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CADERNO NEDER, Nº 2 – DOSSIÊ DA EMIGRAÇÃO

ISSN 1982-9876. Publicado em: www.editora.univale.br, seção E-Books

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APRESENTAÇÃO

A Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE – no cumprimento de sua missão

social tem promovido estudos e debates que possibilitem a compreensão das questões social,

econômica, política e histórica que compõem a problemática regional. Neste contexto o

Núcleo de Estudos sobre Desenvolvimento Regional – NEDER – tem como objetivo estudar,

através da prática da pesquisa científica e dos debates teóricos, as questões relativas ao

desenvolvimento da região, analisando suas diversas dimensões.

Estas pesquisas buscam estabelecer a identidade da região, conhecer os pontos de

estrangulamento do seu desenvolvimento, bem como as suas características e, a partir dessa

experiência, difundir os conhecimentos gerados. Sem dúvida alguma, o NEDER ao produzir e

disponibilizar essas informações científicas permite a elaboração de diagnósticos que

possibilitam propor ações e políticas públicas que viabilizem alternativas para o

desenvolvimento sustentável da região.

Este segundo número do caderno está centrado na discussão de um tema

importante no contexto regional, a migração internacional. Fenômeno que começa de modo

insipiente nos anos de 1960, quando os primeiros jovens da elite valadarense emigraram para

os EUA e formam os primeiros pontos da rede, que nos anos de 1980, vai se caracterizar

como um fluxo significativo que passa a configurar não só o local de origem, mas também o

destino.

Neste número temos artigos, resultados de pesquisa científica, que abordam várias

nuances desse fenômeno: o espaço e seu significado para o estudo das migrações; os aspectos

além dos econômicos que permeiam o projeto migratório; o retorno do emigrante para sua

terra natal e as conexões e desconexões e identidades partidas deste retorno; a construção de

laços transnacionais que o movimento migratório possibilita; a religião no contexto

migratório; os aspectos relacionados a raça e etnia vividos pelo emigrante; a forma como os

meios de comunicação de massa tratam o fenômeno da emigração e o emigrante; os efeitos da

emigração na configuração da paisagem urbana das localidades de origem e os impactos na

educação e formação das identidades das crianças e adolescentes, cujos familiares e vizinhos

emigram.

Todos estes temas tratados nos doze artigos que compõem este caderno são

contribuições importantes para a compreensão do fenômeno da emigração internacional que

faz parte do cotidiano não só da Região de Governador Valadares, mas do Brasil.

Sueli Siqueira

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SUMÁRIO

Senso e Censo e Emigrantes Brasileiros nos Estados Unidos: Por Uma Geografia Humanística. Alan Patrick Marcus

04

Realizações e frustrações no retorno à terra natal. Sueli Siqueira

12

Antagonismos da volta ao país de origem: conexões e desconexões Devani Tomaz Domingues

26

Yolanda García em how the garcía girls lost their accents: a identidade dividida entre o passado e o presente Gean Carla Pereira

54

As conexões entre os EUA e o Brasil: uma análise das redes sociais tecidas a Governador Valadares e criciúma Gláucia de Oliveira Assis

63

A pedra e o rio: rastros de religião na diáspora dos brasucas As interfaces entre emigração internacional e a religião: um estudo de caso. Vicente de Paulo Ferreira

87

As interfaces entre emigração internacional e a religião: um estudo de caso. Aparecida Amorim

101

Raça/etnia/nacionalidade: narrativas e experiências identitárias entre imigrantes brasileiras na região de Boston Cileine Isabel de Lourenço e Judith McDonnell

117

Estrangeiros em seu próprio país Alpiniano Silva Filho

127

Assimilação e transnacionalidade da segunda geração de migrantes Valadarenses nos EUA. Lucas Coelho Siqueira

138

A construção da identidade cultural em filhos de emigrantes Agnes Rocha de Almeida, Sueli Siqueira e Carlos Alberto Dias

154

O reflexo da migração na vida escolar dos filhos de migrantes Ana Clara de Paula e Maria Terezinha Bretas Vilarino

187

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SENSO E CENSO E EMIGRANTES BRASILEIROS NOS ESTADOS UNIDOS:

POR UMA GEOGRAFIA HUMANÍSTICA

Alan Patrick Marcus1

RESUMO:

A abordagem qualitativa é importante em estudos geográficos sobre migrações internacionais, principalmente na avaliação de percepções de identidade, lugar e espaço. A abordagem exclusivamente quantitativa (re)produz uma miopia grave na avaliação da experiência humana e de identidades socioculturais nestes movimentos geográficos. As ramificações problemáticas aumentam quando apenas expressas em termos estáticos, monolíticos e quantitativos. A experiência humana e suas várias dimensões regionais, históricas e socioculturais se encontram explicitamente ausentes na abordagem quantitativa. O método quantitativo é importante, porém a experiência da diáspora brasileira não pode ser avaliada, negociada, entendida, ou expressa apenas em números de forma estática justamente pela falta de interpretações socioculturais e geográficos sobre os dados. Para otimizar o entendimento melhor sobre migrações internacionais, a abordagem quantitativa necessita da conjunção da avaliação em profundidade e de interpretações socioculturais, principalmente quando se trata das complexidades de identidades brasileiras múltiplas e diversas que a metodologia qualitativa nos traz efetivamente. Como a geógrafa Anne Buttimer (1976) nos informa, o conceito de lugar significa uma noção sagrada de contacto emocional; algo que significa muito mais do que meramente uma moradia.

Palavras Chaves: Geografia, migração brasileira, abordagens metodológicas.

SUMMARY:

Qualitative approaches are important in geographical studies about international migrations, particularly in the evaluation of identity, spatial and place perceptions. An exclusively quantitative approach (re) produces a serious myopic perception in the evaluation of the human experience and within sociocultural identities in these geographical movements. Henceforth, problematic ramifications increase within quantitative, static and monolithic terms. The human experience and its various regional, historical, and sociocultural dimensions, are explicitly absent within quantitative approaches. The quantitative approach is important however, the experience of the Brazilian Diaspora cannot be evaluated, negotiated, understood or expressed only with numbers precisely because of the data deficit of sociocultural and geographical interpretations. To optimize understandings of international migrations, quantitative approaches need the conjunction of in-depth evaluations and of sociocultural interpretations, particularly when dealing with multiple and diverse Brazilian complexities and identities that qualitative approaches effectively illustrate. As Anne Buttimer (1976) informs us, the concept of place means a sacred emotional contact; something that means much more that mere residence.

Key Words: Geography, Brazilian migration, methodological approaches.

1 Obteve sua Graduação em Antropologia e Filosofia (Northeastern University, Boston, Massachusetts), Mestrado em Geografia, e atualmente, Doutorando em Geografia, Department of Geosciences, University of Massachusetts, Amherst, onde completa sua pesquisa de doutorado sobre processos migratórios entre Governador Valadares, MG, Piracanjuba, GO, no Brasil, e, Framingham, Massachusetts, e Marietta, Georgia, EUA. Contato por e-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

As amplas vertentes que emergem da geografia cultural e geografia humanística são importantes para melhor entendermos o significado de identidade, lugar e espaço (BUTTIMER 1976; DUBOS 1977; TUAN 1974; WRIGHT 1966, WILKIE 2003). Dentro dos recentes movimentos e processos migratórios brasileiros para os Estados Unidos, Europa e Japão, a geografia também se torna útil para aprimorarmos o entendimento de decisões sobre política pública e noções de identidade étnica-nacional. A atual diáspora brasileira já foi bastante estudada nos últimos 15 anos, com mais de 275 trabalhos de vários pesquisadores brasileiros e americanos feitos sobre emigração brasileira (MARGOLIS 2006). O objetivo aqui é de argumentar abordagens metodológicas e ontológicas já discutidas antes nas ciências sociais, porém merecendo uma nova inserção nesta discussão de processos migratórios, principalmente no contexto brasileiro ressaltando assim, a importância da geografia humanística.

Esta discussão nesse artigo não pretende analisar exaustivamente metodologia per se, mas sim, avaliar o fortalecimento de abordagens qualitativas sobre migrações brasileiras. Isto é; na avaliação de processos migratórios, existe uma tradição pública e acadêmica de que a estatística e a tradição numérica são intuitivamente aceitas cegamente como corpos de veracidade e também amplamente aceitas nos meios acadêmicos e políticos para avaliar a experiência migratória brasileira. Esta noção (re)produz uma miopia grave na avaliação da experiência humana e na leitura de identidades socioculturais nestes movimentos geográficos. A tradição qualitativa (por exemplo: métodos etnográficos, entrevistas em profundidade semi-estruturadas, entre outros) nos traz uma amplitude igualmente válida e significativa à quantitativa (quando feitas rigorosamente e sistematicamente) nos estudos de migração, principalmente na avaliação de percepções de identidade, lugar e espaço.

Um exemplo da problemática de estudos focalizados apenas na abordagem quantitativa provém de uma categoria étnica usada com raras críticas (MARCUS, 2005, 2006; MARGOLIS, 1994; MARROW, 2003) nos debates sobre política pública no Brasil e nos EUA, e amplamente usada por cientistas sociais incluindo demógrafos e sociólogos desses dois países. Por exemplo, nos últimos 25 anos, os termos “Hispanic” e “Latino” se tornaram palavras com forte poder político nos Estados Unidos e são usadas para categorizar populações da América Espanhola. De acordo com o censo americano, brasileiros que residem naquele país não são considerados “Hispanic” (desde 1980) nem “Latino” (desde 1990), porque falam português.

No caso do uso de termos como “Hispanic” e “Latino” e de relatórios da população imigrante nos EUA, principalmente as tais chamadas de “Latino populations” (“populações latinas”) nos EUA, a avaliação numérica nos mostra como a abordagem quantitativa é inadequada e ineficaz quando utilizada para identificar os processos migratórios de populações brasileiras (cito um exemplo específico abaixo). Esta metodologia usada pela grande maioria de economistas, demógrafos, e sociólogos (com raras exceções, por exemplo, MARROW 2003; ROTH 2006; SIQUEIRA 2006) é geralmente usada para enfatizar somente fatores econômicos, sem avaliar outros fatores e dimensões sociais, regionais, ou étnicos na dinâmica dos movimentos migratórios.

O método quantitativo é importante, porém o processo de identificação de populações imigrantes e as várias dimensões da experiência humana do brasileiro emigrante dentro dessa quantificação se tornam problemáticas com esta abordagem somente quantitativa – além de ficar bastante enfraquecidas diante das várias dimensões no atual mundo globalizado. A identidade cultural brasileira lusófona e a enumeração brasileira nos EUA são importantes para melhor avaliarmos a sua presença significativa naquele país, porém desconhecida pela

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maioria do público americano e principalmente pelos intelectuais hispanos nos EUA (ACUÑA 2003; ORDONEZ 2005; PADILLA 1985; SURO 1994, 1998; SUAREZ-OROZCO E PAEZ 2003, entre outros).

A experiência da diáspora brasileira não pode ser avaliada, negociada, entendida, ou expressa apenas em números justamente pela falta de interpretações socioculturais e geográficos sobre os dados. Para otimizar o entendimento sobre migrações internacionais, a abordagem quantitativa necessita da conjunção da avaliação em profundidade e de interpretações socioculturais, principalmente quando se trata das complexidades de identidades brasileiras múltiplas e diversas que a metodologia qualitativa nos traz efetivamente.

AMERICA LATINA SEM O BRASIL?

A idéia da América Latina é também problemática na avaliação destes processos migratórios, principalmente para os Estados Unidos. A América Latina pode ser entendida como uma região cultural daqueles países com legado histórico colonial da Península Ibérica, e inclui os países continentais ao sul dos Estados Unidos, incluindo países do Caribe Espanhol, como Cuba, República Dominicana, e Porto Rico, mas não os países Caribenhos de fala não-espanhola como Jamaica, Barbados, entre outros países anglo e franco-caribenhos. Diferentemente, na noção de continente, a América do Sul inclui todos os países localizados ao sul do Panamá, e ao contrário da noção pública, a América do Norte inclui todos os países do Panamá para o Norte do continente, também incluindo todos os países do Caribe e a Groenlândia. Portanto as definições e diferenças entre região cultural e região continental são significantes para otimizar o entendimento público e acadêmico e assim, refletem uma importante realidade nas identificações de populações imigrantes para os Estados Unidos. A geografia nesse caso se torna significativamente ligada à enumeração de populações imigrantes, mesmo sendo mal-conhecida e mal-interpretada.

As diferenças entre brasileiros e outras populações de fala Espanhola da América Latina refletem as diferentes correntes migratórias (forçadas ou voluntárias) para diversas regiões nesse hemisfério. As diversidades e as conseqüências de miscigenação populacional nestes países também refletem as diferenças tanto quanto refletem as diferenças nas línguas faladas (por exemplo, quéchua, aimara, holandês, francês, espanhol, e português) e nas heranças culturais, genéticas, e do contraste do legado histórico entre Portugal e Espanha. A grande diferença entre o resto da América Latina e o Brasil, é a influência de vastas complexidades genéticas e culturais entre indígenas, africanos, europeus, asiáticos, judeus, árabes, entre outros (MARCUS 2005). Os resultados de um estudo feito por geneticistas concluíram que a população brasileira é geneticamente a mais diversa do mundo (ALVES-SILVA 2000). Destaca-se assim, o fato de que o Brasil não é mais indígena o quão é europeu ou africano – uma ênfase única em apenas uma dessas influências (socioculturais ou genéticas) para avaliar a experiência do legado cultural brasileiro produz uma leitura desequilibrada e até equivocada diante das complexidades de identidades no Brasil.

Apesar das diferenças culturais, genéticas, e lingüísticas entre brasileiros e de populações imigrantes provindo da América Espanhola nos EUA, esses conhecimentos não são óbvios para americanos, e para intelectuais híspanos residentes naquele país (por exemplo, ACUÑA 2003; ORDONEZ 2005; PADILLA 1985; SURO 1994, 1998; SUAREZ-OROZCO E PAEZ 2003, entre outros) – estes exercendo um forte lobby político e intelectual nos EUA, a maioria sendo de origem Cubana, Mexicana ou Porto Riquenha, e dirigindo suas políticas internas especificamente para os imigrantes e seus descendentes da América Espanhola. Por exemplo, considerado um especialista em migração mexicana nos EUA, Rodolfo Acuña escreve: “Brazilians are considered Latinos; however, Brazilians speak

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Portuguese and do not have a strong national presence in the United States” 2. (ACUÑA 2003: 14). Ou seja, em seu livro escrito em 2003, quase um milhão de brasileiros imigrantes residentes nos EUA ficou invisível na leitura de Acuña. Não há representações especificamente brasileiras e lusófonas visíveis e significativas no campo político, social, ou intelectual que estejam se focalizando nos interesses brasileiros e comunidades brasileiras nos EUA. Representações estas, que necessitam de uma amplitude maior além do estereótipo do latino americano rural de fala espanhola usando sombrero, ou no caso do Brasil, além de representações e clichês como a mulata, carnaval, futebol, e samba.

Um exemplo dessa problemática geográfica é a noção de uma América Latina que existe “sem o Brasil”. O brasileiro nesse caso ficou invisível nos debates públicos e intelectuais de reforma imigratória nos EUA. Por exemplo, a discrepância na enumeração dos imigrantes brasileiros no censo americano de 2000 que havia contado 212. 428 brasileiros em todo país naquele ano (MARCUS 2005), enquanto dados de vários pesquisadores e do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, indicam números que variam de 800.000 para mais de um milhão de brasileiros (documentados ou não). Ou seja, um em cada quatro brasileiros não é contado pelo censo americano. Essa discrepância enorme se justifica por causa do grande número de não-documentados brasileiros residentes naquele país, mas também pelo formulário confuso do censo americano, que não deixa claro quem é, e quem não é “Hispanico” ou “Latino” (MARGOLIS 1994, 1998; MARCUS 2005, 2006; MARROW 2003). Essa confusão aumenta, principalmente pelo fato do Brasil estar localizado na América Latina, porém a população brasileira fala português e, no entanto, não é considerada Hispanica ou Latina nos EUA. A problemática da falta de enumeração da população brasileira fora do país, portanto, não é restrita ao brasileiro imigrante não-documentado.

Esta confusão de interpretação de identidade não é restrita ao campo público-político, mas ela se estende aos meio acadêmicos também. Um exemplo provém de uma universidade na região da Nova Inglaterra, EUA, onde testemunhei pessoalmente um professor titular de sociologia (um brasileiro) que leciona aulas sobre o censo americano e insistiu que brasileiros eram considerados “Hispanico/Latino” pelo censo americano. Somente quando mostrei uma carta do censo americano (U.S. Census Bureau) explicando que brasileiros não são considerados “Hispanic/Latino”, este professor concordou que havia se equivocado sobre o assunto. Este fato se torna significativo o suficiente para se mencionar aqui, se abordado de forma generalizada, pois é justamente pelos meios acadêmicos que provém e se disseminam informações importantes (neste caso, errônea) com ramificações no campo político-social. Se a percepção errônea de acadêmicos, como o lamentável desconhecimento deste professor, se dissemina de maneira influente nos meios públicos e políticos, a percepção da própria identidade brasileira também está em questão nos debates sobre reforma imigratória nos EUA.

A contagem de brasileiros é de extrema importância política e social para a comunidade brasileira nos EUA, pois é na base desta contagem que decisões são feitas para política pública, incluindo decisões para uma reforma imigratória daquele país. No entanto, os debates acadêmicos e políticos sobre a abordagem de identidade brasileira, ou seja; a forma como o brasileiro se identifica nos censos americanos não são discutidas suficientemente. A falta de números oficiais (por exemplo, do censo americano) essencialmente quer dizer que brasileiros não existem nos EUA, mesmo que sabemos que isto não representa a realidade já discutida por vários pesquisadores que estudam o assunto (ASSIS 2004; MARCUS 2005, 2006; MARGOLIS 1994, 1998; PIRES 2005; SALES 1998; SIQUEIRA 2006, entre outros). Portanto a geografia e a forma como a geografia é entendida, formulada e negociada nos meios acadêmicos e políticos, aumenta as potencialidades para ramificações problemáticas.

2 “Brasileiros são considerados latinos porém, falam português e não há uma presença forte deles no país”.

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Essas ramificações expressas em termos quantitativos em termos estáticos e monolíticos. Nesta quantificação da experiência humana as várias dimensões regionais, históricas e socioculturais se encontram explicitamente ausentes; tanto quanto a fluidez e elasticidade na identificação étnico-racial de populações imigrantes, principalmente nesse caso da quantificação dos brasileiros.

POR UMA GEOGRAFIA HUMANÍSTICA

A geografia também nos mostra porque o senso de lugar é importante para melhor avaliar conceitos de lugar e espaço nestes movimentos migratórios. Já na década de 1970 a geografia no mundo ocidental estava desafiando a direção positivista da chamada “revolução quantitativa” das décadas de 1950 e 1960 – isto é, somente aquilo que é expresso em números e regido por leis numéricas, tem validade científica. A direção da geografia humana então passou por uma nova fase, assim desafiando a supremacia quantitativa dentro do conceito dado como científico, e também desafiou a ênfase da leitura exclusivamente masculina dentro de abordagens da ciência que, até então, eram equivocadamente vistas como universalmente neutras (BUTTIMER, 1976). Essa vertente voltada para a tradição literária e descritiva da geografia, iniciou o período importante re-inserindo-se na disciplina conhecida como “geografia humanística”.

Essa nova linha da geografia (trazendo também a influência do pensamento feminista da década de 1970), liderada por geógrafos humanísticos como a irlandêsa Anne Buttimer (1976) e o chinês-americano Yi-Fu Tuan (1974, 1977), entre outros, nos mostrou como os conceitos na geografia, tais como lugar e espaço, e a experiência humana, são elásticos e requerem uma análise de profundidade e uma abordagem humanística.

O senso de lugar não é quantificável, pois esse senso de onde pertencemos, faz parte de um universo da experiência humana com complexidades multidimensionais, socioculturais, e regionais. Ou seja; não é possível quantificar a experiência humana. Portanto, essa linha da geografia humanística nos mostra que há uma necessidade de reavaliar métodos dentro dos processos humanos nas ciências sociais expressas somente em números – esta produzindo empobrecimento na avaliação ampla e complexa de lugar e espaço. A própria nomenclatura geografia provém do grego e implica uma descrição da terra, ou seja; escrever com amplitude sobre lugar e espaço (geo: terra + graphein: descrição ou escrever).

Nesses tempos atuais pós 11 de setembro, 2001 (após os ataques terroristas aos EUA), a guerra no Iraque se destaca justamente pela falta de conhecimento geográfico por parte das forças ocupadoras naquele país, e justifico aqui a importância da geografia humanística nesse caso. Porém, ressalto em escala maior, outros conflitos no mundo atual também gerados especificamente pela ênfase dada à abordagens quantitativas e numéricas em decisões feitas sobre política internacional, e, pela ausência em geral de dados qualitativos ou a importância dada à estes.

A geografia também nos mostra porque o senso de lugar é importante para cada um de nós (TUAN 1974, 1977; WILKIE 2003). Este senso é a parte em nossa memória que evoca certos cheiros, sons, e paisagens especiais e emocionais para cada um de nós de algum lugar especial. É com esta memória que podemos resgatar nosso senso de lugar. A memória geográfica em cada um de nós mostra um significado de lugar que vai além da miopia positivista e econômica – ela também é humanista.

A noção de emigrar para fora do Brasil apenas pensando no que é lucrativo à curto prazo, deveria ser reconsiderada para poderemos nos conscientizar da importância de (re)construir nosso senso de lugar em escala local em diverso focos de emigração no Brasil.

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Esse senso inclui paisagens naturais e culturais, mas algo que possa também trazer um resgate de conceitos considerados marginalmente subjetivos, porém importantes, como por exemplo: respeito, dignidade, e o orgulho de pertencer ao lugar – uma noção muito mais profunda do que meramente resgatar o aspecto econômico. Por isso, a recente diáspora brasileira dos últimos 20 anos para os Estados Unidos, Japão e Europa, não pode ser avaliada somente em termos lineares ou regidas por leis numéricas. Os movimentos e processos migratórios não são estáticos, mas se tratada de forma numérica e linear, os processos migratórios se tornam demasiadamente simplificadas e empobrecidas tão quanto abrem as portas para falhas metodológicas e ontológicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo migratório já é complexo pelas várias referências socioculturais e dimensões no mundo globalizado. Há raras exceções no mundo atual de populações que não estejam conscientes do mundo globalizado ou, por exemplo, há raros casos de povos que nunca ouviram falar da Internet ou do telefone celular e que não estejam globalizados de alguma maneira. Portanto, o brasileiro emigrante já sai do Brasil com várias referências socioculturais complexas, em grande parte, devido à globalização. O processo migratório brasileiro é fluído e está sendo, pois esse movimento sempre esta mudando do momento que o emigrante sai do Brasil ao momento em que eventos não-previstos forçam as decisões nas vidas dos emigrantes em que se tornam transmigrantes. Como nos informa Siqueira (2006) em seu estudo sobre brasileiros emigrantes de Governador Valadares nos EUA, eles estão vivendo em dois mundos e países ao mesmo tempo sem fronteiras formais. A própria palavra “processo” indica movimento constante, e, portanto tratá-la como se fosse estática (em termos numéricos) traz uma dimensão problemática.

Como Buttimer (1976, p. 277) também nos informa o conceito de lugar significa uma noção sagrada de contacto emocional; algo que significa muito mais do que meramente uma moradia, e comenta: “strange indeed sounds the language of poets and philosophers…the humanistic geographer cannot afford to dismiss anything which may shed light on the complexities of man’s relationship to the earth” 3. Por isso a geografia é relevante nesse caso para mostrar a importância de lugar e de senso de lugar.

René Dubos (1972, p.100) nos disse que “nações existem não como entidades geológicas, climáticas ou raciais, mas como experiências humanas” 4, e assim no atual mundo globalizado, os processo migratórios brasileiros também existem como reflexo de experiências humanas.

A geografia (ou a falta dela) nos mostra como a identificação de populações nos censos nacionais altera a noção de identidade étnica e regional (como por exemplo, a categoria “Hispanico/Latino” nos EUA). Nesse caso, a geografia e o senso de lugar e o censo dos brasileiros dentro e fora do Brasil é importante para ressaltar o significado de identidade brasileira neste processo migratório para os Estados Unidos.

3 “Estranha é a linguagem de poetas e filósofos... o geógrafo humanístico não pode ignorar qualquer coisa que possa iluminar as complexidades do relacionamento do homem com a Terra”. 4 Todas as traduções neste manuscrito foram feitas por este autor do original em inglês para o português.

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REALIZAÇÕES E FRUSTRAÇÕES NO RETORNO À TERRA NATAL

Sueli Siqueira5

RESUMO

Migrantes e empreendedorismo na Microrregião de Governador Valadares é o tema deste artigo. A pesquisa de campo trabalhou com três grupos distintos: grupo I: Emigrantes que retornaram dos EUA para a Microrregião de Governador Valadares no período de 1970 a 2004, tornaram-se empresários e continuam no mercado até os dias de hoje. Grupo II Emigrantes que retornaram no período de 1970 a 2003 e tornaram-se empreendedores, porém fecharam suas portas e retornaram para a condição de imigrante nos EUA e Grupo III Emigrantes nos EUA que projetam retornar e tornar-se empreendedores. A pesquisa de campo foi realizada nos EUA e nas 25 cidades da Microrregião de Governador. Os dados demonstraram que o retorno é constitutivo do projeto de emigrar, contudo este retorno assume diferentes formas. O sucesso e o insucesso do retorno são resultantes das diferentes formas como o emigrante se reintegra à sociedade de origem.

Palavras-chaves: emigração, retorno, investimento, sucesso e frustração.

ABSTRACT The focus of this paper is the topic of migrants and entrepreneurism in the Microregion of Governador Valadares, Brazil. The field research involved three distinct groups: group 1: Emigrants who returned from the USA to the Microregion of Governador Valadares between 1970 and 2004, became entrepreneurs and have remained in the market up to the present time. Group II: Emigrants who returned between 1970 and 2003, became entrepreneurs but then closed their businesses and went back to the condition of immigrants in the USA and Group III: Emigrants in the USA who plan to return and become entrepreneurs. The field research was carried out in the USA and in the 25 towns of the Microregion of Governador Valadares. The data showed that the return is constitutive of the emigration project, however such return assumes different aspects. The success and failure concerning the return result from the different ways the emigrant re-integrates in their home society. Key Words: emigration, return, investment, success and frustration

INTRODUÇÃO

O Brasil, no início do Século XX, era um país que recebia imigrantes que se destinavam a compor a força de trabalho economicamente ativa e a partir dos anos de 1960, tem esse quadro modificado. De um país de destino torna-se um país de origem. Isso se deve à nova dinâmica do capitalismo, fundada, principalmente, na reestruturação econômica marcada pela internacionalização do capital. Nesse sentido, o fenômeno da migração internacional ganha outros contornos na atualidade. Diferentemente dos imigrantes do início do século passado, os novos migrantes não buscam exclusivamente a sobrevivência; são atraídos pela possibilidade de, nas cidades globais, manter ou elevar seu padrão de vida.

