caderno de debates 2

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    Rio de Janeiro, setembro de 2013

    Caderno de debates 2

    Cidades e conflito:

    o urbano na produodo Brasil contemporneo

    Organizao:

    Joana Barros, Evanildo Barbosa da Silva

    e Lvia Duarte

    Realizao Apoio

    Francisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek

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    Caderno de Debates 2. Cidades e conflito: o urbano na produo doBrasil contemporneo

    FASE - Solidariedade e EduaoPrograma Nacional Direito CidadeRio de Janeiro/RJ - 20131 edio

    ISBN 978-85-86471-74-2

    Organizao: Joana Barros, Evanildo Barbosa da Silva e Lvia DuarteReviso: Lvia Duarte e Joana BarrosIlustrao de capa: Bel FalleirosProjeto grfico e diagramao: Flvia MattosImpresso: 3GrafTiragem: 1.000 exemplares

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    Cidades e conflito:

    o urbano na produodo Brasil contemporneo

    Apresentao

    Entrevista Francisco de Oliveira

    Lvia Duarte e Joana Barros

    Mestre Chico apontamentos e reflexes

    Cibele Saliba Rizek

    O Estado e o urbano no Brasil

    Francisco de Oliveira

    O Estado e a exceo ou o Estado de exceo?

    Francisco de Oliveira

    05.

    07.

    27.

    47.

    69.

    Sumrio

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    modelos para reproduo do capitalismo moda Brasil ou ainda os efeitosdessas transformaes sobre as formas de vida j desiguais, ou efeitos sobrea constituio de sujeitos sociais urbanos, velhos e novos sujeitos, uns maisoutros menos, uns marginais e crticos, outros intestinais e colaborativos como status quo, ambos contrarrestados com o que Chico de Oliveira interpretade sonho burgus, ou a propriedade como ncora de nossa cidadania.

    Portanto, fica ao debate a questo acima tanto quanto sua propagao reflexivana busca de novos horizontes utpicos acerca do urbano contemporneobrasileiro, de modo que agradecemos aos colaboradores e apoiadores dopresente Caderno de Debates, tratado aqui como uma espcie de contribuioao fogo de monturo, que comea por baixo, mal produz fumaa e logo j fogo!

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    H trinta anos, Chico de Oliveira publicava o texto O Estado e o Urbanono Brasil, e com ele se colocava na contramo do pensamento hegemnico

    sobre as cidades e sobre os processos de urbanizao do pas que, naquelaaltura e ainda hoje, em certa medida, defendia a tese das cidades brasileirascomo rastro da industrializao, seu espelho e como construes margemdo Estado. Vinte anos depois, em O Estado e a exceo ou o Estado de exceo?,Chico retoma, de forma to desafiadora quanto em 1982, o debate sobre oEstado e sua participao na construo das cidades brasileiras e nos provocamais uma vez sobre esta relao, mas agora advertindo sobre o carter deexceo que a regulao urbana e a prpria ao estatal nas polticas pblicasurbanas carregam.

    Vivendo as intensas transformaes urbanas nos territrios onde atuamos einstigados por estas provocaes e inquietaes levantadas por estes textos,propusemos um dilogo. E, ento, Chico calorosamente nos recebeu em suacasa, em So Paulo, em novembro de 2012, para uma tarde de conversa. Nestaentrevista retomamos, entre outros temas tratados a quente e de forma diretacomo de seu feitio, a fina anlise do urbano e as interconexes com a aodo Estado e com o modelo de desenvolvimento em curso no Brasil. Maisuma vez, nos encontramos surpreendidos e desafiados por este socilogo a

    pensar o urbano e nossas cidades com as lentes da crtica que no se acomodas explicaes fceis ou confortveis, mesmo que isto signifique remar contraa mar. De novo.

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    Lvia Duarte Gostaria que voc introduzisse o debate retomando duas ideias quedesenvolveu: a de que o Estado intervm no urbano, apresentando em 1982 e ode exceo. De onde vem esse conceito e o que ajuda a compreender urbano noBrasil?

    A primeira preocupao sobre o Estado e o urbano vem do meu contatocom o pessoal de urbanismo. Houve um perodo que eu dei muita aula emfaculdade de arquitetura, eu estava nesse grupo por causa da minha relao

    com o Srgio Ferro e o Rodrigo Lefvre. Na verdade, quem tinha que dar ocurso de era o Gabriel Bolaffi, mas ele me indicou e eu fui participar destegrupo. Da, eu tinha uma convivncia com esse grupo de arquitetos. E dessa

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    convivncia com o grupo de arquitetos me vem uma constatao de que aquesto do Estado passava ao largo das discusses sobre cidades. Conceituava-se a cidade a partir de termos puramente urbansticos. A veio essa reao:Vocs esto equivocados! Gente, a cidade no Brasil uma criao do Estado!.E ento entra um pouco de histria e mais de olhar a contemporaneidade.A tradio brasileira e suas Cincias Sociais tinham muita culpa no cartrio,porque afirmvamos um pas agrcola, majoritariamente um pas rural, edizamos que as cidades so uma espcie de rabo do desenvolvimento rural.

    Ento, eu propus a tese inversa, disse isso um equvoco, as cidades quegovernam de fato. Embora o pas seja, realmente, uma economia agrcola.O fato de que uma economia agrcola voltada para exportao, sobretudo

    do ponto de vista econmico, deu s cidades uma relevncia que o modeloagrcola, em geral, no explicava sozinho. O Brasil era uma colnia deexportao. Isso deu s cidades uma importncia enorme desde o princpioda colnia. E por a eu fui alinhavando argumentos em torno da intervenodo Estado na cidade. Todo mundo s pensa a interveno do Estado naeconomia por fora da cidade. A minha inteno era mostrar que no. Umadas intervenes mais importantes , exatamente, a criao das cidades. E fuidando os exemplos, basicamente, a partir do Rio de Janeiro. O Rio umacriao estatal. O fato de ter sido capital durante quatro sculos - Salvador saiu

    logo do circuito - deu esse protagonismo ao Rio, as outras cidades brasileiraso imitavam. Isso e depois a industrializao... A casa Bed com Tom. A cidade mesmo.

    LD E este referencial analtico da interveno do Estado na criao das cidadesserve tambm para as cidades de interior? No estamos falando apenas dascidades ligadas ao litoral?

    Serve para o interior tambm.

    LD As cidades mais ligadas dinmica rural so da mesma maneira intervenodo Estado?

    Em grande medida so interveno do Estado. Se tomarmos o Estado deSo Paulo que, enfim, todo mundo pode pensar que So Paulo daria ummodelo liberal, mas no deu no tem nada de liberalismo. As cidades nointerior de So Paulo so todas invenes do Estado. Atravs de qu? De novo,atravs de ligao com a exportao, em primeiro lugar. Hoje as melhores

    cidades de So Paulo esto todas ligadas s ferrovias. Eram ferrovias privadas,sobretudo inglesas, mas logo foram estatizadas. E so elas que explicam odesenvolvimento urbano do interior de So Paulo. Vamos pegar essa histria,

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    , voc s pode fazer transgredindo a lei, porque no tem a propriedade. Daderiva quase tudo. Como voc vai fazer? Legalizar uma invaso.

    LD O senhor acha que a prpria produo das leis para burlar as leis, pra gerarexceo?

    . a vida que obriga. Voc no pode ter um pas desse tamanho comndice de crescimento que tem o Brasil foi a segunda economia que maiscresceu no mundo durante um sculo. a segunda taxa de crescimento maisalta e contnua no mundo capitalista. Como que possvel fazer isso? Stransgredindo. Quase todas as atividades, olhadas de um ponto de vista liberal,

    so transgresses. Olhadas de outro ponto de vista so a formao dessasociedade. Porque tudo assim.

    O outro exemplo vem de um lugar completamente diferente. Um emprstimono Banco do Brasil pra comprar um apartamento. Imagine o que que pedirama minha esposa? Force a tua imaginao... No pediram nada que tenha a vercom a propriedade. Exatamente porque no tem propriedade. Surpreendam-se: pediram a ela pra provar que ela estava curada de uma doena. Quer dizer, uma sucessiva inveno da lei pela transgresso.

    LD Em 1982, voc acaba o texto O Estado e o urbano no Brasil escrevendosobre uma aposta na sociedade civil. Isto foi pouco antes do comeo dosprimeiros movimentos de moradia, movimentos de saneamento, essa coisa toda,que vo dar origem, 15 anos depois, ao Estatuto da Cidade, ao Frum Nacionalde Reforma Urbana... Movimentos que do origem a organizaes e a agendapoltica da Reforma Urbana, que, em certa medida, pede regulao pblica einterveno estatal sobre o espao urbano. Diante da sua constatao de que ourbano um produto da ao estatal e diante da constatao de que as cidades

    so produzidas sob uma lgica de exceo, o que significa essa montagem, essearcabouo institucional e poltico que se construiu nesses 20 anos? O que eleprometia e o que ele virou?

    Ele significa, pra nossa prpria decepo eu digo nossa no sentido de quea gente entrou nessa luta, todo mundo entrou, somos todos da esquerda significa uma coisa paradoxal. Significa que ns estamos pedindo propriedade.Quer dizer, a ausncia da propriedade mercantil nos levou, a todo progressismo,a pedir regulao. Pedir regulao o outro nome de pedir propriedade. Ns

    estamos atrs desse sonho burgus de que a propriedade seja uma espciede ncora da cidadania, que o que acontece no mundo liberal. No mundoliberal, a ncora da cidadania a propriedade. A gente tem dificuldade de

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    pensar assim porque isso antiprogressista. Mas uma interpretao marxistarigorosa sabe que a ncora da cidadania a propriedade. Quem o maiorexpoente disso? [John] Locke. um grande terico liberal, os outros tericosliberais pem a coisa de cabea pra baixo, pem a liberdade em primeirolugar e tal... Locke, no. Ele pe a propriedade em primeiro lugar.

    JB Textualmente.

    Textualmente. a propriedade que faz a cidadania. Evidentemente, ao longodo desenvolvimento em que os cidados se apropriam h uma inverso. Tantoque na legislao liberal no se exige a demonstrao da propriedade. Agorano, mas se exigia. Se exigia, porque a propriedade a ncora da cidadania.

    Em outras palavras, em termos marxistas, a liberdade nasceu da propriedade.E no ao contrrio. Ento, aqui no Brasil, como no tinha propriedade, umasociedade de escravos no tem propriedade, no precisa demonstrar quedetm propriedade. Na Colnia e at a Abolio no se tinha que mostrar apropriedade da terra. Voc tinha que demonstrar a propriedade dos escravos.Essa era a ncora da onde surgiu a cidadania brasileira. Isso tem consequnciaspara o urbano, desse ponto de vista que vocs falam. O progressismo teveque lutar pra simular uma propriedade que no existia, para poder regularas outras atividades. Se tivesse propriedade, estava tudo resolvido. Mas no

    havia. A chega nesse extremo. Voc quer comprar um apartamento, vai aobanco pede o dinheiro emprestado e o banco exige que voc prove que no doente.

