para as mulheres, um papel disciplinador dos corpos e modulador da repre-sentação do feminino, havendo então um con-trole social do comportamento e da psique das mulheres.A figura da mãe é construída há séculos na so-ciedade ocidental e cumpre papel fundamental dentro do sistema político-econômico vigente. Em primeiro lugar, temos a mãe como pedra central da família como instituição social. Em segundo lugar, temos a mãe como produtora de novos trabalhadores saudáveis que irão integrar o sistema produtivo. Portanto, abortar não se constituiria apenas como um atentado à vida, mas como um atentado à sociedade como um todo. O entendimento da subversão do abor-tamento é construído, então, histórica, cultur-al, política e economicamente. Os aspectos que competem à moral religiosa foram incorpora-dos a um sistema político que já predetermina-va a visão que a sociedade teria do aborto, com aval da Igreja Católica, inicialmente.

Logo, dizer “meu corpo, minhas regras” no con-texto da luta pela descriminalização do aborto

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é dizer que as mulheres lutam por sua real lib-ertação sexual, insubordinada aos interesses hegemônicos masculinos e produtivistas, en-tendendo que a maternidade não vem como consequência natural de uma sociedade débil, mas como escolha consciente baseada na eman-cipação coletiva de todas as mulheres.

Por que as mulheres ainda engravidam sem vontade?

O abortamento no Brasil resulta de um projeto falho de planejamento familiar enquanto políti-ca pública, uma vez que este é calcado em in-formações deficitárias, em acesso limitado ao sistema de saúde e a educação e em ausência de acompanhamento por parte dos serviços. Essas falhas vão de encontro à Lei 9.263/1996, que regulamenta o Planejamento Familiar, e ao Programa Especial de Planejamento Familiar de 2007. A inserção do planejamento reprodu-tivo no âmbito da atenção primária, com o en-tendimento de que a responsabilidade não é ex-clusivamente da mulher, mas sim dividida pelo núcleo familiar (que ultrapassa os limites do

que chamamos de “família tradicional”) guiado por escolha consciente com apoio da equipe da saúde que o acompanha é urgente no sentido de suprirmos as falhas que vulnerabilizam as mul-heres.

Por isso, é imprescindível, para além da estru-turação da rede básica voltando-se também para o atendimento focado em planejamento familiar, que saúde reprodutiva seja também discutida nas escolas e massivamente divulgada em todas as esferas do convívio social. Também é fundamental que a informação divulgada não se paute na heteronormatividade compulsória vigente ou que adote a maternidade e a paterni-dade como caminhos a serem necessariamente seguidos pela juventude no futuro. A quebra desses paradigmas é absolutamente necessária para que todos possam dialogar verdadeira-mente com a informação que é transmitida.

Além disso, devemos ter em mente o que os métodos contraceptivos representam hoje para as mulheres e qual a repercussão psicossocial de suas falhas no contexto de uma gravidez indese-jada. Atualmente, temos como métodos contra-ceptivos os hormonais, de uso exclusivamente feminino, e os métodos de barreira, como des-taque para a camisinha, que dependem da ne-gociação entre homens e mulheres. Nesse pon-to, é necessário que discutirmos o acesso a esses métodos e a real aplicabilidade deles.

Quanto ao acesso, devemos sempre colocar que a rede de atenção à saúde não é distribuída de forma homogênea pelo território nacional. Além do acesso ao serviço em si, devemos levar em consideração a descontinuidade do supri-mento e a quantidade restrita de métodos dis-poníveis no sistema do público. Devem ser tam-bém apontadas as dificuldades que as mulheres enfrentam em usar os anticoncepcionais orais: os efeitos colaterais são diversos, passando por

Legalização do aborto no Uruguai• De 2012 a 2014, uma única mulher morreu

por causa do procedimento. Mas ele foi

realizado de forma clandestina, mesmo após a

legalização. No serviço regulamentado,

nenhuma morte foi registrada. • Houve um aumento de 30% no número de

mulheres que optaram por seguir a gravidez.

• Atingiu a meta de redução da mortalidade

materna total prevista nos Objetivos e Metas

do Milênio.

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depressão e perda do desejo sexual. Todas es-sas barreiras, somadas às falhas já inerentes aos métodos disponíveis, representam um grande potencial de ocorrência de gravidezes não dese-jadas.

Outro ponto que deve ser abordado em se fa-lando de contracepção é a negociação da cam-isinha. A camisinha é o método contraceptivo mais barato e mais divulgado dentre todos os que estão disponíveis. No entanto, seu uso de-pende invariavelmente de como se dá a relação a dois. No caso de relações heterossexuais, a posição de subordinação da mulher na socie-dade reflete uma capacidade de diálogo real limitada, colocando a mulher numa posição de vulnerabilidade diante do poder delegado ao homem na relação sexual. Assim, muitasvez-es a relação desprotegida é algo imposto para a mulher de forma violenta e coercitiva, o que representa uma gigantesca limitação para o uso da camisinha como forma de evitar a gravidez.

Ainda assim, adota-se uma postura de respons-abilização da mulher pela gravidez, o que im-

pacta diretamente a saúde mental e sexual fem-ininas. É urgente que avaliemos os fatores que realmente levam a uma gravidez indesejada, entendendo que ela não é fruto da irrespons-abilidade ou da lascívia da mulher, mas sim de políticas públicas débeis que esbarram nos limites de uma sociedade patriarcal e misógina. O abortamento, nesse contexto, surge como o último recurso dessas mulheres no sentido de poderem escolher sobre seus próprios corpos e destinos. Assim sendo, deveria ser dever do Estado garantir que ele fosse feito de maneira segura – ainda mais quando partimos do enten-dimento de que as mulheres sempre abortaram, abortam ainda hoje e continuarão abortando.

Aborto é questão de saúde pública!

Então, se sabemos que as mulheres já abortam e que não vão parar de fazê-lo enquanto não houver condições para isso, o próximo passo é no sentido de garantir que elas tenham acesso a procedimentos seguros, que não configurem práticas de tortura ou de ataque aos seus direit-os reprodutivos. É importante colocarmos aqui

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https://queroquedesenhe.wordpress.com

/portfolio/precisa-m

os-falar-sobre-aborto/

que a defesa da legalização do aborto é uma def-esa da vida das mulheres, que,nesse caso, têm raça e classe. Os limites da vida – seu começo e seu fim – não cabem nessa dis-cussão. O que se levanta aqui é a luta por direit-os e dignidade humanos.

Partindo desse pressuposto, devemos olhar para o Brasil e entender quem aborta e quem morre abortando. Cerca de 30% das gravidezes termi-nam em aborto e, atualmente, as mortes rela-cionadas ao abortamento constituem a quinta causa de morte materna no país. Os números são assustadoramente altos. Para tornar mais palpável: um levantamento de 2005 aponta que para cada 100 nascidos vivos, 30 abortamen-tos foram realizados de forma insegura e em condições precárias. De todo esse contingente de mulheres que abortam, cerca de 50% precis-am ser internadas por conta das complicações. Em 1991, no Rio de Janeiro, o gasto com essas internações teria sido suficiente para a real-ização de 62 mil abortamentos seguros, o que representava 91% dos procedimentos necessári-os estimados para aquele ano. Em outras pala-vras: a criminalização do aborto é responsável por morte de milhares de mulheres e representa um gasto injustificável para o sistema de saúde público.

Diante desses dados, fica o questionamento: por que, então, ainda não avançamos no sentido da legalização? A resposta para isso está, sem dúvidas, no perfil de quem realmente é afetada pela criminalização do procedimento. Em 2009, uma pesquisa foi financiada pelo Ministério da Saúde e conduzida por Débora Diniz e Marile-na Corrêa. Tratava-se de um estudo que avalia-va o aborto no Brasil num período de 20 anos. Com esse estudo, foi possível traçar o perfil da mulher brasileira que aborta: entre 20 e 29 anos, em união estável, com até 8 anos de estudo, tra-balhadoras e católicas. Isso destruiu o estereóti-

po demonizado dessas mulheres. No entanto, isso não foi suficiente para que avançássemos em termos de legislação.

Precisamos, daí, avançar ainda mais na análise das brasileiras que abortam. Foi atestado que as mulheres universitárias abortam mais do que as mulheres que estão fora da universidade. Porém, essas mulheres abortam em clínicas, onde o pro-cedimento é feito de forma segura e controlada. Tratam-se, portanto, de mulheres com alta es-colaridade e grande poder aquisitivo. No outro polo, vemos que as mulheres jovens, de menor escolaridade e que vivem na periferia dos cen-tros urbanos abortam em menor quantidade, mas correspondem ao maior número de mortes por abortamentos inseguros. Quando olhamos para a cor da pele dessas mulheres, vemos tam-bém que as mulheres negras têm um risco três vezes maior de morrer por complicações do abortamento do que mulheres brancas, inclu-sive quando a atenção hospitalar é prestada.

Falar sobre a legalização do aborto, portanto, não é simplesmente falar sobre a falta de von-tade política de um Estado machista, mas tam-bém falar sobre a falta de vontade política de um Estado racista e classista. É falar sobre a vi-olência institucional perpetrada por bancadas conservadoras e pelos serviços em saúde e ed-ucação que estão deixando as mulheres jovens desassistidas e que estão matando as mulheres negras. Olhar para o aborto como uma questão de saúde pública é significa-lo como uma questão de necessidade de cuidados em saúde e não como um capricho ou desvio de condu-ta de mulheres destituídas de moral. Trata-se, portanto, de uma redefinição política que passa pela superação de valores religiosos, culturais e sociais que aprisionam as mulheres a uma condição subumana de subordinação. É pela vida das mulheres!