A cidade de Governador Valadares foi a localidade no território brasileiro onde se iniciou o fluxo migratório para os EUA. Hoje tal fenômeno não se restringe a essa cidade, várias localidades da Região do Vale do Rio Doce e do Brasil são pontos de partida dos fluxos migratórios para o exterior.

Este artigo, baseado na pesquisa empírica realizada nos EUA e na Microrregião de Governador Valadares, apresenta inicialmente os fatores que configuraram o fluxo migratório de Governador Valadares para o exterior, o retorno e investimento bem sucedido e mal

5 Professora da Universidade Vale do Rio Doce. Doutora em Ciências Humanas, Sociologia e Política, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Núcleo de Estudos e desenvolvimento Regional – NEDER da UNIVALE onde desenvolve pesquisa sobre migração internacional.

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sucedido dos emigrantes e as diferentes formas de retorno que se caracterizaram na região, ao longo dos últimos quarenta anos.

1. POR QUE OS VALADARENSES EMIGRAM PARA OS EUA?

A cidade de Governador destaca-se como o local geográfico, onde o fluxo de migração internacional começou. Quais os fatores que definiram o surgimento desse fluxo? Os pesquisadores que se dedicaram a estudar o fenômeno na região identificaram fatores históricos que possibilitaram a aproximação dos nativos com os estrangeiros, principalmente americanos, na década de 1940, no período da exploração da mica e posteriormente da construção da estrada de ferro Vitória a Minas (SALES, 1990; ASSIS, 1995, ESPÍNDOLA, 2005). Contudo, outras cidades e regiões receberam imigrantes que chegaram com objetivo de explorar as riquezas minerais e, no entanto, o fluxo migratório não se configurou.

Consideramos que o fluxo de emigração de valadarenses para os EUA é resultado de um conjunto de fatores e a presença desses imigrantes, é apenas um dos fatores, tendo em vista que possibilitou a criação no imaginário popular da idéia sobre os EUA como um lugar de grandes possibilidades e riquezas.

Destacamos quatro outros fatores igualmente decisivos na configuração desse movimento migratório que nos anos de 1980 atinge seu ápice. O primeiro deles é a existência de um mercado de trabalho secundário no país de destino, desprezado pelos trabalhadores americanos devido ao baixo status e baixa remuneração, mas atrativo para o emigrante devido à possibilidade de ganhar mais do que em seu país de origem (PIORE, 1995). O segundo é a crise de emprego e a queda no poder aquisitivo da classe média nos países de origem, resultado da reestruturação econômica que eliminou vários postos de trabalho. O fluxo de emigração de valadarenses para os EUA aumenta, exatamente, no período de 1985 a 1990 (SOARES, 1995), quando ocorre uma redução dos postos de trabalho devido a reestruturação produtiva que tem lugar na economia brasileira. Temos, portanto, fatores de expulsão na origem e atração no destino (PIORE, 1979) que constituem um quadro promissor, para a implementação do fluxo migratório de Governador Valadares para os EUA. Porém esses fatores ainda são insuficientes para explicar o fluxo, pois nenhum deles foi exclusivo da cidade e região.

O terceiro fator é o que consideramos o definidor que, juntamente com os outros, configurou esse fluxo migratório – a constituição das redes sociais. Com a ida dos primeiros valadarenses, na década de 60, deu início ao que é denominado na literatura de rede social, ou seja, um grupo de pessoas que possuem os mesmos objetivos e são da mesma região e por isso se apóiam. Na década de 80 as redes estão bem consolidadas em determinadas regiões dos EUA. Conforme afirmam Massey (1997), Boyd (1989) os migrantes vão para lugares específicos e para setores específicos do mercado de trabalho do país de destino, para isso acessam os recursos das redes sociais. São as redes que, quando configuradas, direcionam esses fluxos para determinados espaços geográficos e para certos setores específicos do mercado secundário. Assim, os emigrantes do sexo masculino da região de Governador Valadares, geralmente, se direcionam para a construção civil e as mulheres para as faxinas na região da Nova Inglaterra, nos EUA (SIQUEIRA, 2006).

Graças a essas redes, é possível para uma pessoa que não sabe inglês, nunca viajou para além de 500 km de sua cidade natal, não conhece as grandes cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte desembarcar no aeroporto de New York, chegar a Summerville e dois dias depois estar trabalhando como housecleaner ou na construção civil.

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O quarto fator a ser considerado é o surgimento, na origem, de mecanismos facilitadores para emigrar. Esses mecanismos são agências de turismo que colocam à disposição da população serviços, para conseguir o visto no passaporte e entrar legalmente no país. Oferecem serviços como: agendar entrevista no consulado, organizar a documentação necessária, informar como deve se vestir e proceder na hora da entrevista e providenciar transporte até o consulado, em São Paulo. Além desses mecanismos, existem os agenciadores, denominados cônsul, que organizam grupos de pessoas e providenciam todos os meios necessários para a travessia pela fronteira do México e outras formas de entrada ilegal nos EUA.

Somando-se a trajetória histórica da cidade, que na década de 1940, esteve entrelaçada com os EUA através da exploração da mica, com esses outros quatro fatores, temos o conjunto de fatores que configurou a rota migratória dos valadarenses para os EUA. Essa emigração que se iniciou, especificamente, em Governador Valadares, irradia-se de tal forma que hoje os locais de partida se espalham por toda a Região do Vale do Rio Doce e outras regiões do Brasil.

2. O PROJETO DE EMIGRAR

A decisão de emigrar é socialmente construída. Aqueles que migram fazem parte de uma etnia, participam de redes sociais e utilizam todo um conjunto de conhecimento social para realização de seu projeto. “[...] os imigrantes não devem ser vistos como indivíduos, mas como integrantes de estruturas sociais que afetam os múltiplos caminhos de sua mobilidade sócio-econômica.” (SASAKI e ASSIS, 2000, p.7).

A emigração é permeada pela idéia de ir para o país estrangeiro, trabalhar, fazer poupança e retornar para o local de origem em melhores condições. Nesse projeto a pessoa é incentivada pela perspectiva de abreviar o tempo para realizar os planos de comprar a casa própria, o carro ou montar um negócio, pois, se permanecesse no Brasil, o tempo para realizar este projeto seria bem maior e para alguns seria impossível. Ao longo dos últimos 30 anos, muitos conseguiram ir, formar uma poupança e retornar para tornarem-se micro, pequenos e médios empreendedores locais, estimulando, assim, a continuidade do fluxo. Entretanto, outros não são bem sucedidos ao retornarem. Por insucesso nos negócios ou não readaptação à vida anterior, acabam retornando à condição de emigrantes nos EUA.

2.1 Emigrantes da Microrregião de Governador Valadares nos EUA6

Em pesquisa realizada com emigrantes da Microrregião de Governador Valadares nos EUA, destacamos que a maioria está na faixa etária de 20 a 40 anos. No Brasil, tinham uma atividade profissional com renda mensal de até 3 salários mínimos e possuíam o segundo grau completo. Declaram que a principal razão de emigrar foi o desejo de ganhar dinheiro para adquirir bens no Brasil e melhorar de vida. A partir dos anos de 1990, um outro motivo passa a ter destaque: encontrar familiares. Esse é um dado que permite considerar que, para alguns, o projeto inicial de retorno é abandonado e as famílias se reencontram nos EUA.

A forma de entrada nos EUA pode ser legal, com visto de turista, de trabalho ou de estudante (52%); ou ilegal (48%) com passaporte falso ou passagem pela fronteira do México. Destaca-se que, mesmo entrando legalmente, tornam-se indocumentados quando começam a

6 Pesquisa realizada em 2004 na Região da Nova Inglaterra (Boston, Framingham, Summerville, Bridgeport, Newark, Danbury e Fairfield) com emigrantes cuja cidade de origem situa-se na Microrregião de Governador Valadares – Minas Gerais.

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trabalhar, pois o visto não dá direito de exercer qualquer atividade produtiva. A via ilegal tem aumentado, principalmente a partir do final dos anos de 1990. Dentre os entrevistados que chegaram aos EUA, a partir do ano dois mil, 76% entraram de forma ilegal, pela fronteira do México ou com passaporte falso. Isso se deve principalmente à dificuldade de se conseguir o visto de turista. O financiamento da viagem é feito, na maioria dos casos, pelos familiares que residem nos EUA; contudo, chama a atenção o fato de que 38% utilizaram-se de recursos próprios. O que demonstra que são pessoas que possuíam certa condição financeira no país de origem, e o projeto de migrar tem como objetivo manter ou melhorar o padrão de vida.

Nos EUA, o emigrante trabalha no mercado secundário, em condições precárias. Ganha por semana em torno de quinhentos a mil dólares, tem uma jornada de trabalho acima de 10 horas por dia e possui dois empregos. Por serem indocumentados utilizam security falso.

Quanto maior o tempo de permanência nos EUA, maior é a poupança realizada; em média, poupa mais de mil dólares por mês. Aquele que consegue montar um negócio (comércio ou prestação de serviços) nas cidades americanas onde reside, faz uma poupança maior. O principal objetivo da poupança é adquirir bens na cidade de origem.

O projeto de retorno está sempre presente. Aqueles que pretendem voltar nos próximos 2 ou 3 anos investem em negócios que, acreditam, lhes garantirá estabilidade financeira e um bom padrão de vida no Brasil. Investem ou pretendem investir, principalmente, no comércio (padaria, lojas, farmácia, supermercado, etc.), imóveis para aluguel e propriedade rural. Aqueles que já efetivaram os investimentos têm pessoas da família que administram e cuidam dos seus negócios. A maioria deles não fez nenhum tipo de pesquisa de mercado para verificar a rentabilidade desses investimentos.

Destaca-se que, mesmo aqueles que possuem uma vida estabilizada nos EUA (são documentados, possuem casa própria e um negócio ou emprego com bom salário) afirmam que pretendem retornar um dia ao Brasil. No entanto, para esses o projeto é sempre adiado; para quando se aposentarem, não conseguirem mais trabalhar ou os filhos ficarem independentes.

2.2 OS EMIGRANTES QUE RETORNARAM AO BRASIL, INVESTI RAM E REEMIGRARAM PARA OS EUA

Dentre os entrevistados residentes nos EUA que já voltaram ao Brasil, pelo menos uma vez (51,4%), grande parte (48,6%) tinha a intenção de ficar. Vieram com o projeto de tornarem-se empreendedores nas suas cidades de origem. Investiram, predominantemente, no comércio, agronegócio e serviços. Não fizeram nenhuma pesquisa de mercado, não buscaram informações em órgãos competentes e não fizeram nenhum tipo de treinamento na área administrativa. Definiram em que investir, a partir de informações dadas por parentes e amigos, ou porque consideraram que era um bom negócio, ou uma ótima oportunidade. Não possuíam experiência no ramo em que investiram e nunca tinham sido proprietários de algum negócio, não tendo, portanto, nenhuma experiência em como administrar uma empresa. Muitos foram à falência ou fecharam, por causa da baixa lucratividade, que impossibilitava a manutenção de um bom padrão de vida no Brasil. O retorno à condição de emigrante foi a solução encontrada. Hoje, vivem nos EUA e reconhecem os erros cometidos. A maioria continua com o projeto de novamente retornar para a cidade de origem.

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Gráfico 1

Um dado que chama a atenção nesse grupo que investiu e retornou à condição de emigrante nos EUA, é que 31,4% (Gráfico 1) consideravam que seus investimentos estavam indo bem e com renda suficiente para viverem no Brasil, mas não conseguiram permanecer no Brasil por não se readaptarem. Aqueles que se tornam documentados nos EUA passam a viver nos dois lugares, trabalham nos EUA e passam um ou dois meses no Brasil. Mantêm casa e carro no Brasil, para aqui desfrutarem o descanso. Tornam-se moradores de dois lugares. Dividem suas vidas, investimentos e trabalho nesses dois espaços. Como a perspectiva teórica baseada na transnacionalização preconiza, passam a viver em dois mundos diferentes, estabelecendo conexões entre as duas sociedades, entre o local e o global. Tornam-se transmigrantes num mundo globalizado (SIQUEIRA, 2006).

Vários estudos (MARGOLIS, 1994; SAYAD, 2000; FERREIRA, 2001; DeBIAGGI, 2004) realizados sobre a emigração brasileira para os EUA e de grupos de migrantes de outras nacionalidades, ressaltam que a idéia do retorno está implícita no projeto de migrar. Margolis (1994) descreve uma categoria que denominou de “migração iô-iô” para caracterizar aqueles migrantes que vão e retornam por várias vezes, sempre numa perspectiva de um retorno definitivo para seu país de origem. DeBiaggi (2004) destaca que no retorno à terra natal, além de determinantes econômicos como montar um negócio, está presente outro componente como a necessidade de voltar às raízes para reencontrar com sua identidade, sua família e os amigos. “Para esses retornados, as vantagens sociais e culturais sobrepõem-se às vantagens econômicas encontradas fora e aos custos e o declínio do poder de consumo.” (DeBIAGGI, 2004, p. 144).

O retorno para a terra natal apresenta-se para alguns mais difícil do que a decisão de emigrar. O estranhamento no reencontro com a família e em relação aos costumes, a sensação de não se reconhecer pertencente ao seu local de origem, torna-se angustiante para alguns emigrantes que retornam. O espaço geográfico e social, as pessoas idealizadas durante os anos de emigração já não são os mesmos. “[...] mudou tudo, as pessoas são diferentes, é tudo muito desorganizado [...]” diz Mário (52 anos) em seu relato sobre as dificuldades de retorno.

De modo geral, a maioria dos entrevistados que hoje se encontram nos EUA considera que a maior dificuldade de retorno está relacionada à situação econômica do país

31,4

48,6

2,9

17,1

não adaptou insucesso ampliar baixo retorno

Principais razões dos entrevistados, nos EUA, que r etornaram com a intenção de ficar terem reemigrado – 2004 (%)

Fonte: Pesquisa de campo Total de casos válidos 35

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(instabilidade econômica, juros altos, desemprego, etc.), readaptação aos costumes e à violência. Destaca-se que 16%, apesar de desejarem retornar ao Brasil, percebem que a maior dificuldade é abandonar a vida estabilizada nos EUA.

3. O RETORNO BEM SUCEDIDO7

Uma outra face desse fenômeno é o migrante que retornou e tornou-se empresário bem sucedido nas suas cidades de origem. São predominantemente do sexo masculino (87,3%), antes de emigrar a maioria não era casada, contudo, atualmente 65,9% são casados. Estão na faixa etária de 31 a 40 anos. Migraram muito jovens, 76,9% estavam na faixa de 15 a 31 anos. A escolaridade da maioria não se alterou ao retornar ao Brasil, possuem o segundo grau completo. Apenas 3,5% deles estavam desempregados quando emigraram. Grande parte (49,9%) trabalhava por conta própria antes de emigrar, fato que já indica um espírito empreendedor e experiência na administração de negócios; isto fica evidente, pois 52% investiram em negócios com os quais já tinham experiência anteriormente.

A emigração possibilitou um aumento da renda mensal (gráfico 2), uma vez que antes de emigrar a maioria (69,4%) tinha uma renda mensal de até três salários mínimos e atualmente 38,2% têm uma renda de 4 a 6 salários mínimos, e outros 20,8% de mais de 10 salários mínimos.

Gráfico 2

Estes dados demonstram que tais emigrantes não pertenciam a uma categoria que estava fora do mercado de trabalho e possuíam características includentes e não excludentes para o mercado de trabalho no Brasil, entretanto, optaram pela alternativa da emigração para melhorar o padrão de vida.

Esse é um dos aspectos em que a migração do início do século XX e a atual diferem. Os migrantes contemporâneos emigram, não em busca de sobrevivência, como os migrantes do passado, pois não estavam desempregados ou em situação de penúria, mas em busca de manter ou melhorar sua posição social e econômica. Um conjunto de fatores, que vão desde a existência de um mercado de trabalho secundário nos países de destino, a crise do emprego provocada pela reestruturação econômica nos países de origem que achatam as classes médias, as redes sociais que facilitam o processo de emigração e o próprio espírito de

7 Pesquisa realizada na Microrregião de Governador Valadares em 2005

Renda, em salários mínimos, antes e depois de emigrar do emigrantes empreendedores da

Microrregião de Governador Valadares - 2005 (%)

0

10

20

30

40

50

60

70

80

1 a 3 4 a 6 7 a 10 mais 10

antes

atual

Fonte: SIQUEIRA, 2006, p. 109. Total de casos válidos 173

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aventura do emigrante, até o retorno e investimentos bem sucedidos nos locais de origem de alguns emigrantes, define os fluxos migratórios contemporâneos.

Mais evidente fica essa constatação, quando observamos que o principal motivo declarado pelos atuais empreendedores para emigrar (53,7%) foi a possibilidade de ganhar dinheiro, retornar e investir no Brasil. É interessante ressaltar que 46,3% afirmaram que emigraram porque foi uma possibilidade que surgiu para conseguir atingir seus objetivos mais facilmente e em menor tempo.

Através das redes sociais a emigração para os EUA na Microrregião de Governador Valadares tornou-se uma alternativa viável e de fácil acesso. Para o jovem é uma das opções que lhe é apresentada numa fase da vida em que os projetos são construídos. Entre cursar uma faculdade e ir trabalhar nos EUA, muitos optam pela segunda.

A maioria dos empreendedores bem sucedidos (82,7%) emigrou exatamente no período de aumento do fluxo, ou seja, na década de 1980. Permaneceram de 3 a 10 anos (75,7%). Conforme assinala Fusco (2005), as redes sociais ajudam os seus componentes a conseguir acesso aos recursos financeiros e sociais que possibilitam seu ingresso numa sociedade sobre a qual não têm ou têm poucas informações. O acesso aos empregos só é possível através das redes, pois 64% dos entrevistados conseguiram seu primeiro emprego através de amigos e parentes. Essas redes fazem a conexão entre a origem e o destino; através delas tramitam as informações, desenvolvem-se os mecanismos que facilitam a saída do lugar de origem e a chegada no destino. A conexão fica evidenciada no percentual dos entrevistados que informaram terem saído do Brasil com emprego garantido nos EUA (34%). Esses empregos foram arranjados por parentes e amigos, o que demonstra a importância das redes sociais na configuração e na direção do fluxo migratório.

Como os emigrantes mal sucedidos no projeto de retorno, esses também trabalhavam no mercado secundário em condições precárias. Na pesquisa constatou-se ainda que a renda semanal da maioria era de quatrocentos a seiscentos dólares, sendo que 50,9% poupavam entre mil a dois mil dólares mensais. Destacamos que 82,7% faziam remessas mensais para o Brasil; a principal finalidade das remessas eram as despesas da família e investimentos. Desde a década de 1980, as remessas representam um importante componente da economia da Microrregião.

3.1 DIFICULDADES PARA TORNAR-SE EMPREENDEDOR NO BRASIL

O principal objetivo do projeto de migrar, dos emigrantes bem sucedidos, era tornar-se empreendedores nas suas cidades de origem. É interessante ressaltar que 41% deles tinham um projeto concreto de investimento, ou seja, já tinham definido em que investir quando retornaram; outros 21,4% já tinham realizado o investimento, enquanto ainda estavam nos EUA. Esses investimentos, geralmente, foram realizados por parentes próximos ou sócios, e 25,4% tinham a intenção de montar um negócio, mas ainda não sabiam qual.

A maioria afirma que não teve grandes dificuldades ao retornar, contudo 31,2% relatam que o maior obstáculo encontrado foi compreender novamente a economia do país, sentiam-se inseguros quanto aos investimentos realizados. Outros 27,7% apontaram a readaptação como a grande dificuldade do retorno. Relembrando que 31,4% dos emigrantes que reemigraram e investiram, acabaram retornando novamente aos EUA, não devido ao insucesso do investimento, mas porque não conseguiram se adaptar à vida no Brasil. Muitos deles acabaram tornando-se moradores de dois lugares, vivendo parte de suas vidas no Brasil e parte nos EUA. Essa dificuldade, a readaptação, é um aspecto importante da reemigração a ser considerado.

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Por tudo isso, muitos afirmam que retornar é mais difícil do que emigrar, pois quando emigram estão cheios de esperança e quando retornam são acometidos pelo estranhamento de seus lugares de origem e das pessoas que habitavam seu universo social. Isto ocorre porque, durante o tempo de afastamento, idealizaram as relações sociais e o espaço onde viviam e quando retornam não o reconhecem. Tempo de emigração é um tempo fora do curso natural da vida. Além disso, são assombrados pela incerteza quanto ao sucesso do investimento, e o medo de perder tudo os deixa apreensivos.

Esse mesmo sentimento de não pertencimento no retorno é relatado por Hall (2003) no seu estudo sobre a dispersão caribenha no EUA, Canadá e Reino Unido. Estes emigrantes, como os brasileiros da Microrregião de Governador Valadares, não se sentiam em casa quando retornavam para suas cidades de origem, pois segundo Hall já eram habitantes de dois lugares. Tal sentimento ocorre no impacto da chegada, mas alguns conseguem readaptar-se e permanecer, fazendo assim, o caminho de volta à origem.

3.2 O INVESTIMENTO NA MICRORREGIÃO DE GOVERNADOR VA LADARES

Os anos de trabalho duro, de solidão e saudades e de privações resultaram na possibilidade de investir e tornarem-se donos de seus próprios negócios no Brasil, fazendo com que 92,5% dos emigrantes bem sucedidos afirmem que a experiência de emigrar foi positiva, pois possibilitou melhorar sua situação econômica no Brasil.

Gráfico 3

A escolha do tipo de investimento foi definida pela experiência anterior no ramo; a maioria dos investimentos foram realizados na área do comércio, tanto em Governador Valadares como nas outras cidades da Microrregião. Entretanto, o investimento em agronegócio é maior nas outras cidades. Isso se deve ao fato de Governador Valadares ser uma cidade pólo da região e onde o comércio é mais dinâmico.

O investimento inicial da maioria (46%) dos empreendimentos é da ordem de 20 mil dólares e 16% investiram mais de 100 mil dólares. Apenas 11,4% não contratam mão-de-obra; a maioria emprega entre quatro a cinco pessoas e paga entre um a dois salários mínimos. São empreendimentos legalizados que pagam em torno de quatrocentos a mil e duzentos reais por mês de impostos. Estes dados nos permitem concluir que a maior parte dos

70 56

21

511

1

11

65

comércio (62%) serviço (12%) industria (5%) agronegócio(41%)

Setor de investimento - Emigrantes empreendedores d a Microrregião de Governador Valadares - 2005 (%)

Gov. Valadares Outras cidades

Fonte: Pesquisa de campo. Total de casos válidos 173. Obs. Respostas múltiplas

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empreendimentos é de pequeno porte e oferecem poucos postos de trabalho. Poe outro lado, se considerarmos que na microrregião, devido ao seu baixo dinamismo econômico, a oferta de empregos está abaixo da demanda da população economicamente ativa, pode-se afirmar que estes empreendimentos contribuem para o dinamismo da economia na região.

Muitos avaliam que seus investimentos são bem sucedidos e que suas empresas estão em fase de crescimento (60%). Para 32% suas empresas são sólidas com boas perspectivas no mercado; consideram que sem a emigração jamais conseguiriam investir em empreendimentos produtivos do porte dos que possuem hoje.

4. RETORNO E INVESTIMENTO: SUCESSO E INSUCESSO

Migrar, ganhar dinheiro no país de destino, retornar e investir para melhorar sua condição social, ou até mesmo manter uma posição socioeconômica que estava perdendo, é o projeto inicial da grande maioria dos emigrantes; esse projeto é, porém, quase sempre reelaborado. Conforme afirma Assis (2004) cada migrante vivencia de maneira diferenciada a situação de emigração, mesmo que o projeto tenha sido elaborado pela família ou comunidade, a experiência não é vivida de modo homogêneo por todos. As mudanças ocorrem em função das diferentes trajetórias dos sujeitos.

Dependendo do contexto e da interação do sujeito com as várias possibilidades que se lhes apresentam durante o período de emigração e o capital social de cada emigrante, podemos considerar que o sucesso e o insucesso do projeto migratório são relativos, pois o retorno se dá de modo diferenciado para cada um. No percurso da vida o emigrante retorna para algum ponto, mesmo que seja fora de sua cidade de origem, ele reconstrói seu projeto e passa a viver em outro espaço e tempo. Contudo alguns não conseguem retornar para a origem nem ficar no país de destino, torna-se sem lugar, desterritorializados.

Por que alguns retornam, investem e não obtêm sucesso e outros fazem a mesma trajetória e tornam-se empreendedores bem sucedidos na Microrregião de Governador Valadares? Quando comparamos esses dois grupos percebemos que as variáveis sócio-demográficas são semelhantes.

Uma variável que demonstra um diferencial entre esses dois grupos é o tempo de emigração. A maioria (44,5%) dos empreendedores que obtiveram sucesso permaneceu em torno de dois a quatro anos, enquanto aqueles que não obtiveram sucesso ficaram em torno de 5 a 10 anos (62,9%) nos EUA. Um tempo maior fora do local de origem distancia o sujeito da realidade, tanto do ponto de vista econômico como das relações sociais. Quanto mais tempo distante maior é a idealização desse espaço geográfico e social e a dificuldade de readaptação será bem maior. Além disso, durante os anos de trabalho nos EUA, atuavam como empregados no mercado de trabalho secundário, não tendo adquirido nenhuma experiência gerencial ou administrativa.

Outro aspecto que distingue os dois grupos refere-se à forma como foi decidido em que investir. Entre os empreendedores bem sucedidos, a maioria (52,6%) investiu em atividades com as quais tinha experiência, e outros 14,5% se associaram à pessoas com experiência no ramo. Diferentemente, 51,4% dos entrevistados que não foram bem sucedidos definiram seus investimentos a partir de informações de amigos e parentes, e apenas 17,1% tinham experiência na área em que realizaram o investimento.

A constituição e consolidação de uma comunidade brasileira, na região da Nova Inglaterra, têm diminuído as dificuldades de adaptação e criado um espaço onde o brasileiro pode sentir-se brasileiro. Esse espaço Margolis (1994) denominou de Little Brazil. Várias

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lojas de roupa, mercearias, padarias, restaurantes e empresas de serviços destinados a atender o público brasileiro foram criados. Além desse espaço comercial, atividades culturais e sociais, igrejas de diferentes credos também surgiram, formatando um espaço no país de destino específico de brasileiros. Somando-se a isso as dificuldades do retorno para a cidade de origem, a tendência é da redução do retorno e do envio de dólar, à medida que a comunidade brasileira vai se organizando nos EUA.