    JB Na verdade temos vinte anos de montagem de uma pauta que quasecomo se precisasse fazer primeiro a inveno da propriedade pra poder depoisquestionar. E a sensao que eu tenho que a gente parou na primeira volta.Todo o debate dos programas habitacionais, em nenhum momento, discute apropriedade privada. No h nenhum que avance. Isso foi um debate no comeo

    da gesto Erundina aqui em So Paulo, na qual discutiu-se a tal da propriedadecoletiva. E ela mingua, no uma questo pra populao, pros trabalhadores...

    A propriedade coletiva?

    JB No porque no est no horizonte.

    No est no horizonte. Quer dizer, a vale o velho ditado: o povo no besta.No tem nenhuma grande iluminao, mas voc se topa, esbarra todo tempo

    com obstculo. V querer fazer um negcio e dizer que aquilo que seu no seu, de mais vinte...

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    Ento, a enorme dificuldade com a qual o progressismo se enfrentou foiessa. uma coisa paradoxal que a gente tivesse lutado durante tanto tempopra constituir a propriedade, a qual ns somos contra, para poder fixarcertos direitos de cidados. No para outra coisa. Para voc constituir essemovimento todo era preciso demonstrar que por trs est a propriedade, que uma forma arrevesada do mesmo princpio liberal. No estvamos inventandouma coisa. A gente estava seguindo um roteiro que um roteiro liberal, coma falta da propriedade. S isso. Isso trs toda a dificuldade. Da a enormepresena estatal. Esse urbano como interveno estatal vem desta dificuldade,basicamente. Ento, a cada momento voc tem que regular relaes que sosimples, so relaes de compra e venda.

    LD Inclusive quando voc cria essa quantidade enorme de conselhos, mecanismosde participao, tentativas de influir no Estado...

    , uma tentativa de criar uma espcie de estrutura ausente. No tem essaestrutura na sociedade. Voc tem que cri-la pra poder fazer movimento.Ento pra fazer movimento pela gua, movimento pelo no sei o qu, voctem que inventar um conjunto de regulaes que j so simuladas. umasimulao de uma situao que no existe. A partir da, a fora do movimentocidado cria. Mas tem que simular toda uma estrutura que est ausente. Porque

    quem estava certo era o Locke, no era o [Jean Jacques] Rousseau, a cidadaniavem da propriedade. O modo escravista sabia disso. Na transio para o modocapitalista, j no se sabia mais disso. Ento, a informalidade isso. Comoque voc vai demonstrar propriedade numa estrutura de sociedade em que50% esto no trabalho informal? No tem como demonstrar. Isso no umacoisa pra gente chorar as pitangas. Isso uma vitria: em cima da ausncia,construir direitos cidados.

    LD Nos ltimos 20 anos foram construdos direitos, mas isso no impede o

    surgimento de cada vez mais conflitos na cidade. Ao mesmo tempo, acho que novemos resistncia ao modelo imposto por polticas tipo PAC, Minha Casa MinhaVida...

    O fato bsico a ausncia de propriedade. Voc tem que simular o tempotodo um direito que, na verdade, realmente no existe. Isso deve ser saudadocomo uma construo propriamente poltica. Mas ele no t ancorado emnada. Ento voc tem que inventar todas as formas de faz de conta paraafirmar que tem uma propriedade ali. Mas no tem. Hoje a coisa muito mais

    simulada. Mas na formulao dos negcios no Brasil existe um termo que diztudo. Esse termo bens reais. Hoje difcil que se v a qualquer banco, e ogerente te perguntar dos seus bens reais. Mas antes era comum. Bens reais

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    era a palavra e o conceito chave pra voc fazer um negcio. Quais so seusbens reais? Nem a propriedade de ttulos era considerada bem real. S terra.Tem terra? Tem casa? Ou tem uma fbrica? Isso um bem real. Hoje vocpode ir a um banco e investigam sua renda, no sei o que e tal. Mas nem bensfinanceiros eram considerados como garantia do que voc quisesse fazer. S obem real. Ora, numa sociedade que foi fundada exatamente sobre a negaoda propriedade, construir isso um artifcio poltico da maior fora. Mas, porisso mesmo, todo tempo este artifcio testado, de vrias formas.

    LD No sei se essa chamada nova classe mdia tem bens reais a apresentar.Esses dias eu li que o crescimento da classe mdia nas favelas, por exemplo, noRio de Janeiro. enorme o nmero de moradores de classe mdia nas favelas,

    segundo as estatsticas. Gostaria que falasse dessa ideia de classe mdia, e dacomemorao do crescimento da classe mdia.

    Olha, primeiro, a classe mdia um conceito fraco. um conceito fracoporque as cincias sociais, tanto na sua verso liberal quanto na sua versomais dura, na sua verso mais marxista, no sabem dar nome a esse bolode gente que vive entre o proletariado e a burguesia. A chamaram isso demdia porque est no meio. No mdia do ponto de vista estatstico ouaritmtico, porque est no meio. Mdia a quer dizer meio. um conceito

    fraco que no consegue dar conta dessa multido de ocupaes e profisses,que foram surgindo entre os dois extremos. E a virou carne de vaca. Entoesse uso um uso muito livre, muito frouxo de um conceito que pede muitorigor. Uma das coisas mais difceis de voc fazer em sociologia definir umaclasse. uma dificuldade enorme para voc encontrar essa figura no mundoreal. preciso fantasi-la. Porque classe supe um lugar na produo, classesupe uma vivncia comum, classe supe um projeto comum. Quer dizer,so tantas as condies que pra isso tudo encarnar num conjunto de pessoasreais, extremamente difcil. Mas, a mdia, no. Porque est entre alguns

    extremos que voc tambm no sabe definir. Esse uso, portanto, de um lado bom porque ajuda o resto da sociedade a entender que ela mais complexado que se pensa. Mas um conceito frouxo. Agora a classe mdia est sendodefinida, sobretudo, a partir do fenmeno do consumo. O pessoal que lidacom o campo do consumidor sabe h muito tempo, voc estratifica segundo aposse de certos bens. Antigamente era mais fcil: tem geladeira, tem fogo... a tabela do IBGE. uma coisa contraditria porque, sociologicamente, querdizer muita coisa e conceitualmente no quer dizer nada. Mas expressa essasensao de que o meio est crescendo.

    LD E gera uma sensao no senso comum de que esto todos sendo includos,de que no h nenhum conflito porque a incluso est acontecendo tambm.

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    Gera tambm essa sensao de que est todo mundo melhorando, noprecisamos ter conflitos, portanto. Isso j uma deduo mais liberal. A rigor,essa nova classe mdia um furdncio de conflito que no tem tamanho.Mas essa sensao de que tem muito agora, anula a percepo dos conflitos.Na verdade, a emergncia da nova classe mdia podia ser traduzida em aemergncia da sociedade de conflito no Brasil. Porque conflito entre doisextremos (burgueses e trabalhadores) no existe. No se pegam a tapa osdois extremos da estrutura social. Pelo contrrio, a que no tem conflito,exatamente porque, voltando ao nosso tema, nos dois extremos da estruturasocial sabe-se que a propriedade que diz. Burgus sabe que a propriedadelhe d direito de mandar nos outros, de bater, de mandar matar e tal. E o

    extremo do proletariado sabe que no tem propriedade. A, nesta polaridade que no tem conflito. No tem um conflito aberto. Tem um conflito de classes,mas que se forma de outra maneira. Quando voc est com essa sensao deque o meio est crescendo, a que est o conflito. Mas todo mundo julganessa sensao de euforia que todo mundo pode ter o que antes era privilgiode uma minoria.

    ambguo, portanto, porque informa do crescimento da complexidade dasociedade, mas informa atravs de um conceito que falso. Porque isso no

    constitui propriamente uma classe.LD Apesar de ser um pas que tem 80 % da populao vivendo em cidades, outrodebate em voga, alm da questo da classe mdia, a ideia de reprimarizao daeconomia. Existe uma mudana na economia brasileira que faz existir mesmo umareprimarizao da economia?

    No, no existe. Isso a gente que diz, pra poder ter alguma arma de luta.No existe.

    LD E por que existe tanta desconexo entre o debate do agrrio e do urbanonos movimentos tambm? como se no existisse relao entre o agrrio e ourbano.

    No existe porque no existe mais o agrrio. A gente fala porque a nossaprofisso fala. Mas no existe.

    JB E o que significa o Brasil ser recordista de exportao de soja?

    Isso a industrializao do campo. Isso o velho Marx j sabia. A indstriachega ao campo e industrializa as antigas atividades primrias. Voc tem

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    exportao de soja, isso no uma atividade primria. Os economistas somelhores do que os socilogos pra isso. Eles falam da produo de bens debaixo valor agregado. Mas isso no significa, de alguma maneira, que socoisas primrias. Quer dizer, industrializar nessa escala a agricultura brasileira, indstria que faz isso.

    Comea desde o princpio. Voc no tem mais o agricultor que guarda partede sua produo como semente. De jeito nenhum. Voc tem empresas agoraque vendem semente, empresa cuja especialidade produzir sementes. E dapra frente toda uma sequncia de atividades propriamente industriais. Masos economistas sabem: de baixo valor agregado. Quer dizer, so atividadesindustriais de baixa remunerao, so atividades industriais em que a diviso

    social do trabalho continua sendo mais primria do que a da indstria, quevoc usa por comparao. No se parece de jeito nenhum com a antigaagricultura brasileira. isso que explica o crescimento da economia.

    JB Atividade de induo da economia que mais uma vez feita pelo Estado...

    Mais uma vez feita pelo Estado. No s porque onde se tem dinheiro prainvestir, no s por isso. Mas por uma coisa que nem os economistas pensam: uma atividade a fundo perdido. Se der certo, timo. Se no der, o gasto foi

    feito. E o efeito do gasto j desenvolvimentista.JB E se eu junto esta anlise com o crescimento do Brasil na Amrica Latinapara produo de minrio, de energia e de petrleo? Estamos tambm falandode industrializao e no de produo primria?

    No, no produo primria. Se a gente quiser ser ufanista, tirar petrleodo mar uma das coisas mais complicadas. preciso usar a palavra mgica:precisa de uma tecnologia extremamente complexa. Se o Brasil soubesse

    aproveitar de outro jeito, estava tirando vantagem dessa histria, porque squem detm isso o Brasil, a Inglaterra e a Noruega. No brincadeira voctirar petrleo de sete mil metros abaixo do nvel do mar. uma atividade deuma complexidade incrvel. Deste ponto de vista da racionalidade tcnica,o pas tinha que estender isso como uma mancha de leo, quer dizer, emoutras palavras, tecnificar o resto das atividades. Se no feito, porque como que voc faz, j d pro gasto. Quer dizer, em outras palavras, o domnioeconmico da burguesia j d pro gasto com o que eles fazem. E a Petrobrasno se estende como mancha de leo pro resto das atividades. Mas uma

    atividade extremamente complexa.