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REFERÊNCIAS:

RAMEIRO, Ana Patrícia Ferreira. Notas sobre aborto numa perspectiva feminista. Revista Diálogo, abril/2014

RAMOS, Gilmara Salviano. Maternidade com-pulsória & maternidades subversivas: práticas de infanticídio na imprensa e nos pro-cessos de habeas-corpus. Texto integrante dos anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. Setembro/2008

MENEZES, Greice; AQUINO, Estela M L. Pesquisa sobre aborto no Brasil: avanços e desa-fios para o campo da saúde coletiva. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25 Sup 2:S193-S204, 2009

ANJOS, Karla Ferraz dos; SANTOS, Vanessa Cruz; SOUZAS, Raquel; EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. Aborto e saúde pública no Brasil: re-flexões sob a perspectiva dos direitos humanos.

Saúde em Debate – Rio de Janeiro, v. 37, n. 98, p. 504-515, jul/set 2013

MANSOUR, Veridiana. Aborto e saúde pública: as consequências após dois anos da legalização no Uruguai. Publicado em: blog da PLAN (Avaliação, Monitoramento e Pesquisa Social)

FREIRE, Nilcéa. Aborto seguro: um direito das mulheres? CienCult, 2012

OUTRAS MÍDIAS:

Uma história Severina, de Débora Diniz e Eliane Brumhttps://www.youtube.com/watch?v=65Ab38k-WFhE

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Passando pelo estágio da Obstetrícia do inter-nato, ocorreu de uma mulher com cerca de 26 anos procurar nosso hospital universitário, que é referência em atendimento de vítimas de vi-olência sexual. Ela relatava ter sofrido estupro há dois meses, que tinha recém descoberto que estava grávida e que queria abortar. O exame físico e de imagem eram compatíveis com a cro-nologia relatada. Primeiro que nem a chefe do plantão nem nenhum residente sabiam da leg-islação sobre o aborto legal - de que não se ex-ige exame pericial nem B.O. para atendimento médico à vítima de violência sexual. Segundo que quando mostrei a eles documentos oficiais do MS, eles me ignoraram. Terceiro que faziam todo tipo de julgamento moral da paciente, como: duvidando que ela tenha sido estuprada, se perguntando o porquê de não ter feito B.O. à época do estupro, e dizendo que ela devia es-tar num lugar propício ao estupro, por isso que deve ter ocorrido. Pelo menos não expuseram seus pensamentos horríveis à paciente, essa dis-cussão foi “só” entre a equipe médica. Parabéns Brasil.Junto com duas amigas, fomos ao setor de as-sistência social pra demonstrar nosso medo de que a legislação não fosse cumprida no caso dessa paciente. A assistente disse que o protoco-lo do hospital é formar uma junta com diversos profissionais para decidir sobre o caso da paci-ente. Depois de alguns dias fiquei sabendo que a equipe médica não seria criminosa, que fariam o procedimento no final das contas.

O aborto dos outros, de Carla Galloht t p s : / / w w w. y o u t u b e . c o m / w at c h ? v = -de1H-q1nN98

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Enquanto houver racismo para as mulheres negras, o aborto sempre será inseguro, desumano e criminalizado

Emanuelle GoesBlogueira, enfermeira, militante do Movimento de Mulheres Negras, Pesquisadora em Saúde

das Mulheres Negras, Doutoranda em Saúde Pública ISC/UFBA

Texto originalmente publicado em: População Negra e Saúde

Abortei a escravidãoSem te tocar

Lhe entreguei ao marLhe dei liberdade 

Lhe entreguei ao marPara ser livre no ventre

Lhe entreguei ao marSerei sua ancestral

No seu retorno já ReiVentre negro

Ventre livrePráticas racistas estão na vida das mulheres ne-gras e em qualquer situação na saúde, mesmo quando estamos diante de um cenário que por si só é desfavorável ainda consegue ser pior para as mulheres negras, neste caso estou falando do aborto, que quando inseguro e clandestino são as mulheres negras as mais atingidas.

Por outro lado, mesmo em um atendimen-to com mulheres em situação de abortamento onde supostamente nada se sabe sobre o tipo de aborto, se provocado ou espontâneo, são tam-bém as mulheres negras as mais punidas no atendimento desumanizado no serviço.

De acordo com a Norma Técnica para Atenção Humanizada ao Abortamento, (BRASIL, 2011, p.15): A atenção humanizada às mulheres em abortamento merece abordagem ética e re-

flexão sobre os aspectos jurídicos, tendo como princípios norteadores a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana, não se ad-mitindo qualquer discriminação ou restrição ao acesso à assistência à saúde. Esses princípios in-corporam o direito à assistência ao abortamen-to no marco ético e jurídico dos direitos sexuais e reprodutivos afirmados nos planos interna-cional e nacional de direitos humanos.

As mulheres com abortamento sofrem diver-sos problemas no acesso aos serviços de saúde, como dificuldade de vagas hospitalares com peregrinações na procura de um leito obstétri-co e, chegando às unidades, estão expostas a situações de violência institucional e discrim-inações, conforme denúncias constantes dos movimentos de mulheres, em diversos lugares do país (AQUINO et al., 2012).

Um estudo realizado no Nordeste do Brasil (GRAVSUS.NE) apresentou em seu resultado como as mulheres em situação de abortamento tem dificuldade de acessar o serviço de saúde, no entanto ser de cor preta foi o único fator que, explicou a maior dificuldade, revelando dessa forma o racismo institucional.

Racismo institucional é qualquer sistema de desigualdade que se baseia em raça que pode ocorrer em instituições como órgãos públi-cos governamentais, corporações empresariais privadas e universidades (públicas e privadas) (SANTOS, 2001), “tra-ta-se da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apro-priado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem ét-nica”De acordo com a Pesqui-sa Nacional sobre Aborto (2010), são as negras as que mais realizam aborto em locais com pouca ou nenhuma higiene, insalu-bre e sem conhecimento médico, onde se utili-zam sondas inapropriadas e outros apetrechos para provocar o abortamento. Alem disso são também as negras, de baixa escolaridade e com menos de 21 anos as que mais passam pelo processo sozinhas, sem o auxílio ou apoio de uma amiga, familiar ou profissional da saúde.

As experiências vividas para as mulheres negras no exercício do direito reprodutivo sempre ti-veram a cor da pele como um diferencial, um olhar sobre a superfície parece que nós, mul-heres negras, temos trajetórias similares com as mulheres brancas, mas não é verdade, tendo o

racismo como estruturante e transversal na vida das mulheres negras faz com que o percurso seja outro, mesmo que estejamos em lutas com bandeiras comuns.

Com base no Feminismo Negro, usamos a Te-oria do Feminismo Interseccional para explicar as vivencias singulares com os cruzamentos das opressões de raça e gênero e outras opressões correlatas. Pois, a  interseccionalidade é uma associação de sistemas múltiplos de subordi-nação, sendo descrita de várias formas como discriminação composta, cargas múltiplas,

Meu relato é de um caso que ficamos sa-bendo que aconteceu com estudantes de outra turma: eles foram fazer anamnese e exame físico de uma paciente que estava internada no hospital e tinham acesso ao prontuário das pacientes antes de colher a história. No prontuário estava anotado que ela tinha sofrido um aborto, mas não tinha anotado o fato de que a paciente não sabia disso. Dai ao colherem a história pergun-taram quando é que o aborto tinha aconte-cido e a paciente não sabia que tinha per-dido a criança.

ou como dupla ou tri-pla discriminação, que concentra problemas e busca capturar as conse-quências estruturais de dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação (Cren-shaw, 2002).

Para Bairros (1995), a experiência da opressão sexista é dada pela posição que as mulheres

ocupam numa matriz de dominação, na qual a raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos, pois se configuram mutua-mente, formando um mosaico, que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade, uma vez que, do ponto de vista feminista, não ex-iste uma identidade única; a experiência de ser mulher se constitui como tal de forma social e historicamente determinada.

Alguns pontos podem ser demarcados aqui, para explicitar essa trajetória das mulheres ne-gras em relação ao aborto.

Na escravidão as mulheres negras realizavam

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aborto para não ver os seus filhos na escravidão, em outro momento elas eram obrigadas a abor-tar, que como amas-de- leite tinham que dá ex-clusividade em amamentar o filho do seu opres-sor. Muitas mulheres escravas recusavam-se a trazer crianças ao mundo do trabalho forçado interminável, onde as correntes, os chicotes e o abuso sexual das mulheres eram as únicas condições de vida a ser ofertada (Davis, 1981).

Posteriormente, outras situações adversas por conta das desigualdades raciais, as mulheres negras continuavam a abortar por não ter condições de ofertar uma vida digna aos seus filhos. Segundo Angela Davis (1981) quando as mulheres negras e latinas realizavam abor-to grande parte das histórias que contavam não eram sobre o seu desejo de se verem livre

da gestação, mas as condições precárias que as demoviam de trazer novas vidas ao mundo.

Para assegurar o trabalho por muitas vezes como empregada doméstica ou dentro do tra-balho informal sem nenhum direito as mul-heres também recorrem ao aborto inseguro para a manutenção do seu trabalho, neste caso são as negras que representam o maior con-tingente neste tipo de trabalho, relembro aqui os casos de Jandira Magdalena dos Santos e Elizângela Barbosa temiam em perder em seus empregos, com isso a realização do aborto tinha como garantia a permanência do trabalho e elas ao realizarem o aborto inseguro e clandestino tiveram suas vidas  ceifadas  precocemente, ve-jam o artigo “Aborto e machismo no mercado de trabalho” de Jarid Arraes.