Os dados demonstraram, a partir dos anos de 1990, o principal motivo para emigrar apresentado por 28% dos brasileiros entrevistados nos EUA é o reencontro com a família que já residia lá. Esses emigrantes dificilmente retornarão ou farão investimentos produtivos nas localidades de origem. Além disso, a segunda geração e os que foram ainda crianças8 mesmo mantendo laços afetivos com os familiares no Brasil, dificilmente farão investimentos produtivos nos locais de origem de seus pais.

A Região do Vale do Rio Doce e sua Microrregião de Governador Valadares, historicamente, passaram por ciclos econômicos que deixaram rastros nefastos na economia regional. Para que o fenômeno migração internacional não se torne mais um ciclo predatório como os da mica, da madeira e mais recentemente da agropecuária, é necessário que programas sejam criados para orientar os investimentos dos emigrantes que retornam. Destacamos que os dados demonstram que 61,7% dos emigrantes entrevistados nos EUA afirmam que pretendem retornar a suas cidades de origem. É necessário que a sociedade civil, entidades de classe e o poder público, elaborem, com urgência, programas que canalizem e oriente os investimentos desses que pretendem retornar para que não aconteça com eles o que aconteceu com os 48,6% dos entrevistados que emigraram para os EUA, retornaram, investiram na microrregião e foram mal sucedidos, tornando-se emigrantes novamente.

5. AS DIFERENTES FORMAS DE RETORNO

Considerando que a emigração se assenta em quatro pontos: ir – ganhar dinheiro – retornar – investir, durante o percurso, dadas as condições sociais, esse projeto migratório é reelaborado e o retorno apresenta diferentes nuances. Assim podemos considerar que existem quatro tipos de retorno:

1 – Retorno temporário - O emigrante define os EUA como seu local de moradia, lá tem sua família, seu trabalho, e seus investimentos. Vem ao Brasil de férias (mesmo o indocumentado que volta para os EUA pela fronteira do México e atualmente pela Guatemala). traz seus filhos, que geralmente são documentados, para passar férias, festejar o aniversário, assistir a casamentos e outros festejos da família, no Brasil. Recebe os jornais locais nos EUA ou acessa através da internet, manda dinheiro para ajudar a família e ajuda entidades de caridade locais. Nos EUA muda seu padrão de vida e consumo, pois já não tem a preocupação de fazer poupança para voltar e investir no Brasil.

2 – Retorno continuado. O emigrante retorna à cidade de origem investe e acaba perdendo tudo ou não consegue se readaptar; reemigra, mas continua mantendo o projeto de voltar. Alguns fazem esse caminho por várias vezes. Restringem seu padrão de vida e de consumo nos EUA, objetivando fazer uma poupança para tornar a investir em sua cidade de origem9. Neste grupo, depois de algumas tentativas frustradas, alguns desistem e passam a pertencer ao primeiro grupo.

8 Denominado na literatura geração 1.5 9 Margolis (1994) denomina de migração iô-iô.

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3- Retorno do Transmigrante. O emigrante que vive nos dois lugares, está sempre retornando ao país de origem e ao de destino. É documentado, tem vida estabilizada nos EUA. Possui casa, faz investimento e trabalha nos dois lugares, passando parte do ano no Brasil e parte nos EUA. Participa ativamente da vida social das duas sociedades. Alguns são membros de associações nos EUA (câmara do comércio, grupo de escoteiros, brigada de incêndio) e no Brasil (associações de classe, cargos públicos como de vereador ou prefeito). Hoje, já podemos dizer que são transmigrantes, transitam, têm visibilidade e são atores sociais nos dois lugares 10

4 – Retorno permanente. O emigrante retorna, readapta-se e se estabelece na sua cidade ou país de origem, e não pretende emigrar novamente. No caso deste estudo é o que se tornou empreendedor na Microrregião de Governador Valadares. Credita a sua condição de empreendedor bem sucedido ao seu projeto migratório.

Essas diferentes formas de retorno denunciam não só a angústia de uma realidade vivida, a ausência e a presença em um determinado espaço social, um ponto de partida para o qual não se volta mais, mas também a engenhosidade desses aventureiros, desbravadores e ousados atores sociais que reescrevem suas trajetórias e por que não dizer, reconquistam e redimensionam os espaços físicos e sociais que passam a ocupar.

CONCLUSÃO

A emigração da Microrregião de Governador Valadares para os EUA definiu-se a partir de um contexto histórico que criou, no imaginário popular, a idéia da existência de um lugar onde era fácil ganhar dinheiro e “fazer a vida” em pouco tempo. As redes sociais e os mecanismos facilitadores da emigração possibilitaram o início e o crescimento do fluxo de migração da região para os EUA.

Os dados nos permitem considerar que para os emigrantes da microrregião de Governador Valadares que vivem nos EUA, o sonho de retorno está permanentemente presente, apesar de todas as dificuldades existentes. Os que, concretamente, planejam o retorno nos próximos 2 ou 3 anos, investem em imóveis para aluguel e na montagem de negócios nas áreas do comércio e serviço. Como os que retornaram e acabaram tendo insucesso no investimento, esses também não têm nenhuma experiência empresarial, ou seja, fazem ou pretendem fazer seus investimentos sem um plano estratégico, sem conhecimento prévio do mercado e sem nenhuma assessoria técnica. Provavelmente, incorrerão nos mesmos erros, ou seja, farão investimentos inadequados e acabarão perdendo toda a poupança que conseguiram formar com seu árduo trabalho como imigrante nos EUA.

O capital social do emigrante é um fator importante no sucesso do investimento, porém existem alguns fatores que contribuem para o sucesso ou insucesso do projeto de retornar e investir na cidade de origem. A emigração possibilita a poupança para iniciar seu empreendimento, mas não o habilita a tornar-se empresário. O mercado exige racionalidade e conhecimento para que o investimento seja bem sucedido. A experiência no ramo de negócio a ser iniciado e o conhecimento sobre a economia, o funcionamento do mercado e de como administrar uma empresa não se adquirem com anos de afastamento dos locais de origem, ao contrário, este afastamento resulta em uma idealização desse espaço geográfico e das relações sociais nele desencadeadas. Sem referências econômicas reais, a falta de racionalidade e o amadorismo nos investimentos, o resultado é o insucesso.

10 Portes (1996), Mansey (1997), e outros estudiosos denominam de transmigrantes.

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Em relação ao objeto central deste artigo que é compreender o fenômeno da migração internacional, no que se refere ao movimento de ida e retorno e seus efeitos na abertura de novos empreendimentos na Microrregião de Governador Valadares, os dados nos permitem considerar que esses empreendimentos dão dinamismo à economia da região, pois mesmo sendo em sua maioria empresas de baixo investimento e com pequeno número de empregos, criam postos de trabalho e, por serem documentadas, pagam seus impostos.

Se tomarmos como referência o fato da Microrregião de Governador Valadares apresentar a mesma tendência estrutural de estagnação econômica da Macrorregião do Rio Doce, da qual faz parte, podemos considerar que o investimento produtivo dos emigrantes retornados é um elemento que contribui para o aumento dos postos de trabalho e a dinâmica da economia local. Contudo, existe outro aspecto que não pode deixar de ser considerado, e que diz respeito às conseqüências desse fenômeno da migração internacional para a região.

Uma dessas conseqüências é a supervalorização do preço do imóvel em toda a região. Uma casa é vendida por três vezes o seu valor real, porque o emigrante que está nos EUA paga este valor; o mesmo acontece com as propriedades rurais. Para o emigrante, além do valor de mercado existe um valor simbólico que é comprar a casa na rua onde morava de aluguel, a fazenda onde era vaqueiro. É a possibilidade de mostrar para si e para os outros que seu projeto de emigrar foi bem sucedido. Entretanto, o valor monetário, por ser irreal na perspectiva do mercado, não se manterá por muito tempo.

Os investimentos em imóveis para alugar é outro efeito da emigração, porém, este setor já sente os efeitos da oferta maior que a procura. Na cidade de Governador Valadares já é sentida pelos proprietários de imóveis para aluguel, a queda no preço dos aluguéis.

É importante que tanto o poder público, quanto a sociedade civil tenham ações que propiciem a fixação dos que retornam e buscam meios de permanecer na sua região de origem, fazendo investimentos produtivos e viáveis. Há uma grande carência de políticas e projetos que orientem os emigrantes quanto à escolha do tipo de negócio e os qualifiquem para administrar adequadamente os empreendimentos, tornando-os competitivos e rentáveis. São necessários também projetos que auxiliem o migrante no seu retorno e na sua readaptação ao local de origem, evitando assim que ele se torne um migrante novamente, ou um transmigrante.

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RETORNO DE MIGRANTES INTERNACIONAIS AO PAÍS DE ORIGEM:

CONEXOES E DESCONEXÕES

Devani Tomaz Domingues11

RESUMO

Este artigo traz uma parte dos resultados da pesquisa realizada para a elaboração da dissertação de mestrado em sociologia. O estudo busca conhecer os impactos da re-entrada ao país de origem para o emigrante retornado; como ele idealiza e em quais condições e de que forma ele viabiliza o projeto de retorno. Delineia a trajetória de (re)construção da identidade do emigrante retornado; antagonismos, valores e sentimento de pertencimento frente ao projeto de concretização ou não do retorno. Para entender essas questões foram realizadas 38 entrevistas em profundidade e constituídos cinco grupos focais com emigrantes internacionais, sendo quatro grupos com emigrantes retornados dos Estados Unidos e residentes em Governador Valadares e um grupo com emigrantes que ainda residem nos Estados Unidos. O grupo de estudo foi estruturado com a utilização da técnica da bola de neve, totalizando 44 emigrantes. Destes, 70,5% residem na cidade de Governador Valadares e 29,5% moram em condados dos Estados Unidos e estavam a passeio na cidade. Nos relatos, os entrevistados explicitaram diferentes formas de estranhamento no retorno ao país de origem, referindo ao ‘choque’ no reencontro com sua família e amigos, na relação com o lugar e o trabalho. Entre os emigrantes retornados, 41,9% planejaram retornar, 19,4% retornaram devido à doença pessoal, doença ou morte na família, e 38,7% por outros motivos voltaram à cidade. Todos afirmaram que contaram com a ajuda da família e/ou de amigos no retorno, e 90,9% mantêm contato por telefone e/ou internet com amigos e parentes nos Estados Unidos. Garantir o espaço de ‘trabalho’ é fundamental no retorno, principalmente através do investimento em algum tipo de negócio (41,9%) ou na condição de trabalhador autônomo (19,4%).

PALAVRAS CHAVES: Emigração, Retorno, Trabalho, Identidade.

SUMMARY

This article is a part of the results of the research for the elaboration master's degree dissertation in sociology. The study searches to know impacts of the re-entrance to the origin’s country for the regressed emigrant; how the idealizes in which conditions and how he makes possible the return project. He/she delineates paths of (re)construction of the regressed emigrant's identity; antagonisms, values and concernig feelings of the return or not return . To understand these questions, they were accomplished 38 interviews in depth and they were accomplished five focal groups with international emigrants, being four groups regressed emigrants from United States and residents that live in Governador Valadares. The other are emigrants that still live in the United States. The study group was structured with the technique snow ball, totaling 44 emigrants. Of these groups, 70,5% live in Governador Valadares and 29,5% live in countries from the United States and they were walking there. The reports show different ways of the strangeness from the interviewees returning ti the origin, referring to the 'shock' in the new meeting with family, friends, relationship with the place and the work. Among the regressed emigrants, 41,9% returned, 19,4% regressed due to the personal disease, family disease or family death and 38,7% returned for other reasons. All of them said that they counted with the family help and/or friends help. 90,9% continues maintaining contact for telephone and/or internet with friends and relative in the United States. To guarantee the space to work in the return is fundamental, mainly through investment in some kind of business type (41,9%) or in autonomous worker's condition (19,4%).

KEY WORDS: Emigration, Return, Work, Identity.

INTRODUÇÃO

Com base nas possibilidades múltiplas de identificação do sujeito moderno ou pós-moderno (HALL, 2005), busca-se através da análise dos dados da pesquisa de campo reconhecer esse sujeito e as características peculiares das relações globais do mercado de trabalho e da sociedade de consumo através do fenômeno da migração internacional. Nesse sentido, a relevância deste estudo é que ele permite reconhecer os impactos desse processo no

11 Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais pela Fundação Percival Farqhuar, atual UNIVALE. Funcionária pública do município de Governador Valadares.

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indivíduo e os seus efeitos sociais e culturais no local de origem. Na re-entrada do emigrante, em seu próprio país, os investimentos não são somente econômicos, mas também envolvem relações sociais, afetivas e culturais com sua comunidade local. Discutem-se, ainda, as redefinições identitárias dos emigrantes retornados através das (re)negociações em seu local de origem.

A pesquisa teve como objetivo geral caracterizar a migração de retorno como parte constituinte da migração internacional na configuração da sociedade moderna. O trabalho de campo foi realizado na cidade de Governador Valadares nos três últimos meses do ano de 2006 e no primeiro semestre de 2007, adotando a metodologia qualitativa que se apresenta apropriada para conhecer as nuances do objeto em estudo. Como instrumentos metodológicos, foram utilizados a entrevista em profundidade e os grupos focais.

Neste trabalho considera-se que o processo de saída da comunidade de origem e o contato com outra sociedade no exterior, permeada de novos valores e signos a serem interpretados pelo e/imigrante, provocam uma desconexão tanto com sua cultura local quanto consigo mesmo, com seu próprio ‘eu’, que no primeiro momento empreende num ajustamento à nova sociedade. Porém, ao mesmo tempo, a rota é permeada de conexões, porque os emigrantes mantêm seus laços de origem, utilizando os meios de comunicação, facilitados e próprios da sociedade pós-industrial, e se fortalecem para alcançar o objetivo de concretizar o projeto de retorno ou para permanecer no país de destino. Esse duplo relacionamento entre lugar de origem e destino, numa vivência pós-moderna do tempo e espaço, é denominado aqui como conexões e desconexões.

Na análise dos dados buscou-se identificar os fatores sócio-econômicos e culturais determinantes para a decisão de retorno; caracterizar o grupo de emigrantes retornados da amostra – perfil econômico e social; delinear a trajetória do emigrante no país de origem a partir do seu retorno; identificar os mecanismos usados pelo emigrante retornado para inserção em determinados setores da economia local; descrever a condição social e cultural do emigrante retornado na perspectiva das novas configurações do trabalho e da situação econômica da região. Neste artigo, em especial, aborda-se a motivação do retorno e os aspectos do estranhamento do lugar, da família e do trabalho.

Para fundamentar o problema em análise, inicialmente serão apresentadas reflexões teóricas sobre a questão da identidade e uma visão geral de aspectos da migração internacional com um breve histórico do Brasil no contexto desse fenômeno, destacando a participação de Governador Valadares no processo das emigrações e retorno. A seção seguinte descreve a metodologia utilizada, e, logo após, caracteriza-se a amostra de estudo e discutem-se as questões antagônicas do processo, ressaltando os motivos e ajuda recebida no retorno e a percepção do lugar de origem pelo emigrante retornado, o qual fala sobre o estranhamento do lugar, da família e do trabalho através da percepção da diferença em função da experiência da emigração aos Estados Unidos. Para concluir, são feitas as considerações sobre os resultados parciais da pesquisa.

A MIGRAÇÃO INTERNACIONAL

Os objetivos e as questões que norteiam o estudo estão inseridos numa dimensão macro do fenômeno. Para compreender essa dimensão e a importância social deste estudo, junto à discussão sobre a “identidade fragmentada” (HALL, 2005), faz-se necessário uma contextualização do fenômeno da migração internacional, situando o Brasil no contexto desse processo e, em especial, a significativa participação da cidade de Governador Valadares nos fluxos brasileiros de emigração para outros países.

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A migração internacional, na perspectiva da análise sociológica, envolve dimensões múltiplas, que justificam a busca da compreensão multidisciplinar do tema. Aparentemente é um assunto pontual, mas, à medida que as questões se apresentam e que se atenta para as novas descobertas empíricas, se reconhece a sua complexidade e seus paradoxos. E, nesse caminho, as portas se abrem para, junto com o sujeito migrante, perceber as ilusões como condição para o início e continuidade da imigração nos países recebedores e da emigração nos países enviadores (SAYAD, 1998).

Um mesmo sujeito se insere, assim, num complexo processo, que se desdobra em diversos projetos em consonância com a expectativa e natureza da migração, fundamentando-se em imagens coletivamente construídas. A manutenção dessa estrutura ‘ilusória’ e seus efeitos são garantidos “por uma espécie de cumplicidade objetiva (i.e., a despeito dos interessados e sem que haja para tanto um acordo prévio), compartilhada pelos três parceiros que são a sociedade de emigração, a sociedade de imigração e os próprios emigrantes/imigrantes, os primeiros a estarem concernidos” (SAYAD, 1998, p.18). Descobre-se com Sayad (1998) que o projeto envolve variáveis observáveis e outras que permanecem obscuras para o migrante e até mesmo para um pesquisador, porque a base do processo são as ilusões.

Ao qualificar essas ilusões, Sayad (1998) reforça o que aqui chamamos de antagonismo do processo. Do lado do país de destino, há a ilusão de uma presença provisória e do outro lado uma ausência igualmente provisória. Esse caráter ilusório da presença que se prolonga e do adiamento da concretização do projeto de retorno somente é reconhecido a posteriori, e o ‘trabalho’ se apresenta como um forte álibi para essa inconfessável ambigüidade. O trabalho vem simbolizar o acesso ao ‘dinheiro’ para a realização do sonho da casa própria, do poder de consumo e de melhoria do padrão de vida. As idealizações do que se deixou para trás alimenta a vontade daqueles que esperam retornar. A espera se prolonga, o tempo é dedicado ao trabalho, e o contato com os familiares no país de origem se torna essencial para encorajar o emigrante em sua ‘aventura’.

Ressaltando esse aspecto ambíguo do problema, este estudo pretende explorar, um pouco mais, a chamada categoria dos emigrantes retornados a fim de entender a relação desse emigrante com os diferentes espaços culturais e históricos e se sua identidade é redefinida em função de sua experiência e da construção de laços antagônicos entre os dois espaços, aqui definidos como Estados Unidos e Brasil, mais especificamente, Governador Valadares e diversos condados dos Estados Unidos da América. Pretende-se, também, contribuir com a literatura científica, trazendo à discussão o estudo da migração de retorno, referendado pelos avanços e aprimoramentos de conceitos da sociologia econômica e da sociologia da migração, com a compreensão de que ‘retorno’ não é uma categoria fixa, mas uma categoria que se multiplica em função das diferentes variáveis envolvidas no processo de retornar ao país de origem e/ou ao país de destino, considerando, nesse último caso, que alguns indivíduos mantêm residência em dois lugares e ocupam ativamente seu espaço no meio social.

Observa-se a migração internacional como um caleidoscópio, e, dessa forma, a migração de retorno é uma das facetas do processo. É possível que o olhar do ‘lugar da volta’ em seu próprio país de origem seja para o emigrante retornado como o olhar de um estrangeiro ou como o olhar daqueles que chegam depois de um período ausente, com a sensação que perderam uma parte da história. A idéia central é que o desejo de ‘ficar’ e a concretização do projeto de retorno estão vinculados às redefinições de identidade através da reconquista do espaço social pelo sujeito que emigrou. A concretização do projeto é também um discurso antagônico nem sempre claro para os emigrantes que se redescobrem em sua experiência. Tal como afirma Hall (2005, p.25), “as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”. Nesse aspecto, a

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identidade do sujeito está relacionada ao seu tempo e à sua condição na vida social e “está sempre incompleta, sempre em ‘processo’, sempre sendo ‘formada’” (HALL, 2005, p.38). E, para a compreensão dessas condições, esse teórico enfrenta questões como a de explicar a afirmação de que as identidades modernas estão “descentradas” e repletas de implicações (HALL, 2005).

Destacando a complexidade da discussão devido ao próprio conceito de identidade “ser muito pouco desenvolvido e compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova” (HALL, 2005, p.8), esse teórico desenvolve sua argumentação através de um crescente entendimento de mudanças ocorridas ao longo do tempo na sociedade ocidental e na forma da identificação do sujeito em relação ao seu tempo e espaço, centrando atenção às identidades culturais.

Em seu estudo, Hall (2005) diferencia, de forma simplificada, três concepções de identidade a partir de uma análise histórico-sócio-cultural: a concepção de identidade do sujeito do iluminismo, a concepção de identidade do sujeito sociológico e a concepção de identidade do sujeito pós-moderno. De uma conceituação considerada ‘individualista’ – sujeito do iluminismo, passamos por uma outra concepção de sujeito sociológico que refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que o núcleo interior do sujeito não era autônomo nem auto-suficiente, mas sim formado na relação com o outro, principalmente com aqueles que eram referências para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava. E, de forma sintética, Hall (2005) conclui que a concepção de identidade do sujeito pós-moderno apóia-se no argumento que a identidade unificada e estável está se tornando fragmentada. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, desvinculado de uma identidade fixa, essencial ou permanente, para um confronto com múltiplas possibilidades identitárias, ou seja, pelo menos temporariamente o sujeito pode estabelecer uma identificação com cada uma delas. Um outro aspecto dessa questão da identidade, segundo Hall (2005), está relacionado ao caráter da mudança na modernidade tardia, particularmente ao processo de mudança conhecido como “globalização” e seu impacto sobre a identidade cultural. Ao avaliar a discussão da identidade em crise, Hall (2005) sustenta que a modernidade possibilita ao sujeito experimentar formas diversas de vivenciar e se identificar em relação ao outro e ao próprio meio onde vive. Possivelmente, a trajetória do emigrante retornado demonstra com nitidez esse aspecto da sociedade ocidental moderna.

A modernidade foi objeto de estudo do pensamento sociológico clássico sendo destaque nas obras de pensadores como: Karl Marx (1818-1883), Durkheim (1858-1917), Max Weber (1864-1920) e, mais recentemente, Elias (1897-1990). Esses grandes teóricos buscaram elucidar suas características e se posicionaram, à sua época, discutindo questões como a constituição, estruturação, processos de mudanças e as demais tendências da sociedade. Explicitaram, a partir de suas pesquisas, preocupações com o homem e a sociedade. Como o centro da preocupação se constituía num complexo conjunto de variáveis em transformação, que remonta, principalmente, aos séculos XVI e XVII12, verifica-se que a migração internacional ainda não se apresentava como problema sociológico, reservando a esse fenômeno um papel secundário. Ao contrário, atualmente, as discussões em torno do problema têm avançado e ganhado novos contornos.

12 Foi uma época considerada de grandes inovações na ciência e na tecnologia, que encadearam outras séries de mudanças, rompendo padrões de comportamento e promovendo nova organização social fundamentada na indústria, no processo de urbanização e em novos paradigmas de valoração cultural.

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No início do século XX, devido ao aumento da mobilidade populacional da Europa para os países do Novo Mundo, principalmente para os Estados Unidos, os sociólogos americanos iniciaram a sistematização de estudos sobre a migração. A Escola de Chicago se tornou referência e teve como questão central a compreensão do processo de integração do imigrante à sociedade americana, a partir do trabalho pioneiro de Thomas e Zaretsky (1918) – The Polish Peasant in Europe and América13. Este é um estudo clássico na área da migração que, além de refletir o pensamento sociológico da época, influenciou o desenvolvimento teórico das décadas seguintes. Apesar das críticas posteriores aos trabalhos da Escola de Chicago, esta representa um marco para os estudos do fenômeno da migração internacional, como um problema sociológico.

A análise do fenômeno pelas ciências sociais tem dado atenção a diferentes variáveis porque a migração internacional apresenta uma nova configuração com elementos característicos da sociedade moderna ocidental. Uma sociedade que concilia “formas contrastadas, mas interdependentes de comportamentos essenciais à perpetuação das sociedades industriais que aparelham consumo e produção, diversão e trabalho” (CAMPBELL, 2005, p. 317). Esse teórico, em sua tese sobre o consumismo moderno, identifica a ética romântica14, voltada para o prazer e o consumo como cultura gêmea da ética protestante15. Não desenvolvemos os argumentos teóricos dessa linha de pensamento, mas aproximamos a discussão do tema de estudo por observar que os deslocamentos populacionais têm forte motivação na justificativa do trabalho e das condições de vida que envolvem também o consumo em diferentes níveis e a garantia do bem-estar.

As mudanças ocorridas ao longo dos tempos, tanto nos aspectos econômicos quanto sociais e culturais, provocaram novo ritmo ao processo migratório, intimamente relacionado às alterações das relações de trabalho que, hoje, se desenvolvem num campo global. Além do

13 Portes (1995) destaca essa obra, de William I. Thomas and Florian Zaretsky (1918-1920); (reimpresso, Chicago: University of Illinois Press, 1984) na nota 3, juntamente com as obras de Robert E. Park “Human Migration and the Marginal Man”, American Journal of sociology 33 (Maio de 1928): 881-893; e Everettt V. Stonequist, The Marginal Man: A Study in Personality and Culture Conflict (1937; reimpresso, New york: Russel &Russel, 1961). A obra de Thomas e Zaretsky trata dos imigrantes poloneses, cerca de dois milhões, que migraram para a América entre 1810 e 1910. Através desse estudo, demonstram como o processo de migração quebra os laços de solidariedade, em especial, o sistema familiar. 14 A premissa básica da tese da ética romântica é que o mecanismo que se situa no cerne do consumismo moderno, independente de sua forma, tem como implicação fundamental os processos culturais; sendo, portanto, necessário encarar os problemas históricos, econômicos e sociológicos como intimamente associados, assim como Max Weber percebeu em seu original estudo sobre as origens da revolução da produção. Campbel orienta o estudo no sentido de estabelecer uma relação entre o comportamento do consumidor e o movimento romântico do século XVIII. Segue estrategicamente os passos de Weber para mostrar e compreender o romantismo como um componente que persiste na cultura moderna, tendo como hipótese central de que talvez houvesse uma “ética romântica” operando a promoção do “espírito do consumismo”, exatamente como Weber postulou que uma ética “puritana” promovera o espírito do capitalismo. 15 Na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo Moderno, Weber (1996) estabelece uma combinação entre valores e finalidade religiosa (fundamento irracional) com o processo de racionalização econômica e a conseqüente constituição de uma concepção de trabalho como fim em si mesmo. Mostra a relação da autodisciplina e da automodelação com os valores atribuídos ao trabalho no percurso do capitalismo moderno. O amor a Deus do protestante era demonstrado pela disciplina dos desejos, do tempo, pela fuga do prazer. O trabalho, neste aspecto, apresenta-se ao homem como forma de realização da Vontade de Deus. Através dele pode-se moldar a história e viabilizar sinais de prosperidade e, portanto, dignidade aos olhos de Deus. O indivíduo torna-se eticamente responsável por seu próprio tempo vivido e, na busca de “ser virtuoso”, encontra motivação para o trabalho. A maior disposição de poupar do que gastar passou do protestante para o capitalista como um ato de autodisciplina e autonegação (ascetismo leigo). Essa passagem que culminou no homem motivado, decidido a provar seu valor moral pelo trabalho, ocasionou a superação de concepções tradicionais da igreja e culminou na modelagem e fortalecimento do sistema capitalista.