    JB E no caso do petrleo, mais uma atividade com interveno direta do Estado.

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    A a gente chega no debate sobre o desenvolvimento. A expanso dessasatividades tem gerado conflitos com povos, culturas. A expanso da soja, osagricultores no Mato Grosso tm problemas imensos com isso. Na Amaznia,desmatamento, minerao. Enfim, uma quantidade de conflitos em torno daexpanso dessas novas fronteiras produtivas, que de alguma maneira aparecemcomo um conflito poltico que no tm relao com as cidades. Mas o debatesobre desenvolvimento deveria ser um debate urbano, mas sumiu da pauta. Oque essa desconexo, Chico, desses conflitos que aparecem nesses novosterritrios?

    Significa que o mundo agrrio perdeu. Quer dizer, finalmente, esse umpas urbano, de economia urbana e de interesses urbanos. O velho mundo

    agrrio perdeu. Por isso no aparece mais esse conflito. S aparece a nas suasfronteiras. S aparece em cima dos povos indgenas, s aparece em cima doque resta do velho campesinato ou de pequenos produtores. Eles perderam.

    LD E por que o debate sobre o desenvolvimento de uma maneira mais ampladesaparece da pauta dos movimentos urbanos, dos movimentos de moradia?

    Porque o debate s aparece quando o conflito real. Por que dos anos 1930at os anos 1970 o debate sobre o desenvolvimento era crucial no Brasil?

    Neste perodo se deram as grandes contribuies de interpretao do Brasile do desenvolvimento, que o marxismo perdeu. Quem ganhou foi a versocepalina. Nem a verso liberal ganhou. Perderam as verses liberal e marxista.A verso do marxismo propunha, o que foi uma perda terica enorme, umdesenvolvimento por etapas, o famoso etapismo stalinista. Isso perdeu. Perdeuporque o desenvolvimento aqui no seguia etapismo nenhum. E perdeu averso liberal porque, ao contrrio de desamarrar, o desenvolvimento todoamarrado. Olhem para a gesto Fernando Henrique, que tentou governar deuma forma neoliberal: deu em desastre. Perderam-se os manches do controle

    estatal e no se ganhou nada em troca. Quem ganhou foi a veso cepalina, que uma interpretao que devia ter cabido ao marxismo, mas o enrijecimento eo sovietismo dessa interpretao no deixou ver. Ento, veio uma verso comuma pitada de marxismo, mas, sobretudo, uma pitada forte de keynesianismo,que achou a resposta. Mas exatamente a ela foi fecunda porque o conflito deinteresses era forte. Agora no mais. E o que a esquerda tem a dizer sobredesenvolvimento do capitalismo no Brasil? Nada.

    Nos ltimos 20 anos a gente foi do PT, e que o PT disse sobre economia

    brasileira? Nada. Rigorosamente nada, no tinha nada a dizer porque oconflito tinha sido superado. como diria o Oswald de Andrade: Ganhouo garom de costeleta. A vitria do PT essa que, a dizer num palavro,

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    perderam a centralidade. Por que a reforma agrria era central nos conflitosbrasileiros? Por que ela estava presente nos discursos? Voc encontra respostana mesa. Porque na minha mesa no tem mais nenhum produto da economiacamponesa. Ento, eu estou brigando contra quem? A reforma agrriaaparecia exatamente porque era o conflito da industrializao crescendosobre as franjas, que no era a franja, era o Brasil quase todo. Ela tinha umacentralidade enorme, real. Cada modificao numa parte da agriculturarefletia na sua mesa. Ento, aquela discusso te interessava. Hoje no interessa.Vou discutir a questo da carne no Brasil? O maior exportador de carne domundo! E as franjas no tm centralidade. A gente est a favor da luta deautonomia dos povos da floresta por outras razes, no porque eles sejamcentrais pra economia brasileira. No so. No so. Se voc olhar o mapa de

    Mato Grosso, um desastre monumental. todo devastado. Mas dali sai a soja.E a danou-se.

    JB A Fundao Rosa Luxemburgo tem proposto um debate e lanou um livrochamado Para alm do desenvolvimento, discutindo formas de desenvolvimentocontra este desenvolvimento. uma alternativa ao desenvolvimento. E emcerta medida essa crtica caminha na direo de uma crtica epistemolgica,ou uma crtica civilizatria ao capitalismo, dizendo que h uma falnciacivilizatria do capitalismo, que as lutas dos povos originrios e dos povos da

    floresta conformariam esse caldo poltico de uma nova sociedade que mostrao esgotamento da sociedade ocidental. Parte dos movimentos com os quaistemos lidado, inclusive com os movimentos urbanos, movimentos de juventude,movimentos que esto nas franjas da cidade, tem, digamos, uma inspirao nessedebate. O que isso, efetivamente? Como voc v uma proposta desse tipo,uma anlise desse tipo do desenvolvimento capitalista e das possibilidades de issovirar poltica efetivamente?

    Voc retoma a crtica radical ao capitalismo que est na tradio da esquerda,

    a sua raiz. E retomar a essa tradio significa propor de novo o socialismo.O que ns no estamos achando o cho para pisar, qual socialismo. Querdizer: o fracasso da Unio Sovitica, a esse respeito, foi uma coisa devastadora.Que discurso eu posso ter diante do stalinismo? Que discurso eu posso ter?Ento vocs, por favor, no compaream mais ali onde eu vou falar, porqueeu s vou falar besteira. Eu no tenho nada, efetivamente, a propor. Eu possoter uma crtica brilhante - que o que todo mundo diz -, mas que no passada. At que ponto de uma crtica radical do capitalismo, tomando a velha raizsocialista, pode emergir de novo na sociedade uma interrogao. A gente

    no v. Porque falta o sujeito da histria. Falta o sujeito. Sem isso, tudo que eudisser nas conferncias da USP retrica. uma elaborao sofisticada, masno diz nada. No diz nada. Eu posso chegar no auditrio da USP e dizer

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    traficante de droga nos Estados Unidos, aqui tem. s ver aquela cena daocupao do Alemo: todos correndo, de chinelo, como diria Jos Simo,esto atrs da nao brasileira. uma coisa tragicmica.

    JB Se voc pensar que os ditos facnoras eram adolescentes magricelos...

    Pois , uma guerra contra os pobres. Ns chegamos a um ponto em que...Nos Estados Unidos eles j passaram por isso, tanto que trfico e pobre notem nada a ver, so dois departamentos diferentes. Aqui s mais parecidocom a Itlia, donde veio o negcio de misturar pobreza com trfico, comilegalidade. Mas nos Estados Unidos no tem nada que ver, voc no podemeter a mo ali, meteu a mo ali, liquidado. E o Mxico, diz Manolo, vai

    se livrar desta relao. Enquanto isso, o governo mexicano desenvolve umaguerra que uma guerra contra os pobres: morre todo dia gente no Mxico,liquidada pelo exrcito mexicano. o exrcito mexicano, que no tem o quefazer. O Mxico trgico, de qualquer ponto de vista. Nem o exrcito temnada que fazer, no pode pretender uma guerra contra os Estados Unidos,ento faz o qu? Faz lutar contra os pobres do seu pas, eliminar o trfico. Elecorre o risco de se eliminar.

    JB Tudo isso faz pensar sobre o que a relao do Estado com o urbano hoje.

    Porque aparentemente some uma centralidade do territrio, como se no fossepreciso o controle territorial nem induzir polticas de crescimento econmico. Oque esse lugar ento do urbano hoje? da desnecessidade?

    No, da exceo.

    JB Mas ainda o urbano fundamental para uma determinada forma de reproduziro capital?

    , ainda fundamental. Mas exceo. Evidentemente porque toma formasmais sofisticadas, sobretudo quando toma forma financeira, a a ligao maissutil. Voc no precisa de controle territorial, no na forma antiga.

    Quer dizer, de novo uma tentativa de mercantilizao. Se a gente pegal os estudos da Mariana Fix sobre o porqu da crise imobiliria de 2001nos Estados Unidos, a crise se explica porque mercantilizou de tal maneiraa casa, os imveis, que voc estoura o sistema. No Brasil, voc tem umaconteno disso, justamente pelo que voc estava falando antes, porque no

    tem propriedade. Nunca teve. Nos Estados Unidos viveu-se a crise da hipotecasubprime. Foi a China colocando dinheiro barato nos Estados Unidos, temum excedente formidvel, empurrando dinheiro em cima do FED. Voc no

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    toma dinheiro emprestado pra ficar com ele debaixo do colcho. Quem faziaisso era minha bisav... Ento, eles tiveram que emprestar e comearam a cairas taxas de juros a zero. Entretanto, a renda dos norte-americanos no crescia.A, produziu o impasse. Os americanos deixaram de poder pagar sua hipoteca,o que uma coisa catastrfica. Quebra tudo. Quebra tudo e quebrar tudo nosEstados Unidos por esse lado uma coisa que destri a imagem americanaque a gente acostumou a ver no cinema. Est destruda. O americano, suacasa, suas cercas brancas, seu automvel: o corao da Amrica. Aqui nod pra fazer isso porque no tem propriedade, nestes moldes. Nos EstadosUnidos tudo na base de hipoteca. Se houver problema, voc pode vender asua hipoteca a outro. Aqui, vender pra quem?

    John Locke (1632 - 1704) foi um filsofo Ingls, cujas ideiasainda influenciam o debate nas questes epistmicas e na teoriapoltica. As obras mais conhecidas desse filsofo que participouativamente das transformaes polticas na Inglaterra so o EnsaioAcerca do entendimento Humano e Dois Tratados sobre o Governo. Noprimeiro,encontra-se o fundamento do empirismo em oposio

    ao inatismo defendido pelos racionalistas da sua poca. Nosegundo, as ideias polticas que contriburam para a derrocada doEstado absolutista, para assegurar a liberdade religiosa e justificara importncia da participao da sociedade civil, atravs dasinstituies representativas, nas decises do Estado que garantissemo bem comum. Seu pensamento inspirou as revolues burguesasna Inglaterra, nos Estados Unidos e na Frana. A tese central, queestrutura o pensamento de Locke, com consequncias at hoje,afirma que todo ser humano livre, ao nascer, dotado de direitos

    naturais, a saber, o direito vida, liberdade e propriedade. Essasso ideias que constituem a base dos direitos civis e do liberalismocontemporneo radicalizado, no incio da dcada de 1980, comos governos neoliberais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.