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A pesquisa recente realizada pelo IBGE (2013) demonstrou que o aborto tem cor e renda, no Nordeste, por exemplo, o percentual de mul-heres sem instrução que fizeram aborto provo-cado (37% do total de abortos) é sete vezes maior que o de mulheres com superior com-pleto (5%). Entre as  mulheres pretas, o índice de aborto provocado (3,5% das mulheres) é o dobro daquele verificado entre as brancas (1,7% das mulheres).

Os processos singulares vivenciados pelas mul-heres negras vão delinear caminhos distintos e neste sentido o campo da saúde reprodutiva evidencia nitidamente essas diferenças expe-rienciadas pelas mulheres segundo a sua per-tença racial como direitos, autonomia, tomadas de decisões e escolhas reprodutivas, e para as mulheres negras segue um conjunto de fatores estruturado pelo racismo, daí a necessidade de assegurarmos as singularidades que confor-mam as mulheres dentro do processo coletivo no reconhecimento do sujeito e de sua história.

REFERÊNCIAS:

AQUINO, Estela M. L. et al . Qualidade da atenção ao aborto no Sistema Único de Saúde do Nord-

este brasileiro: o que dizem as mulheres?. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 17, n. 7, jul.  2012. Disponível em  http://www.scielo.br/sci-elo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- 81232012000700015&lng=pt&n-rm=iso

BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos revisita-dos.  Estudos Feministas. vol.3, n.2, p.458-463. 1995. BRASIL. Ministério da Saúde.  Atenção Humanizada ao Abortamento:  norma técnica. Brasília, 2011.

Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of liberation in America. New York, Vintage, 1967, p. 4

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o en-contro de especialistas em aspectos da discrimi-nação racial relativos ao gênero.Revista Estudos Feministas, vol.10, n.1, p.171-188. 2002.

Davis, Angela. (1981), Women, race and class. Nova York, Vintage Books.

Helio Santos (2001). A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. Senac. p. 109 - 110.

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Só engravida quem quer?Coletivo das Blogueiras Feministas

Texto originalmente publicado em: Blogueiras Feministas

Essa é talvez a frase que mais ouvimos em qualquer debate sobre a legalização do abor-to:  “Não precisa legalizar o aborto, hoje em dia só engravida quem quer”. Com suas variações: “Com tanta informação e tantos mét-odos anticoncepcionais é um absurdo que al-guém engravide sem querer hoje em dia”. Até chegar no extremo:  “se não quer engravidar, não faça sexo!”.

Aí está o grande problema em relação a legal-ização do aborto: o sexo por prazer. Na legis-lação atual, o aborto é permitido em casos de violência sexual, risco de vida para a gestante e diagnóstico de feto anencéfalo. A maioria das pessoas é favorável ao aborto nesses três casos justamente porque não envolve discutir a liber-dade sexual. Falamos sobre isso anteriormente, no texto: Aborto e o controle social dos corpos. Então, se é tão difícil assim engravidar sem querer, por que tantas mulheres ainda se veem nessa situação? Por que até médicas ginecolo-gistas engravidam sem querer? A realidade é sempre bem mais complexa do que os rápidos julgamentos sociais.

No Brasil, 46% dos nascimentos no País não são desejados ou são planejados para mais tar-de, segundo dados da última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mul-her  (PNDS), feita em 2006.  No levantamento anterior, feito em 1996, o percentual era de 48%. O avanço muito pequeno, segundo os próprios pesquisadores, mostra problemas no acesso aos métodos contraceptivos, mau uso ou falhas na tecnologia de disponível.

Antes de encher a boca para falar que só en-

gravida quem quer, que tal pensar nos inúmer-os fatores envolvidos na contracepção?

Desinformação e vergonha de falar abertamente sobre sexo

Existe MUITA desinformação sobre contra-cepção, doenças sexualmente transmissíveis e qualquer assunto ligado a sexualidade. Por mais que “sexo” seja uma palavra gritada diariamente na mídia, as mensagens não são informativas. A maioria das escolas não tem educação sexual no currículo. Em grande parte, porque grupos conservadores barram esse tipo de conteúdo, com medo de que as crianças sejam “estimula-das” a fazer sexo antes da hora. Mal sabem que as crianças desde muito cedo expressam sua sexualidade, sentem prazer com seus corpos e seria ótimo que não fossem reprimidas. Nas au-las de biologia, quando o assunto é abordado, geralmente é tratado como algo terrível que só dissemina doenças sexualmente transmissíveis.

Quanto mais se falar abertamente sobre um assunto menos tabus haverão. Consequente-mente, menos pessoas terão vergonha, temor ou receio de falar sobre o assunto. A única visão que a maioria das pessoas tem do que seja sexo é a imagem da penetração. Há inúmeras possi-bilidades do que seja uma relação sexual, mas acredita-se que o prazer sexual passa obrigator-iamente por essa imagem.

A disseminação de informação, que é respons-abilidade do Estado, muitas vezes é negligencia-da. Por mais que exista distribuição de métodos contraceptivos como camisinha masculina, an-ticoncepcionais hormonais e pílula do dia se-

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guinte em unidades de saúde públicas, isso não quer dizer que não existam problemas na dis-tribuição e até mesmo escassez, especialmente em regiões mais afastadas dos principais cen-tros urbanos.

O acesso a esses recursos é intermediado por profissionais e instituições que algumas vezes

podem ter crenças ou seguir dogmas contrári-os ao seu uso, especialmente no caso da pilula do dia seguinte, o que afeta o acesso a alternati-vas de contracepção em diversas comunidades. Consultas com ginecologistas na rede pública e até mesmo nos planos de saúde privados de-moram para serem marcadas e muitas vezes as pessoas não tiram todas as dúvidas que tem por vergonha de perguntar.

Além disso, há uma cultura na sociedade em que as pessoas preferem ignorar o fato de que adolescentes fazem sexo. Esse tipo de situação desestimula uma conversa franca sobre méto-dos contraceptivos e gera cada vez mais desin-formação.

Nenhum método anticoncepcional é infalível e seu uso sempre depende do acesso

De cada cem mulheres que tomam a pílula em um ano, três engravidam. Todos os métodos an-

ticoncepcionais, sem exceção, possuem algum nível de possibilidade de ineficiência mesmo com o uso correto. Nem mesmo alaqueadu-ra garante 100% de proteção.

Recentemente, o jornal  The New York Times, publicou gráficos mostrando que “quan-to maior o tempo de utilização de um método contraceptivo, maior a probabilidade de uma gravidez indesejada — da mesma maneira que qualquer pequeno risco, ocorrendo repetida-mente, cresce em probabilidade. Isto é verdade para todos os métodos contraceptivos, mesmo no caso altamente improvável que eles sejam usados perfeitamente, todas as vezes”.

Portanto, não é incomum conhecermos in-úmeros casos de mulheres que usavam anti-concepcionais hormonais ou dispositivos como o DIU (Dispositivo intrauterino) e engravida-ram. Cada pessoa tem um corpo e processos biológicos diferentes. Nem todos os medica-mentos reagem da mesma forma com todas as pessoas. Além disso, se há falta de informação, é provável que uma grande parcela não saiba usar o método corretamente, já que essa informação não é de conhecimento geral.

Outros medicamentos como antibióticos, an-ticonvulsivantes e antidepressivos  podem agir cortando o efeito da pílula. Essas informações muitas vezes não são repassadas pelo profis-sional de saúde e nem constam na bula, pois há poucas pesquisas em relação a isso quando se lança um medicamento. Consumo excessivo de bebidas alcoólicas, vômitos e diarreias também podem afetar a absorção do contraceptivo hor-monal.

A pílula do dia seguinte é um contraceptivo de emergência. Não deve ser usada como método contraceptivo regular e não é abortiva. O ide-al é que o tempo para tomá-la não ultrapasse

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72 horas (3 dias) após a relação sexual. Nas primeiras 24 horas a eficácia pode ser de 88%, mas a medida que o tempo passa, essa eficácia diminui. Também não é recomendado usá-la mais de uma vez por mês, porque perde a eficá-cia, aumentando o risco de gravidez.

Métodos baseados nos ciclos menstruais da mulher, como a Tabelinha e o Método do Muco Cervical (método de Billings), exigem ciclos menstruais regulares e tem pouca eficácia. Mét-odos de barreira como a camisinha (masculina ou feminina) e o diafragma exigem a colocação correta. Porém, no caso da camisinha masculi-na, nem todos os modelos se adaptam aos dif-erentes tamanhos de pênis o que aumenta as chances de rasgos ou furos.

Para realizar uma laqueadura ou uma vasecto-mia no SUS é preciso ter 25 anos ou no minimo 2 filhos, segundo a lei n° 9.263/1996. Se a pessoa for casada, a esterilização depende do consenti-mento expresso de ambos os cônjuges. É vedada

a esterilização cirúrgica durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprova-da necessidade, por cesarianas sucessivas ante-riores. No caso da vasectomia, a pessoa não fica estéril de imediato leva em média 3 meses ou cerca de 20 ejaculações.