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mais, o desenvolvimento da indústria e do comércio impulsionou as melhorias das vias terrestres, bem como o aprimoramento dos meios de transportes marítimos e aéreos que facilitaram o movimento entre as fronteiras, tanto de produtos comerciais quanto de pessoas, ao ocasionar facilidade, rapidez e redução de custo nas viagens e transporte de mercadorias. O avanço do setor de telecomunicações proporcionou condições de trocas de informações, em tempo real, e constantes contatos entre os países de origem e destino dos migrantes, o que ajuda na decisão das pessoas de conhecer novos lugares, de investir em estudos no exterior, de buscar novas oportunidades de trabalho num mercado de mão-de-obra cada vez mais globalizado, além de outras razões que as levam a sair do seu país de origem.

Considerando que as mudanças na sociedade alteraram significantemente a forma, o conteúdo, o fluxo de pessoas entre países e a própria interpretação e relação do sujeito migrante com seu tempo e espaço, a migração internacional nesses moldes pode ser considerada um fenômeno relativamente novo. A modernidade traz novos conteúdos, principalmente no que concerne ao conceito de indivíduo, mercado de trabalho e globalização.

Mesmo percebendo esse processo como novo, verifica-se que ele tem sido objeto de vários estudos que muito têm contribuído com a compreensão do problema e com a revisão, elaboração e operacionalização de conceitos da sociologia. Pesquisas recentes apresentam aspectos múltiplos da migração internacional, demonstrando uma série de categorias para o migrante que vai desde aquele que busca asilo em outro país ao migrante estudante, trabalhador, retornado, transmigrante, exilado, deslocado, assentado, clandestino, documentado e não-documentado e as subcategorias dessas e suas contrapartidas.

Nesse cenário, o Brasil, que antes era eminentemente um país de imigração, passa a partir da década de 60 a apresentar um significativo fluxo de emigração. E, paralelo ao tema da imigração e migração interna características do país em seu largo território de 8 511 965 Km², distribuído em cinco regiões geográficas com diferenças peculiares em cada uma (sudeste, sul, centro-oeste, nordeste e norte), começa a se discutir os impactos socioeconômicos e políticos da emigração no Brasil. O país continua a receber imigrantes, em menor escala, principalmente oriundos de países da própria América do Sul, onde se destacam os nacionais da Bolívia, Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai (CNPD, 2001). No entanto, o Brasil “com 170 milhões de habitantes, dos quais fazem parte um milhão de estrangeiros, a percentagem de imigrantes em comparação com a população brasileira é de aproximadamente 0,6%”, conforme afirma Barreto (CNPD, 2001, p. 66). É um percentual aquém dos já apresentados anteriormente na história sobre a participação estrangeira na população residente no Brasil.

Bassanezi (1995) verifica, através da comparação da população brasileira e estrangeira, que os censos de 1900 e 1920 apresentaram percentuais respectivamente de 6,16 e 5,11, e que houve decréscimo nos censos de 1940 (3,42), 1950 (2,34), 1970 (1,32) e 1980 (0,77). Em 1970, cerca de 106.613 brasileiros residiam em países do Mercosul16. Em 1990, esse número subiu para 166.523, conforme tabela – IMIDI/CELADE (2000), apresentada por Baeninger (CNPD, 2001, p. 303).

Quanto ao contingente de emigrantes brasileiros para os Estados Unidos, Baeninger (CNPD, 2001, p. 302) aponta, em uma tabela, o incremento relativo da população nascida nos países do Mercosul registrada nos Estados Unidos e Canadá nos anos 80 e 90, e que o Brasil

16 O Mercosul integra os seguintes países: Argentina, Paraguai, Uruguai, Brasil, incluindo ainda Bolívia e Chile. Em 1970, cerca de 106.613 brasileiros residiam em algum desses países.

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duplicou seu estoque de estrangeiros nos Estados Unidos, passando de 40.919 pessoas para 82.489, o que significa um incremento relativo na ordem de 101,6% .

Estes são dados oficiais que permitem identificar as tendências gerais da migração internacional, apesar de não corresponder ao número real de imigrantes devido ao largo processo de entradas de brasileiros não documentados no território norte americano. Dados mais recentes do Ministério das Relações Exteriores, coletados por Patarra [1997] através de levantamento nos órgãos consulares, estimam que mais de 1,5 milhões de brasileiros se encontram no exterior, assim distribuídos: 598.526 (38,36%) nos EUA, 480.846 (29,54%) no Paraguai e 201.139 (12,89%) no Japão, conforme apresentado por Assis e Sasaki numa análise panorâmica do Brasil emigrante (CNPD, 2001, p. 621).

Sem mensurar a presença estrangeira na cidade de Governador Valadares e microrregião e o número aproximado de emigrantes, verificamos, no entanto, que a dinâmica populacional na Região do Rio Doce sofre modificações. No Censo de 1960, os dados indicam 1.701.816 habitantes, enquanto que o Censo de 1991 apresenta um total de 1.546.568 habitantes na região, ou seja, uma redução de 9% em relação ao ano de 1960. A participação relativa da região era de 15,88% da população de Minas Gerais em 1950, cresceu para 17,34% em 1960, e a partir daí começou a decrescer; em 1970 cai para 14,9%; em 1980, para 11% e em 1991, para 9,83% (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1992).

As emigrações com destino aos Estados Unidos e a outros países (com índices mais baixos) possuem registros na década de 60, mas tomaram forma significativa nos anos oitenta e noventa. Neste ultimo período, pesquisas preciosas, como a da professora Teresa Sales, uma qualitativa realizada em 1996 na cidade de Governador Valadares e uma amostral com aplicação de questionários realizada em 1997, apontam sua preocupação em caracterizar o fluxo migratório da população do município para o exterior e da migração de retorno (SALES, 1999). Envolvida na linha de pesquisa “Migração e Cidadania”, essa pesquisadora se preocupou com o fluxo migratório de busca de oportunidades para a ascensão social e com a identidade social do imigrante em Boston nos Estados Unidos e ao mesmo tempo elegeu a cidade de Governador Valadares como importante ponto geográfico para seu trabalho. Soares (1995) estudou a modificação na dinâmica imobiliária em Governador Valadares e, através de uma pesquisa amostral, pôde apresentar a emigração com relação ao tempo em que se deu a primeira saída do país e o lugar de destino na escolha do sujeito emigrante. Com uma amostra de 369 emigrantes internacionais, destaca-se um percentual de 43,6% de emigrantes valadarenses para o exterior na segunda metade da década de 1980, e os Estados Unidos detendo uma preferência de 82% em relação a outros países.

Atualmente, devido a dificuldades na obtenção de visto e ao alto custo da travessia através do México e de novas rotas, Portugal vem se destacando como país de escolha para emigração.

Ao categorizar a amostra de 27.210 indivíduos como emigrantes retornados, pendulares, temporários e definitivos, Soares (1995) apresentou percentuais respectivamente de 15,0%, 6,3%, 27,7% e 30,0%. Sendo que 7,0% dos entrevistados não forneceram informações, 12,0% ignoraram a condição e 2,0% classificaram-se na alternativa “outra”. Para Soares (1995), pendulares e temporários juntos com um percentual de 34% expressam a condição do emigrante que alimenta a possibilidade de retorno ao país, às relações sociais de origem, num futuro próximo. Os 15% de migrantes retornados nos leva a centrar a atenção no sujeito que entre estar aqui e estar lá opta em ficar no local de origem.

A emigração valadarense despertou a atenção de vários pesquisadores. Bicalho (1989) elaborou o primeiro estudo com o objetivo de conhecer aspectos do processo migratório, que eram destacados na imprensa falada e escrita, mas, carecia de pesquisas para aprofundamento.

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Nas limitações do estudo, por falta de rigor teórico e metodológico, o mérito do trabalho foi apontar o impacto da população mineira nas emigrações, principalmente de valadarenses para os Estados Unidos. Seus dados revelam que 89% dos entrevistados procediam de Minas Gerais e desse percentual 42% dos mineiros tinham saído de Governador Valadares O autor priorizou a análise das motivações subjetivas e desenvolveu a pesquisa em Framingham - Ma. O termo brazuca17 foi por ele cunhado, sendo largamente utilizado em trabalhos e na imprensa. Nos primeiros estudos e artigos publicados os motivos objetivos para o aumento do fluxo de emigração eram, geralmente, atribuídos à crise econômica brasileira na década de 80.

Os trabalhos acadêmicos, posteriores, tomaram a questão como problema e buscaram sistematizar estudos para conhecer o perfil dos brasileiros que estavam indo “fazer a américa”, levantar as causas das recentes migrações internacionais e o porquê do caso valadarense.

A cidade, atualmente com 255.651 (IBGE, 2005) habitantes, possui um histórico de contatos com os Estados Unidos, baseado, inicialmente, em relações comerciais. Durante a II Grande Guerra, a economia valadarense foi impulsionada pelo comércio da mica. Este era um produto importante para a indústria bélica e atraiu firmas americanas para a cidade que comercializavam o produto e prestavam apoio técnico às oficinas de beneficiamento. Nesse mesmo período, na década de 40, houve modificações no traçado da Estrada de Ferro Vitória Minas e uma empresa norte americana executou o projeto. Com essas firmas, muitos americanos adentraram à cidade e estabeleceram diferentes formas de contato com os nativos: compra no comércio, pagamento de prestação de serviços e outros. Alem disso, através de um convênio Brasil-EUA, foi criado o SESP - Serviço Especial de Saúde Pública para o tratamento da malária (ASSIS, 1999). Doença que afligia, não somente os moradores da região, mas também os próprios americanos que aqui viviam. Foi um período promissor na economia valadarense, memorizado pelos nativos e associado à figura do americano e do seu país de origem. Os Estados Unidos da América torna-se uma referência, um espaço mais presente que contribui na construção de uma cultura migratória18.

A economia valadarense é historicamente caracterizada em ciclos estrativistas e exploratórios. A mica e a madeira foram os produtos basilares no ciclo extrativista da região. Na década de 60 a exploração da produção do primeiro começa a decair gradativamente, seguido pela queda da exploração da madeira. A pecuária de corte e leite como atividade mais importante, não produz postos de trabalho suficiente para absorver a mão-de-obra dispensada pelas atividades produtivas ligadas ao extrativismo vegetal. As duas décadas seguintes são marcadas pela estagnação econômica. Na década de 80 torna-se significativo o número de valadarenses que emigram para os Estados Unidos.

O conceito de redes sociais19, em especial, permite compreender melhor esse deslocamento através de uma conexão entre os dois lugares. Articula-se uma rede de apoio

17 O termo se refere ao brasileiro imigrante nos Estados Unidos. Sales (1999) faz uso do termo para especificar a imprensa étnica nos Estados Unidos como imprensa brazuca. 18 Termo elaborado pelo cientista político Wayne Cornelius 19 As redes sociais são conjuntos de associações entre grupos de pessoas ligadas por laços ocupacionais, familiares, culturais ou afetivos. Essas se diferenciam em várias dimensões e produzem efeitos diretos para o comportamento econômico de acordo com suas características: a) tamanho – corresponde ao número de participantes; b) densidade – refere ao número de laços entre os participantes; c) centralidade – o poder tende a ser correlacionado à centralidade, sendo essa menor será maior a efetividade da rede em criar expectativas comuns e monitorar a submissão individual; d) ramificação/agrupamento – se refere ao grau da densidade dos subconjuntos, chamados de cliques, de uma rede em relação à rede social como um todo; e) multiciplicidade – é o grau ao qual as relações entre os participantes incluem esferas institucionais sobrepostas (PORTES, 1995).

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tanto nos EUA que orienta, abriga e ajuda o emigrante quanto na cidade que continua apoiando na execução do projeto, envolvendo assim, migrantes e não migrantes.

No estudo com os emigrantes retornados em Governador Valadares, selecionamos aqueles que vieram dos Estados Unidos, uma vez que a possibilidade desse retorno é muito maior, devido à própria configuração histórica do processo da emigração internacional da região. Apesar de ser apontada por vários estudiosos como pioneira nas migrações internacionais de brasileiros, a cidade não detém exclusividade no projeto de emigrar. É o ponto de saída para várias pessoas naturais de cidades circunvizinhas, como Açucena, Santa Efigênia, Sardoá e as demais cidades inseridas na microrregião de Governador Valadares20. Representa um espaço onde a cultura de emigrar se reafirma e se molda pelas teias de relações que são configuradas por longas e contínuas idas e vindas. Movimento que provoca mudanças no cotidiano da comunidade.

Os estudos de Margolis (1994), Soares (1995), Sales (1999), Fusco (2005) e Siqueira (2006) apontam a migração de retorno entre outras variáveis. E, focando no retorno dos emigrantes, a proposta é utilizar informações já produzidas e levantar outros dados através de entrevistas em profundidade e de realização de grupos focais a fim de ampliar o conhecimento do fenômeno. Dentro das limitações do universo da pesquisa, pretende-se apontar o perfil do emigrante retornado e verificar sua re-inserção no mercado de trabalho local, como proprietário de pequenos e médios negócios, trabalhador liberal e outras formas encontradas para ocupação do espaço social.

Verificar se esses indivíduos compartilham ou compartilharam experiências semelhantes no projeto de retorno, apesar de parecer um ato de escolha individual. Enfrentaram problemas em outras terras relacionados, principalmente, com a questão da clandestinidade e das tentativas, fracassadas ou não, de acesso ilegal aos Estados Unidos, através do México. Alternativa que sai duplamente cara para os emigrantes e familiares. Primeiro porque há um investimento na viagem, que não é barato – varia entre 10.000 e 20.000 dólares, devido à empreitada em novas rotas com custo e tempo maiores. Depois, há um desgaste emocional muito grande até a conclusão do processo, o que nem sempre é positivo. E essa conclusão se refere à entrada ou re-entrada no país de destino, pois documentado ou não o sujeito inicia um processo que o acompanhará ao longo da sua vida e dos seus familiares, provocando mudanças de pouco ou grande impacto social, cultural e econômico.

Conforme relato de emigrantes, no percurso da travessia da fronteira México e Estados Unidos e recentemente nas novas rotas adotadas, há ocorrência de sofrimento corporal e psíquico e até mesmo de morte de emigrantes. Os veículos de comunicação vêm retratando alguns aspectos do cotidiano local e de sua relação com elementos referentes ao cenário desse movimento migratório populacional. Nesta pesquisa, no entanto, não se quer mostrar um povo com o estigma daqueles que driblam as barreiras de fronteira, através de formas ilegais, para garantir a saída do país em direção principalmente aos Estados Unidos. Pretende-se pontuar o caminho de volta, o desejo de retornar ao país de origem e de se reconhecer como cidadão. Nessa trilha, o esforço é delinear as mudanças ocasionadas para o próprio emigrante internacional, sua família e familiares e as repercussões/impactos desse

20 A microrregião de Governador Valadares é composta por 25 municípios, a saber: Alpercata, Campanário, Capitão Andrade, Coroaci, Divino das Laranjeiras, Engenheiro Caldas, Fernandes Tourinho, Frei Inocêncio, Galiléia, Itambacuri, Itanhomi, Jampruca, Marilac, Matias Lobato, Nacip Haiddan, Nova Módica, Pescador, São Geraldo da Piedade, São Geraldo do Bachio, São José do Safira, São José do Divino, Sobrália, Tumiritinga, Virgolândia, Governador Valadares.

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fenômeno na comunidade local, recriando novas formas de se relacionar consigo mesmo e com o outro.

METODOLOGIA

Para a análise da volta ao país de origem, a metodologia qualitativa permite acesso a dados mais sensíveis através de uma maior aproximação com o emigrante a partir das entrevistas em profundidade e dos grupos focais. Dessa forma, avalia-se que essas técnicas possibilitaram uma análise mais detalhada, tanto do aspecto das normas estabelecidas no processo de retorno – através dos grupos focais, quanto da trajetória desse emigrante retornado e da teia de relações sociais que permeiam o cotidiano, o trabalho, os projetos e expectativas com seus familiares e com a região que os recebe de volta – através das entrevistas. Com essa estratégia metodológica, foi possível delinear a trajetória do emigrante retornado, reconhecendo seus sentimentos, percepções e valores, além de buscar reconstruir, junto com esse emigrante retornado, o mecanismo utilizado para reencontrar o seu ‘espaço’ após a experiência de conexões e desconexões com seu universo de origem.

Todo trabalho de campo foi realizado na cidade de Governador Valadares. Como critério para a seleção da amostra, foi considerado como retornado o migrante internacional que emigrou para os Estados Unidos, independente da cidade natal dos participantes, podendo ter emigrado pela primeira vez a partir de qualquer município do Estado de Minas Gerais. No entanto, no momento da pesquisa deveria estar residindo em Governador Valadares. Tendo como base de estudo um grupo com 44 emigrantes, o esforço constituiu em conhecer melhor o fenômeno da migração internacional através da discussão do retorno concretizado ou não. Foram entrevistados treze (13) emigrantes internacionais, com potencial de retorno, que estavam visitando parentes e amigos em Governador Valadares e que planejam retornar, mas ainda não concretizaram o plano. A técnica da bola de neve utilizada para localizar o sujeito emigrante retornado permitiu compor esse grupo com diferentes características. Essa diversidade foi fundamental para o aprofundamento do estudo.

Nas entrevistas em profundidade com os ‘potenciais’ emigrantes a retornar ao país de origem e que estavam em visita à cidade de Governador Valadares, propôs-se investigar se esses ‘visitantes’ no Brasil que residem nos Estados Unidos da América pretendem voltar a morar na cidade, como estão planejando o retorno e quais as suas expectativas em relação a esse projeto. Com todos entrevistados – emigrantes retornados e visitantes, buscou-se aprofundar dados qualitativos quanto ao aspecto identitário: percepções daqueles que voltaram à cidade com a intenção de ficar/residir ou que ainda não concretizaram o projeto; como estão e como se sentem esses emigrantes; como vivenciam as diferenças culturais e quais postos de trabalho ocupam.

A técnica da ‘bola de neve’ utilizada para localizar os emigrantes retornados e realizar as entrevistas individuais e em profundidade consiste em identificar alguns indivíduos com as características necessárias para a pesquisa; no caso, emigrantes que retornaram no período de 1980 a 2006 e que estão morando em Governador Valadares, mesmo tendo saído de outra cidade. Os primeiros entrevistados indicavam outros que, por sua vez, também faziam novas indicações, até chegar a um número de saturação das informações e indicações que foram notadas pela sua repetição. Esse trabalho foi facilitado pela condição histórica dessa cidade no processo de emigração, retratada no grande número de famílias que possuem parentes na situação de emigrantes.

Após as primeiras entrevistas, foram feitos contatos por telefone com outros emigrantes retornados apresentados, sendo estes parentes, amigos ou colegas de trabalho dos

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entrevistados. Na primeira abordagem por telefone, era apresentado o objetivo do trabalho e feita uma prévia marcação de horário e local para o encontro. Nem sempre as entrevistas foram feitas no primeiro encontro, sendo necessário agendar novo horário para a realização do trabalho. Outras vezes o entrevistado desistia de conceder a entrevista. Tivemos casos de desistência de pessoas que haviam retornado por deportação e de outros retornados que tiveram receio ou falta de tempo para participar da pesquisa.

Foram realizadas 38 entrevistas em profundidade com emigrantes que retornaram no período de 1980 a 2006, e após a transcrição subdividimos esses emigrantes em três grupos, de acordo com a segmentação utilizada nos grupos focais, dessa forma constituímos os seguintes agrupamentos:

Residentes na cidade - Grupo I - (G1): Emigrantes que retornaram uma vez e Grupo II - (G2): Emigrantes que retornaram duas ou mais vezes.

Residentes nos Estados Unidos: Grupo III - (G3): Emigrantes que estavam visitando a família à época da pesquisa.

A estatística de participação nas entrevistas em profundidade, por sexo, é demonstrada no gráfico I, abaixo.

Gráfico I – Entrevistas em profundidade por sexo e grupo de segmentação

18,4 15,810,5

44,7

21,1 18,4 15,8

55,3

39,534,2

26,3

100,0

G1 G2 G3 Total

Mulheres

Homens

Total

Fonte: Pesquisa de campo, 2006/2007.

Para resguardar a identidade dos informantes, os relatos presentes neste artigo trazem nomes fictícios antecedidos pela referência ao grupo, ou seja, grupo 1 (G1) para o emigrante que retornou uma vez, grupo 2 (G2) para o emigrante que retornou duas ou mais vezes, e o grupo 3 (G3) refere ao emigrante que reside nos Estados Unidos e estava a passeio na cidade.

Os grupos focais foram compostos com participantes das entrevistas, contando com a introdução de mais seis novos emigrantes, sendo três homens residentes nos Estados Unidos e três mulheres residentes em Governador Valadares, completando o total final do grupo de estudo – 44 emigrantes, com 70% residentes na cidade e 30% nos EUA.

A escolha dos grupos focais, como técnica complementar, foi para priorizar o levantamento de mais informações através da abordagem ao grupo sobre o significado do projeto de emigrar e do projeto de retorno. Dessa forma, a pretensão foi destacar os elementos

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socialmente compartilhados e levados em conta no “sistema circular da migração internacional”, ou seja, a discussão não se prende ao conceito clássico da migração de retorno – referindo àquele que emigrou e voltou à terra de origem e que ali fixou residência; a discussão segue envolvendo elementos contemporâneos como a circularidade do fenômeno, os contínuos contatos e a migração de retorno tanto para a ‘casa de lá quanto para a casa daqui’, chamada neste trabalho como retorno bidirecional.

A técnica com grupo focal permite a avaliação do tema a partir de e como resultado dependente da interação do grupo de pessoas e das formas diferentes ou não de relacionamento de cada uma delas com a questão proposta. Uma das suas características positivas é justamente “confiar no foco do pesquisador, na habilidade para produzir um conjunto de dados, especialmente sobre o tópico de interesse” (MORGAN, 1997, p. 13). Essa mesma característica pode se tornar uma fraqueza do grupo focal, na medida em que a discussão entre os participantes do grupo é controlada e a interação não se dá num contexto natural – a própria composição do grupo, quantidade de participantes, bem como os efeitos do moderador podem comprometer os resultados da pesquisa. Nesse sentido, cabe ressaltar que a atenção dessa pesquisadora foi redobrada com o intuito de controlar, de forma satisfatória, esses elementos, minimizando os problemas. O plano foi o de realizar a troca e confronto de experiências, buscando perceber como os participantes/respondentes de cada grupo entendiam e se relacionavam com tais temáticas. Na análise dos dados, procuramos destacar as similaridades e diferenças surgidas em cada um dos grupos focais para avaliar comportamentos, opiniões e motivações no projeto de retorno no contexto da migração internacional. Também buscamos avaliar o alcance da técnica no fornecimento de dados que possam complementar as informações coletadas através das entrevistas em profundidade.

Para facilitar a compreensão de diferentes variáveis nos grupos focais, decidiu-se pela segmentação em três grupos, considerando a situação do emigrante em relação ao projeto concretizado ou não do retorno e a sua experiência de re-entrada no país de origem, se uma ou mais vezes.

Grupo I (G1) - Emigrantes que retornaram uma vez ao Brasil no período de 1980 a 2006. Pode ser que possuem projeto de uma nova emigração.

Grupo II (G2) - Emigrantes que retornaram duas ou mais vezes ao Brasil no período de 1980 a 2006. Ou seja, já empreenderam nova emigração e podem ter planos de retorno aos Estados Unidos e estar divididos entre “estar lá e estar aqui”, mas, no momento da pesquisa, estão morando no Brasil.

Grupo III (G3) – Residem nos Estados Unidos, planejam retornar, mas ainda não concretizaram o projeto, estando eles na condição de documentados ou não nos Estados Unidos.

Foram realizados cinco grupos focais, ficando constituídos por 37,5% de mulheres e 62,5% de homens. A tabela abaixo apresenta o total da participação e composição dos grupos.

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Primeiro encontro Segundo encontro TOTAL

SEGMENTAÇÃO Homens Mulheres Homens Mulheres

GI - (GF1A e GF1B) 2 1 2 1 6

G2 - (GF2A e GF2B) - 3 2 1 6

G3 – (GF3A) 4 - - - 4

TOTAL 6 4 4 2 16

Segundo David Morgan (1997), a técnica de grupos focais atende a três finalidades: pode servir como fonte principal de coleta de dados, ser usada como suplemento a um método quantitativo ou pode ter como objetivo a complementação de outros métodos qualitativos. Neste trabalho, com os grupos focais buscamos levantar dados que pudessem auxiliar na compreensão do significado sócio-cultural de dois temas abordados na Pesquisa com migrantes retornados dos Estados Unidos para a cidade de Governador Valadares: Percepções antagônicas do retorno e avaliação da experiência vivenciada pelo emigrante nos Estados Unidos.

Apesar de não considerar a escolaridade na formação dos grupos, foi dada atenção a essa variável na efetivação do encontro, pois a interação tende a ser prejudicada quando os membros do grupo apresentam status social diferentes, sendo o grau de escolaridade o fator mais importante a ser observado para a obtenção de um resultado eficaz. Foi avaliado que as condições de reentradas nos Estados Unidos pudessem representar também um diferencial no status do emigrante e que prejudicaria a interação dos membros. Devido a isso, optamos por segmentá-los de acordo com o grau de experiência migratória – uma vez, duas vezes ou mais, ou aqueles que, independente dessa condição, residem ainda no país de destino: Estados Unidos da América.

O recrutamento dos participantes foi através das entrevistas individuais e por indicação dos próprios familiares dos emigrantes. As diversas convocações efetuadas foram feitas via telefone celular e fixo ou quando possível pessoalmente. Alguns participaram e outros indicaram pessoas conhecidas que teriam mais disponibilidade com horário e deslocamento para essa etapa da pesquisa. Houve diversos casos de pessoas que confirmaram a participação, mas não se apresentaram no dia da reunião, o que dificultou alcançar um número de pelo menos cinco pessoas nos grupos focais para realizar uma melhor dinâmica de interação e troca de experiências.