    No entanto, devemos ser cuidadosos ao analisar a compreensoe importncia que Locke d ao direito natural de propriedade. J.Locke era um idelogo de uma burguesia emergente, contendedorada aristocracia rural e, mesmo defendendo a liberdade religiosa,

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    era um cristo. Como muito bem afirmou o socilogo Franciscode Oliveira, na entrevista ao lado, a ideia de propriedade, essencialno pensamento de Locke, foi reconfigurada. Pois, ao contrriodo que ocorre nos dias atuais, em nossas cidades e no campo,em que o acesso propriedade bloqueado para o conjunto dapopulao, para Locke a propriedade da terra era essencial umbem comum com valor equivalente aos demais direitos naturais.Em seu pensamento, j havia em germe a importncia do trabalho,como algo que ao ser desenvolvido dava valor aos bens comuns

    dispostos em estado natural, como, por exemplo, a terra. Portanto,para o filsofo Ingls, trabalho e propriedade esto imbricados. Otrabalho humano um dom natural, que, ao ser empreendido nocultivo de bens para a existncia, valoriza a propriedade.

    Assim, a terra um bem to importante quanto o direito vidae liberdade. Isso significa que para Locke uma contradio aconstituio de uma sociedade civil sem que as pessoas possuamuma propriedade de terra. Os idelogos liberais da atualidade, aocitarem o pai do liberalismo, ignoram essas ideias. Finalizamos

    com um fragmento do prprio Locke:Deus, que deu o mundo aos homens emcomum, tambm lhes deu a razo para que outilizassem para maior proveito da vida e daprpria convenincia. Concedeu-se a terra e tudoquanto a ela contm ao homem para sustento econforto e existncia. (...) Embora a terra e todasas criaturas inferiores sejam comuns a todos os

    homens, cada homem tem uma propriedade emsua prpria pessoa; a esta ningum tem qualquerdireito seno ele mesmo.1

    1 Fragmento contido nos 26-27, do captulo V, da segunda parte da obra Dois Tratadossobe Governo.

    Aercio de Oliveira educador e coordenador da FASE-Rio e mestrando em filosofiana UERJ.

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    Mestre Chico apontamentos e reflexes

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    Cibele Saliba Rizek

    FaveladoMoinho-SoPaulo/SP

    MarceloCamargo/ABr

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    Seguindo os passos de Chico, nA Crtica: a especificidade do capitalismono Brasil Cibele Saliba Rizek1

    Alguns temas presentes na obra j clssica de Francisco de Oliveiraatravessam a histria e a reflexo crtica brasileiras. Um desses temas aespecificidade da industrializao no Brasil que conduziu um conjunto deargumentos sobre o processo de modernizao da economia e das classes,sobre o que o moderno e o que arcaico, sobre as relaes entre o peso

    do passado e cada um dos desafios do presente e, por consequncia, sobre asformas e as particularidades, possibilidades e impossibilidades da dominaoburguesa no Brasil. Dessa perspectiva, pensar a industrializao era tambm no mbito dos anos setenta no apenas pensar o desenvolvimento e osubdesenvolvimento, na sua face brasileira, superando seus dualismos, mas irmais fundo, vinculando formas de dominao e suas condies estruturais.

    dessa perspectiva que Chico de Oliveira nos alertava, em 72, que aprimeira finalidade do sistema capitalista sua prpria reproduo, ou seja,dominao e explorao so dimenses endgenas e no exgenas de tal

    modo que, no rastro da melhor herana marxista, ele nos presenteava comuma recolocao de um binmio clssico nos pensadores que inventaramo Brasil o binmio tradicional/moderno. possvel ento relembrar nombito dA Crtica da Razo Dualista o dilogo com a Cepal. Franciscode Oliveira reconhecia nesse dilogo a nica interlocuo possvel sobre aeconomia e a sociedade brasileiras e latino americana. Uma das pistas quenos deu parece se repor, ainda que de modo rebaixado, na nova onda dedesenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo trata-se do conceito de

    1 Cibele Saliba Rizek sociloga, professora associada do Instituto de Arquitetura e Urbanismo daUSP/So Carlos, pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da FFLCH/USP epesquisadora do CNPq.

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    subdesenvolvimento e de sua singularidade, constituda polarmente em tornoda oposio formal entre um setor atrasado e um setor moderno. A ideia ea tese da singularidade, avisava Chico, j no se sustentava, j que o modernocresce e se alimenta da existncia do atrasado. Em suas palavras, reconheciaa simbiose e organicidade, em uma unidade de contrrios, em que o chamadomoderno crescia e se alimentava cresce e se alimenta da existncia doatrasado ou arcaico. Assim, o subdesenvolvimento parecia ser a forma prpriade ser das economias pr-industriais, devidamente atravessadas por umcapitalismo em trnsito para suas formas mais avanadas e consolidadas.Entretanto, o que se reconhecia como subdesenvolvimento era na verdadeuma produo da expanso do capitalismo, ou seja, uma formao capitalistae no simplesmente um momento histrico de seu processo de constituio.

    Era ento preciso enfatizar as estruturas de dominao que se articulavam demodo endgeno aos processos de acumulao prprios de pases como o Brasile, assim, a sua estrutura de classes. Isto , era preciso criticar com radicalidadea teorizao que era incapaz de responder quem tem a predominncia sobreas determinaes do todo: as leis internas de articulao ou as leis de ligaocom o resto do sistema.

    No plano da prtica, a ruptura com a teoria do subdesenvolvimentotambm no poderia deixar de ser radical, j que a preeminncia das teoriasda dependncia contribuiria decisivamente para que no se constitusse uma

    teoria sobre o capitalismo no Brasil, cumprindo uma funo ideolgica queopera ainda entre ns: a de marginalizar e truncar as perguntas a respeito dodesenvolvimento econmico capitalista no Brasil. A que e a quem serve? Aque e a quem se destina?

    A teoria do subdesenvolvimento teria, ento, assentado as bases dodesenvolvimentismo, o que teria desviado a ateno terica e a aopoltica do problema da luta de classes, justamente no momento em queuma economia de base agrria se transformava em uma economia industriale urbana. Dessa perspectiva, a teoria do subdesenvolvimento teria sustentado,

    de acordo comA Crtica da Razo Dualista, o complexo ideolgico prpriodo chamado perodo populista. Chico ainda avisava em 1972: se ela hojeno cumpre esse papel porque a hegemonia de uma classe se afirmou de talmodo que a face j no precisa de mscara (Oliveira, 2003: 34)2.

    Nesse feixe de processos de transformao,ACrticachamava aateno para a centralidade da legislao trabalhista no processode acumulao a partir dos anos trinta. Essa centralidadeacaba apontando para a limitao estrutural do que se poderia

    2 A verso dA Crtica citada utilizada neste texto : OLIVEIRA, Francisco de.A Crtica RazoDualista/O Ornitorrinco. So Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

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    reconhecer como mercado livre de trabalho no Brasil.

    A legislao trabalhista interpretou o salrio mnimorigorosamente como salrio de subsistncia, isto , de reproduo.(...) Em termos de salrio mnimo, como a quantidade de forade trabalho que o trabalhador poderia vender. (...) No hnenhum outro parmetro para o clculo das necessidades dotrabalhador; no existe na legislao, nem nos cr itrios, nenhumaincorporao dos ganhos de produtividade do trabalho. Odecisivo que as leis trabalhistas fazem parte de um conjunto demedidas destinadas a instaurar um novo modo de acumulao.Para tanto, a populao em geral, e especialmente a populao

    que aflua s cidades, necessitava ser transformada em exrcitode reserva. (Oliveira, 2003: 37-38)

    E Chico advertia:

    A regulamentao das leis do trabalho operou a reconverso a umdenominador comum de todas as categorias, com o que, antes deprejudicar a acumulao, beneficiou-a. (Oliveira, 2003: 39)

    Esse impulso transmitido acumulao caracterizaria uma nova etapa decrescimento da economia brasileira.

    O segundo aspecto refere-se interveno do Estado na esferaeconmica, operando na regulamentao dos demais fatores, almdo trabalho: fixao de preos; distribuio dos ganhos e perdasentre os diversos estratos ou grupos das classes que detinham ocapital; gasto fiscal com fins direta ou indiretamente reprodutivos,na esfera da produo com fins de subsdio a outras atividades

    produtivas. (Oliveira, 2003: 40)

    Seu papel nesse mbito era o de criar as bases para a acumulao capitalistaindustrial e sua reproduo no nvel das prprias empresas.

    Os preos sociais podem ter financiamento pblico ou podemser simplesmente a imposio de uma distribuio de ganhosdiferente entre os grupos sociais, e a direo em que eles atuam no sentido de fazer a empresa capitalista industrial a unidade mais

    rentvel do conjunto da economia. Assim, assiste-se emergnciae ampliao das funes do Estado, num perodo que perduraat os anos Kubitschek. Regulando o preo do trabalho, j

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    com baixssimos coeficientes de capitalizao e at sem nenhumacapitalizao prvia; numa palavra, opera como uma sorte deacumulao primitiva. (Oliveira, 2003: 43)

    A introduo do conceito de acumulao primitiva, porm, exigiaredefinies: nA Crtica, Chico afiava seus instrumentos tericos e apontavaalgumas delas:

    (...) Em primeiro lugar, trata-se de um processo em que no seexpropria a propriedade isso tambm se deu em larga escala napassagem da agricultura chamada de subsistncia para a agriculturacomercial de exportao , mas se expropria o excedente que

    se forma pela posse transitria da terra. Em segundo lugar, aacumulao primitiva no se d apenas na gnese do capitalismo:em certas condies especficas, principalmente quando essecapitalismo cresce por elaborao de periferias, a acumulao primitiva estrutural e no apenas gentica. (...) [O trabalhador] prepara aterra para as culturas permanentes. H, portanto, uma transfernciade trabalho morto, de acumulao, para o valor das culturas ouatividades do proprietrio, ao passo que a subtrao de valor quese opera para o produtor direto reflete-se no preo dos produtos

    de sua lavoura, rebaixando-os. (Oliveira, 2003: 43, grifos nooriginal)

    Explicitavam-se, ento, os vnculos entre a produo de gneros alimentciosem reas de explorao recente e um rebaixamento do seu valor, contribuindopara a centralidade do processo de acumulao do capital nas indstrias e nascidades. O que estava em questo era, assim, o custo de reproduo da forade trabalho urbana, ao lado da formao de um proletariado rural que servirias culturas comerciais de mercado interno e externo.