Além disso, para ter acesso a uma ampla gama de contraceptivos é preciso ter dinheiro. As pílulas anticoncepcionais mais modernas e com menos efeitos colaterais custam caro, em média de R$35 a R$70 e não são distribuídas na rede pública de saúde. O DIU é fornecido na rede pública, mas pouco divulgado e com poucos profissionais que realizam a colocação. Na rede privada sua colocação pode custar em média de R$400 a R$600.

Nem todo mundo se adapta aos métodos con-traceptivos mais comuns

Há pessoas que tem alergia a látex e só podem usar camisinhas de poliuretano, que são mais

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caras e mais difíceis de serem encontradas. Além de não terem tantas opções de tamanhos, formatos e sabores. 

Os métodos anticoncepcionais hormonais estão ficando cada vez mais populares, mas grande parte das mulheres que os utilizam sentem di-versos efeitos colaterais como: dores de cabeça, dores nas mamas, inchaço, varizes, náuseas, re-dução do desejo sexual, etc.

Anticoncepcionais hormonais também aumen-tam os riscos de doenças circulatórias e car-diovasculares como:  trombose venosa e AVC. Hábitos de vida, condições de saúde e histórico familiar de doenças são determinantes e mui-tas vezes há contraindicação para fumantes, obesas, pessoas com  histórico de trombose, embolia pulmonar, infarto, hipertensão arterial grave, diabetes, histórico de acidente vascular cerebral, enxaqueca, doenças do fígado ou pân-creas, tumores e sangramento vaginal não diag-nosticado. Durante a amamentação alguns dos anticoncepcionais também não são indicados, pois podem afetar a produção de leite.

O machismo ainda permeia grande parte dos relacionamentos

Primeiro, temos o problema que a responsab-ilidade da contracepção fica em grande parte nas mãos da mulher. Assim como a culpa pela gravidez indesejada.

A camisinha masculina é o método contra-ceptivo mais barato e prático, mas vemos ain-da inúmeros homens que resistem a usá-la ou que propõe as parceiras um método anticon-cepcional feminino para pararem de usá-la, es-pecialmente em relacionamentos longos. Já ex-iste a camisinha feminina a venda no mercado. Porém, ela custa bem mais caro que a masculina e não há muitas campanhas para que se torne

conhecida. A forma mais segura de se prevenir uma gravidez é utilizar métodos combinados, mas além de nada ser garantido, a prevenção plena não é acessível a todas as pessoas.

Além disso, muita gente ainda tem vergonha de adquirir métodos contraceptivos. Nas grandes cidades isso não é tão comum. Porém, nas ci-dades do interior, em que só tem uma farmá-cia eo dono conhece sua família, como comprar uma pílula do dia seguinte, por exemplo?

Na maioria das pesquisas, a religião, a idade e a classe socioeconômica estão relacionadas ao maior ou mais  adequado conhecimento dos métodos contraceptivos. Geralmente não há desconhecimento da existência, mas falta de acesso e desinformação sobre como deve ser utilizado.

A proposta da legalização do aborto não visa apresentar o aborto como uma solução mági-ca para esses problemas, mas sim garantir o di-reito das pessoas decidirem sobre seus corpos o fim do tema como um tabu. Qualquer proposta séria de legalização do aborto, como a Platafor-ma Para Legalização do Aborto no Brasil, tem como uma de suas principais metas garantir e expandir o acesso ao planejamento familiar e a métodos contraceptivos, porque isso faz parte dos direitos reprodutivos e sexuais.

As mulheres engravidam por diversas razões e o que não queremos é condená-las a uma gravi-dez compulsória. Da mesma maneira que deve mos garantir todos os direitos a quem decide ser mãe ou pai como: pré-natal, atendimento humanizado no parto, creches e benefícios tra-balhistas. Também devemos respeitar e garantir atendimento a quem  decide interromper uma gravidez porque não se sente preparada no mo-mento para assumir essa responsabilidade.

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Regulação do aborto no Brasil: como é hoje e o que mu-daria com o PL 5069

Flora Sartorelli V. de SouzaMestranda em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante do

Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Universidade de São Paulo

Jéssica da MataMestranda em Direito Penal na Universidade de São Paulo e integrante do Centro de Pesquisa

e Extensão em Ciências Criminais da Universidade de São Paulo

Regulação da interrupção seletiva da gravidez no Brasil: como é hoje?

No Brasil, a interrupção seletiva da gravidez, comumente chamada de aborto, é proibida e criminalizada. Se a gestante o provocar ou con-sentir que outra pessoa o provoque, há pena de detenção prevista de um a três anos (art. 124, Código Penal). Quem provoca o aborto com o consentimento da gestante também é criminal-izado, com pena de reclusão prevista de um a quatro anos (art. 126, CP). Neste caso, se a ges-

tante tiver 14 anos ou menos, tiver algum tipo de deficiência mental ou se o consentimento é obtido mediante fraude, violência ou grave ameaça, a pena prevista passa a ser de três a dez anos de reclusão.

Há, contudo, em nosso ordenamento, algu-mas hipóteses em que a prática de aborto não é punível, ou seja, hipóteses de aborto legal. O Código Penal prevê duas delas (art. 128): (i) o aborto necessário, caracterizado quando a vida da gestante está em grave risco em razão da

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gestação e não há outro meio para salvá-la senão pelo aborto; e (ii) o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, quando há consentimen-to da gestante. Em 2012, uma nova hipótese foi estabelecida a partir de um julgamento do Su-premo Tribunal Federal: por maioria de votos, os ministros acordaram que nos casos de fetos anencéfalos, a criminalização do aborto é in-constitucional e tal prática é, portanto, impuni-vel. Há, ainda, discussões em nossos tribunais a respeito da possibilidade de aborto em outros casos de anomalias. Contudo, não se pode dizer que há um entendimento consolidado.

A despeito das disposições do Código Penal de 1940, os serviços de aborto legal no Brasil só foram regulamentados a nível nacional em 1998

com a disposição do oferecimento desse serviço por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), atendimento esse que, ainda, é bastante escasso. O responsável pela edição de normas técnicas que tratam de regulamentação do aborto legal no Brasil é o Ministério da Saúde, desde o que diz respeito ao atendimento médico até o ofere-cimento do serviço pelo SUS e por instituições particulares. As restrições legislativas e ob-stáculos encontrados pelas mulheres, inclusive para a realização do aborto legal, fazem com que muitas realizem abortos inseguros, levando às preocupantes estatísticas de que a cada dois dias uma brasileira morre por aborto inseguro (segundo dados da do Ministério da Saúde).

O PL 5069/13: o que mudaria?

Recentemente, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5069/13, que propõe alterações no Código Penal e na Lei de Contravenções Penais, no que se refere à regu-lamentação do aborto, e na Lei 12.845/13, que dispõe sobre o atendimento de pessoas em situ-ação de violência sexual. Entre as principais al-terações, estão:

• Definição de regras mais rígidas para a autor-ização de aborto nos casos de estupro

Atualmente, o entendimento é de que não há ne-cessidade de registro de boletim de ocorrência para a realização de aborto em casos de estupro. Em 2000, o Ministério da Saúde estabeleceu, mediante a Norma Técnica de Atenção Hu-manizado ao Abortamento que regulou o aten-dimento multidisciplinar nos casos de aborto legal pelo SUS, a dispensa da apresentação de de boletim de ocorrência policial (B.O.)Com a promulgação da Lei 12.845/13, que trata do atendimento das vítimas de violência sexual, a dispensa do B.O. foi reafirmada, já que o dis-

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positivo determina atendimento imediato às vítimas que inclui a profilaxia da gravidez (art. 3, inciso IV) sem qualquer menção ao B.O..

Com a modificação proposta no PL, a apre-sentação do B.O. passaria a ser obrigatória. De acordo com o texto legal proposto, nos casos de gravidez resultante de estupro, este deverá ser necessariamente averiguado mediante exame de corpo de delito e comunicado à autoridade policial.

Isso representaria mais um obstáculo ao aces-so ao serviço de abortamento legal uma vez di-versas pesquisas apontam o constrangimento sofrido nas delegacias de polícia como um dos motivos principais da desistência em se regis-trar a ocorrência policial de vitimização sexual. Ademais, tal medida desconsidera o fato de que, especialmente nos casos de violência sexual, muitas mulheres não têm condições de denun-ciar seus agressores, seja por razões emocionais, financeiras ou mesmo de segurança.

Assim, além do constrangimento impedir essas

mulheres de denunciar a violência que sof-reram perante a justiça penal, elas também se-riam impedidas de acessar seu direito à inter-rupção da gravidez decorrente dessa violência.

• Criação de novos tipos penais incriminadores

Este Projeto de Lei prevê a criação de dois no-vos crimes, que penalizam condutas relaciona-das indiretamente à prática de aborto com o claro objetivo de dificultar tal prática. São eles:

1. Induzimento, instigação ou auxílio ao abor-toO projeto prevê pena de detenção de seis meses a dois anos para quem a) induzir ou instigar a gestante a praticar aborto, b) prestar qualquer auxílio para a prática, c) vender ou entregar, mesmo que gratuitamente, substância ou obje-tivo abortivo, d) orientar ou instruir a gestante sobre como praticar aborto. Nos casos em que a conduta é cometida por agente de serviço pú-blico de saúde ou por quem exerce a função de médico, farmacêutico ou enfermeiro, a pena aumentaria para um a três anos de detenção.

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Se a gestante for menor de 18 anos, as penas ainda aumentariam de um terço.