A composição do terceiro grupo focal, G3: pessoas que residem nos Estados Unidos e estavam a passeio na cidade, foi efetivada pela indicação dos familiares e amigos que recebem visitas dos emigrados. Esse recrutamento foi guiado pelos próprios participantes da pesquisa inseridos na técnica da bola de neve. O contato com esses emigrantes foi viável porque já é comum a cidade receber, principalmente nos meses de junho e julho, no final do ano (novembro e dezembro) e no início do ano (janeiro e fevereiro), visitas de parentes que residem em outros países e em especial nos Estados Unidos da América.

Buscou-se manter um percentual de 20% de mulheres nos grupos dos residentes na cidade. Recentes estudos têm apontado a significativa participação das mulheres na migração internacional e sua importância nas redes sociais. O resultado final foi uma participação de seis (6) mulheres, representando um percentual de 37,5 em relação ao total geral.

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Foram produzidos relatórios de moderação e observação dos grupos focais, como base de análise. A transcrição das entrevistas gravadas, codificação e análise dos dados compõem o banco de informações da pesquisa.

A pergunta central para o grupo focal aborda as condições e mecanismos socialmente necessários para a concretização do ‘projeto de retorno’. Quais são as condições exigidas e necessárias para a concretização do ‘projeto de retorno’? Nesse contexto, buscou-se levantar as experiências comuns compartilhadas e discutir as questões roteirizadas e polêmicas entre ficar/voltar. Esclarecer sobre os mecanismos acionados e que pressionam o emigrante retornado, podendo dificultar ou facilitar sua volta e permanência no país de origem.

Os grupos focais foram realizados em três ambientes diferentes para evitar qualquer outra identificação de interesse, a não ser o objetivo da pesquisa. Foi utilizada uma sala de reunião da Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Governador Valadares, localizada na Rua Marechal Floriano, 905, Centro. A escola Imaculada Conceição, situada na Rua São João, Centro, também cedeu uma sala de aula para um encontro com o grupo focal. Um outro grupo focal foi realizado na sede das Obras Sociais, localizada na Rua Venceslau Brás, no Bairro Santa Rita.

Antes do início de cada grupo focal, os convidados foram recebidos com um lanche em uma sala de reunião previamente preparada; foi preenchido o formulário para coletar informações pessoais, sócio-demográficas e de aspectos relacionados às temáticas em estudo.

Nos relatos apresentados no texto, quando referimos aos participantes dos grupos focais, utilizamos nomes fictícios antecedidos da expressão grupo focal (GF). Nomeamos as mulheres como Maria acrescentando um segundo nome e se do sexo masculino escolhemos nomes comuns de homens.

EMIGRANTES RETORNADOS EM GOVERNADOR VALADARES

Entre os 44 entrevistados da amostra de emigrantes internacionais, 70,5% residem na cidade e foram distribuídos em dois grupos, sendo 48,4% com uma única emigração e retorno dos Estados Unidos e 51,6% que emigraram duas ou mais vezes aos Estados Unidos. O terceiro grupo, com 29,5% dos emigrantes, foi composto por aqueles que residem nos Estados Unidos.

Ao todo, o grupo de estudo é caracterizado por uma predominância (31,8%) de indivíduos na faixa etária de 36 a 40 anos de idade, elevando para um percentual de 59% ao considerar na análise essa e as outras duas faixas etárias com maior número absoluto, ou seja, as faixas de 36 a 50 anos de idade. A tabela 1 demonstra esses dados, especificando os emigrantes por faixa etária e situação de residência.

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Tabela 1 – Emigrantes Internacionais Retornados e Residentes nos EUA por faixa etária e condição de residência

EMIGRANTES INTERNACIONAIS

Residem em GV Residem nos EUA Total

Faixa Etária

Absoluto % % %

21-25 1 3.2 0 0.0 1 2.3

26-30 3 9.7 0 0,0 3 6.8

31-35 1 3.2 3 23.1 4 9.1

36-40 9 29.0 5 38.5 14 31.8

41-45 6 19.3 0 0.0 6 13.6

46-50 6 19.3 0 0.0 6 13.6

51-55 0 0.0 3 23.1 3 6.8

56-60 1 3.2 0 0,0 1 2.3

mais de 60 anos 4 12.9 2 15.4 6 13.6

TOTAL 31 100.0 13 100.0 44 100.0

FONTE: Pesquisa de campo, 2006-2007.

Ao confrontar dados desse grupo com as informações de outros estudos, verifica-se que o resultado foi representativo e que a ‘técnica da bola de neve’ proporcionou uma seleção de características e elementos diversos que muito contribuíram para o alcance dos objetivos propostos no trabalho. Conforme presente em outros estudos, na amostra do grupo de estudo há ocorrência da emigração na década de 60 com destino aos Estados Unidos. Observa-se, também, que o maior fluxo de emigração para esse país acontece justamente na segunda metade da década de 80. Nesse mesmo período, conforme o grupo de estudo, ocorreu retorno ao Brasil. Torna-se representativo o retorno no período de 2000/2006 com um percentual de 77,4%. Ou seja, a maioria dos migrantes internacionais retornados, neste estudo, estão a menos de dez anos de volta ao Brasil após a experiência migratória nos Estados Unidos de 16 meses a 39 anos, ou de constantes idas e vindas com estadia entre 4 a 6 meses, ou dentro da expectativa para a utilização legal do visto no passaporte, normalmente com validade de 10 anos.

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Tabela 2: Emigrantes internacionais segundo o período em que se deu a primeira emigração para os Estados Unidos e o último retorno para Governador Valadares – 1960/2006

1ª EMIGRAÇÃO ÚLTIMO RETORNO

PERÍODO Absoluta % Absoluta %

1960/1969

1970-1976

1980/1984

1985/1989

1990/1994

1995/1999

2000/2004

2005/2006

TOTAL

1

1

1

11

2

4

10

1

31

3.2

3,2

3.2

35.5

6.5

12.9

32.3

3.2

100.0

0

0

0

1

4

2

7

17

31

0.0

0.0

0.0

3.2

12.9

6,5

22.6

54.8

100.0

Fonte: Pesquisa de campo, 2006/2007.

Verifica-se que 54,8% dos entrevistados retornaram no período de 2005/2006. Ao analisar as entrevistas destes que retornaram recentemente, verificamos que 47,1% informaram que emigraram duas ou mais vezes para os Estados Unidos, sendo 53% do sexo masculino e 47% do sexo feminino, com a predominância (23,53%) da faixa etária de 41 a 50 anos de idade.

Entre os que têm menos de dois anos de retorno à cidade, 41% informaram que não pretendem mais viver nos Estados Unidos, 12% estão preparando para re-emigrar e 47% desejam voltar pelo menos a passeio aos Estados Unidos: para rever lugares, visitar netos, filhos, irmãos, irmãs, sobrinhos(as). Estar documentado ou não é uma variável que orienta a forma como cada um irá viabilizar a re-emigração ou as visitas desejadas.

O perfil diversificado do grupo estudado mostra uma série de elementos já referendados em outras pesquisas e apontam para a consistência do argumento do aspecto multifacetado do fenômeno da migração internacional. Um exemplo são as pessoas que retornaram por motivos que vão desde o aspecto relacionado à perda de um ente querido quanto ao desejo de aplicar a poupança adquirida no país de destino em seu próprio país e ali viver. E nem sempre tal retorno consiste no ‘fim do processo’, ele pode ser o início para uma série de outros deslocamentos para países estrangeiros ou mesmo dentro do próprio país. Re-arranjos da família através de contatos e relacionamentos com pessoas de outros estados, à época da permanência nos Estados Unidos, pode levar a uma re-opção de retorno à outra unidade federativa do país de origem, como exposto em algumas entrevistas.

Se apoiados numa perspectiva neoclássica, deveríamos perceber o retorno do migrante internacional como uma possível falha no cálculo de custos e benefícios da migração, uma insatisfação quanto à valorização do seu capital humano e à conseqüente decisão de que a variável tempo, em relação às oportunidades diferenciadas entre os países de destino e origem, não tem peso para que ele justifique a permanência e a reunificação de sua família num país estrangeiro. No entanto, durante as entrevistas verificamos que, se os motivos para emigrar estão fundamentalmente relacionados ao aspecto da melhoria de condições de vida: ter um ‘barraco’, um imóvel rural, carro, pagar faculdade para os filhos, etc., a motivação para retornar ao país de origem não possui uma caracterização geral, são apresentadas diversas situações para esse retorno; e ganha saliência a dificuldade que cada um encontra em sua

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trajetória individual de redefinições identitárias e do esforço para que o retorno seja ‘sustentado’: ‘lá é bom, mas não é minha casa’ ou ‘sinto bem nos dois lugares, mas é difícil re-acostumar à vida no Brasil’. O retorno abrange uma complexidade de variáveis que vai além do cálculo de custos e benefícios da migração. O custo da viagem da volta aos Estados Unidos (a re-emigração), utilizando as redes de migração, é alto, e pelo valor não justificaria o deslocamento; mas o migrante avalia que muitas vezes é melhor o ‘risco’ do que tentar manter um padrão de vida no Brasil aquém do que ele imagina poder conseguir nos Estados Unidos para si mesmo e para sua família e se conciliar com as dificuldades encontradas para a re-integração ao seu espaço social. Outras vezes o emigrante retornado tem condições de vida razoáveis e muito melhores do que na primeira emigração e mesmo assim sente dificuldade em ‘se acostumar ao cotidiano da comunidade local’.

Na nova teoria do trabalho, o fato do migrante internacional retornar uma vez pode significar, ao contrário da perspectiva neoclássica, que os objetivos foram alcançados pelo imigrante no país estrangeiro, tendo cumprido as etapas por ele planejadas, dentro de um determinado tempo. Mas nos discursos dos entrevistados o plano sempre ganha novos contornos devido a situações não planejadas ou a conseqüências de determinada ação não prevista. Mesmo quando investem no controle do seu plano, outras categorias como o tempo, o lugar e as relações sociais ali estabelecidas acabam formando novos contornos. O trabalho é a justificativa máxima da permanência no país de destino, mas o retorno como parte constituinte da migração internacional é experimentado por diferentes formas pelo emigrante internacional.

Tanto na nova teoria econômica da migração de trabalho quanto na teoria estrutural, os fatores cruciais para o retorno são os recursos financeiros e econômicos acumulados e encaminhados ao país de origem durante o período da experiência migratória. Para analisar se a trajetória do migrante retornado obteve sucesso ou não, deve-se observar a correlação desse processo com a situação econômica e social do país de origem. Por esse ângulo o retorno é também uma parte conclusiva do processo. No entanto, os entrevistados, além de apresentarem o retorno como inserido em um projeto que envolve planos de poupar, investir, melhorar suas condições de vida e dos familiares, também afirmam que seria interessante viver nos Estados Unidos e passar uma temporada no Brasil ou viver no Brasil e trabalhar uma temporada nos Estados Unidos, considerando que muitos entrevistados têm parentes, amigos e pessoas da família morando lá e/ou filhos nascidos ou que passaram a infância e a adolescência nos Estados Unidos. Alguns, no momento, já experimentam essa dupla cidadania. Esse aspecto da vivência nos dois lugares é demonstrado basicamente em entrevistas com os emigrantes residentes nos Estados Unidos, com documentação – green card ou cidadania americana.

CARACTERÍSTICAS SÓCIO -DEMOGRÁFICAS DOS EMIGRANTES

Ao verificar o perfil desse emigrante retornado e daqueles que desejam, em algum momento, residir em Governador Valadares, observa-se que 47,7 % estavam cursando o 2º grau ou já o havia concluído à época da primeira emigração. A maioria dos entrevistados (53,8%) que residem nos Estados Unidos possuem o 2º grau completo. Entre eles, é possível falar em mobilidade social, porque 15,4% possuem um business nos Estados Unidos que supera a renda inicial proveniente dos primeiros postos de trabalhos do ‘setor secundário’ no país, ou seja, possuem atualmente uma renda média de 9000 dólares por mês. 53,9% ocupam postos de trabalho avaliados pelo entrevistado como de melhor remuneração e condições de trabalho quando comparado com as primeiras ocupações nos Estados Unidos. Na tabela abaixo demonstramos o nível de escolaridade dos entrevistados, por condição de residência.

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Tabela 3: Emigrantes internacionais segundo os anos de estudo na primeira emigração para os Estados Unidos e a atual condição de residência

RESIDÊNCIA

ESCOLARIDADE Brasil/GV Estados Unidos

TOTAL GERAL

Absoluto % Absoluto % Absoluto %

Ensino fundamental: 1ª a 4ª série 7 22.6 2 15.4 9 20,5

Ensino fundamental: 5ª a 8ª série 6 19.4 3 23.1 9 20,5

2°grau completo 10 32.3 7 53.8 17 38,6

2°grau incompleto 3 9.7 1 7.7 4 9,1

3ºgrau completo 2 6.5 0 0.0 2 4,5

3ºgrau incompleto 3 9.7 0 0.0 3 6,8

TOTAL 31 100.0 13 100.0 44 100

Fonte: Pesquisa de campo, 2006/2007.

Dos emigrantes retornados na cidade de Governador Valadares, 41,9 % possuem um negócio e/ou renda de aluguel, 12,9% trabalham com carteira assinada, como funcionário público ou estão em licença devido a acidente de trabalho no Brasil, 12,9% são aposentados no Brasil ou nos Estados Unidos e ainda exercem atividade remunerada no Brasil ou recebem remessas de familiares nos Estados Unidos, 6,5% trabalham sem carteira e têm renda de aluguel, 19,4% são trabalhadores autônomos – inclui representação comercial, advocacia, motorista com carro próprio para transporte de mercadorias e professor particular, e 6,5% cuidam do lar e/ou contam com remessas dos Estados Unidos.

Na tabela 4 abaixo, verifica-se que a renda do domicílio informada fica acima de 4 salários até 16 salários para 54,8% dos entrevistados e mais de um salário até 4 salários para 45,2% desses emigrantes retornados.

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Tabela 4: Emigrantes Internacionais Retornados Segundo a

Renda do Domicílio

Emigrantes Retornados Em GV Renda do domicílio

Salário = R$ 350,00 Absoluto %

Mais de 1 até 2 salários 6 19.4

Mais de 2 até 4 salários 8 25.8

Mais de 4 até 7 salários 10 32.3

Mais de 7 até 11 salários 6 19.3

Mais de 11 até 16 salários 1 3.2

Total 31 100

Fonte: Pesquisa de campo, 2006/2007.

Alguns negócios administrados por emigrantes que retornaram contam ainda com investimentos de parentes – irmãos(ãs), filhos(as), esposo(a) que moram nos Estados Unidos. Argumentaram que esse tipo de apoio é necessário para que permaneçam no Brasil ‘e quem sabe possam contribuir para o retorno de alguém que está lá’. O aspecto da importância dessa ajuda deve ser analisado nos discursos dos entrevistados e dos grupos focais, em outra oportunidade.

MOTIVAÇÃO ALEGADA PARA RETORNAR AO PAÍS DE ORIGEM

Há aqueles que vão para os Estados Unidos e não pensam em retornar ao Brasil, porém ao longo da realização do seu projeto ocorrem situações não previstas que mudam seus planos, como, por exemplo, morte na família, casamento nos Estados Unidos, separação que causa perda de laços afetivos no Brasil ou nos Estados Unidos. Sendo assim, esses emigrantes retornados além de reformularem seus próprios planos têm que conduzir re-arranjos em relação à sua família e às suas ações e investir em um reencontro com seu lugar e com a reconquista de um novo espaço.

Nunca pensava em voltar tanto que eu levava uma vida de americano. Não ajuntei dinheiro entendeu? Meu dinheiro eu consumia muito (...) sou uma pessoa consumista. (...). Eu divorciei dele [marido americano] já tinha dado entrada com os papeis na imigração e quando nós separamos de casa, separamos de corpo, ele me prometeu que iria esperar o meu Green Card porque já estava quase na hora d’eu pegar e depois pra gente divorciar legalmente mas como ele quis voltar para mim e eu não aceitei, ele se revoltou e foi na ‘Corte’ e aí eu recebi um papel da ‘Corte’ me chamando pro divórcio e com isso eu perdi todos os meus direitos pelo Green Card. (...) Continuei e fui levando minha vida, trabalhando e tudo até que eu conheci o pai do meu filho (...) e daí eu (...) estava fazendo um curso para ser piloto também foi quando eu engravidei (...) e tive que parar (...) depois, logo depois da minha gravidez que Y nasceu, depois de 9 meses eu não estava dando bem com o pai dele e já tinha 9 anos que eu estava lá, aí eu decidi retornar pro Brasil (...). Eu só não insisti em ficar mais porque ilegal não vale a pena entendeu? (G1- Bia, 47 anos, 9 anos de retorno).

A maioria dos entrevistados fazia planos de ficar um determinado tempo nos Estados Unidos até conseguir uma poupança para a realização dos seus ‘sonhos’ e, assim, retornar ao Brasil. Porém os ‘sonhos’ iniciais se modificam e geralmente são acrescentados por outros que se estendem a um número maior de pessoas da família e parentes, como: ficar mais tempo para ‘ajudar’ pessoas da família a emigrar para os Estados Unidos, custear despesas com saúde, ou

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pagar alta dívida adquirida em relação ao tempo previsto e ao ganho e custo da imigração nos Estados Unidos.

Depois desses seis anos e meio que eu fiquei lá, foi mais é depressão mesmo, saía de uma depressão entrava em outra. Era o meu emocional; já estava abalado. (...) Nós pegamos a cidadania setembro ou outubro de 2004 e em dezembro eu já retornei ao Brasil. Minha irmã em novembro queria emigrar para os EUA (...) eu falei ‘filha agora você vem, por que se você não vier mais, eu não te ajudo, acabou, cansei’. Eu a ajudei foi quase 20 anos, ‘por que agora acabou você vem pra saber como que eu ganho o meu dinheiro aqui e você faz da sua vida o que você quiser’. Ela já não estava vivendo bem com o marido dela, aí ela foi com a filha pelo México e ela ficou com o meu trabalho [nos EUA], está com os meus trabalhos ainda, ajudei ela comprar o carro, ajudei ela mobiliar a casa dela com as minhas coisas, o que ela queria móveis ou roupas, essas coisas. Vendi a minha casa lá e paguei os meus impostos, tudo que tinha que pagar que foi um dinheirinho bom que o governo toma da gente. Pesado. Mas eu falei ‘nós entramos de cabeça erguida nós vamos sair daqui de cabeça erguida, não quero dever ninguém’. Não devemos nada a ninguém graças a Deus, devemos obrigação. (...) Eu já não tinha mais necessidade de trabalhar como eu estava trabalhando. (G2 - Ana, 38 anos, 2 anos de retorno )

Esses elos estabelecidos e mantidos pelo emigrante em seu projeto e em contínua renegociação com as mudanças do trajeto, nos remetem ao discurso de Velho (2003) sobre a descontinuidade do passado que tem por base uma memória fragmentada. “O sentido da identidade depende em grande parte da organização desses pedaços, fragmentos de fatos e episódios separados” (VELHO, 2003, p. 102). Continuando, o autor estabelece a relação com o projeto, compreendido como resultado de uma deliberação consciente a partir das circunstâncias, do campo de possibilidades em que está inserido o sujeito. A identidade, nesse caso, insere-se num permanente processo interativo e depende dessa relação do projeto do seu sujeito com a sociedade.

De forma aparentemente paradoxal em uma sociedade complexa e heterogênea, a multiplicidade de motivações e a própria fragmentação sociocultural ao mesmo tempo que produzem quase que uma necessidade de projetos, trazem a possibilidade de contradições e de conflito. Por isso mesmo o projeto é dinâmico e é permanentemente reelaborado, reorganizando a memória do autor, dando novos sentidos e significados, provocando com isso repercussões na sua identidade. (VELHO, 2003, p. 104).

Ao estabelecer relações entre memória e projeto e sua importância para a constituição de identidade(s), Velho (2003) mostra que a noção de biografia é fundamental nas sociedades onde predominam as ideologias individualistas e que a trajetória do indivíduo passa a ser o elemento constituidor da sociedade. “Nesse sentido a memória desse indivíduo é que se torna socialmente mais relevante.” (VELHO, 2003, p. 100). No entanto, o autor alerta que “mesmo dentro da chamada sociedade ocidental moderna, há descontinuidades e diferença em termos sociológicos e culturais em relação à maior ou menor valorização do indivíduo” (VELHO, 2003, p. 100).

Mesmo o emigrante que claramente constrói seu projeto de emigrar e retornar, em função de uma negociação com a família que o espera (seus pais, esposo(a), companheiro(a) e/ou filhos), ele necessita trabalhar a motivação para o retorno a fim de que não amplie o projeto e retarde a volta.

(...) na realidade sonhava muito. Ao sair daqui eu achei que um ano era suficiente; ir lá, pagar a minha dívida e ainda voltar com dinheiro. E não foi bem assim: um ano e oito meses pra concretizar este meu sonho. Meu projeto na realidade era isso: ir lá pra ter um dinheirinho pra poder ‘calçar o meu pé de meia aqui no Brasil’. (...) Sinceramente [sentia-me] um peixe fora d’água, por que é tudo muito diferente, tudo não é muito diferente, é 100% diferente. O simples fato de ser muito, seria bom se fosse muito, é tudo diferente mesmo. O contrário do que se vê aqui é lá. Então de início eu senti aquele amargo, aquele gosto ruim de sabão na boca, achando que aquela vida maravilhosa que eu tinha no Brasil nunca ia mais recuperar ela, por que medo de quem vai pra lá e não consegue voltar. É muito mais difícil voltar do que chegar lá, eles falam isso, pelo fato de que lá é um país tentador, mais senti sinceramente muito ruim mesmo, louco pra vim embora, mas como infelizmente o dever

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que tinha que ficar até mesmo por que tinha assumido uma dívida, e tinha que ser paga esta dívida, no mínimo esse espaço de seis meses pra quitar esta dívida ia ter que ficar lá e independentemente do que viesse a acontecer. (G1 - Leonardo, 23 anos, 1 ano e 8 meses de retorno)

Outros possuem um plano básico, cujo principal motivo é aquisição da casa própria. Porém, além da casa para morar, buscam adquirir pelo menos mais um imóvel para poder contar com a renda do aluguel no retorno. A preocupação em assegurar condições para o retorno está presente em todas as entrevistas.

[Esperava ficar nos EUA] na conta da gente fazer o barracãozinho. Não queria pagar aluguel. Nós pagamos a dívida – os nove mil dólares, em dez meses e começamos a juntar dinheiro, surgiu a oportunidade de comprar esse lote. Na época nós compramos por dezesseis mil dólares e com um ano e dois meses nós construímos nossa casa. (G2 - Eliete, 39 anos, referindo ao 1º retorno, 3 anos e 2 meses de retorno)

Eliete contou que para aproveitar melhor o lote e a localização construíram dois apartamentos, sendo um para moradia e outro para alugar e garantir uma renda no retorno ao Brasil. Essa decisão demandou mais tempo e investimento.

Os que re-emigraram, pensando em não voltar mais, podem também reconsiderar a decisão e, novamente estando lá, iniciar um processo de revigoramento do desejo de retornar.

No começo foi assim, eu cheguei lá, eu falei ‘ah gente, eu acho que eu não volto para o Brasil mais não, por que lá é muito difícil’. Mas foi passando o tempo (...) que eu cheguei numa fase que estava muito bom de serviço, e rapidinho eu fiz muita coisa, quatro anos, coisa que com oito anos e meio eu não fiz. Eu já fui com outra cabeça: ‘Ah! Eu quero comprar casa, quero ter a minha casa, quero ter isso, aquilo’. E graças a Deus, eu estou aqui. (G2 - Hélio, 36 anos, segundo retorno em dezembro de 2006).

No caso de G2-Hélio, ele havia experimentado, no primeiro retorno, fracasso no investimento num negócio na cidade, tinha diminuído suas economias e re-emigrado após um ano e meio, pelo México. Como no relato de G1-Bia que fez referência à sua condição de não documentada nos Estados Unidos, G2-Robson também coloca esse fato como motivo para o retorno. Ressalta o impedimento do livre trânsito entre os países e fala da saudade e do seu sentimento de ‘não estar em casa’. Esse sentimento junto ao cansaço da vida dedicada ao trabalho, longe da família, reforça o desejo de voltar.

(...) Uns dois anos antes d’eu voltar, eu pensei muito sobre o que fazer da minha vida, por que você viver num país ilegal, você não poder viajar, vir aqui no Brasil... Eu já estava uma pessoa cansada, quase quinze anos de EUA e vivendo ilegal. Você sabe, você se sente assim, sufocado. Você quer sair e passear, [vir ao Brasil]. Depois também que aconteceu essas passeatas lá, o pessoal pedindo legalização pra todo mundo, os americanos começaram a discriminar muito também as pessoas. É, senti demais [discriminação]. Quando eu fui renovar - minha habilitação vencia em julho, em junho, eu fui lá renovar - cheguei todo educado com a mulher e ela foi tão mal educada comigo, foi tão grossa comigo. Aí você começa a sentir que o lugar mesmo da gente é o país da gente. (...) Você passa assim a ver que a pessoa te tratou mal, aí amanhã também, isto mexe. Você começa a pensar ‘é gente a minha casa é o melhor lugar do mundo’ (G2 - Hélio, 36 anos, segundo retorno em dezembro de 2006)

Outro fator determinante na decisão do retorno para as pessoas entrevistadas, além da já mencionada ‘poupança e aquisição de imóvel’, é relativo ao cuidado com os filhos, ou melhor, à dificuldade para as famílias de diminuir o tempo e o cuidado com os filhos para uma dedicação quase que exclusiva ao trabalho ‘fora de casa’ nos Estados Unidos. Esse foi um relato principalmente das mulheres entrevistadas, com um entendimento também mencionado pelos homens com filhos e com suas respectivas companheiras.