    No conjunto, o modelo permitiu que o sistema deixasse intocadasas bases agrrias da produo, contornando os problemas dedistribuio da propriedade que pareciam crticos no fim dosanos 1950 ao mesmo tempo que o proletariado rural que seformou no ganhou estatuto de proletariado.(Oliveira, 2003:45)

    Teria havido ento uma conciliao entre o crescimento industrial e oagrcola, j que a criao de um mercado urbano e industrial, que teria imposto

    um tratamento de discriminao e de confisco sobre a agricultura, ofereciacomo contrapartida a manuteno de um padro primitivo nas atividadesagrcolas que tinha por base as altas taxas de explorao da fora de trabalho.

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    Como se v, o padro primitivo se manteve, ampliou-se e combinou-se comas novas relaes de produo o que teve nas cidades e empresas industriaisfortes repercusses, permitindo um crescimento industrial e dos serviosextraordinrio. Dois elementos dessa combinao foram especialmentesignificativos: a constituio de um enorme exrcito industrial de reservaque incidir sobre a redefinio das relaes capital-trabalho e ampliandoas possibilidades de acumulao industrial; a constituio de um padro defornecimento de excedentes alimentcios cujo preo era determinado pelocusto de reproduo da fora de trabalho rural.

    Em outras palavras, o preo de oferta da fora de trabalhourbana se compunha basicamente de dois elementos: custo da

    alimentao determinado este pelo custo de reproduo dafora de trabalho rural e custo dos bens e servios propriamenteurbanos; nestes, ponderava fortemente uma estranha forma deeconomia de subsistncia urbana, (...) forando para baixo opreo de oferta da fora de trabalho urbana e, consequentemente,os salrios reais. (Oliveira, 2003:46)

    Chico ento avisava que a industrializao sempre se d visando, emprimeiro lugar, atender s necessidades da acumulao e no s do consumo.

    Concretamente, se existe uma importante massa urbana, forade trabalho industrial e dos servios, e se importante manterbaixo o custo de reproduo dessa fora de trabalho a fim deno ameaar a inverso, torna-se inevitvel e necessrio produzirbens internos que fazem parte do custo de reproduo da fora detrabalho. (...) No Brasil tambm foi assim: comeou-se a produzirinternamente emprimeiro lugar os bens de consumo no-durveisdestinados, primordialmente, ao consumo das chamadas classes

    populares (possibilidade respaldada, alm de tudo, pelo elencode recursos naturais do pais) e no o inverso, como comumentese pensa. O fato de que o processo tenha desembocado nummodelo concentracionista, que numa segunda etapa de expansovai deslocar o eixo produtivo para a fabricao de bens deconsumo durveis, no se deve a nenhum fetiche ou natureza dosbens, a nenhum efeito demonstrao, mas redefinio dasrelaes trabalho-capital, enorme ampliao do exrcito industrial de

    reserva, ao aumento da taxa de explorao, s velocidades diferenciais

    de crescimento de salrios e produtividade que reforaram a acumulao.(Oliveira, 2003: 50, grifos no original)

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    Assim, foram as necessidades da acumulao e no as do consumo queorientaram o processo de industrializao, afirmava Chico, sendo que asubstituio de importaes teria sido condio necessria porm nosuficiente.

    A equao urbano-industrial e a construo da sua centralidade no processode acumulao teria ainda outro elemento: os chamados servios como umconjunto heterogneo de atividades, cuja nica homogeneidade consistiriana caracterstica de no produzirem bens materiais. A hiptese formuladasobre os servios tinha por base outro conjunto de elementos e apontamentoscrticos e dizia respeito s caractersticas especficas da economia brasileira.

    Entre 1939 e 1969, a participao do Tercirio no produto interno

    lquido manteve-se entre 55% e 53%, enquanto a porcentagemda populao economicamente ativa, isto , da fora de trabalho,saltava de 24% para 38%; o Tercirio configura-se, assim, comoo setor que mais absorveu os incrementos da fora de trabalho.(Oliveira, 2003:54)

    Se essa absoro podia ser creditada incapacidade do setor primrioem reter populao e por oposio impossibilidade de absoro pelo setorindustrial, Chico oferece como explicao a ideia de que

    o crescimento doTercirio, na forma em que se d, absorvendo crescentemente

    a fora de trabalho, tanto em termos absolutos como relativos, faz parte do

    modo de acumulao urbano adequado expanso do sistema capitalista

    no Brasil; no se est em presena de nenhuma inchao, nem de

    nenhum segmento marginal da economia. (Oliveira, 2003:54-55,grifos no original)

    O crescimento industrial brasileiro estaria assentado sobre uma

    acumulao pobre, sobre uma acumulao primitiva, o que queria dizerque o crescimento anterior expanso industrial, depois da virada de 30, nose fazia como acumulao adequada empresa industrial, deixando assimde oferecer a base necessria de infraestrutura que sustentasse a expansoda prpria indstria. Com exceo de alguns ncleos mais importantes, ascidades brasileiras, afirmava Chico, no passavam de acanhados burgos.

    Assim, o crescimento e a expanso da indstria, teria que se centrar naempresa. Nela se localizava toda a virtualidade da acumulao propriamentecapitalista. Mas essa acumulao no poderia se desenvolver sem o apoio de

    servios, diferenciados e desligados da unidade produtiva propriamente dita,isto , sem cidade, sem as chamadas economias externas. Essa carncia teriagerado em um primeiro momento da industrializao uma autarquizao das

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    reserva so adequados para o processo da acumulao global e da expansocapitalista, e, por seu lado, reforam a tendncia concentrao da renda. Fala-se de urbanizao sem industrializao e do seu xipfago, uma urbanizaocom marginalizao.

    Ora, o processo de crescimento das cidades brasileiras parafalar apenas do nosso universo no pode ser entendido senodentro de um marco terico onde as necessidades da acumulaoimpem um crescimento dos servios horizontalizado, cujaforma aparente o caos das cidades. (Oliveira, 2003: 59)

    J que a o crescimento urbano anrquico no seria catico em relao s

    necessidades da acumulao, Chico foi mostrando quemesmo uma certa frao da acumulao urbana, durante olongo perodo de liquidao da economia pr-anos 1930, revelaformas do que se poderia chamar, audazmente, de acumulaoprimitiva. (Oliveira, 2003:59)

    Da decorrem suas teses sobre o mutiro aquilo que hoje chamaramosde autoproviso de habitao por meio da casa prpria e da forma de ajuda

    mtua que gerou e ainda gera tanta tenso e discusso. Chico afirmava ento,que

    uma operao que , na aparncia, uma sobrevivncia de prticasde economia natural dentro das cidades, casa-se admiravelmentebem com um processo de expanso capitalista, que tem uma desuas bases e seu dinamismo na intensa explorao da fora detrabalho. (Oliveira, 2003: 59)

    Vai se desenhando tanto dentro da lgica intersetorial quanto dentro dasdimenses industriais e urbanas o que se reconhece como desenvolvimentodesigual e combinado. A tese original e insupervel a da introduo derelaes novas nos contextos arcaicos pela reproduo de relaes arcaicas nonovo. Em funo de uma compatibilizao com a acumulao do capital eseus circuitos, as novas relaes no arcaico liberariam fora de trabalho quesuportariam a acumulao industrial e urbana, assim como a reproduo derelaes arcaicas no novo preservariam o potencial de cumulao liberadocom a finalidade de expandir o prprio novo. Esses processos combinados

    teriam sido necessrios expanso industrial, ao longo de uma transioradical de uma acumulao quase inteiramente dependente do setor externopara uma acumulao cujo eixo se transformava no setor interno. Ao longo

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    dessa transio, concentraram-se renda, propriedade e poder.Desse modo, apontava mestre Chico, a histria e o processo da economia

    brasileira podem ser entendidos, de modo geral, como a histria da expansoda economia capitalista (...) mas esta expanso no repete nem reproduz ipsislitteriso modelo clssico do capitalismo nos pases mais desenvolvidos, nem aestrutura que o seu resultado (Oliveira, 2003:61). Assim,

    tomando como um dado a insero e a filiao da economiabrasileira ao sistema capitalista, sua transformao estrutural, nosmoldes do processo ps-anos 1930, passa a ser, predominantemente,uma possibilidade definida dentro dela mesma; isto , as relaesde produo vigentes continham em si a possibilidade de

    reestruturao global do sistema, aprofundando a estruturaocapitalista, ainda quando o esquema da diviso internacional do trabalhono prprio sistema capitalista mundial fosse adverso. Nisso reside umadiferenciao da tese bsica da dependncia, que somente v essapossibilidade quando h sincroniaentre os movimentos interno eexterno. (Oliveira, 2003:62, grifos no original)

    A revoluo burguesa no Brasil: um debate

    Esses elementos, que podem ser tomados como as grandes linhas de forada anlise dA Crtica Razo Dualista, desembocariam na questo e nadiscusso da Revoluo Burguesa no Brasil, tema que emergiria de tenses ede possibilidades e mudanas no modo de acumulao, na estrutura de podere no modo de dominao. Chico ento apontava a continuidade de umahegemonia parcial das classes proprietrias rurais, mantendo o controle dasrelaes externas da economia, o que permitia a manuteno do padro de

    reproduo do capital adequado a uma economia agrrio-exportadora. Mascom o colapso das relaes externas, sua hegemonia acabava por desembocarno vcuo, o que no implicava em um mecanismo automtico de produoindustrial por substituio de importaes.

    Estavam dadas as condies necessrias, mas no suficientes. Acondio suficiente ser encontrar um novo modo de acumulaoque substitua o acesso externo da economia primrio-exportadora. E, para tanto, preciso adequar antes as relaes

    de produo. O populismo a larga operao dessa adequao,que comea por estabelecer a forma da juno do arcaico e donovo, corporativista como se tem assinalado, cujo epicentro

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    ser a fundao de novas formas de relacionamento entre o capitale o trabalho, a fim de criar as fontes internas da acumulao. Alegislao trabalhista criar as condies para isso. (Oliveira, 2003:64)

    Ainda Chico nos diz,

    possvel perceber que o elemento estratgico para definir oconjunto das relaes na economia como um todo passou a sero tipo de relao de produo estabelecido entre o capital e otrabalho na indstria. Mas, longe do modelo clssico, em queesse elemento estratgico tende a exportar-se para o restante

    da economia, no caso brasileiro e possvel reconhec-lo emoutros pases a implantao das novas relaes de produo nosetor estratgico da economia tende, por razes em primeiro lugarhistricas, que se transformam em razes estruturais, a perpetuaras relaes no-capitalistas na agricultura e a criar um padrono-capitalstico de reproduo e apropriao do excedente numsetor como o dos servios. A especificidade particular de umtal modelo consistiria em reproduzir e criar uma larga periferiaonde predominam padres no-capitalsticos de relaes de

    produo, como forma e meio de sustentao e alimentaodo crescimento do setores estratgicos nitidamente capitalistas,que so a longo prazo a garantia das estruturas de dominao ereproduo do sistema. (Oliveira, 2003:69)

    Depois de uma anlise do perodo JK, o texto acaba por perguntar em qualsentido teria caminhado o sistema capitalista brasileiro ps Golpe de 1964 edemonstra que a lgica de explorao impressa pelo processo de acumulaoprimitiva continuava sendo explorado:

    a Transamaznica no passa de uma gigantesca operaoprimitiva, reproduzindo a experincia da Belm-Braslia (...).A resoluo das contradies entre relaes de produo e nvelde desenvolvimento das foras produtivas resolvida peloaprofundamento da explorao do trabalho. A estruturao daexpanso monopolstica requer taxas de lucro elevadssimase a forma em que ela se d (via mercado de capitais) instaurauma competio pelos fundos de acumulao (pela poupana)

    entre a rbita financeira e a estrutura produtiva que esterilizaparcialmente os incrementos da prpria poupana; um crescentedistanciamento entre a rbita financeira e a rbita da produo

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    grande abertura, e o 18 Brumrioj havia ensinado aos marxistasque a poltica no externa aos movimentos de classe, isto , aclasse se faz na luta de classes, mas eles tambm desaprenderam alio. (Oliveira, 2003:128)

    A busca de compreenso do processo de modernizao e industrilizaobrasileiras, sua alimentao pelo atraso, a subordinao da nova classe socialurbana o proletariado ao Estado e o que se podia reconhecer comotransformismo brasileiro isto , a modernizao conservadora ou umarevoluo produtiva sem revoluo burguesa na juno tensa entre economiapoltica comeam a ganhar a forma do bicho desengonado que deu seunome ao livro.