2. Anúncio de meio abortivoA segunda conduta criminalizada é anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto. Essa conduta está atualmente prevista no nosso ordenamento como uma contravenção penal, em que só pode ser penal-izada com pena de multa (art. 20, Decreto Lei 3688/41). A proposta do PL é revogar tal dis-posição e elevar a conduta à categoria de crime, estabelecendo pena de seis a dois anos de de-tenção e, no caso de profissionais de saúde, um a três anos de detenção.

É necessário ressaltar que a punibilidade nest-es casos ocorre mesmo se não for praticado o aborto. A criminalização destas condutas con-

stitui exemplo de uma tendência crescente de nosso sistema de justiça penal: uma expansão punitiva com criação de inúmeros tipos penais para atos preparatórios de outros delitos, que não necessariamente protegem bens jurídicos (no caso, a vida). Ou seja, utiliza-se do direito penal, considerado como ultima ratio, para criminalizar condutas de nenhuma ou pouca reprovabilidade.

Na prática, o que essas novas criminalizações fazem é expandir o rol das pessoas que podem ser punidas em razão de práticas relativas ao aborto que não necessariamente geram efeitos na realidade. Se hoje a punição se restringe à gestante ou a quem pratica nela o aborto, com a provação do projeto, qualquer pessoa poderá ser penalizada apenas por orientar e falar sobre as possibilidades de aborto com a gestante.

• Alteração do conceito legal de violência sexual

Uma das maiores mudanças trazidas com o PL5069 é uma definição mais restritiva do con-ceito de violência sexual. Atualmente, violência sexual é considerada como qualquer forma de atividade sexual não consentida. A proposta é que violência sexual passe a ser considerada como as práticas descritas como crimes contra a liberdade sexual no Código Penal que resultem em danos físicos e psicológicos a serem com-provados com exame de corpo de delito.

A restrição do conceito de violência sexual re-stringe também o público que pode ser aten-dido pela lei 12845/13, tornando mais restrito acesso aos serviços de atendimento (tais como o abortamento legal).

Com efeito, há uma declarada naturalização de abusos cometidos contra a mulher. Há inúmeras violações que não deixam marcas, que não po-dem ser atestadas por meio de exame de corpo

Um que me lembro muito foi durante um plantão na maior maternidade da minha ci-dade... Eu, acadêmica da disciplina de obstetrí-cia e o estagiário estávamos atendendo uma pa-ciente que teve sangramento espontâneo... Ela e o esposo estavam tensos, era o primeiro trime-stre da sua primeira gravidez, que foi extrema-mente desejada, elas estava no trabalho quan-do ocorreu o sangramento. Pedimos uma us e lá estava o laudo... Feto morto...Não sabíamos se teríamos coragem de dar a notícia, chama-mos então o médico plantonista pra que ele nos desse uma orientação de como falar isso aos pais... Ele chegou, não olhou nem na cara do casal, pegou o laudo do exame e disse “é, teu feto tá morto viu? Amanhã você vem fazer uma curetagem porque esse horário tá muito cheio “. Sem tempo pra processar a ideia, sem o direito de uma comunicação humana e empática. Um dos piores momentos da minha graduação

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de delito ou exame psicológico, que deixariam de ser combatidas por meio de instrumentos le-gais.

• Novas regras para atendimento de vítimas de violência sexual

O Projeto intenta realizar alterações na lei 12.845/13, que foi alvo de inúmeras críticas conservadoras desde a sua promulgação. Ago-ra, no PL 5069/13, essas discordâncias veem em bloco com outras alterações no que diz respeito a restrição de acesso ao abortamento legal e o aumento da repressão contra o aborto como um todo. No que diz respeito ao atendimento das vítimas de violência sexual, as mudanças mais significativas são:

1. Exclusão do termo “integral” no artigo pri-meiro do texto original da lei:O PL estabelece que os hospitais devem ofere-cer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial e multidisciplinar, e não mais in-tegral, como é hoje. O intuito aqui é restringir os meios pelos quais pode ser prestado o aten-dimento às vítimas de violência sexual. Ao re-tirar a integralidade do atendimento, retira-se também um dos fundamentos jurídicos utiliza-dos para realizar tudo que está ao alcance para garantir o oferecimento efetivo dos serviços el-encados no artigo 3º da Lei 12845/13.

2. Encaminhamento obrigatório da vítima para registro de boletim de ocorrência após o aten-dimentoO PL, ao alterar o art. 3º da Lei 12845/13, tam-bém estabelece que a vítima deverá obrigatori-amente ser encaminhada para registrar boletim de ocorrência em delegacia. Como já discuti-do acima, o intuito aqui é retomar a exigibili-dade do boletim de ocorrência policial para re-stringir o acesso ao atendimento de saúde pela mulher que procura o serviço de abortamento

legal. Assim, se por algum motivo a vítima de violência sexual não tenha realizado o registro da ocorrência policial, ela não terá direito a ser atendida para a realização da interrupção de sua gravidez resultante de estupro.

3. Restrição do atendimento pela substituição do termo “profilaxia da gravidez”A lei em vigor traz a “profilaxia da gravidez” como um dos serviços a serem oferecidos àsvítimas de violência sexual. Trata-se de um ter-mo amplo utilizado para englobar diversosmeios de impedir a gravidez de estupro.

Houve muita polêmica em relação ao termo pois, muito embora, o Ministério da Saúde afirme que a sua utilização foi feita para englobar remédios de efeito preventivo como o Levonorgestrel (a "pílula do dia seguinte"), inte-grantes da bancada evangélica defendem que não se possa utilizar esse remédio por se tratar de um abortivo e que a lei deveria se restringir a métodos preventivos.

É nesse sentido que vem a proposta de modifi-cação do inciso IV, artigo 3º da Lei 12845, tra-zida pelo PL, onde se restringe os serviços aos que não sejam considerados “abortivos”. Com essa redação, ficaria a critério do médico de-cidir se a pílula do dia seguinte é contraceptivo ou abortivo. Se o médico considerar que se tra-ta de abortivo, a pílula do dia seguinte não se-ria oferecida à mulher vítima de violência pelo SUS.

Contudo, é fato que o abortamento em caso de estupro não é punível pela legislação brasileira. Assim, não há qualquer incongruência em se aplicar todo e qualquer método preventivo ou de interrupção da gravidez nos casos em que esta seja resultante de estupro. Nesse sentido, a articulação de substituição do termo “profilax-ia da gravidez” por disposição mais restritiva

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propõe uma restrição absolutamente nova ao direito das vítimas de violência sexual de inter-romperem sua gravidez resultante da violência, aumentando suas chances de prosseguir com uma gravidez indesejada.

4. Adição de um parágrafo que expressamente determina a possibilidade de “objeção de con-sciência”A objeção de consciência é um direito do médi-co se recusar a prestar determinado serviço de saúde que vá contra os ditames de sua consciên-cia, como previsto no artigo 28 do Código de Ética Médica. A autonomia dos médicos é asse-gurada também pelos artigos 7 e 21 do mesmo código.

Assim, diversos profissionais da saúde, sobretu-do médicos, alegam a objeção de consciênciapara não atender mulheres que necessitam do serviço de abortamento legal.

Contudo, a norma técnica do Ministério da Saúde, Atenção Humanizada ao Abortamento aponta que o Código de Ética Médica também conta com outro dispositivo, trazido no artigo 43, que obriga os médicos a seguir as determi-nações legais no que diz respeito ao abortamen-

to. Assim, o Código de Ética Médica, culmi-nado com demais diplomas normativos como as normas técnicas e o Código Penal brasileiro (que trata do crime de omissão em seu  artigo 13, § 2º) só liberam o médico da obrigação  de realizar o procedimento se ele informar a mul-her sobre seus direitos e garantir o atendimento desta mulher por outro profissional da institu-ição ou de outro serviço.

Além disso, não pode ser alegada a objeção de consciência em casos de aborto (i) há risco de morte da mulher, (ii) quando não houver outro profissional disponível para realizar o atendi-mento do aborto legal,  (iii) quando a omissão do profissional puder causar danos ou agravos à saúde da mulher e (iv) no atendimento de com-plicações derivadas de aborto inseguro, uma vez que se tratam de casos de urgência.

Desta forma, o PL 5069, com a adição do dis-positivo da objeção de consciência sem quais-quer restrições, alarga a possibilidade de ale-gação do mesmo. Portanto, seria possível que os profissionais da saúde se negassem a prestar o atendimento a despeito de se tratar de uma hipótese legal de abortamento e/ou se tratar de uma situação emergencial.

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O aborto das escravas: um ato de resistênciaJéssica Ipólito

Militante feminista e do movimento negro

Criadora do blog Gorda e Sapatão

Texto originalmente publicado em: Blogueiras Negras

“Enquanto o couro do chicote cortava a carne/ A dor metabolizada fortificava o caráter/ A colônia produziu muito mais que cativos/ Fez heroínas que pra não gerar escravos matavam os filhos/ Não fomos vencidas pela anulação social/ Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial/ O sistema pode até me transformar em empregada/ Mas não pode me fazer racioc-inar como criada.”(trecho da letra Mulheres Negras – Eduardo – Facção Central)

No início do Brasil colônia (século XVI) em di-ante, sequestraram a população negra oriunda de várias partes do continente africano para im-pulsionar a economia. O povo negro foi a opção “viável” escolhida pelos colonos para serem uti-lizados como mão-de- obra escravizada para não terem de arcar com trabalhadores assala-riados. Além de que, os portugueses já haviam montado uma rede de comércio negreiro para serem usados nas plantações de cana-de- açu-car lá nas ilhas da Madeira e Açores.