Porque criar filho na América... É muito difícil você largar seu filho na mão de estranhos lá. Aqui no Brasil sempre tem uma mãe, uma irmã que ajudam você olhar o neném, o filho; e lá não. Tem que largar seu filho na mão de estranho. (...) Lá eu tinha um excelente emprego, mas eu não confiava em quem eu deixava meu filho; pagava caro, mas não tinha aquela segurança. Um dia eu flagrei a

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menina dando mamadeira meu filho deitado no chão; meu filho deitado no chão sem uma almofada! E ele vivia de infecção no ouvido, quer dizer que não prestava nem pra colocar a criança no colo para dar mamadeira; aquilo me machucou. Eu vim embora. (G2 - Eliete, 39 anos, referindo ao 1º retorno, 3 anos e 2 meses após 2º retorno )

TIPO DE AJUDA RECEBIDA PARA O RETORNO

Os emigrantes retornados não mencionaram nenhum tipo de mecanismo oficial de re-inserção acionado por eles ou de seu conhecimento existente na cidade. De uma forma geral, todos contaram com algum tipo de ajuda de familiares, parentes e amigos, principalmente ajuda no sentido de ‘apoio moral’ – com palavras de incentivo, afetividade e dedicação a eles nas primeiras semanas na cidade. Com poucas exceções, os entrevistados contaram com ajuda de alguém da família para administrar parte de recursos adquiridos nos Estados Unidos, para compra de imóveis rurais e/ou urbanos, para investimentos em negócios na cidade ou para compra de carros, móveis e equipamentos domésticos.

Todos afirmaram que é importante essa ajuda da família, dos parentes e amigos para que o retorno seja efetivado. No entanto a auto-afirmação no retorno requer muito mais esforço do que ele próprio poderia imaginar, conforme relato dos entrevistados.

Agora na vinda eu já não tive ajuda financeira só mesmo de apoio, ambos, os meus familiares daqui os de lá, todos me apoiaram, mas sempre com o pé meio atrás, ‘será que ele está fazendo a coisa certa, largando uma oportunidade de crescer mais’ (...). O tempo que eu fiquei lá foi muito curto e só eu novo, eu tenho hoje 23 anos. Então eles viam assim, que era hora de ficar lá mais 10 anos, ou 13 anos. É o tempo, talvez, que precisa ficar, realmente, para subir na vida. Então eles sempre tinham isso, um pé atrás. Eu sentia isso deles, mas colocava sempre em primeiro lugar a minha opinião, se você quer, se você acha assim, que é o melhor pra você, pois bem nós estamos aqui de braços abertos, então assim... (G1- Leonardo, 23 anos, retorno em novembro de 2005)

Nos Estados Unidos, os discursos daqueles que vieram ao Brasil e re-emigraram duas ou mais vezes não estimulam a consolidação de um projeto de retorno, ao contrário, muitos destacam as dificuldades vivenciadas no retorno e os ‘atrasos’ do local em relação aos condados do país de destino. Conforme relato dos entrevistados é muito difícil retornar porque o ‘retorno’ é algo que se constrói e exige esforço pessoal. É importante o apoio da família para a efetiva concretização do retorno.

Eu observo assim, que esse apoio (...) infelizmente, as pessoas querem, mas não tem condição de dar. Elas dão, às vezes, com a presença com o calor humano, mas esses conflitos que começam a passar em nossas cabeças quando a pessoa retorna ao lar... Porque por mais que eu fale com a pessoa que está me ouvindo, no caso eles lá é difícil para muitas pessoas é realmente visualizar aquilo que eu estou dizendo e entender a dimensão do que a gente está falando. (GF2 - Hylé, 40 anos, retorno em 2004).

O ESTRANHAMENTO : PERCEPÇÃO DA DIFERENÇA

O fato é que, independente dos motivos, o retorno é idealizado, acontece uma vez ou várias vezes, e o indivíduo emigrante/imigrante se redescobre e, no primeiro momento, se confronta e estranha, em diferentes escalas, coisas, situações e ambientes anteriormente familiares dentro do seu próprio país.

Achei muito feio, as pessoas e os carros, muito... (...) Eu reparei muito os carros. Na época que eu cheguei, era o Santana que tinha sido lançamento, e aquele outro, diplomata? Na época, eu acho que é isso, sei lá, nem lembro. Eu olhei, ‘ho que carro pequenino!´, lá os carros, quando a gente chama os carros daqui de carroça, é porque realmente é uma carroça em vista dos de lá. E, achei assim, o país muito sujo, muito feio, muito pobre (G1 - Taís, 40 anos, 15 anos de retorno).

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Ah fiquei em estado de graça estava doidinho pra vim embora, tudo perfeito. Mas do mesmo jeito quando eu cheguei aos Estados Unidos, fiquei meio assim bobão, entendeu? Porque lá nos Estados Unidos você não vê ninguém na rua, só vê o pessoal dentro de carro. Aqui não, aqui você está andando vê um amigo, um parente, a mulherada na rua de shortinho, tudo arrumadinho, tudo brotinho, cheirosinho, lá não, você vê aquele trem morto, todo mundo dentro de [algum lugar]. Tem lugares que você vê, [pessoas nas ruas] mais é difícil. Na Flórida pelo menos só vê dentro de carro, quer ver alguém, você tem que olhar dentro do carro, na rua você não vê. (G1- Rui, 30 anos, retorno em novembro de 2006)

O discurso comparativo entre o local de origem e destino ou de diferentes situações vivenciadas está presente em todas as entrevistas em profundidade e no grupo; destacando-se temas como a educação de trânsito, segurança, a polidez no tratamento entre as pessoas nos EUA e a diferença na educação dos filhos e das crianças de forma geral.

Um choque de cultura principalmente, lá é um povo frio, mais é um povo que gosta das coisas certinhas, não joga papel no chão, você não vê ninguém limpando o nariz na rua, igual você vê no Brasil, você não vê cachorro fazendo coisa na rua, você veio de um lugar super limpo, cai de novo aqui dentro é um choque muito grande... As pessoas esquisitas. Você sente estranhas as pessoas. (G2 - Mauro, 44 nos, 14 anos de retorno).

O emigrante retornado, mesmo se mantinha constantes contatos com amigos e familiares no local de origem quando residente no país estrangeiro, ainda sente o impacto no retorno. A palavra ‘choque’ aparece com freqüência no discurso dos entrevistados, no sentido do estranhamento no seu próprio país de origem. Outras vezes esse estranhamento é demonstrado através da ‘falta de palavras para explicar’ ou da extrema emoção demonstrada, por muitos, com lágrimas ao recordar da chegada e do sentimento de ‘se sentir perdido’ e colocar situações e a si mesmo nas mãos de ‘Deus que vai mostrar o que é certo’, ‘Deus que vai me dar forças’, ‘Deus vai mostrar qual a melhor decisão’.

Eu tomei um choque, sinceramente porque você ficar 10 anos fora do Brasil... Quando você volta... Sair de um país que é de primeiro mundo que é os Estados Unidos e voltar para o Brasil é um choque eu... Eu entrei em depressão. Durante um ano eu fiquei com depressão. Os costumes totalmente diferentes, o clima... Eu custei me adaptar. (G1 - Bia, 47 anos, 9 anos de retorno )

A ausência o distancia da dinâmica das relações no espaço anteriormente conhecido e rompe elos que conectam história e lugar.

O LUGAR

Quanto maior o tempo de ausência maior a desconexão com o ambiente. G3 - Teresa mostra a relação conflituosa do distanciamento mesmo contando com todas as facilidades permitidas pelas informações na internet e em tempo real da alta modernidade.

Foi extremamente emocionante, da hora que eu desci em São Paulo até chegar aqui dentro de casa, e assim, muito diferente, muito diferente Valadares. Então eu tenho poucas recordações como eram as coisas, aliás, eu tenho muitas recordações, mas não consigo ver nada do jeito que está na minha cabeça, muito prédio, muita grade, muita bicicleta, muita moto, criança na rua, então eu tinha esquecido um pouco disso sabe, a velocidade de que as coisas progrediram foram demais, porque eu já vi Valadares pelas fotos que chegam lá pela internet, mas não dava pra sentir isso que eu senti aqui, esse choque. Eu não consegui dirigir até hoje aqui no Brasil, mas é muito bom. E pra resumir é maravilhoso está de volta, vê muitos amigos dos meus amigos que ainda estão aqui, então assim é bom, é muito bom, vou voltar todo ano agora, se Deus quiser. (G3 - Teresa, 38 anos, 18 anos ausente, primeira visita ao Brasil em março de 2007).

A memória do lugar de origem está ligada às recordações das relações ali vividas no momento da saída; mesmo acompanhando virtualmente ‘as mudanças’, isso não equivale ao acompanhamento participativo, ao sentimento de incorporação e de familiaridade com os processos naturais de alterações físicas das pessoas e dos lugares.

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Foram relatadas, pelos entrevistados, situações referentes ao preparo das refeições, consumo de determinados produtos, novos hábitos alimentares aprendidos com outros imigrantes nos Estados Unidos e com brasileiros de diferentes regiões geográficas. G2 - Mauro apontou o outro lado da necessidade de novos arranjos, para equilibrar pontos referenciais; tendo permanecido nos Estados Unidos da América num período em que poucos produtos brasileiros eram encontrados, entre eles a ‘cerveja’, muito apreciada por ele. G2 - Mauro acostumou com alguns produtos que hoje são encontrados em Governador Valadares no setor de importados. Com aproximadamente 16 anos de retorno à cidade, ele ainda faz uso desses produtos. “(...) na minha casa eu gosto de tomar uma cerveja holandesa, quase não tomo a cerveja brasileira, então essas coisas, eu sinto falta de coisas de lá, isso com certeza”. Gosta muito de Jazz e disse que aprendeu a amar esse gênero musical durante sua estadia nos Estados Unidos.

Ao ser indagado sobre como consegue comprar os produtos ele aponta a permanência de contato nos Estados Unidos através daqueles que ele ajudou a entrar e apoiou no país de destino, sendo ele um dos pioneiros da sua família na aventura de emigrar. Ele voltou, outros lá permaneceram e seus pais descobriram a rota para ‘matar’ a saudade dos filhos documentados e não-documentados que continuam nos Estados Unidos.

[os produtos são encontrados] com facilidade, ou quando a minha mãe vai, ela traz. Eu gosto de uma pimenta americana, muito boa, a minha mãe sempre vai e traz um vidro grande pra mim, a minha irmã manda, então tem muita coisa. Tem roupa que ela manda pra mim, que a minha irmã manda. (G2 - Mauro, 44 nos, 14 anos de retorno).

A FAMÍLIA

Alguns costumes, forma de vivenciar o tempo longe da proteção da família, fazem com que o sujeito tenha dificuldade de se acomodar à rotina da casa quando volta, ficando ao mesmo tempo feliz e angustiado.

Você se readaptar no que é na falta de dinheiro, está regulando meu dinheiro, dá... Como que eu posso te falar? Eu tinha uma casa lá, tinha o meu apartamento lá num andar, eu retornei pra casa dos meus pais, entendeu? É uma coisa, você fica naquela falta de ambiente, que você já não tem o mesmo espaço que você tinha quando você saiu, mesmo todo mundo querendo que você fique e tal, o que me fez sair. E aí depois eu falei ‘foi ótimo’, assim eu casei em 2003, coisa que meu Deus do céu, nesse período eu procurei casar, que eu pelo cuidado que a minha mãe tinha comigo, meus pais... E pensei quando cheguei assim, quem sabe montar um apartamento e voltar, continuar tudo, só que eu achava que eu podia estar de certa forma é fugindo da casa, deles, eu acho que eles não aceitariam muito, então de certa forma foi um momento nada fácil . (G1 - Teo, 39 anos, 15 anos de retorno)

É difícil para aquele que retorna, no primeiro momento, reorganizar a memória e reencontrar a família e do lugar, anteriormente idealizados. A saudade e a distância vivenciadas anteriormente dissipam-se ao chegar em ‘casa’, mas as mudanças ocorridas com o tempo e no lugar necessitam ser gradativamente assimiladas. É com a retomada do cotidiano e do seu papel na família que o retornado busca adaptar-se.

Ah, um choque viu, é por que eu lembro quando eu cheguei à casa da minha mãe, nem o meu irmão mais novo eu não conhecia (...) estava com dezoito, dezenove anos. (...) Você acha que as pessoas estão mais velhas, mexe muito, no momento mexe muito com a cabeça, a impressão que dá, é vontade de voltar no momento, na mesma hora voltar pros Estados Unidos de novo. Eu não sei, mas mexe muito com a cabeça da gente. Você parece que ficou parado no tempo ali e todo mundo envelheceu, a pessoa envelheceu e você não. Você sabe que envelheceu mais você acha que não, é esquisito, mais depois vai passando (...). Desta vez que eu voltei, também foi depois de um mês que eu comecei a me adaptar. (G2 - Hélio, 36 anos, 8 anos e 6 meses ausente na 1ª vez, 2º retorno em dezembro de 2006)

Ah isso é uns quinze dias, você fica meio chocado ainda quando você vê o pessoal, você acha as pessoas mais envelhecidas, você vê seu pai, sua mãe você acha que eles envelheceram mais, é um

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troço terrível. Você vai à rua, por exemplo, você vê as pessoas esbarrando nas outras, não pede licença, não dá um bom dia, é um choque muito grande (...). (G2 - Mauro, 44 anos, 16 anos de retorno)

O TRABALHO

Como imigrante, no país de destino, buscava formas para preencher o vazio repleto de saudade através de uma plena dedicação ao projeto de “ganhar dinheiro” para voltar - entrega a vida ao trabalho, sendo esse a prioridade, a justificativa da sua permanência no país estrangeiro. Ao voltar ‘para casa’, busca seu lugar e reconhece que ‘seu país’ precisa ser re-assimilado, no sentido que ele precisa acostumar a conviver com a história, os costumes, e as características próprias do povo local. Nesse sentido, é importante ter poupado para investir em um negócio que traga retorno financeiro e que posse se manter nos primeiros meses.

O emigrante mostra que sente urgência em fazer alguma coisa que garanta seu bem-estar e da família. Então, após o período de ‘descanso’ depois do retorno, ele busca se organizar, mas sabe, pelo menos, que a maioria afirmou que precisa cautela na utilização da poupança conseguida com muito ‘suor’ na vida de trabalho nos Estados Unidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O primeiro contato com os dados do trabalho de campo permitiu traçar um perfil geral da amostra e, com mais detalhe, abordar os antagonismos do processo de re-entrada no país de origem. Sugere que há necessidade de maior aprofundamento e confronto com posicionamentos teóricos para entender melhor as questões ressaltadas.

Ao demonstrar, de forma contundente, o esforço necessário para (re)definir seu lugar na família, na comunidade e no trabalho, o emigrante retornado mostra a importância das redes de apoio, principalmente na família e entre amigos. Está ausente nos relatos referência a qualquer política pública ou instituições de apoio para re-inserção na comunidade local. Pode significar desconhecimento do emigrante sobre as ações políticas nesta direção ou falta efetiva desse mecanismo na cidade.

Cumpre ressaltar que a migração de retorno como uma faceta da migração internacional é parte constituinte do processo. O e/imigrante faz planos de retorno, de visita aos familiares e amigos ou deseja “se fosse possível viver um tempo lá e outro aqui”. Ele reconhece nas idas e vindas e saber definir “o que é bom lá e o que é bom aqui”.

Por isso, as conexões com o país de destino se tornam fundamentais. Continuam mantendo contato (90,9%) com parentes e amigos nos Estados Unidos.

Bassanezi (1995) ao dissertar sobre a migração italiana, alemã, portuguesa, japonesa ao Brasil, fazendo referências aos dados sobre a migração de retorno e a emigração destes migrantes para outros países expôs, também, questões antagônicas no ‘projeto de retorno’. Ou seja, os migrantes inicialmente se vêem como trabalhadores temporários e planejam retornar ao lar. No entanto, muitos deles falham na realização de seus planos e, ou nunca retornam ou se retornam ao país de origem, voltam repetidamente para os países industriais, tornando, mais ou menos, membros permanentes da força de trabalho. Assis (1995) ao buscar traçar o caminho desses migrantes, inseridos em redes sociais e num novo arranjo que liga os dois lugares, num contexto de culturas em contato desvendou a trajetória do migrante acentuando o aspecto antagônico que perpassa o fenômeno, no sentido de uma contínua renegociação de contrapontos envolvendo decisões, sonhos, vontades e expectativas.

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HOW THE GARCÍA GIRLS LOST THEIR ACCENTS: O CONFLITO CULTURAL DE UMA IDENTIDADE DIVIDIDA ENTRE O PASSADO E O PRES ENTE

Gean Carla Pereira21

RESUMO

O presente artigo discute a construção da identidade cultural da personagem Yolanda García, que é analisada a partir dos processos de migração, exílio e desplaçamento, enfrentados em relação às experiências vividas nos Estados Unidos. Portanto, analisa-se a ligação entre o conflito de identidade da personagem e a tentativa de reconstrução da terra de origem em uma narrativa permeada pelo passado da protagonista na República Dominicana. Palavras-chave: migração, identidade, desplaçamento.

ABSTRACT This article discusses the construction of Yolanda García’s cultural identity, which is analyzed through the processes of migration, exile and displacement encountered during her experiences in the United States. This work attempts to connect Yolanda’s conflict of identity to her efforts to reconstruct homeland, for the narrative is permeated by the protagonist’s past in the Dominican Republic. Key-words: migration, identity and displacement.

INTRODUÇÃO

A escritora Julia Alvarez nasceu nos Estados Unidos, e aos três meses de idade seus pais, ambos dominicanos, resolveram retornar ao país de origem. Alvarez cresceu, até os dez anos de idade, na República Dominicana, entretanto seus pais, forçados a deixar o país durante a ditadura de Trujillo, optaram por retornar aos Estados Unidos. A família Alvarez partiu em um exílio forçado três meses antes do assassinato das irmãs Mirabal, cuja história Alvarez narra no romance publicado em 1994 In the Time of the Butterflies 22, que foi transformado em filme para a televisão americana em 2001.

Em How the García Girls Lost Their Accents (1991), Julia Alvarez relata a saga da família García, que se aproxima muito de sua própria história. A protagonista, Yolanda, nascida e criada na República Dominicana, muda-se com a família para os Estados Unidos e, já adulta, tenta reconstruir sua história através das lembranças da infância em sua terra natal. Nessa tentativa de (re) construção, Yolanda percebe que sua identidade dominicana se encontra em conflito com uma nova identidade, a de dominicana-americana.

Nas literaturas de imigrantes, o pertencimento à terra de origem, ou home23, tem sido amplamente discutido, e em The Politics of Home, George (1999) afirma que o lugar de

21 Graduação em Letras pela UNIVALE (1996), possui especialização em Inglês pela UFES (2002) e mestrado em Literaturas de Expressão Inglesa (2006). Dedica-se às atividades de ensino e tradução. Atualmente é professora na graduação e pós-graduação do curso de Letras da Univale. Interessa-se por pesquisas em literatura de imigrantes, em especial, a literatura pós-colonial, e a relação entre literatura e ensino de língua inglesa. 22 ALVAREZ, JULIA. No Tempo das Borboletas. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001. 23 Este artigo foi escrito a partir de um trabalho em inglês para a disciplina de mestrado “A literatura norte-americana de imigrantes”, ministrada pela professora Gláucia Renate Gonçalves (UFMG), portanto a palavra

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origem, ao invés de neutralidade, representa o local onde o ser humano luta consigo mesmo: “... homes are not neutral places. Imagining a home is as political as imagining a nation” 24 (GEORGE, 1999, p.6).

O imigrante, ao se deparar com novas experiências fora de casa, delineia a terra de origem, a partir do que lhe é apresentado como novo, e assim as experiências passadas mesclam-se ao presente. O imigrante se vê dizendo frases que antes não faziam parte de seu cotidiano: “No meu país, nós não fazemos assim...”, ou ainda, “Lá em casa, minha família sempre...”. Essas experiências estão diretamente relacionadas ao sentimento de pertencimento que o imigrante luta por encontrar em um lugar onde a vida se mostra tão diferente. Hobsbawn (APUD MORLEY, 2000, p. 9) utiliza dois termos para definir home:

Home, in the literal sense Heim, chez moi, is essentially private. Home in the wider sense Heimat, is essentially public...Heim belongs to me and mine and nobody else... Heimat is by definition collective. It cannot belong to us as individuals.25

Portanto, o imigrante relaciona suas vivências a duas esferas, privada e pública, que norteiam seu senso de pertencimento ou de não pertencimento (desplaçamento)26, provocado por experiências de vida em um ambiente cultural diferente.

Outra questão ligada à terra natal é o fato do imigrante se encontrar em exílio, independente de ser este forçado ou voluntário. Exílio, freqüentemente sugere um ato de expulsão da terra natal (homeland), e conseqüentemente uma experiência negativa. Peters (1999, p.19) explica as condições que envolvem essa experiência:

“‘Exile’ suggests a painful or punitive banishment from one’s homeland. Though it can be either voluntary or involuntary, internal or external, exile generally implies a fact of trauma, an imminent danger, usually political, that makes the home no longer safely habitable”. 27

Considerando que a migração e o exílio são de suma importância para a experiência humana (DAVIES, 1994, p.128), o presente artigo analisa as experiências de migração da personagem protagonista, Yolanda, na obra How the García Girls Lost Their Accents (1991) bem como a articulação do sentimento de pertencimento à República Dominicana e aos Estados Unidos frente ao exílio forçado da família García. Discute-se também a forma como Yolanda articula a construção de sua identidade cultural como sujeito migrante sob o ponto de vista de seu pertencimento (ou não pertencimento) às raízes dominicanas e à cultura americana.

home, devido ao seu extenso significado na literatura, será traduzida por lar, terra natal ou terra de origem neste texto. 24 “Os lares não são lugares neutros. Imaginar o lar é tão político quanto imaginar uma nação.” (Tradução nossa). 25 “Casa, no sentido literal Heim, minha casa, é um termo essencialmente privado. Casa, no sentido mais amplo Heimat, é essencialmente público. Heim pertence a mim, ao que é meu e a ninguém mais... Heimat é por definição um termo coletivo. Não pode nos pertencer de forma individualizada.” (Tradução nossa). 26 A palavra desplaçamento origina-se do inglês displacement que é derivada do verbo displace, que significa remover algo do lugar comum (COLLINS COBUILD). Neste texto, indica a fragmentação ocasionada pelo deslocamento, gerando, conseqüentemente, um sentimento de não pertencimento que uma pessoa experimenta por ter que viver em um lugar onde enfrenta situações de convívio diferentes daquelas à que estava acostumada. 27 ““Exílio’ sugere uma expulsão dolorosa ou punitiva da terra natal. Embora possa ser voluntário, ou involuntário, interno ou externo, exílio geralmente envolve o fator trauma, um perigo iminente, normalmente político, que torna a vida difícil na terra natal.” (Tradução nossa)

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UMA IDENTIDADE DIVIDIDA

A obra proposta narra a saga da família García que emigrou para os Estados Unidos no ano de 1959, durante a ditadura de Trujillo na República Dominicana. Yolanda, a terceira filha das quatro garotas García, relata os desafios encontrados na sociedade americana como imigrante e aspirante a escritora. Yolanda percebe suas diferenças através da cultura, gênero, sexualidade e religião, e olha para o passado na República Dominicana de forma idealizada devido à vida financeiramente confortável que a família possuía até a ditadura forçá-los a sair do país. O relacionamento de Yolanda com a terra natal também envolve o “pertencimento” à grande família: todos os parentes vivendo no mesmo terreno, onde os primos compartilhavam as mesmas casas, grandes e cheias de empregados. Portanto, a análise da obra revela o impacto da experiência do exílio na vida de Yolanda em sua tentativa de pertencimento à sociedade americana.

Yolanda e sua família pertenciam à alta sociedade dominicana. Seu pai era médico e a mãe havia estudado nos EUA antes de se casar, ambos eram provenientes de famílias de importância, os de la Torre e os García. Laura, mãe de Yolanda, afirmava que não queria regressar ao país de origem: “She did not want to go back to the old country where, de la Torre or not, she was only a mother (and a failed one at that, since she had never provided the required son)” (Alvarez, 1991: 143-44)28. Durante a infância, Yolanda possuía verdadeira fascinação por livros e, Laura García a estimulava, dizendo “Ay, Yoyo, you are going to be the one to bring our name to the headlights in this country!” (op. cit. p.143)29. Assim, Yolanda cresce com a esperança de ser ‘alguém’ na sociedade americana.

Na faculdade, Yolanda resolveu pedir transferência, pois teria a chance de melhorar seus estudos, e ao chegar à nova faculdade percebeu que ela era tão estranha e inexperiente quanto seus poemas: “I whispered, complete sentences for whispers, that’s what tells you I was still a greenhorn in this culture”. (op. cit. p.90) 30 Nesta faculdade, Yolanda conhece Rudolf Brodermann Elmenhurst, um aluno da turma de inglês, que era muito popular entre os colegas: “Our next workshop, no one understood what my sublimated love sonnet was about, but Rudy’s brought down the house.” (op. cit. p.95)31 Percebe-se na narrativa, o desprezo que Yolanda recebia dos colegas pois, ou não conseguia se expressar na língua inglesa ou não recebia atenção por ser estrangeira.