    Ao rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o especficoda revoluo produtiva sem revoluo burguesa era o carterprodutivo do atraso como condmino da expanso capitalista.O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a forma da exceopermanente do sistema capitalista na sua periferia. Como disseWalter Benjamin, os oprimidos sabem do que se trata. Osubdesenvolvimento finalmente exceo sobre os oprimidos: omutiro a autoconstruo como exceo da cidade, o trabalho

    informal como exceo da mercadoria, o patrimonialismo comoexceo da concorrncia entre os capitais, a coero estatal comoexceo da acumulao privada (...). (Oliveira, 2003:131)

    O subdesenvolvimento cujo carter internacional se reafirma, pareceria seruma evoluo s avessas:

    as classes dominantes, inseridas numa diviso do trabalho queopunha produtores de matrias-primas a produtores de bens de

    capital, optavam por uma forma da diviso de trabalho internaque preservasse a dominao (Oliveira, 2003:138). Havia aliconscincia e no acaso.

    Hoje, porm, perdeu-se a capacidade de escolha de seleo. Essa perdaconfigura mais um elemento de uma evoluo, de um percurso truncado. Helementos novos como o conhecimento tcnico cientfico que permitiriasaltos, mas

    o novo conhecimento tcnico-cientfico est trancado naspatentes e no est disponvel nas prateleiras do supermercadodas inovaes. E ele descartvel, efmero. Essa nova revoluo

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    tecnolgica tem consequncias uma diviso internacionaldos saberes em primeiro lugar e a acumulao como cpiado descartvel tambm entra em obsolescncia acelerada. Osresultados esto sempre aqum do esforo. (Oliveira, 2003: 138)

    Ao mesmo tempo,

    Os vendedores de refrigerantes s portas dos estdios viramsua produtividade aumentada graas ao just-in-time dosfabricantes e distribuidores de bebidas, mas para realizar ovalor de tais mercadorias, a forma do trabalho dos vendedores a mais primitiva. Combinam-se, pois, acumulao molecular-

    digital com o puro uso da fora de trabalho. (Oliveira, 2003: 140)

    A informalidade, os vendedores de tudo, as mobilidades laterais entrelegalidades e ilegalildades, tudo isso conforma nosso ornitorrinco de cadadia, nossas cidades exibem o teatro de uma sociedade derrotada, um bazarmultiforme onde a cpia pobre do bem de consumo de alto nvel horrivelmente kitsch (Oliveira, 2003:142-143).

    Milhares de trabalhadores informais atualizam em patamares maissofisticados o velho uso do trabalho informal e precrio.

    Polticas piedosas tentam treinar e qualificar essa mo de obra,num trabalho de Ssifo, jogando gua em cesto, acreditandoque o velho e bom trabalho com carteira voltar quando o ciclode negcios se reativar. Ser o contrrio: quando se reativar, e istoocorrer de forma intermitente, sem sustentabilidade previsvel,ento em cada novo perodo de crescimento, o trabalho abstratovirtual se instalar mais fundamente.

    O ornitorrinco uma das sociedades capitalistas maisdesigualitrias, mais mesmo que as economias mais pobres dafrica que, a rigor, no podem ser tomadas como economiascapitalistas, apesar de ter experimentado as taxas decrescimentomais expressivas em perodo longo; sou tentado a dizer com aelegncia francesa, et pourcause.As determinaes mais evidentesdessa contradio residem na combinao do estatuto rebaixadoda fora de trabalho com dependncia externa. (Oliveira,2003:143)

    O tema da regresso, do rebaixamento uma forte presena no processode constituio histrica do ornitorrinco. O que regride e se rebaixa? Tudo:

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    Legal e Operao Delegada ambas com elementos claramente mantidospela gesto municipal que se iniciou em 2013 so combinaes tpicas donosso ornitorrinco entre contravenes e legalidade, nos grandes projetosdos grandes eventos e na represso cotidiana de manifestaes e passeatas,nas formas de militarizao da gesto urbana5, nas remoes e desocupaescujo exemplo paradigmtico o do Pinheirinho, em So Jos dos Campos,nas manifestaes e acordos, a desmontagem de diagramas de anlise quepermitiram compreender o pas parece apontar para a necessidade de reler osclssicos, dialogar com eles, puxar fios, buscar mais uma vez nomeaes.

    Alm disso, a desocupao do Pinheirinho, a presena e o convnio entrea USP e a Polcia Militar e as vrias investidas policiais na Cracolndia,apresentam exemplos flagrantes de truculncia, mais uma vez evidenciada

    na ao policial contra as manifestaes de 2013. Mas o que mais interessa perceber que esse regime de represso excepcional, esse estado de exceoque indica graus crescentes de militarizao, aponta para uma associaodas mais clssicas e, ao mesmo tempo, inteiramente contempornea. Trata-se, por um lado, da associao entre limpeza social e gesto da pobreza. Aolado dessa dimenso ostensivamente policial, a novssima face da associaoentre polcia e polticas sociais. Modos de operao, condicionalidades,acompanhamentos que tornam governveis os pobres, em nome do combate pobreza, vacinas, escolarizao, programas de cultura e gerao de emprego

    e renda pem em cena operadores e mediadores, entre os quais associaespopulares e comunidades criadas por expedientes solidrios vinculados aigrejas evanglicas, todo um leque de novos empregos gerados para atuaojunto pobreza. Pobres lidando com pobres, mulheres pobres atuando juntoa mulheres pobres, construindo mediaes morais que permitem anteverformas de policiamento cotidiano, pequeno e invisvel de pblicos-alvo quefragmentam e criam designaes, nomeaes, contornos novos em nomede uma suposta cidadania e dignidade que na contramo da politizao, noavesso da criao de sujeitos polticos, moralizam a pobreza6. Essa pobreza

    moralizada tambm ganha as cores e as formas da produo cultural campode disputa e de embate entre atores, entre os quais os coletivos que ocupam olugar vazio deixado pelas militncias partidrias e sindicais e uma mirade decentros culturais patrocinados, mecenatos, ONGs, OSs, OSCIPs.

    Para finalizar essa trama, o desenho do combate pobreza como negcio:ou o negcio do trabalho associado, o negcio das empreiteiras e grandes

    5 Ver a respeito da militarizao das formas de gesto urbana artigo de Daniel Hirata,A produo das cidadessecuritrias: polcia e poltica inMonde diplomatique Brasil, maio de 2012. Nesse mesmo artigo, Hirata apontaque o incio da fiscalizao urbana realizada pela polcia militar teve lugar na gesto de Marta Suplicy,ainda que tenha atingido na gesto Kassab, sua maior extenso.

    6 Ver entre outros textos, GEORGES, I. Entre participao e controle: os(as) agentes comunitrios de sade daregio metropolitana de So Pauloin Revista Sociedade e Cultura, Goinia, v. 14, n. 1, p. 73-85, jan./jun. 2011.

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    construtoras produzindo casas dentro do programa Minha Casa Minha Vida,grandes empresas fazendo o trabalho social de urbanizao de favelas oude acompanhamento de instalao de infraestrutura; o negcio do consumopopular e do crdito devidamente securitizado, exceo e financeirizaoda pobreza se acoplam assim em territrios de controle constitudos pelagesto e pelo governo das precariedades, pelo seu cerco, montando linhas dedemarcao, construindo linhas de fronteira entre assistidos, mas, sobretudo,enredando operadores e pblicos-alvo no mesmo dispositivo de gesto.

    Esses mesmos dispositivos de gesto e de controle, essas formas deadministrao e governo da vida no so exercidas apenas (apenas?) sobre ospblicos beneficirios ou assistidos, mas envolvem seus operadores que, nasmargens do Estado, dentro e fora de suas prticas, implementam programas,

    polticas pblicas e policiamentos, dando vida ao que denominei deprivatizaes cruzadas7como o uso da promoo de cultura como captaode recursos para investimento em programas de sade. Laboratrios deprticas e modos de governar a vida pode-se perguntar afinal onde estoas linhas de demarcao entre Estado e Sociedade; como se constituram ecomo se desenham os campos de fora; como pensar pertinncia e pertenae seus deslizamentos; como apreender e nomear as passagens do cidado aobeneficirio, do sujeito de direitos a alvo das polticas de crdito. Pode-seainda apontar uma crise de nomeao, alm de uma crise de representao

    e de mediaes entre as situaes sociais e a constituio e destituio desujeitos polticos um campo de indeterminaes, ou como quer Franciscode Oliveira, uma era de indeterminaes, no continente em que Darwin, pararetomar o ornitorrinco, teve seu estalo de Vieira.

    Uma ltima palavra sobre Mestre Chico e sobre o que ele nos ajudou apensar e entender. Trata-se das manifestaes, do que imprensa e governoschamam de a voz das ruas. Em uma reunio do Centro de Estudos dosDireitos da Cidadania para elaborao de um novo projeto de pesquisa, Chicoapontava o que passo agora a reproduzir, ainda que de algum modo, a partir

    do que compreendi de suas observaes.Sempre de olho nas dimenses estruturantes, afirmava que

    estaramos diante de uma mudana de patamar do capitalismobrasileiro. Dessa perspectiva, talvez no seja mais possvelqualificar o pas nos quadros do velho subdesenvolvimento dematriz cepalina. Se essa afirmao ganha corpo, ento, talvezesse momento exija tambm novas lentes, novos prismas, que

    7 Ver RIZEK, C. Polticas sociais e polticas de cultura territrios e privatizaes cruzadas , texto apresentadono Seminrio LATINASSIST, Nogent sur Marne, 2012. Uma nova verso desse texto ser publicada naRevista Brasileira de Estudos Urbanos.