Executaram essa mesma estratégia no Brasil, usurpando vidas e estraçalhando corpos. “Es-tima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos” segun-do Boris Fausto em “História do Brasil”. Outros historiadores falam em quantias variando em 8 a 13 milhões. Independente do número exato, a presença massiva do povo negro é inegável.

Dito isto, quero lembrar as mulheres negras es-cravizadas que aqui viveram. Estas, avaliadas

desde seu sequestro em terras africanas, eram encarregadas dos mais diversos serviços. Eram o alvo principal de estupros e abusos sexuais constante. Sem terem chance de elevar sua voz contra essa violência, um ato de resistência bro-tava: o aborto.

O aborto das mulheres negras escravizadas não era somente para livrar seus filhos do cativeiro e violência. Era também uma renúncia em não repor a mão-de- obra escravizada: O jesuíta Antonil¹, alertava os senhores que era preciso tratá-las bem para que ficassem felizes e repro-duzissem pequenas escravas e escravos, que se-riam criados desde a tenra idade, nos moldes da servidão violenta.

As ações de recusa das escravizadas em parir filhos frutos de violência sexual; a percepção de que com a maternidade sua carga de trabalho aumentaria haja vista que eram encarregadas de muitas tarefas; a recusa em dar o seio para filho do senhor; a recusa em parir uma criança cuja vida seria relegada ao mesmo destino que elas, foram medidas de resistência ao sistema es-cravista, onde a mulher negra – embora cercea-da – fazia das poucas brechas que lhe restavam um escudo de proteção a si mesma e aos demais.

O aborto de ontem é o mesmo de hoje

Sem mecanismos oficiais que façam um levan-tamento certeiro do número de abortos provo-cados anualmente, o Brasil segue com estatísti-cas levantadas por pesquisadores, médicas/os e

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demais especialistas no assunto. Estima-se que cerca de 1 milhão de abortos aconteçam todo ano no país. Uma pesquisa mais detalhada que pode dar características precisa da mulher que aborta, foi iniciada em 2010, pela antropólo-ga Débora Diniz, professora do Departamen-to de Serviço Social da UnB (Universidade de Brasília) e do Instituto de Bioética, Direitos Hu-manos e Gênero, e pelo sociólogo Marcelo Me-deiros (UNB) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A mulher que aborta é casada, tem filhos, tem religião e carrega sozinha o fardo da culpada gerada pelo estigma que a criminalização do aborto proporcionou desde os primórdios da proibição

As mulheres negras morrem 3-4 vezes mais que as brancas. “A diferença é basicamente por con-ta do racismo institucional, ou seja, a população negra não tem acesso aos serviços e quando tem são de má qualidade, lá onde vivem é que estão os piores serviços ou mesmo inexistem”, afirma Alaerte Leandro Martins, enfermeira obstétrica negra que se debruçou sobre o assunto diante da negação por parte dos setores públicos em reconhecer o racismo institucional agindo e se refletindo nas estatísticas.

As estimativas de que ano após ano o aborto clandestino e inseguro fará mais vítimas não precisam de números: as mulheres continuarão abortando. Assim como séculos atrás, as mul-heres negras escravizadas o faziam como parte de sua sobrevivência e resistência, as mulheres negras e não-negras de hoje também. Um lega-do que deixa explícito que suas vidas vem em primeiro lugar. Seus corpos em primeiro lugar.

Mulheres diversas seguem escupindo sólidos caminhos com demarcações de que são sim sujeitas de direito e que sua resistência virá em

todas as formas de manifestação. O aborto é uma delas: resistência ao controle dos corpos, da vida; resistência à maternidade obrigatória; resistência à obediência patriarcal e racista; re-sistência à ideia de subserviência à sociedade; resistência à tentativa de silenciar gritos de dor e violência. O perfil da mulher que aborta é o perfil da resistência, da resiliência -acima de tudo.

A criminalização do aborto não passa de uma medida pura e simplesmente moral: a religio-sa, a mais cruel. É descabida tal qual fora a proibição do divórcio no passado. Essa crimi-nalização atinge as mulheres negras com uma meticulosa crueldade que só o racismo pro-porciona, que podem ser vista a olho nu se for-mos acompanhar o atendimento de uma mul-her negra no SUS. O racismo institucional a faz criminosa no momento em que ela pisa no pronto atendimento. Da entrada à saída, todos os procedimentos, a longa espera e o tratamen-to desumano escancaram os tentáculos racistas impregnados na sociedade brasileira, embora o Estado queira tapar o sol com a peneira.

Não raro penso no aborto como uma medida genocida contra todas as mulheres: o controle é ineficaz, as mulheres não deixam de fazer um aborto por ele ser proibido. O que elas fazem é adiar a busca por auxílio da saúde pública depois de abortar; significa que as mulheres procuram assistência médica quando estão com hemorragia grave ou infecções alastradas. Man-ter essa medida criminalizadora só atesta o fato

A equipe médica de um hospital de referência “enrolou” o proced-imento da paciente vítima de es-tupro até uma idade gestacional em que já não era mais possível a realização do aborto legal.

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Mater Dolorosa

Meu Filho, dorme, dorme o sono eterno No berço imenso, que se chama - o céu. Pede às estrelas um olhar materno, Um seio quente, como o seio meu.

  Ai! borboleta, na gentil crisálida, As asas de ouro vais além abrir. Ai! rosa branca no matiz tão pálida, Longe, tão longe vais de mim florir.

  Meu filho, dorme como ruge o norte Nas folhas secas do sombrio chão! Folha dest'alma como dar-te à sorte? É tredo, horrível o feral tufão!

  Não me maldigas... Num amor sem termo Bebi a força de matar-te a mim Viva eu cativa a soluçar num ermo Filho, sê livre... Sou feliz assim... - Ave - te espera da lufada o açoite,  - Estrela - guia-te uma luz falaz. - Aurora minha - só te aguarda a noite, - Pobre inocente - já maldito estás.

Perdão, meu filho... se matar-te é crime Deus me perdoa... me perdoa já. A fera enchente quebraria o vime... Velem-te os anjos e te cuidem lá.

  Meu filho dorme... dorme o sono eterno No berço imenso, que se chama o céu. Pede às estrelas um olhar materno, Um seio quente, como o seio meu.

REFERÊNCIAS:

MULHERES NEGRAS: SUA PARTICIPAÇÃO HISTÓRICA NA SOCIEDADE ESCRAVISTA de Ma-ria da Penha Silva Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil de Alaerte Leandro Martins

A MULHER ESCRAVA NO MARANHÃO OITO-CENTISTA: cotidiano e resistência de Elizabeth Sousa Abrantes e Francinete Poncadilha Pereira

Os quilombolas de Ronaldo de Souza Castro

Aborto é feito por quase 1 milhão de brasileiras que vivem as consequências da ilegalidade do ato

Vamos falar sobre aborto?

Brasil tem um milhão de abortos induzidos por ano

O IMPACTO DA ILEGALIDADE DO ABORTO NA SAÚDE DAS MULHERES EM SALVADOR E FEIRA DE SANTANA

Crianças escravas no Brasil Colonial de Silvani dos Santos Valentim

O corpo feminino como espaço público: O aborto e o estigma social no Brasil

Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna de Debora Diniz e Marcelo Medeiros

Eu ainda tô no meu terceiro ano. Nun-ca passei por uma situação de atender uma paciente que tinha acabado de realizar um aborto nem nada do tipo, mas eu tive um professor de farmaco que disse “as mulheres estragaram o ci-totec, era um ótimo remédio pra gas-trite. Agora não pode mais usar”.

de que o Estado quer as mulheres (todas, sem exceção) pagando com sangue seus atos. Até a última gota.

Em memória de todas as mulheres negras bru-talmente escravizadas e mortas desde que aqui

foram obrigadas a viver, dedico esta poesia de Castro Alves, que fala justamente do aborto

praticado pelas escravas como um ato de amor:

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Uso de métodos medicamentosos no aborto clandestinoFlora Passini

Estudante de Medicina da UEL

Coordenação Regional Sul-2 2016O misoprostol, medicamento conhecido pelo nome comercial Cytotec®, começou a ser ven-dido nas farmácias brasileiras em 1986, para o tratamento e prevenção de úlcera gástrica e duodenal. Mas, sendo um análogo sintético da prostaglandina E1, logo o seu potencial aborti-vo foi descoberto...

Os balconistas de farmácia sempre oferece-ram às mulheres medicamentos que ajudassem a “descer a menstruação” em casos de atraso menstrual. Com o aparecimento do Cytotec®, passou-se a vender um produto muito mais efi-caz e, confirmada a sua eficiência pela experiên-cia das mulheres, este conhecimento popular difundiu-se: metade dos abortos induzidos já estava sendo feito por uso de medicamentos em 1989. Não só o uso popular se intensificou, mas também o uso médico em obstetrícia e os

debates sobre o misoprostol no meio científico e em torno dos movimentos sociais, principal-mente o movimento feminista.

O surgimento do misoprostol mudou o pan-orama da morbimortalidade entre as mulheres. Houve crescimento do número de abortos com-pletos e a menores índices de infecção e hemor-ragias, bem como a drástica redução de mortes maternas associadas ao aborto inseguro. As mulheres encontraram nas pílulas um método abortivo mais barato, mais prático, mais seguro, menos traumático e que possibilitava passar pelo processo na privacidade de suas casas e com apoio de pessoas próximas.