Ao perceber suas diferenças, Yolanda resiste à imagem que a sociedade americana construíra dela : “He had told them he was seeing ‘a Spanish girl,’ and he reported they said that should be interesting for him to find out about people from other cultures. It bothered me that they should treat me like a geography lesson for their son.” (op. cit. p.98)32 Ao tratar Yolanda como mero ‘objeto de estudo’, os pais de Rudy reforçam as diferenças de Yolanda como sujeito latino-americano. Portanto, Yolanda, mesmo após tantos anos convivendo na sociedade americana, e de certo modo americanizada, ainda é vista como uma estranha. Na verdade, Yolanda se vê como tal, experimentando sentimentos de desplaçamento e alienação em relação à linguagem e cultura:

28 “Ela na queria retornar ao velho país, onde, de la Torre ou não, ela era apenas uma mãe (e uma fracassada porque nunca conseguiu gerar o tão esperado filho).” (Tradução nossa) 29 “Ay, Yoyo, você vai ser a escolhida para fazer o nosso nome brilhar neste país!” (Tradução nossa) 30 “Eu sussurrava orações completas para sussurros, e é por isso que digo que eu ainda era uma pessoa inexperiente nessa cultura.” (Tradução nossa) 31“Na nossa apresentação seguinte, ninguém entendeu o que o meu sublime soneto de amor significava, mas o de Rudy quase trouxe a casa a baixo.” (Tradução nossa) 32 “Ele tinha dito aos pais que estava saindo com uma ‘garota espanhola’, e me contou que disseram que seria interessante para ele ter contato com outras culturas. Perturbava-me o fato deles me tratarem como uma lição de geografia para o filho.” (Tradução nossa)

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Suddenly, it seemed to me, not only that the world was full of English majors, but of people with a lot more experience than I had. For the hundredth time, I cursed my immigrant origins. If only I too had been born in Connecticut or Virginia, I too would understand the jokes everyone was making on the last two digits of the year, 1969; […] and I would say things like “no shit,” without feeling that I was imitating someone else. (op. cit. p.94-5)33

Yolanda também se sente diferente no que diz respeito a sua sexualidade e religiosidade, pois já não é mais tão católica quanto era quando chegou aos EUA: “By then, I was a lapsed Catholic; my sisters and I had been pretty well Americanized since our arrival in this country a decade before, so really, I didn’t have a good excuse.” (op. cit.p. 87)34 A criação de Yolanda na República Dominicana construiu suas crenças religiosas, que por sua vez interferiam em sua conduta na sociedade americana que experimentava o movimento de liberação sexual dos anos 60, assim, Yolanda presa aos ensinamentos religiosos que recebeu, relata seu medo de ter relações sexuais pré-conjugais: “[…] dammed by God should I die at that moment, and now I started wondering if maybe my upbringing had disconnected some vital nerves.” (op. cit. p. 97)35

Rudy persiste em ter relações sexuais com ela, enquanto passavam horas trabalhando nos poemas e histórias para as aulas de inglês. Entretanto, eles nunca tiveram relações, e Yolanda concluiu que o problema era o vocabulário de Rudy:

Perhaps if Rudy had acted more as if lovemaking were a workshop of sorts, things might have moved swiftly toward his desired conclusion. But the guy had no sense of connotation in bed. His vocabulary turned me off even as I was beginning to acknowledge my body’s pleasure. If Rudy had said, Sweet lady, lay across my big, soft bed and let me touch your dear, exquisite body, I might have felt up to being felt up. (op. Cit, p. 96)36

Rudy costumava utilizar um vocabulário extremamente pejorativo enquanto tentava convencer Yolanda a fazer amor com ele, o que a irritava profundamente: “I’d never been spoken to that way. If my father had heard a man use such obscenities before his daughters, he would have asked him to step outside where he would have defended my honor” (op. cit. p. 96)37. Rudy finalmente percebe que a recusa de Yolanda em manter relações sexuais com ele está relacionada a sua criação, pois suas raízes dominicanas são muito fortes, tanto quanto os estereótipos que pessoas como Rudy construíram baseados em visões e concepções essencialistas a respeito de povos diferentes.Yolanda explica: “He had seen me through. ‘You know,’ he said, ‘I thought you’d be hot-blooded, being Spanish and all, and that under all Catholic bullshit, you’d be really free, instead of all hung up like the cotillion chicks from

33 “De repente, me pareceu não só que o mundo estava cheio de graduandos em inglês, mas também de pessoas que tinham muito mais experiência do que eu. Pela centésima vez eu amaldiçoei minha origem imigrante. Se eu tivesse nascido em Connecticut ou Virginia, eu também entenderia as brincadeiras que todos faziam com os dois últimos dígitos do ano, 1969... e eu diria coisas do tipo “que merda” sem sentir que eu estava imitando outra pessoa.” (Tradução nossa) 34 “Nessa época eu era uma católica relapsa; minhas irmãs e eu já nos encontrávamos praticamente americanizadas desde nossa chegada a este país uma década antes, portanto, eu não tinha uma boa desculpa.” (Tradução nossa) 35 “Amaldiçoada por Deus, eu morreria naquele exato momento, e só agora eu começava a pensar que talvez minha criação tivesse desconectado alguns dos meus nervos vitais.” (Tradução nossa) 36 Talvez se Rudy tivesse agido como se fazer amor fosse um workshop literário, as coisas teriam caminhado rapidamente em direção a seu desejado final. Mas o cara não tinha nenhum senso de conotação na cama. Seu vocabulário me esfriava mesmo em um momento em que eu estava começando a experimentar o prazer em meu corpo. Se Rudy tivesse dito: Doce senhorita, deite-se sobre minha cama grande e macia, e deixe-me tocar seu corpo adorável e delicado, eu provavelmente teria sentido vontade de ser acariciada.” (Tradução nossa) 37 “Nunca haviam falado comigo daquele jeito. Se meu pai tivesse escutado um homem usar palavras tão obscenas diante de suas filhas, pediria a ele para sair para a rua e lá defenderia minha honra.” (Tradução nossa)

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prep schools. But Jesus, you’re worse than a fucking Puritan” (op. cit. p. 99)38. Rudy culpava Yolanda por ela não corresponder ao que ele imaginava ser uma “Garota Espanhola”.

Portanto, Yolanda descobre que não consegue experimentar sua sexualidade como a maioria dos colegas americanos porque ainda se encontra ligada às suas crenças religiosas. No que se refere às questões religiosas, DeCaires e O’Callaghan (1994, p.628) afirmam: “A frequent target in West Indian literature has been the alienating effects of colonial education, usually buttressed by the teachings of an authoritarian Christianity.”39 Portanto, Yolanda, mesmo distante do ambiente social e cultural da República Dominicana, encontra dificuldades para se libertar das tradições. DeCaires e O’Callaghan (op. cit.: 628) ainda explicam:

Older women within the community are indicated for their role of socializing girls to become ‘young ladies’. This oppressive ‘ladyhood’ is associated with Christian and Victorian strictures as to respectability and morality with their attendant taboo on the expression of sexuality. Many writers point to the association of sexuality shame defilement and the forced renunciation of childhood freedom (with its relative androgyny)40.

Esta tradição relacionada à educação das meninas é vista nos comentários que Yolanda faz em relação à sua amizade com seu primo Mundín: “We were the only boy-girl pair, and as we grew older, Mami and Mundín’s mother, Tía Carmen, encouraged a separation between us” 41. (op. cit. p. 225).

No capítulo “The Human Body”, Yolanda refere-se à roupa de cowgirl que sua avó trouxe de Nova York pra ela, e menciona os papéis que as meninas dominicanas deveriam desempenhar em uma sociedade em que as construções de gênero eram muito fortes:

My mother disapproved. The outfit would only encourage my playing with Mundín and the boy cousins. It was high time I got over my tomboy phase and started acting like a young lady señorita. ‘But it is for girls,’ I pointed out. ‘Boys don’t wear skirts.’ Mamita threw her head back and laughed. (op. cit. p.227). 42

Contudo após a faculdade, a vida de Yolanda mudou, pois agora ela era uma poetisa inspirada, e influenciada por suas freqüentes leituras de Carlos Castañeda, Rilke e Robert Bly. Ela também já tivera vários amantes (op. cit. p.101) e, entre tantos, ela encontra John, que mais tarde viria a ser seu marido.

O capítulo intitulado “Joe” discorre sobre seu relacionamento com o marido e a dor da separação, e inicia com a explicação para o nome de Yolanda: “Yolanda, nicknamed Yo in Spanish, misunderstood Joe in English, doubled and pronounced like the toy, Yoyo” (op. cit.:

38 “Ele conseguiu perceber tudo. ‘Sabe de uma coisa’, ele disse, ‘ eu pensei que você seria sangue quente, por ser espanhola e tudo mais, e por baixo dessa porcaria de catolicismo, você seria livre, ao invés de presa como uma garota debutante de escolas preparatórias. Mas, Jesus, você é pior do que uma droga de Puritana.’” (Tradução nossa) 39 “Um alvo freqüente da literatura das Índias Ocidentais é o efeito da alienação, proveniente da educação colonial, e normalmente fortalecido pelos ensinamentos de um cristianismo autoritário”. (Tradução nossa) 40 “As mulheres mais velhas dentro da comunidade são indicadas para o papel de socializar as meninas, e torná-las ‘jovens senhoritas’. Esta categorização opressiva de ‘senhorita’ está associada a padrões cristãos e austeridade Vitoriana, como o respeito e moralidade juntamente com o respectivo tabu na expressão da sexualidade. Muitos escritores apontam para a associação da sexualidade com a vergonha, a impureza, e a renúncia forçada da infância (e seus aspectos relativamente andrógenos).” (Tradução nossa) 41“Nós éramos o único par, menino e menina, e à medida que crescíamos, mamãe e a mãe de Mundín, tia Carmen, estimulava a nossa separação.” (Tradução nossa) 42 “Minha mãe desaprovava. A roupa só serviria para encorajar minhas brincadeiras com Mundín, e com os outros primos do sexo masculino. Já era hora para eu superar minha fase de menino e começar a agir como uma jovem senhorita. ‘Mas é para meninas’ eu argumentei. ‘Meninos não usam saias’. Vovó balançou sua cabeça e riu.” (Tradução nossa)

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68)43 Esta confusão acerca de seu nome revela um problema relacionado ao desplaçamento que é causado por sua situação de imigrante latino-americana. Em Borderlands/la Frontera: the new mestiza, Gloria Anzaldúa afirma que “A identidade étnica está colada à identidade lingüística − eu sou minha língua” (Torres, 2001:32). Portanto, Yolanda, que está em processo de (re)construção de sua história, começa a tratar a questão de seu apelido como base para afirmação de sua identidade: ela rejeita “Joe”, e acolhe “Yo”, que equivale ao pronome pessoal de primeira pessoa do singular em espanhol — marcando sua busca pela autonomia do “eu”.

Através da pronúncia de seu nome, ou apelido, na língua materna, Yolanda se sente em casa, mas as pessoas à sua volta vêem uma outra Yolanda. Portanto, ela não consegue amar John, pois Yolanda percebe que ele ama outra mulher, uma “Joe-lan-dah”, pois esta era a forma como ele pronunciava seu nome, diferentemente da forma como é pronunciado em espanhol. Esta “Joe-lan-dah” constitui uma mulher que pertence a um mundo diferente do dele: “She wrote him a short memo, Gone−then added−to my folks. She thought of signing it, Yolanda, but her real name no longer sounded like her own, so instead she scribbled his name for her, Joe”(op. cit.:79)44. Yolanda conta à sua mãe sobre a separação e explica: “We just didn’t speak the same language” (op. cit. p. 81)45. Por pertencerem a mundos diferentes, Yolanda e John possuíam uma linguagem diferente, e não conseguiam se comunicar. Yolanda não se refere apenas a uma língua materna diferente, mas também a uma concepção de mundo que diverge do seu.

John acreditava que Yolanda era uma pessoa diferente, e durante algum tempo Yolanda tentou agir de acordo, mas falhou. Ao decidir ir embora, Yolanda, finalmente, reflete sobre sua vida de forma completa, sem divisões: “She revised the note: I’m needing some space, some time, until my head-slash-heart-slash-soul—No, no, no, she didn’t want to divide herself anymore, three persons in one Yo.”46 (op. cit. p. 78) Finalmente, Yolanda deixa John para viver sua vida, e procurar pelas partes que faltam para que ela complete sua história, longe dos comentários acusatórios que John sempre fazia sobre sua personalidade: “Because he accused her of eating her head by thinking so much about what people said. Because he believed in the Real World, more than words, more than he believed in her” 47 (op. cit. p.73) As críticas de John podem ter contribuído para que Yolanda levantasse dúvidas sobre sua capacidade de encontrar-se como pessoa, já que ela sempre se via dividida entre suas raízes dominicanas, sua cidadania americana e, conseqüentemente, o que as pessoas desejavam que ela fosse. Esta crise de identidade lhe causou um colapso nervoso após a separação, e seus pais a internaram em uma clínica.

Yolanda sente um vazio, que a impede de ser uma pessoa completa: “she recognizes the unmistakable signs of a flashback: a woman at a window, a woman with a past, with memory and desire and wreckage in her heart”. 48(op. cit. p. 69) Enquanto ela vê

43 “Yolanda, apelidada Yo em espanhol, confundida com Joe em inglês, duplicada e pronunciada como o brinquedo, ioiô.” (Tradução nossa) 44 “Ela escreveu um pequeno recado pra ele: Fui—então acrescentou—para a casa de meus pais. Ela pensou em assiná-lo, Yolanda, mas seu nome verdadeiro não parecia mais seu, portanto ela rabiscou o nome que ele deu a ela, Joe.” (Tradução nossa) 45 “Nós simplesmente não falávamos a mesma língua.” (Tradução nossa) 46 “Ela revisou o bilhete: Eu estou precisando de um pouco de espaço, um pouco de tempo, até que a minha cabeça-divisão-coração-divisão-alma—Não, não, não, ela não queria dividir-se mais, três pessoas em uma Yo.” (Tradução nossa) 47 “Porque ele a acusava de se consumir com pensamentos a respeito do que as pessoas diziam. Porque ele acreditava no mundo real, mais do que em palavras, mais do que ele acreditava nela.” (Tradução nossa) 48 “Ela reconhece os sinais inconfundíveis de um flashback: uma mulher na janela, uma mulher com um passado, com lembranças e desejo e ruínas em seu coração.” (Tradução nossa)

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seu analista pela janela, ela se lembra do passado. No quarto da clínica, Yolanda lamenta a perda do amor, não o amor e compreensão relacionada a John apenas, mas a aceitação que ela buscava na família, e principalmente na sociedade americana – era uma tristeza interior e exterior.

Yolanda compara sua tristeza a uma ave negra, numa alusão ao pássaro do poema de Edgar Allan Poe, “O Corvo”: “A huge black bird springs out; it perches on her bureau, looking just like the etching of the raven in Yo’s first English poetry book”. 49 (op. cit. p.83) O narrador em terceira pessoa descreve o pássaro, que parece tão feliz voando por toda parte, “se alegrando em sua mais recente liberdade” (op. cit. p.84) O pássaro que se assemelha ao corvo do primeiro livro de poesia de Yolanda, exprime o desejo de liberdade refletido na própria personalidade de Yolanda, que se encontra em desordem diante de tudo que a impede de se sentir completa e livre para viver e, conseqüentemente escrever de forma criativa. Por outro lado, Yolanda, ao desejar liberdade de expressão, reconhece que tem que se libertar do passado, de seu apego demasiado às origens, portanto ela diz ao pássaro para ter um pouquinho mais de fé (op. cit.: 83). Nesse gesto Yolanda está dizendo a si mesma para acreditar que apesar de sua fragmentação, ainda há esperança.

Portanto, Yolanda precisa aceitar sua condição de sujeito dividido entre duas culturas, e que se encontra em processo de construção de uma nova identidade. Logo, Yolanda deve reconstruir sua vida em um novo espaço – que Homi Bhabha chama de espaço liminal (Bhabha, 1994: 9) –, onde suas experiências possam ser acrescentadas às vivências do passado na República Dominicana, levando à consolidação de sua identidade híbrida.

O capítulo “The Human Body” revela o “acidente” acontecido com o boneco de seu primo Mundín: “In each of his big worn hands, he carried the transparent halves of the cracked-open Human Body” (op. cit. p. 238)50 Yolanda representa este corpo humano “dividido”, que nunca mais conseguiu ser o mesmo após a ruptura causada pelo deslocamento, e que nunca conseguirá recuperar as experiências passadas de maneira completa, pois fazem parte de suas lembranças fragmentadas pelo tempo e por novas vivências.

CONCLUSÃO

O escritor indiano-britânico Salman Rushdie (1991, p.15) afirma que “Our identity is at once plural and partial” 51, revelando a ambivalência dos sentimentos que o migrante possui ao se deparar com uma outra cultura e tentar vivenciar suas próprias diferenças em uma sociedade que as evidencia e o mantém alienado. O imigrante vive uma pluralidade: ao mesmo tempo em que possui suas raízes culturais, ele possui também as experiências da nova cultura, o que o torna a peça diferente no todo da cultura que o cerca. Portanto, Yolanda sempre levará consigo sua diferença, pois suas características, físicas e/ou culturais, são definidas pelos olhares dos outros e, também, a partir de como ela se percebe em relação a estes outros.

Após o exílio de sua família, ela será sempre uma “garota espanhola”, uma católica não praticante, uma mulher dominicana-americana, hifenizada, e uma escritora que se encontra cansada das divisões que entrecortam sua identidade. Yolanda conclui o ultimo

49 “Um enorme pássaro negro surge; ele pousa em sua cômoda, tão parecido com a gravura do corvo do primeiro livro de poesias em inglês que Yo ganhou.” (Tradução nossa) 50 “Em cada uma de suas mãos grandes e ásperas, ele carregava as metades transparentes do Corpo Humano aberto por uma rachadura.” (Tradução nossa). 51 “Nossa identidade é ao mesmo tempo plural e parcial.” (Tradução nossa).

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capítulo, explicando sua narrativa: “You understand I am collapsing all time now so that it fits in what’s left in the hollow of my story?” (op. cit. p. 289)52 Yolanda é uma mulher que luta contra a ansiedade de se tornar escritora, pois ao conseguir contar a sua história ela se reconcilia com seu passado na República Dominicana. Ela tem vários “nomes bastardos”: Yo, Joe, Yoyo, Yosita… (op. cit. p. 47-81), mas através do processo de escrita, Yolanda é capaz de reunir esses vários eus e alcançar sua totalidade ao narrar sua história.

Bibliografia:

ALVAREZ, Julia. How the García Girls Lost Their Accents. New York: Plume Book, 1991.

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

COLLINS Cobuild. Advanced learner’s English dictionary. New York: HarperCollins Publishers, 2003.

DAVIS, Carole B. Black Women, Writing and Identity . London; New York: Routledge, 1994.

DeCAIRES, Denise N.; O’CALLAGHAN, Evelyn. Anglophone Caribbean Women Writers. In: RUTHERFORD, Anna;JENSEN, Lars;CHEW, Shirley. Into the Nineties: Post-colonial Women’s Writing. Dangaroo: Dangaroo Press, 1994.

GEORGE, Rosemary M. The Politics of Home. Berkeley: University of California Press, 1999.

PETERS, John D. Exile, Nomadism, and Diaspora. In: NAFICY, Hamid (Ed.). Home, Exile, Homeland: film, media, and the politics of place. New York and London: Routledge, 1999. p.17-41.

MORLEY, David. Home Territories: media, mobility and identity. London: Routledge, 2000.

RUSHDIE, Salman. Imaginary Homelands. In: ___. Imaginary Homelands: Essays and Criticism 1981-1991. New York: Penguin, 1991. p. 9-21.

TORRES, Sônia. Nosotros in USA. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

52 “Você entende que eu estou hesitando o tempo todo, para que isto preencha o que sobrou no vazio de minha própria história?” (Tradução nossa).

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AS CONEXÕES ENTRE OS EUA E O BRASIL: UMA ANÁLISE DA S REDES SOCIAIS TECIDAS A GOVERNADOR VALADARES E CRICIÚMA 53

Gláucia de Oliveira Assis54

RESUMO A recente emigração de brasileiros para os EUA, no final do século XX, inseriu o Brasil nos novos fluxos internacionais de mão-de-obra. Este artigo discute como nas duas cidades no Brasil que tem conexões desde a década de 1980 com a região de Boston (EUA) – Governador Valadares (MG) e Criciúma (SC) construíram laços transnacionais. A ampliação dos pontos de partida, a formação de redes de parentesco, amizade e de origem comum, bem como as redes de tráfico de migrantes, transformam o cotidiano dessas cidades configurando complexas redes sociais. Este artigo a partir dos relatos de homens e mulheres migrantes e seus familiares discute as diferentes e às vezes ambíguas experiências na configuração das redes sociais. Palavras-chave: redes sociais, relações de gênero, Brasil - Estados Unidos, emigração-imigração, Governador Valadares e Criciúma. ABSTRACT The recent emigration of Brazilians people, in late XX th century, has inserted Brazil into the new worldwide population flow. This paper discuss how Governador Valadares (MG) and Criciúma (SC) had constructed transnational connections and intends to demonstrate that migratory process is resulted not only the individual choice, but also social networks (family, kingship, friendship). The work discusses data from fieldwork in Criciúma (SC) in the Boston area, in United States. The data emerged from the interviews and participant observation showing that women not only wait for their husbands or children, but also participate in the process integrating and articulating migration networks. The data also made evident the configuration that other points of migration beyond Governador Valadares (MG), suggesting to mature that social networks. Key-words: social networks, gender, Brazil-United States, emigration and immigration, Governador Valadares e Criciúma (Brasil)

INTRODUÇÃO

Nesse início de século XXI a emigração de brasileiros tem ampliado as fronteiras, redefinido identidades, e conexões dos grupos sociais que vivenciam a experiência de viver entre dois lugares. Este trabalho discute como nas duas cidades no Brasil que tem conexões desde a década de 1980 com a região de Boston (EUA) – Governador Valadares (MG) e Criciúma (SC) foram se construindo esses laços transnacionais. A ampliação dos pontos de partida, a formação de redes de parentesco, amizade e de origem comum, bem como as redes de tráfico de migrantes, transformam o cotidiano dessas cidades configurando complexas redes sociais.

Os novos movimentos da população mundial, que iniciaram no final dos anos 50, caracterizam-se pela maior diversidade étnica, de classe e de gênero, bem como pelas múltiplas relações que se estabelecem entre a sociedade de destino e de origem dos fluxos. Dessa forma, não são apenas os europeus brancos partindo da Europa para “Fazer a América” (cerca de 90% dos fluxos do século XIX ), mas também trabalhadores imigrantes não-brancos partindo dos países periféricos e dirigindo-se para os Estados Unidos, Canadá e países da Europa (PORTES, 1990).

No caso da emigração de brasileiros para os Estados Unidos, as primeiras pesquisas traçaram um perfil da população e apontaram para a cidade de Governador Valadares (MG) como ponto de partida de emigrantes para a região de Boston, nos Estados 53 Uma primeira versão desse artigo foi apresentado no XXIV Simpósio Nacional de História, realizado em São Leopoldo, no período de 15 a 20 de Julio de 2007 e na Reunião de Antropologia VII RAM – Reunião de Antropologia do MERCOSUL - Desafios antropológicos, Porto Alegre, 23 a 26 de julio de 2007. 54 Professora do Centro de Ciências da Educação na Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc.

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Unidos. Ao longo dos anos 90, conforme demonstram os trabalhos de Martes (1999), Ribeiro (1999), Sales (1999a), Reis e Sales (1999), o fluxo de brasileiros para os Estados Unidos manteve-se contínuo, ao mesmo tempo em que se diversificava a população, tornando mais complexas as características da população, bem como revelando outros pontos de partida para a emigração. Essas pesquisas ainda apontam para a inserção de homens e mulheres no mercado de maneira diferenciada, pois as mulheres “dominam” a área do serviço de faxina na região de Boston (MARTES, 1999; FLEISCHER, 2002 E ASSIS 2004) e também começam a problematizar as mudanças nas relações familiares e de gênero (ASSIS, 2003, 2004; DEBIAGGI, 2003; FUSCO, 2001).

“Um migrante traz o outro”, disse-me uma emigrante de Criciúma. Assim, ao compararmos as trajetórias dos migrantes criciumenses com a de outros imigrantes nos Estados Unidos, percebemos que nesse caso a consolidação de um fluxo contínuo para os Estados Unidos, também está diretamente relacionada à construção e à consolidação de redes migratórias.

Quando um migrante traz um outro, redes de amizade e parentesco que já pré-existentes ao processo migratório são acionadas e contribuem para a reunificação familiar e para a ampliação do tempo de permanência dos imigrantes. Portanto, assim como aconteceu com outros fluxos de imigrantes salvadorenhos, mexicanos ou japoneses para os Estados Unidos, os brasileiros foram estabelecendo-se e trazendo seus filhos, primos, sobrinhos, amigos. Dessa forma, as redes familiares foram construídas entre os dois lugares e mudam a expectativa temporal dos imigrantes.

Este artigo apresenta os dados parciais de uma pesquisa que venho desenvolvendo55 e procura, a partir de dados de pesquisa de campo realizada em Criciúma (SC) e Governador Valadares (MG), discutir as diferentes e às vezes ambíguas experiências na configuração das redes sociais entre os migrantes brasileiros buscando analisar como se reconstroem suas identidades. Para tanto, através de entrevista com migrantes e seus familiares, observação participante da vida cotidiana em ambas as cidades, procuraremos evidenciar a configuração, manutenção e mudanças nas redes ao longo do tempo. Desse modo, as redes sociais acionadas no contexto da migração foram analisadas como práticas sociais que envolvem tipos diferentes de ajuda material, logística, emocional e simbólica que possibilitam aos futuros migrantes partirem com referências mínimas de onde ir, qual o trabalho que irão fazer com quem vão morar etc. e ao mesmo tempo contribuem para a configuração de laços transnacionais entre as sociedades de origem e de destino dos fluxos.

AS REDES SOCIAIS NO PROCESSO MIGRATÓRIO: ARTICULAND O RELAÇÕES DE GÊNERO, PARENTESCO E ORIGEM COMUM.

O conceito de redes sociais foi utilizado inicialmente por antropólogos britânicos para compreender processos de urbanização na África e, a partir disso, a noção de processo e estratégia substituiu a idéia de estrutura. Nas décadas de 1940 e 1950, os antropológicos estavam preocupados em construir instrumentais para analisar os processos de mudança social ou o modo como as sociedades transformavam-se. Criada sob a liderança de Max Gluckman, a Escola de Manchester56 representou essa tentativa de romper com o estrutural funcionalismo

55 A pesquisa “As conexões entre os EUA e o Brasil: uma análise das redes sociais tecidas a partir de Governador Valadares (MG) e Criciúma (SC)” está sendo desenvolvida em parceria com o professor Emerson César Campos (Udesc) a professora Sueli Siqueira – Univale e tem financiamento da Udesc. 56 Uma discussão do uso do conceito de rede na Antropologia encontra-se em Mitchell (1987), Barnes (1987) numa coletânea organizada por Feldman-Bianco (1987). No capítulo introdutório a autora faz uma análise das

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e sua forma de análise estática sincrônica da organização social, através de instrumentais elaborados que enfocassem a diferença entre o comportamento concreto dos indivíduos e as normas ou valores ideais. Dessa forma, tentavam combinar a análise da estrutura e de processos sociais procurando captar o conflito, a contradição, a variação e o fluxo social, ou seja, a mudança social.

A principal crítica aos estudos da Escola de Manchester é que, embora tenham formulado em contraposição à análise funcionalista, tais conceitos ainda estavam nitidamente influenciados por esta perspectiva teórica. Isso fica evidente na preocupação dos autores com a identificação das redes, suas densidade, seu tamanho. Portanto, a ênfase recairia em como os indivíduos interagem em contexto de mudança, como se adaptam, o número de relações que estabelecem e, novamente, acabaram não apreendendo o conflito, as relações de poder e a mudança social.

O estudo de Bott (1970), que também é filiado à Escola de Manchester, relacionou os tipos de papéis conjugais à configuração das redes ao redor da família. A autora analisou os papéis conjugais em 20 famílias inglesas e as atividades de homens e mulheres, demonstrando que a variação nos papéis conjugais estava associada ao meio social imediato na família. O meio social consistia em uma rede de diferentes relações com algumas pessoas e instituições sociais. Bott analisou a segregação de papéis nas classes operárias e na classe média e construiu um tipo de modelo que considerava as famílias de classe operária como mais tradicionais, pois suas redes de relações com parentes, amigos, vizinhos e às vezes colegas de trabalho que se conheciam uns aos outros seriam mais estreitas, e, portanto, constituíam as redes de malha estreita, enquanto as classes médias, cujas relações com parentes, vizinhos e amigos eram mais fluidas e eles não se conheciam uns aos outros, seriam redes de malha frouxa. Bott descobriu que o tipo de rede ao redor da família estava relacionada ao grau de segregação entre o marido e a esposa. Quanto mais estreita era a malha, mais segregados eram os papéis entre o ambos.