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    permitam qualificar o capitalismo monopolista brasileiro em suaface financeirizada, conformando, de maneira at certo pontoindita, as relaes de classe. Nessa nova conformao, as classesdominantes, em especial a burguesia brasileira no poderia maisexercer uma forma de dominao e de hegemonia que desseao pas um rosto que refletisse sua prpria imagem. Por outrolado, tampouco seria possvel qualificar as classes populares comoprotagonistas clssicas desse novo patamar de desenvolvimento,marcado assim por truncamentos que operam entre e nassituaes e dimenses estruturantes das classes assim como emsuas formas de atuao e expresso cultural e poltica. Seria entopossvel perguntar quais as relaes entre esses truncamentos,

    obstrues e o chamado lulismo, por suas determinaes, bemcomo pelos seus campos de conflito e relaes de fora.8

    A questo da estrutura de classes, de suas relaes com um capitalismobrasileiro de insero internacional redesenhada, a centralidade do capitalfinanceiro, suas relaes com os processos de acumulao, um deserto desujeitos polticos, tal como se constituram a partir dos conflitos e lutas asclasses sociais, um deserto de multides que marcham nas ruas sem que sejapossvel identificar em suas falas afinal o que falam, quem fala e pelo que

    lutam, diagnsticos que vo da desertificao e eliso da poltica ao fascismocomo expresso dessas mesmas multides. Talvez essa voz das ruas seja o quemeu amigo e meu mestre chamou de indeterminao, como impossibilidadede constituio de sujeitos que possam disputar o sentido mesmo do mundo,para alm da esfera de seus interesses ou de suas necessidades.

    Pr voc Chico, nossos agradecimentos e um grande abrao, um abrao dotamanho desse mundo que voc busca compreender e explicar.

    8 SINGER, A.; LOUREIRO, I.; BELLO, C.; RIZEK, C.; BRAGA, R.; SILVA, A. e outros. Desigual ecombinado: capitalismo e modernizao perifrica no Brasil do sculo XXI.Projeto de pesquisa encaminhado aoCNPQ, maio de 2013.

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    O Estado e o urbano no Brasil

    Francisco de Oliveira

    FaveladaRocinhae

    bairrodeSoConrado-RiodeJaneiro/RJ

    TniaRego/ABr

    1

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    exemplo, de uma cidade como Recife, que desde o sculo XIX em termosrelativos evidentemente era uma cidade j bastante grande, no se explica seno se tiver em conta a sua funo de sede do capital comercial. Portanto,essa urbanizao precede, sob muitos aspectos, uma nova urbanizao que seredefine a partir do momento em que a cidade passa a ser tambm a sede doaparelho produtivo, a sede da indstria propriamente dita.

    Ns temos um processo, desse ponto de vista, que apresenta polarizaesmuito radicais; uma economia que, fundada na monocultura em vriasregies do Brasil, e que, por essa razo, no criou, ao estilo da Europa - sequisermos falar da Europa como uma referncia - a imensa cadeia de aldeias epequenas vilas. O carter monocultor da agricultura de exportao embotoue abortou um processo de urbanizao que se verificasse no entorno das

    prprias regies produtoras dos bens primrios de exportao. Ao contrriodessa imensa teia de aldeias de pequenas cidades - que talvez seja um padrocaracterstico da urbanizao europeia, por exemplo - ele produziu, por outrolado, uma extrema polarizao, um vasto campo movido pelo conhecidocomplexo latifndio-minifndio e sobretudo fundado nas monoculturas, queno gerou uma rede urbana de maior magnitude no entorno das prpriasregies produtivas, mas que, por outro lado, criou grandes cidades em termosrelativos, evidentemente, desde o princpio.

    Esse duplo carter, que determinado, de um lado, pelas monoculturas

    de exportao e de outro abortando, portanto, uma rede urbana ou criandoum padro de urbanizao muito pobre, gerou precisamente (tendo ascidades como o centro nevrlgico da relao da economia com a circulaointernacional de mercadorias), desde o princpio, poucas mas grandes cidadesno Brasil.

    H certos pressupostos histricos que seria preciso reconstituir.Evidentemente as relaes do Estado com esse urbano nessa fase sobastante perceptveis: elas so perceptveis principalmente no aspecto queMorse ressaltou que , digamos assim, o faciesburocrtico das cidades, onde

    evidentemente se concentrava a maioria dos aparelhos de Estado controladoresdas relaes entre a economia colonial e a economia metropolitana.Esse padro vai permanecer, durante muito tempo no Brasil, quase intocado.

    Os diversos ciclos da economia brasileira (no vistos do ponto de vista dosciclos de capital), o ciclo do acar e todos os outros, terminando no ciclo maisextenso, mais duradouro e mais marcante da recente histria brasileira, que o ciclo do caf, permanecem criando ou recriando permanentemente umpadro de urbanizao que consistia nessa extrema polarizao: de um ladouma rede urbana bastante pobre e, de outro, uma rede urbana extremamente

    polarizada em grandes e poucas cidades, que eram exatamente as sedes docontrole, seja burocrtico, seja do capital comercial.A relao, portanto, entre o Estado e esse carter da urbanizao bastante

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    perceptvel, embora, a meu ver, enfatizo que tenha sido descuidado peloshistoriadores que criaram teorizao histrica sabre a formao ou sobre aurbanizao na Amrica Latina - que se coloca como um tipo oposto ou, seno oposto, pelo menos diferente, da urbanizao na Europa. evidente queessa tipologia no feita completamente sem fundamento, mas a razo maiordesse tipo de estruturao urbana e das relaes do Estado como urbanodevia-se, a meu ver, precisamente ao carter monocultor da produo e aodestino dessa produo, que era a exportao, dando lugar tanto a que ascidades tivessem um facies burocrtico bastante saliente, mas dando lugartambm a esse outro aspecto, menos cuidado e menos estudado, que o papeldas cidades na ligao com a circulao internacional de mercadorias.

    No muito exagero nem muito heterodoxo afirmar que, ao contrrio do

    que se passou no campo brasileiro durante pelo menos dois sculos, algumasdas tentativas de transformao ou, pelo menos, algumas das contradiesmais flagrantes dentro da histria brasileira, que deram lugar precisamente aalguns movimentos polticos batizados pela histria brasileira de revolues,deram-se precisamente nas cidades. E assim foi porque as cidades, enquantosede do capital comercial, comeam a criar uma srie de contradies entreesses capitais comerciais fundados no controle da produo agrcola, e naintermediao com a circulao internacional de mercadorias; esses capitaiscomerciais, de um lado, vo comear a entrar em choque, por exemplo, com

    as relaes com a metrpole e, de outro lado, entram em choque s vezestambm com o prprio sistema produtivo fundado seja na monocultura, sejano latifndio.

    Algumas das chamadas revolues da histria brasileira, principalmentealgumas das revolues passadas no Nordeste, so de certa forma o prennciode contradies entre esses capitais comerciais, de um lado, o prprio sistemaprodutivo, de outro, e tambm das relaes internacionais da economiaagroexportadora com a metrpole. Guerras ou lutas civis que opunhamcomerciantes a latifundirios do acar (no Nordeste, particularmente, isto

    bem tpico das revolues da primeira parte do sculo XIX) denunciamo fato de que na verdade o capital comercial, fundado e sediado nessascidades, de um lado comeava a entrar em contradio com o prprio tipo deapropriao do excedente que o Estado portugus realizava e, de outro lado,tinha na estrutura produtiva, montada sob o complexo latifndio-minifndio,um obstculo sua penetrao no prprio corao do sistema produtivo. Emoutras palavras, a passagem do controle do sistema produtivo das oligarquiasagrrias para o controle do sistema produtivo por parte de capitais quecomeavam a provir e a se reproduzir nas cidades, utilizando-se, sobretudo, do

    seu papel na intermediao dessas mercadorias. Recuperando-se um poucoda histria desses conflitos sociais, perceptvel, em alguns deles, o conflitode interesses que comeam a haver entre a cidade e o campo no Brasil, e as

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    comandada pela indstria, que vai redefinir, de uma forma completa, essecarter da urbanizao das relaes cidade e campo na ampla diviso socialdo trabalho no Brasil. E vai ser, portanto - o que completamente bvio enenhuma novidade -, o carter dessa industrializao que vai oferecer esseespetculo um tanto impressionante do salto de uma cidade como So Pauloque, no fim do sculo XIX, tinha uma significncia pequena dentro doconjunto das grandes cidades brasileiras, para, no curso de menos de 60 anos,dar um enorme saIto e chegar a constituir-se na maior aglomerao urbanada Amrica Latina.

    Mas o que no completamente bvio, ainda do ponto de vista da divisosocial do trabalho, em primeiro lugar, porque as cidades no Brasil do umsalto enorme - tomando a caso especfico de So Paulo, em menos de 60 anos,

    de uma cidade insignificante converte-se na maior aglomerao urbana naAmrica Latina. possvel ver que o prprio tamanho que as cidades tomam,a prpria rapidez do processo de urbanizao, medido pelos incrementos dapopulao que afIui s cidades, tem muito a ver, de um lado, evidentemente,com a industrializao, com a massa de capitais e, portanto, com o processo deacumulao sediado nas cidades. Isso completamente bvio e transparente.Mas o que quase nunca transparente o outro lado da medalha. A perguntaque se coloca por que tambm a industrializao, quando se d, impe umritmo de urbanizao desse porte? A, o que se pode fazer contrapor a antiga

    autarquia do campo, que determinava um carter pobre de urbanizao noconjunto do pas, autarquia das cidades.O que significa autarquia das cidades? Significa que as cidades, ao

    tornarem-se com a industrializao o centro do aparelho produtivo, vo, pelaprpria herana do padro anterior, constituir-se em cidades autrquicas.Estou chamando autarquia ao seguinte: a industrializao vai impor um padrode acumulao, que potencia, por uma potncia X, ainda no determinada,uma urbanizao; a industrializao vai impor um padro de urbanizao queaparentemente , em muitos graus, em muitos pontos, superior ao prprio

    ritmo da industrializao. O fato de que a diviso social do trabalho nosperodos anteriores era estanque - autarquia nos campos - vai impor quea industrializao no Brasil vai ter que se fazer imediatamente urbana eexcepcionalmente urbana. Se tomarmos outra vez como paradigma apenasreferencial a diviso do trabalho entre cidade e campo, como por exemplo nonascimento do capitalismo na Inglaterra e na Frana, a expanso capitalistavia indstria nos pases centrais vai repousar inicialmente sobre uma especialcombinao da diviso social do trabalho entre campo e cidade. Em outraspalavras, enquanto Lancashire, Manchester, Liverpool ou outras quaisquer das

    grandes cidades inglesas sedes do processo de industrializao, para tomarum exemplo concreto - o caso da indstria txtil - acolheram a tecelagem, afiao, a outra parte do processo industrial da fabricao de tecidos continuou

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    a residir no campo; isto , o campons europeu era autrquico noutro sentido,no sentido de que dentro da unidade camponesa existia uma diviso social dotrabalho que ia desde as tarefas agrcolas at as tarefas de manufatura, ou seja,o campons europeu era, simultaneamente, um agricultor e um arteso. Coma emergncia do capitalismo industrial, este vai se servir, sob muitos aspectos,dessa base camponesa da industrializao, que no caso do Brasil no pde sedar.