Porém, percebendo a ampliação da venda e do uso do misoprostol para a realização de abor-tos clandestinos, o Ministério da Saúde impôs

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restrições à venda do Cytotec®, o qual passou a ser comprado mediante apresentação de receita médica. O Ministério também acordou com a in-dústria farmacêutica uma diminuição do aporte do medicamento para o Brasil, além de proibir a divulgação de informação, por qualquer meio, sobre o misoprostol para o público em geral. Somada às medidas burocráticas, houve uma pesada campanha degrupos conservadores re-ligiosos, juntamente com a mídia, que colocou rapidamente a opinião pública contra a droga, causando um abrupto declínio da comercial-ização por vias legais no segundo semestre de 1991.

Em contrapartida, o final da década de 80 repre-sentou um período de abertura política, marca-do pela elaboração da Constituição de 88 e am-pliação de diversas discussões, como o debate sobre direitos humanos. Em 1991 surge, assim, o primeiro projeto de lei, o PL nº1.135/91, a tramitar na Câmara dos Deputados com o in-tuito de descriminalizar o aborto. De um lado, o movimento feminista atuava fortemente na def-esa dos direitos das mulheres, de outro, grupos religiosos conservadores estabeleciam alianças para participar do processo político na defesa de seus interesses.

As vozes dos movimentos sociais não foram ouvidas e o decréscimo das vendas no merca-do legal seguiu. Em 1998, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu total-mente a venda e a livre circulação do Cytotec® e de outros medicamentos com potencial aborti-vo. Essa decisão foi na contramão inclusive do que diziam as resoluções do Ministério da Saúde, que adicionou o misoprostol à sua “Lista Modelo de Medicamentos Essenciais para uso no SUS”. Dessa forma, buscou-se a produção de um equivalente ao misoprostol de fabricação brasileira: a Anvisa aprovou, em 2001, o registro do Prostokos® 25; em 2005, o Prostokos® 200; e

,no ano seguinte, o Prostokos® 100.

Restrito a serviços de saúde, seu uso na obstetrí-cia, de acordo com protocolo do Ministério da Saúde, tem indicação para: indução de aborto legal, esvaziamento uterino por morte embri-onária ou fetal, amolecimento cervical antes de aborto cirúrgico (AMIU ou curetagem) e indução de trabalho de parto (maturação de colo uterino). Ainda segundo o protocolo, em casos de indução de aborto legal no 1º trime-stre, recomenda-se a administração de 4 com-primidos de 200mcg (800mcg) via vaginal a cada 12 horas (3 doses). Já no 2º trimestre, de 13 a 17 semanas, recomenda-se 1 comprimido de 200mcg, via vaginal, a cada 6 horas (4 doses) e, de 18 a 26 semanas, 1 comprimido de 100mcg, via vaginal, a cada 6 horas (4 doses). (Existem diferentes recomendações em outros materiais oficiais, como o manual feito pela Federación Latinoamericana de Sociedades de Obstetricia y Ginecología – FLASOG, mas foi tido como base o protocolo brasileiro).

O aborto permanece ilegal no Brasil (salvo em casos de risco de morte à mulher, estupro ou feto anencéfalo) e o misoprostol, proibido. Mas as mulheres continuam a realizar abortos clan-destinos. Dessa forma, com a proibição da ven-da do Cytotec® nas farmácias, o comércio ilegal da droga se expandiu, possibilitando o acesso ao produto, mas sem a devida segurança.

O tráfico do misoprostol favorece a adulteração da droga e o risco de venda de apresentações com subdoses ou até mesmo sem o princípio ativo. Além disso, a venda ilegal acaba por deixa-lo mais caro: há relatos de comprimidos vendidos por 200 reais cada! A clandestinidade também expõe as mulheres a contatos inseguros com vendedores, os quais, em sua maioria, são homens. Muitos trabalham em farmácias e são eles quem instruem as mulheres sobre o uso dos

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comprimidos. Mas como é essa instrução? Não há garantias de que seja feita da forma correta...

As mulheres, forçadas a circular em um terreno de clandestinidade, podem ser alvos de múltip-las opressões, como o assédio sexual:

“Vendedor – Você tem que ficar de preferên-cia o período da tarde todinho em jejum. Aí é quatro comprimidos de três em três horas, você toma quatro, depois de três horas, quatro […].Aplica lá dentrão mesmo!Mulher – É, mas como eu vou aplicar isso? Que eu lá sei como é?Vendedor – Tem que ser com o dedo, empur-rando lá debaixo do útero o negócio, jovem!Mulher – [Riso] Mas eu quero saber como?Vendedor – Quer que eu aplico para você?Mulher – Quem? Você?Vendedor – É […]. Aplico com meu... você sabe, com o dedo ou com meu negócio. [...]Mulher – Ah! Do jeito que funcionar.Vendedor – Posso aplicar com o meu pau, não posso? […] Aí eu te levo para um motelzinho

ali.Te dou um trato legal, depois eu aplico ele.”

Esse não é um diálogo fictício. Foi retirado de uma conversa telefônica entre uma mulher e um vendedor, a qual foi documentada durante uma pesquisa no Distrito Federal.

Por ser crime, as mulheres passam pelo proces-so do aborto em silêncio e, por vezes, sozinhas, com medo de serem descobertas, repreendidas e julgadas. Quando adquirem o Cytotec®, este é obtido de forma insegura e sem garantias de sua eficácia. Abortam quase sempre sem instruções corretas sobre a dose, a via de administração, o intervalo entre doses, as contraindicações, os efeitos secundários e as precauções. Muitas vez-es, ainda realizam o aborto em condições de má higiene. Se ocorrem complicações, como hem-orragia e infecções, a maioria das mulheres não procura atendimento em serviços de saúde por medo de serem oprimidas, expostas ou até mes-mo denunciadas pelos profissionais.

O debate sobre a legalização do aborto é urgen-te, bem como a necessidade de rever a políti-ca pública de uso do misoprostol no Brasil e de ampliar o acesso à informação sobre o medica-mento tanto entre profissionais de saúde quanto para a população em geral.

Até quando as mulheres que abortam vão ser condenadas a sofrerem em silêncio? Até quan-do a única opção das mulheres será a obtenção de remédios abortivos pela clandestinidade? Até quando as mulheres vão ser submetidas a realizarem abortos correndo risco de vida? Até quando o Estado brasileiro vai continuar neg-ligenciando o tema do aborto? Até quando o aborto será tratado pela ótica do moralismo conservador e não da saúde pública e dos dire-itos das mulheres?

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REFERÊNCIAS:

ARILHA M, LAPA TS, PISANESCHI TC. Aborto Medicamentoso no Brasil. São Paulo, Oficina Editorial, 2010.BARBOSA RM, ARRILHA M. The Brazilian experience with Cytotec. Stud Fam Plann, vol. 24, n. 4, pp 236-240, 1993.BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sani-tária (Anvisa). Portaria 344, de 12 de maio de 1998 [página na Internet]. Brasília: Anvisa; 1998 [acessado 2011 jan 20]. Disponível em: http://anvisa.gov.br/legis/ portarias/344_98.html.

O aborto e uma estudante de Medicina feminista Boa parte da minha vida adulta foi vivida com um medo, uma fobia, uma paranoia destrutiva ao ponto de eu preferir morrer à viver aquela situação naquele momento: ficar grávida. Digo isso sem exagero, ainda mais tendo acompanhado de tão perto a trajetória de minha irmã, sendo mãe adolescente, que enfrentou tantos medos, problemas e preconceito, pelo motivo de nossa sociedade ser tão despreparada para aceitar as necessidades das mulheres. Nossa sociedade não aceita que mulheres sejam mães e estudantes, mães e profissionais – por não dar condição de que isso aconteça a todas, pois muitas vezes os modos de fazê-lo não ex-istem ou são desrespeitados. Principalmente se for uma trabalhadora pobre. A mulher grande parte das vezes não consegue fazer os dois. Parece que as pessoas vivem num mundo encantado, com o discurso de que se o casal quiser vai conseguir sempre planejar antes de ter um filho; se a mulher não quiser, não vai ficar grávida pois existem métodos anticoncepcionais, e que os mét-odos são 100% seguros. Esse universo paralelo não existe, estamos falando de seres humanos – falhos, reais, incertos, imprevisíveis – dos mais instruídos aos mais marginalizados.Nossa sociedade não aceita que mulheres abortem, independente da cor, da classe social, sendo que só um grupo (que não é pequeno) morre e/ou é preso, devido à falta de vergonha na cara do Estado brasileiro que finge que o problema de saúde não existe, e pior: trata como criminosa uma situação que já é extremamente difícil e dolorosa pra mulher. E isso cai nas costas de quem? Se o Estado não está fazendo seu papel de cuidar integralmente da saúde das pessoas, e ainda criminaliza quem não ignora essas pessoas em situação vulnerável ao léu, que precisam ser cuidadas e acolhidas?Entre outros, cai também nas costas da estudante de medicina assumidamente feminista – que provavelmente não vai julgá-la moralmente por isso, não vai denunciá-la, não vai fazê-la passar por uma agressão maior ainda. Que aprende nada sobre aborto na faculdade. Que não tem as mínimas condições de instruir adequadamente alguém que precisa. Que não possui local para atender, com recursos materiais e humanos para dar a essa pessoa um pouco de dignidade nesse momento difícil.Eu odeio nosso Estado construído majoritariamente por homens brancos ricos sem senso da realidade, sem empatia, sem respeito à saúde das mulheres.