    O carter autrquico da economia monocultora no Brasil de outro tipo. um carter autrquico no sentido da finalidade exclusiva da produo deagroexportao. Hoje tem muita gente que, para decorar suas casas, sa aprocurando, nas pequenas cidades do interior do Brasil, rocas de fiar queno passam de peas de museu; so peas to raras que quem as consegue

    pode exibi-las orgulhosamente, mobiliando as casas, dando aquela aparnciade novo-velho que o bom-tom da nova classe mdia; mas isso na verdadeso peas de museu porque essa diviso social do trabalho interna s unidadescamponesas no Brasil nunca houve ou, quando houve, foi em casos muitoraros.

    O que quero dizer com isso que, quando a industrializao comea a sero motor da expanso capitalista no Brasil, ela tem que ser simultaneamenteurbana, e tem que ser fundamentalmente urbana porque no pode apoiar-seem nenhuma pretrita diviso social do trabalho no interior das unidades

    agrcolas. O nosso campons, ou semicampons - eu preferiria chamar,porque nunca teve a propriedade da terra, seno a posse - s em raroscasos a unidade camponesa continha dentro de si uma diviso social dotrabalho diversificada, o que fez com que, no momento em que se inicia aindustrializao, as relaes cidade-campo de novo se mantivessem estanquesdesse ponto de vista, caracterizando-se uma industrializao que forou umprocesso de urbanizao numa escala realmente sem precedentes. Noutraspalavras, a indstria no Brasil ou seria urbana, ou teria muito poucascondies de nascer. Esse na verdade o maior determinante do fato de

    que a nossa industrializao vai gerar taxas de urbanizao muito acima doprprio crescimento da fora de trabalho empregada nas atividades industriais.Isso, retomando uma de nossas primeiras observaes, vai dar lugar ao quea sociologia vulgar chamou de urbanizao sem industrializao e a todateorizao sobre o inchao e a marginalidade social nas cidades. No se querdizer que no haja marginalidade social nas cidades, mas essa marginalidadesocial , ela mesma, um componente dos exrcitos industriais de reserva. Nosignifica, tal como a teorizao da marginalidade social tenta dizer, exclusodo mercado de trabalho, nem excluso da economia urbana. Significa a forma

    peculiar pela qual a industrializao brasileira trouxe para dento de si, de umas vez, de uma pancada, todo esse exrcito industrial de reserva, vindo doscampos para dentro das cidades.

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    Esse um aspecto importante, sem o que o fenmeno da urbanizao vistodesse lado (h outros aspectos que devem ser salientados) torna-se poucocompreensvel, dando lugar, evidentemente, a explicaes e teorizaes poucosatisfatrias.

    Essa autarquizao das cidades visvel tambm (se bem que novamenteno se tenha ainda uma consistncia terica bastante fundamentada paraexplic-la), se tomarmos empiricamente o caso da industrializao e seformos at o nvel das prprias unidades industriais. As indstrias que nascem,agora num processo muito mais vertiginoso de acumulao, vo ter que ser,de um lado, completamente autrquicas, desde que no possam se apoiar emnenhuma diviso social do trabalho pretrita que as ligasse com o campo.A industrializao, ao repousar ou ao sediar-se em cidades que eram apenas

    sede tanto do aparelho burocrtico quanto do capital comercial, tambm novai encontrar nas cidades uma diviso social do trabalho que desse lugar aunidades produtivas de pequeno porte.

    Empiricamente possvel recuperar, por exemplo, sob dois sentidos, essaconstatao: de um lado, a grande maioria das indstrias brasileiras dos grandesconjuntos industriais, as Indstrias Matarazzo, por exemplo, vamos ver queela, sendo uma indstria de bens no durveis de consumo, tem dentro de sidesde o princpio uma diviso social de trabalho extremamente complexa.Isso se repete por quase todos os grandes conjuntos da indstria brasileira. No

    caso do Nordeste, como no caso da indstria do acar em Pernambuco, cadausina tinha que ser um setor produtor de bens de capital que fazia e reparavaos bens de capital dessa indstria aucareira. A indstria vai conter dentro desi uma diviso social do trabalho muito mais complexa do que aquela queseria determinada pelo exclusivo processo fabril de produo da mercadoriafinal. Isto bastante evidente. Cidades como Paulista, em Pernambuco, eVotorantim, em So Paulo, so exemplos onde a indstria para se instalar teveque simultaneamente instalar uma cidade, desde o fazer a casa para o operrio(o que em muitos casos parecia um pouco o idlio entre capital e trabalho),

    e at uma complexa diviso social do trabalho no interior da prpria fbrica.Hoje a situao muito diferente. Ningum vai encontrar numa indstriado grupo Matarazzo, por exemplo, um setor produtor de bens de capital.Contudo, at vinte anos atrs, se visitssemos essa fbrica da Matarazzo queest a perto da Av. Marginal em So Paulo, encontraramos, dentro dela,uma complexa diviso social de trabalho que aparentemente no tinha nadaa ver com o produto final que a Indstria Matarazzo produzia. Ela possuaum setor produtor de bens de capital no seu interior, um setor propriamenteprodutivo do bem final para o qual estava destinada, e trazia contido dentro

    de si tambm todos os departamentos de circulao de mercadorias, atdepartamentos especializados na prpria distribuio.Esse aspecto, em grande medida, fortemente determinante do fato de

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    regies do Brasil. H um excelente trabalho de Jos Srgio Leite Lopes, OVapor do Diabo - uma tese de antropologia sobre as relaes de produono interior de uma usina de acar em Pernambuco - onde esse aspectoda constituio de um mercado de fora de trabalho cativo fica bem claro.Explicita como que o usineiro criava certos mecanismos atravs dos quais ooperrio de sua usina tornava-se no um servo, nem um escravo, mas incapazde fugir s dvidas que comeava a contrair com o prprio capitalista, o queera um mecanismo de constituio de mercados de fora de trabalho cativos.

    O patamar tecnolgico da indstria brasileira vai romper com essesmercados de fora de trabalho e, portanto, o capitalista industr ial comea a nosaber como responder a uma pergunta crucial: qual o salrio que eu devopagar aos operrios de minha indstria, desde que essa desespecializao

    que a inovao tecnolgica promove estava rompendo com as antigasespecializaes e com os mercados de fora de trabalho restritos, fragmentadose cativos de cada uma das principais atividades industriais no pas.

    Radicalizando, o aspecto crucial da relao Estado-urbano no Brasil aregulamentao das relaes capital-trabalho, despejando (um espanholismo)esta incgnita: no momento em que o Estado fixa o preo da fora de trabalho,em qualquer latitude, o capitalista individual sabia por quanto contratar a suafora de trabalho, elemento absolutamente indispensvel para a constituiodo clculo econmico burgus. Sem isso, o capitalista no sabe nem quanto

    investir em capital varivel, nem quanto esperar de taxa de lucro da aplicaode seus capitais. A o Estado tem um papel relevante na constituio dessaarticulao, e eu diria que a expresso mais significativa dessa relao Estado eurbano no Brasil est agora no na questo da diviso social do trabalho, masespecificamente na questo da constituio das novas relaes de produo.Ele tem outro aspecto tambm, j referido, que se d tanto ao nvel dadiviso social do trabalho, quanto ao nvel das relaes entre as oligarquiasagrrias e a burguesia industrial emergente, no sentido de penalizar aproduo agroexportadora e transferir excedentes desses grupos na produo

    agroexportadora para os grupos industriais emergentes. O aspecto essencialdessa relao consiste na forma como o Estado articula esse novo processo deacumulao, que industrial e, simultaneamente, urbano.

    O perodo dos anos 1950 inicia uma fase que qualitativamente distintana economia brasileira, onde tanto o carter do Estado quanto o que arelao entre o Estado e o urbano na economia e na sociedade brasileiraconstituem temas abertos para os quais no se tem ainda respostas muitoconsistentes. O que se pode dizer, em linhas muito gerais, que o perododos anos 1950, sobretudo a partir do perodo Kubitschek, instala de golpe

    no Brasil o capitalismo monopolista. E isto por razes muito importantes:em primeiro lugar, devido prpria contradio que se estabelece entre aindustrializao chamada perifrica e a conduta dos estados centrais dos pases

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    forma muito importante: ao invs da liquidao da Unio Sovitica, assiste-se sua consolidao, assiste-se ao avano dos pases de economia centralmenteplanejada sobre a Europa Oriental e, quatro anos depois da concluso dessaguerra, a China perdida para sempre para o imperialismo. lsso restringeenormemente o espao do capitalismo internacional - do ponto de vistade espaos para exportao de capitais, para exportao de mercadorias dospases centrais e de abastecimento de bens primrios para a economia dospases centrais.

    Este aspecto no pode ser descurado se se tem em vista o que se entendepor redefinio da diviso internacional do trabalho, como sequela da SegundaGuerra Mundial. De outro lado, a prpria constelao de foras democrticas,que se tinha constitudo no interior de cada pas capitalista central, eleva

    enormemente o peso poltico das classes trabalhadoras nesses pases. Isso vaiobrigar, desde os anos do New Deal rooseveltiano, a adoo de polticas depleno emprego de inspirao keynesiana; vai levar a que a classe trabalhadora,pela sua organizao, pelo seu peso poltico, inclusive derivado em grandemedida desse processo de amplas frentes democrticas dentro dos pasescentrais, obrigue o Estado a assumir parcelas do custo de reproduo da fora detrabalho nos pases centrais. Em ltima anlise, vai significar o encarecimentodo preo da fora de trabalho e da produo de certas mercadorias nos pasescentrais, o que induz esses pases a um movimento de industrializao no

    sentido da periferia, que um aspecto fundamental para se compreendercomo que antes o imperialismo era contrrio industrializao perifrica e,depois da Segunda Guerra Mundial, torna-se o seu principal agente.

    Nestas condies, existem vrios aspectos que so muito in