BRASIL. Ministério da Saúde. Protocolo miso-prostol. Brasília, DF. 2012.DINIZ D, MADEIRO A. Cytotec e Aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres. Ciência & Saúde Coletiva, vol. 17, n. 7, pp 1795-1804, 2012.FLASOG. Uso de misoprostol en obstetricia y ginecologia. 2013.MACHADO GS. Projetos de lei sobre aborto em tramitação na câmara dos deputados. Câmara dos Deputados. Biblioteca Digital. Brasília, DF. 2007.

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Falando de Aborto com a Sociedade sob a Perspectiva da Educação Popular

Yvana Hafizza Snege de CarvalhoEstudante da Faculdade de Medicina de Marília

Coordenação de Extensão Universitária 2015

Coordenação de Cultura 2016Enquanto estudantes que queremos, através da Extensão Universitária, atuar nas comuni-dades sob a perspectiva da educação popular, devemos sempre olhar para além do fenôme-no apresentado, entendendo que ações pontu-ais e assistenciais são sim muito importantes e necessárias para uma comunidade, mas se não rompermos com aquilo que está por trás daquelas condições opressoras, apenas estare-mos acobertando um problema que logo irá se apresentar novamente (às vezes se apresentando de outra forma). Ter clareza do processo históri-co, das determinações que geram as condições que oprimem os trabalhadores, da forma como nossa sociedade capitalista funciona e superá-la é que trará empoderamento e força para que es-ses trabalhadores lutem não só por seus direitos mas por sua plena emancipação ao romper com esse sistema opressor.

Quando falamos em Educação Popular, sob a perspectiva marxista, estamos falando justa-mente disso: evidenciar as contradições da nossa sociedade, rompendo com o senso co-mum, a fim de contribuir para um avanço de consciência na classe trabalhadora. Para isto, é necessário teoria, para que aquela comunidade entenda porque esse modelo de sociedade pro-duz essas condições e esteja ciente do seu su-jeito histórico, mobilizada e instrumentalizada para lutar contra esse sistema.

Assim, trabalhar a temática do aborto junto à sociedade não é simples. Embora a legalização

ou criminalização do aborto possa parecer meramente uma questão jurídica, se olharmos para além dessa questão pontual, iremos es-barrar em diversas outras contradições que en-volvem a forma como nossa sociedade se estru-tura e os mecanismos ideológicos pelos quais sustentam essa sociedade, como igreja, mídia, educação etc.

A criminalização do aborto é apenas uma das formas de controle sobre o corpo e a vida das mulheres na nossa sociedade que nos acorren-ta a uma vivência opressora. As violências con-tra a mulher na nossa sociedade são gritantes, são estatísticas, embora o senso comum ainda afirme que hoje a mulher possui os mesmos di-reito que os homens. Somos não só obrigadas a conviver com esse sistema patriarcal mas tam-bém a acreditar como sendo algo “natural” da evolução humana.

A forma como agimos, pensamos e nos com-portamos está intimamente ligada ao modelo de sociedade que vivemos. Em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, o autor, Friedrich Engels, não apenas mostra como o sistema patriarcal não é unanime, atem-poral e universal, como constata que o patriar-cado tem origem concomitante e consequente à origem da propriedade privada. Antes do patriarcado, as pessoas viviam em relação não monogâmicas, ocorriam casamentos por gru-pos, fazendo com que os filhos fossem comuns ao grupo, não sendo possível estabelecer a pa-

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ternidade dos filhos. Nesse período a mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem igualmente a todas as mulheres. Não existia a prática da mulher como escrava do homem. A partir do momento em que surge a propriedade privada e, assim, a necessidade de herdeiros para suas posses, era necessário que o homem tivesse certeza de quem era seus her-deiros. Com a necessidade de assegurar a fidel-idade da mulher a fim de assegurar a paterni-dade, a mulher passa a ser entregue ao poder do homem, transformada em servidora, confinada no ambiente doméstico e excluída do convívio social. Parece atual, não é mesmo?

“A mulher foi degradada, convertida em ser-vidora, em escrava do prazer do homem e em

mero instrumento de reprodução. Esse rebaixa-mento da condição da mulher, tal como aparece abertamente sobretudo entre os gregos dos tem-pos heroicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado”. [A Ori-gem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Friedrich Engels]

Para assegurar essa estrutura social é necessário instrumentos ideológicos que naturalizem essas relações. A igreja, a mídia, a escola, a política... a LEGISLAÇÃO! As leis, que nos parecem tão neutras e universais, são instrumentos ideológi-cos. São essas leis que criminalizam movimen-tos sociais, que matam negros e pobres e que

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dão a liberdade de escolha às mulheres pobres: maternidade indesejada (que pode trazer re-percussões drásticas na vida dessa mulher) ou a morte através do aborto clandestino.

Outro recorte importante para evidenciar sobre a questão do aborto quando temos o objetivo de ir além do senso comum é mostrar para quem serve essa legislação. Hoje, realizar o aborto clandestino de forma segura é muito simples, basta pagar por isso. Na nossa sociedade do cap-ital, são as mulheres pobres que querem abortar que morrem, ora em casa, ora negligenciadas no sistema de saúde.

Mesmo quando o aborto deveria ser legal, como em casos de vítimas de estupro, a mulher po-bre não conseguirá facilmente e sem danos psi-cológicos realizar tal aborto. Muitas instituições públicas se negam a realizar o aborto legal, as que realizam ainda acreditam ser preciso o BO ou autorização judicial para executar o aborto, apesar de não haver mais essa obrigatoriedade desde 2005. Quando a mulher vítima de estu-pro quer realizar o aborto legal, ela é submetida a verdadeiros inquéritos, que “investiga a ver-dade do acontecimento da violência e produz os sentidos para a definição da subjetividade da mulher como vítima” (A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil http://www.scielo.br/pdf/bioet/v22n2/11.pdf ). Como nor-malmente não há o flagrante da cena de estupro é necessário acreditar no que a mulher vítima diz. Porém, durante todo o processo e princi-palmente nessas entrevistas hà um regime de suspeição sempre presente, onde a mulher sem-pre é suspeita de estar mentindo sobre a violên-cia a que foi submetida.

Além disso tudo, é interessante quando com-paramos a falta de responsabilização jurídica do homem na gestação e criação de um filho. Segundo dado do Conselho Nacional de Justiça

há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. O que podemos chamar de “aborto” masculino. Cla-ro que tecnicamente não é um aborto, mas en-quanto os homens facilmente se livram da re-sponsabilidade de criar um filho (eles nem se quer são obrigados a fazerem exame de DNA para comprovar a paternidade), a mulher é obrigada a manter a gestação e sofrer todas as repercurssões que ela pode trazer.

Como saída muitos falam que a mulher pode colocar a criança para adoção, como se fosse uma decisão tranquila e não mais um proble-ma (principalmente para a criança). Como está o sistema de adoção de crianças hoje? Quantas crianças esperam na fila para adoção? Vale res-saltar que cerca de 1/3 dos pretendentes para adoção só aceitam crianças brancas. É óbvio que não é solução para uma determinada prob-lemática apenas transferi-la de cenário.

Por fim, é importante salientar que a questão do aborto não será resolvida através da metafísica. Tentar argumentar com a população sobre per-guntas como “o que é uma pessoa?”, “quando a vida humama começa”, “quando o feto pode ser considerado uma pessoa”, ou com argumentos religiosos é criar novos problemas e nenhuma resolução. É bem comum as discussões girarem em torno desses aspectos, pois é interessante para aqueles que desejam criminalizar o abor-to não evidenciar os aspectos jurídicos, políti-cos, econômicos e sociais da questão, uma vez que debruçar sobres essas questões nos trazem a uma conclusão lógica e inevitável: a criminal-

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Um chefe do HC denunciou à polícia uma paciente que suposta-mente havia provocado aborto. (não sei a veracidade dos fatos)

ização do aborto é instrumento ideológico que cerceia as escolhas da mulher, é instrumento de extermínio das mulheres pobres, é instrumento que gera iniquidades e resulta em violência, é instrumento de opressão de gênero e, sobretu-do, de classe. Deve-se deixar claro que questões morais e religiosas competem à escolha e de-cisão individual. O Estado é laico e a legislação sobre o aborto é algo que afeta toda a sociedade e então não deve ser debatida majoritariamente em cima de discussões morais e religiosas.

Você é contra ou a favor do aborto? Isso é uma questão falsa que nos é colocada para con-struirmos um falso consenso sobre a resposta. Portanto, devemos fugir dessa questão. O que devemos construir com a sociedade, como es-tudantes que têm acesso à universidade, é o debate de quais são as determinações que nos trazem a essa questão? Por que abortamos?

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Por que estamos aqui decidindo se a mulher pode ou não escolher a maternidade? Como nossa sociedade patriarcal surgiu e a quem ela serve? O que a criminalização do aborto traz de repercussões sociais, econômicas e políti-cas? Como estamos vendo a questão da saúde da mulher? É possível plena emancipação das mulheres na nossa sociedade atual? Lutar pela legalização do aborto é uma vitória, mas é a solução para a opressão da mulher? Quais de-vem ser nossas bandeiras de luta?

Assim, trabalhar com educação popular revolu-cionária junto a uma comunidade é identificar as problemáticas que sofrem, trazer os elemen-tos teóricos e os instrumentos que possibilitarão a compreensão dos determinantes daquela opressão, para que a luta não fique na superfície do problema, nem seja restritra a um determi-nado grupo, mas que busque a superação de um sistema desigual e opressor.