Uma das grandes contribuições do estudo de Bott foi demonstrar que, em contextos urbanos contemporâneos, a convivência da família pode ocorrer na forma de rede, ou seja, para além dos domicílios, as famílias conectam-se através de laços que envolvem os cônjuges e seus parentes em diferentes contextos e posições. Bott, no entanto, não percebeu as diferentes posições de homens e mulheres, isto é, as relações de poder no interior desses laços e a natureza dessas relações. A referida autora preocupou-se em analisar como se formam as redes, mas não com o conflito nem a maneira como elas se desfazem.

Este breve comentário sobre as contribuições e os limites do estudo de Bott, é necessário, pois pretendo salientar que o enfoque de redes sociais pode trazer uma contribuição importante para os estudos de migração, desde que procure analisar como os sujeitos inserem-se nas redes sociais. Assim, as relações de parentesco, de amizade e de origem comum implicariam relações diferenciadas que precisam ser localizadas. Discutir a natureza dessas relações é fundamental para compreender as suas implicações nas relações familiares e de gênero.

Nesse sentido é que as redes começaram a ser utilizadas nos estudos sobre migração. As redes sociais servem de ligação entre a sociedade de destino e de origem e parecem ser muito importantes nos fluxos de longa distância. As mulheres freqüentemente são fundamentais e centrais nessas redes, pois tanto nas redes que articulam a própria migração

contribuições e dos limites dos estudos da escola de Manchester para a análise dos processos de mudança nas sociedades contemporâneas.

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quanto naquelas que reúnem grupos familiares elas são os “nós” que conectam as pessoas (BRETTEL E DEBERJOIS, 1992, p. 47).

Segundo Boyd (1989), a utilização das redes sociais não é uma novidade na pesquisa sobre a migração. Nos anos 70, estudiosos analisaram os processos de redes de migração e o papel que parentes e amigos desempenhavam no fornecimento de informações e auxílio no processo migratório. Entretanto, os padrões de migração recente e as novas conceitualizações da migração concentram mais interesses no lugar da família, amigos e origem comum que sustentam essas redes.

As redes sociais no processo migratório contribuem para questionar a imagem da migração como produto de um cálculo racional ressaltando a importância particularmente das redes de parentesco, amizade e origem comum nesse processo. No caso da migração de longa distância, quanto mais estabelecidas estão as redes, maiores chances tem o migrante no local de destino. É o que demonstram os estudos sobre dominicanas, cubanas, mexicanas, caribenhas, asiáticas e outros grupos estabelecidos nos Estados Unidos. Sustentados por essas redes, podem contribuir para a criação e a consolidação de grupos étnicos.

Um exemplo muito interessante extraído de Hassoun (apud Segalan 1996, p. 119) evidencia a importância das redes de parentesco no processo migratório.

“Desde finais da década de 70, emigraram para a França oito mil Hmong (uma etnia do Laos); a maior massa foi para os Estados Unidos. As redes de parentesco entre os países de acolhimento e o país de origem mobilizam-se nos momentos-chave do ciclo de vida familiar, nomeadamente quando dos ritos funerários ou sempre que é necessário reunir o ‘preço da noiva’. No primeiro caso, os que ficaram no país cumprem os ritos, enquanto no segundo caso, são os emigrantes solicitados, já que, ao trabalharem nas sociedades ocidentais, conseguiram acumular excedentes impensáveis na sociedade de origem (sobretudo devido ao facto de numerosos Hmong vierem em campos de refugiados). Os Hmong ilustram um exemplo de solidariedade entre parentes em escala mundial. Estes emigrantes políticos, desprovidos de tudo, nomeadamente da escrita, não são desprovidos de parentes”57.

O caso do Hmong evidencia diferentes formas de atuação das redes sociais no processo migratório que conectam a sociedade de origem e de destino. No caso dos emigrantes brasileiros, também observamos diferentes formas de ajuda material e simbólica solicitada e recebida por eles. As ajudas ou help, como veremos nos relatos dos imigrantes, ocorrem de maneiras variadas: vão desde presentes para os parentes que moram no Brasil, até o cuidado dos filhos que permaneceram no país pelos avós, ou empréstimos para aqueles que ficaram e a administração do dinheiro que os migrantes remetem pelos parentes, ou uma força dos pais viajando para o país de destino quando as filhas estão para ganhar seus filhos/as nos Estados Unidos. Esse dar e receber não ocorre sem conflitos, mas o que importa ressaltar é a relevância dessas conexões para o empreendimento migratório.

Como veremos nos dados que serão apresentados a seguir, criciumenses e valadarenses apóiam-se fortemente nas redes de parentes e amizade em diferentes momentos da migração. Por isso, embora outras redes, como as agências de turismo, os falsificadores de passaporte e agenciadores, atuem no sentido de garantir o ingresso no país de destino, se os migrantes não tiverem quem irá recebê-los e arrumar o primeiro emprego no destino, a realização do projeto migratório fica muito mais difícil.

57 Hassoun, Jean-Pierre. La migraison ds Hmong. Rituels Funéraires, “Prix de la Fiancée”et Stratégies d’adptation dês premières Années, Ethnologie Française, 2, abr-jun de 1993, p.192-206.

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Os brasileiros que migram para o exterior fazem um movimento semelhante, ao migrantes que fizeram o caminho do campo para a cidade analisados por Durham (1984) também não dispõem do equipamento cultural fundamental para se estabelecer no país de destino. A maioria não fala inglês e não possui documentos que os autorizem a trabalhar. Assim como os migrantes internos que fizeram o caminho do campo para a cidade, têm que apreender outros códigos, outros mapas simbólicos para transitar na sociedade hospedeira. Nesse contexto, os laços de parentesco e amizade tornam-se fundamentais para a inclusão num outro lugar, num outro país. Talvez por isso, entre os migrantes de classe média, haja uma imagem recorrente de um migrante típico, que em geral não é ele e que “migram para os Estados Unidos umas pessoas bem simples que mal sabem falar – meio roceiro mesmo, perdido”. A imagem de um migrante meio perdido, comum entre os brasileiros imigrantes, talvez expresse não só pontos de conexão entre a migração interna e internacional, como também sugere a sensação de estar fora do seu lugar, do seu contexto, por isso as redes de parentesco e amizade emergem de maneira tão significativa.

Segundo Tilly (1990), a nova onda de migração não pode ser explicada apenas pelos fatores de atração e repulsão que fazem as pessoas migrarem devido aos diferenciais de oferta de trabalho. No caso das migrações de longa distância, quanto mais estabelecidas encontram-se as redes, maiores chances tem o migrante no local de destino. Dessa forma, as redes sociais tornam-se um recurso precioso, pois constituem-se em capital social58 que auxilia pessoas com poucos recursos, pouca experiência profissional e baixo nível de escolaridade na migração de longa distância (Portes, 1995; Pessar, 1999).

As teorias de redes sociais constituem uma das abordagens alternativas aos extremos da teoria neoclássica e do determinismo estrutural (PESSAR, 1999; BOYD, 1989). Para as autoras, enquanto as transformações macroestruturais são compreendidas como desencadeadoras das pressões migratórias, as famílias e as redes sociais respondem a tais pressões e determinam quais membros dos domicílios e das comunidades realmente migram. Nesse contexto, a migração, articulada pelas redes sociais, também vai deixando de ser vista apenas como decisão racional de um indivíduo para ser encarada como uma estratégia de grupos familiares, de amizade ou de vizinhança em que as mulheres inserem-se ativamente.

Segundo Massey e colaboradores (1987, p.139-40), as redes migratórias consistem em laços sociais que ligam as comunidades remetentes aos pontos específicos de destino nas sociedades receptoras. Esses laços unem migrantes e não-migrantes em uma rede complexa de papéis sociais complementares e relações interpessoais que são mantidas por um conjunto informal de expectativas mútuas e comportamentos prescritos. As relações em rede mais importantes são as baseadas no parentesco, amizade e origem comum, as quais são reforçadas por uma interação regular em associações voluntárias. No entanto, ao considerar as redes construídas apenas entre os homens, o estudo de Massey não observou como as redes sociais eram informadas por atributos de gênero e de parentesco.

Assim, quando Hondagneu-Sotelo (1994) analisou a inserção diferenciada de homens e mulheres mexicanas no processo migratório, a autora evidenciou como o gênero regula essas redes sociais. Castro (1989) também, analisando a literatura sobre mulheres latino-americanas e caribenhas, ressaltou que os estudos de redes de parentesco demonstram como as mulheres são hábeis na criação de redes de apoio mútuo que orientam a alocação dos migrantes e sua integração no mercado de trabalho. A experiência de mulheres destaca-se, não

58 Segundo Portes (1995), o conceito de capital social refere-se à habilidade do indivíduo de mobilizar recursos escassos em virtude de seu pertencimento na rede ou nas estruturas sociais mais amplas. Os recursos adquiridos por meio do capital social sempre implicam uma expectativa de reciprocidade.

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apenas porque vivem experiências migratórias de forma própria, mas também porque são influentes agentes no estímulo a outras migrações.

Se os migrantes contam com as redes sociais ao longo do processo migratório, como essas redes são tecidas no interior das relações familiares? A unidade doméstica é um importante componente da rede social, sendo que domicílios e famílias são representações comuns dessa unidade. Além de atuarem como unidades de sustentação, as unidades domésticas são agentes socializadores. Como tais, as famílias definem quem vai migrar e os padrões de migração, além de transmitirem normas acerca do significado da migração e da manutenção das obrigações familiares por meio do tempo e do espaço (BOYD, 1989, p. 642). Com relação à importância dos domicílios, Gramusk e Pessar (1991, p. 15) ressaltam que tais decisões são fundamentadas nas hierarquias de poder dentro dos domicílios e que o impacto na sociedade de emigração não ocorre sobre os indivíduos, mas sobre os domicílios que mobilizam recursos e suporte, recebem e aplicam as remessas e tomam decisões sobre a produção, consumo e distribuição de atividades entre os membros.

É nesse sentido que Pessar (1999), analisando os vários estudos que têm como foco as redes sociais, critica o fato de os autores não perceberem que o acesso dos indivíduos às redes sociais, e as trocas que nelas ocorrem, são direitos e responsabilidades informados pelas relações de gênero e pelas normas de parentesco. Partindo dessa observação, podemos dizer que os migrantes dominicanos, mexicanos, japoneses, brasileiros ou de outros grupos étnicos nos Estados Unidos farão uso das redes de acordo com as normas de parentesco e de gênero estabelecidas em cada grupo.

No caso das mulheres mexicanas, Hondagneu-Sotelo (1994) evidenciou como as redes das quais elas dispõem para migrar são diferentes das redes com as quais contam os homens, uma vez que elas tentam escapar da vigilância e do controle que caracterizam as redes familiares tradicionais. Também abordando diferenças no uso das redes, Zhou (1989) demonstra que as mulheres chinesas, por sua vez, quando trabalham para seus conterrâneos, recebem menos do que os homens em função da supremacia masculina na cultura chinesa.

Ao analisar a articulação entre redes sociais, gênero, adaptação socioeconômica e mobilidade, Hagan (1998) demonstrou como a variação na estrutura das redes sociais influencia diferentemente a adaptação de homens e mulheres migrantes. Estudando a configuração das redes entre imigrantes guatemaltecos, a autora observa que estas atuam não apenas trazendo benefícios para os imigrantes. Assim, entre esses imigrantes nos Estados Unidos, as redes sociais desenvolvem-se em caminhos diferentes, com implicações na inserção no mercado de trabalho, na permanência e no processo de legalização. Enquanto os homens constroem um sistema étnico para controle da organização social do processo de trabalho que faz com que os imigrantes recém-chegados entrem rapidamente no mercado de trabalho por meio do sistema dos encarregados, que organizam o schedule de trabalho e determinam a promoção de outros co-étnicos, as mulheres inserem-se basicamente no trabalho doméstico e em geral moram no emprego, não se beneficiando das relações de reciprocidade que os homens encontram na vizinhança étnica, nem dos recursos criados a partir de organizações recreativas, como times de futebol. Portanto, para a autora, com o passar do tempo, enquanto as redes sociais dos homens expandem-se, as redes das mulheres retraem-se, o que influencia as oportunidades de permanência de ambos no país de destino, bem como o percentual de legalização.

Se, por um lado, a compreensão do processo migratório a partir do enfoque nas redes sociais aponta para a importância das relações de solidariedade que os migrantes constroem entre a sociedade de origem e de destino, o que os auxilia nos primeiros momentos da vida em um novo lugar, por outro, revela também que essas são fonte de ambigüidade e

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conflito (TILLY, 1990; HONDAGNEU-SOTELO, 1994; HAGAN, 1998; PESSAR, 1999). Em decorrência disso, muitas vezes os migrantes recém-chegados são explorados por seus conterrâneos; assim, tais relações seriam a base não só para a solidariedade e a ajuda mútua, mas também para a divisão e o conflito étnico (TILLY, 1990). Tal ambigüidade foi igualmente observada por Martes (1999) ao analisar o comércio de faxina entre as imigrantes brasileiras em Boston. Um outro aspecto que esses estudos demonstram é que as redes são construídas pela articulação entre gênero e geração (PESSAR, 1999). Desta forma a formação de redes sociais que conectam os dois lugares a sociedade de origem e destino, não é fonte apenas de solidariedade, são ambíguas, mas o que pretendemos demonstrar é que através delas que se configuram os fluxos transnacionais que envolvem ao mesmo tempo solidariedade ajuda mútua e conflito e competição, ou seja, são relações de reciprocidade que envolve diferentes tipos de expectativa e retribuição. .

A CONFIGURAÇÃO DAS REDES SOCIAIS TECIDAS PELOS MIG RANTES BRASILEIROS

Tal como outros fluxos migratórios internacionais, os imigrantes brasileiros utilizam-se das redes sociais para minimizarem os riscos presentes na migração de longa distância. Conforme demonstraram os trabalhos de Margolis (1994), Sales (1999), Assis (1999, 2002) e Fusco (2001), uma análise da configuração das redes sociais ajuda a compreender por que motivo algumas cidades brasileiras tornaram-se ponto de partida para os Estados Unidos e como essas redes contribuem para a consolidação do fluxo. Para Sales (1999), a redefinição da expectativa temporal é reveladora das mudanças nos projetos de permanência dos emigrantes brasileiros, indicando o amadurecimento das redes sociais. No caso da conexão Governador Valadares – Estados Unidos, os estudos tem demonstrado (SALES 1999, MARGOLIS, 1994, ASSIS 2002, 1999, FUSCO 2001 E SIQUEIRA, 2006) como se construiu uma rede de relações entre os imigrantes e aqueles que permaneceram na cidade que consolidaram ao longo dos anos 80 um fluxo entre a região de Boston, Massachusetts e Governador Valadares, na medida em que os emigrantes, uma vez estabelecidos, disponibilizaram recursos que facilitaram o projeto migratório daqueles que os sucederam.

Essas questões apresentadas para análise de imigrantes nos Estados Unidos podem ser pertinentes para pensarmos sobre como se articulam as redes sociais nos fluxos dos imigrantes brasileiros, pois, como veremos nos dados que emergiram do survey e na pesquisa de campo, homens e mulheres também se utilizam de maneira diferenciada das redes sociais. No caso dos imigrantes de Criciúma, tal como Bott (1976) observou na análise das famílias inglesas, podemos perceber uma interessante configuração: os homens apóiam-se mais nas redes de amigos, ao passo que as mulheres contam mais com os parentes.

No Brasil, os estudos de redes sociais têm sua tradição ligada aos estudos de migração interna, descrevendo o longo percurso do Nordeste para São Paulo e a rede de relações que envolviam. Os estudos analisam a formação e a consolidação das redes no caminho do campo para a cidade, como no estudo de Durham (1984). Nos anos 80, quando os brasileiros partem para o exterior, embora a migração envolva riscos e custos bem mais expressivos, as redes sociais e algumas características do trabalho e inserção do migrante são semelhantes. Portanto, o que se pretende aqui é demonstrar que, na migração internacional essas redes sociais são igualmente importantes.

Como em outros fluxos migratórios, os emigrantes brasileiros utilizam-se das redes sociais para minimizar os riscos presentes na migração de longa distância. No caso da emigração de brasileiros para os Estados Unidos e o Japão destacam-se, nesse cenário,

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algumas cidades brasileiras que se tornaram pontos de partida para os emigrantes. Nessas cidades – Governador Valadares (MG), Maringá (PR), Criciúma (SC) – há uma ampla rede migratória que envolve agências de turismo, intermediários, instituições religiosas, redes de parentesco, amizade, solidariedade étnica que incentivam e sustentam a migração, fazendo com que o processo migratório integre a dinâmica dessas cidades. Nos locais de destino, os migrantes brasileiros concentram-se em determinadas cidades onde já haviam redes estabelecidas pelos conterrâneos.

Sales (1999) analisou os emigrantes brasileiros em Massachusetts, mais especificamente em Framingham. A autora demonstrou a importância das redes sociais na constituição da comunidade brasileira que se articula através dos comércios étnicos e da Igreja. Discutiu ainda como a redefinição da expectativa temporal é reveladora das mudanças nos projetos de permanência dos emigrantes, indicando o amadurecimento das redes sociais. Sales ainda demonstrou como os imigrantes brasileiros construíram um significado de legitimidade para a sua situação de clandestinidade. Sales ainda destaca que os brasileiros, mesmo indocumentados, comparavam os direitos que usufruíam nos Estados Unidos com a ausência desses direitos no Brasil e que essa comparação reforçava a legitimidade da condição clandestina. Mesmo com o discurso da legitimidade da condição clandestina, a autora observou que, com o aumento da expectativa temporal, os imigrantes começavam a preocupar-se com a legalização.

No entanto, o que gostaria de ressaltar é que esse discurso, muito presente entre os imigrantes, sofreu uma mudança profunda após os atentados de 11 de setembro de 2001 e as políticas cada vez mais restritivas aos imigrantes. Embora os imigrantes continuem trabalhando com documentos falsos e matriculando seus filhos na escola, desde 2001, os papéis passaram a ocupar um outro lugar na vida e nas preocupações dos brasileiros imigrantes.

Martes (1999) realizou um estudo sobre os imigrantes brasileiros em Massachusetts (Estados Unidos). A autora, combinando dados de um survey com pesquisa qualitativa, centrou o foco na análise das redes sociais enfatizando a importância das mesmas. Segundo Martes, as redes sociais, geralmente de parentesco, de amizade, de origem comum e religiosas, são fundamentais para explicar por que os brasileiros chegam aos Estados Unidos, sobretudo por que as redes sociais ajudam a diminuir os custos psicológicos e econômicos da migração (Martes, 1999, p. 73). No entanto, ao analisar a configuração da comunidade brasileira nos Estados Unidos, Martes questiona as análises que salientam apenas os aspectos de solidariedade nas redes sociais, criticando o pressuposto da solidariedade étnica predominante nos estudos de migração. Para a autora, o caso da emigração de brasileiros para os Estados Unidos permite questionar tal perspectiva de análise das redes sociais, apontando para os conflitos que ocorrem no interior das mesmas. Para demonstrar seu argumento, Martes analisa o caso das redes religiosas e o comércio de postos de trabalho na faxina doméstica entre os imigrantes, demonstrando a ambigüidade e o conflito no interior das mesmas.

Fusco (1999, 2001) discute as redes sociais partindo da cidade de origem dos fluxos – Governador Valadares –, cidade conhecida como ponto de partida de emigrantes internacionais. A pesquisa demonstrou a relevância das redes para explicar por que a cidade tornou-se nacionalmente conhecida como ponto de partida de emigrantes. O trabalho traz uma importante contribuição por demonstrar como se configuram as redes sociais na migração de longa distância e por destacar a importância das redes familiares e os diferenciais por sexo na utilização das mesmas. A pesquisa realizada em Governador Valadares serviu de piloto para o projeto que desenvolvemos em Criciúma. Fusco localizou as redes sociais e demonstrou a sua importância para a configuração da conexão Valadares-Boston, no entanto, não tinha por objetivo analisar como essas redes eram configuradas/marcadas por gênero e geração.

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Scudeler (1999) analisou a inserção do migrante valadarense no mercado de trabalho americano. A autora discute as teorias econômicas sobre a inserção de trabalhadores imigrantes no mercado de trabalho americano e demonstra, no caso dos imigrantes valadarenses, que tal inserção ocorre articulada às redes que os migrantes dispõem tanto na cidade de origem quanto na região de destino.

Goza (2003) demonstra a importância das redes estabelecidas entre Governador Valadares (MG) e dois lugares na cidade congelada (EUA) e em Toronto (Canadá). Goza descreve as redes sociais construídas nos dois lugares e ressalta que nos Estados Unidos tais redes migratórias parecem mais consolidadas, enquanto que no Canadá a presença das redes é menos evidente. Segundo o autor, o fato de tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá os imigrantes relatarem que possuem parentes residindo na mesma região evidencia a rapidez com que as redes crescem e sustentam o argumento de Massey sobre a “causação cumulativa59” que a consolidação das redes trazem para o movimento migratório. O autor ainda destaca que o acesso às redes sociais é diferenciado segundo as relações de gênero, sugerindo que as mulheres brasileiras começaram a formar suas próprias redes em resposta ao “machismo” (grifos do autor) percebido no homem brasileiro. Segundo Goza devido aos novos papéis que as mulheres tem assumido na América do Norte, muitos conflitos tem ocorrido. Goza, no entanto, analisa mais os papéis estabelecidos entre homens e mulheres do que as relações nas quais essas masculinidades e feminilidades estão circulando, quais os outros atributos de gênero que emergem e revelam, mais do que papéis outras posições de gênero nessas relações.

Esses estudos revelaram a importância das redes sociais na recente migração de brasileiros para o exterior. As pesquisas realizadas preocuparam-se em responder a questões como: quem são os imigrantes, de onde vêm, para onde vão, como vivem a experiência de migratória, como se constituem como grupo étnico, descrevendo as várias faces desse movimento migratório. As redes sociais emergem em decorrência do próprio desenvolvimento do processo migratório e das conexões que passam a ser estabelecidas entre os locais de destino e origem dos migrantes. Nos primeiros trabalhos, conforme já observamos embora a trama estivesse presente, as redes apareciam como “pano de fundo” ou contexto no qual se desenvolviam as relações. Portanto, os trabalhos referem-se às redes, mas estas não eram objeto central de análise. Os trabalhos mais recentes incorporaram a perspectiva teórica das redes sociais na análise dos fluxos de brasileiros para o exterior e procuram analisar a configuração, as ambigüidades, bem como as mudanças nas redes sociais tecidas ao longo do tempo.

Soares (2003, 2002), que também realiza uma análise das redes sociais construídas por emigrantes brasileiros, critica os estudos brasileiros que discutem as redes sociais dos imigrantes brasileiros classificando-os como discursos que “não passam de representações metafóricas das redes” (SOARES, 2003 p. 241).

A cidade de Criciúma, assim como Governador Valadares, desenvolveu uma complexa rede de relações que conecta algumas cidades da região de Boston à vida cotidiana dos criciumenses. Assim, são importantes para podermos desenhar o fluxo e compreender como se articula para a Itália ou para os Estados Unidos. As relações estabelecidas entre os dois lugares evidenciam-se através dos telefonemas, das cartas, das várias idas e vindas ao Brasil, dos presentes enviados aos pais e familiares mais próximos ou, ainda do

59 (Massey, 1990, p.17). Isto quer dizer que à medida que as redes se constituem e estabelecem elos entre a sociedade de emigração e a sociedade de destino, a migração torna-se uma atividade de menor risco. Assim, mais pessoas se conectam ao fluxo migratório, pois há um conjunto de informações e estratégias disponíveis que facilitam o empreendimento migratório e, portanto, estimula novas migrações.

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financiamento da viagem dos pais para os Estados Unidos com a finalidade de dar uma força (expressão muito recorrente nas cartas e entrevistas dos emigrantes jovens) ou assistir ao casamento dos filhos ou ao nascimento dos netos, envolvendo pessoas que nunca pensaram em ir para os Estados Unidos nesta experiência de cruzar fronteiras. Portanto, as redes sociais também revelam que a migração é um projeto econômico, familiar e afetivo, o qual envolve aqueles que partiram e aqueles ficaram no processo.

Ao descrever a configuração das redes sociais dos migrantes criciumenses, constata-se também que homens e mulheres, quando participam do processo, o fazem atravessados pelos atributos de gênero de nossa sociedade. Analisando os primeiros estudos da emigração de brasileiros para o exterior, Castro (1989) apontava para o fato de que esses não contemplavam as questões de gênero, uma vez que “a situação da migração passa pelo estigma do gênero, no uso do corpo e no ‘fazer coisa de mulher’”. Partindo dessa perspectiva, o momento da migração, o tipo de ajuda, a forma como se organizam nos Estados Unidos, o tipo de laço que estabelecem com o Brasil expressa muito das relações de gênero, seus conflitos, suas hierarquias. No entanto, só recentemente os trabalhos começaram a problematizar a inserção das mulheres num nicho de trabalho específico – a faxina doméstica (MARTES, 1999; FLEISCHER, 2002) e apontar a importância das relações familiares e de gênero (Assis, 1995, 2002; DEBIAGGI, 2001, FUSCO 2001).

Por fim, ao centrar a análise na construção e na consolidação das redes sociais dos emigrantes criciumenses, não pretendo desconsiderar os fatores estruturais que motivam a migração, mas ressaltar as múltiplas relações construídas entre os dois lugares ao longo do processo. Conforme ressaltou Elisabeth Bilac60, a discussão da configuração dessas redes e suas mudanças ao longo do tempo permitem compreender esse movimento relativamente autônomo ao Estado e às forças macroestruturais. Ao compararmos as trajetórias dos migrantes criciumenses com a de outros imigrantes nos Estados Unidos, percebemos que também nesse caso a consolidação de um fluxo contínuo para os Estados Unidos está diretamente relacionada à construção e à consolidação de redes sociais. No entanto, como essas redes não são neutras em relação a gênero e geração, perceberemos que implicam posições diferenciadas para homens e mulheres imigrantes ao longo do processo migratório.

COMO CRICIÚMA SE TORNA UM PONTO DE PARTIDA PARA EMI GRAÇÃO

Criciúma, assim como Governador Valadares (MG), é uma cidade de importância na econômica para a região sul. A região que hoje compreende a cidade de Criciúma está localizada ao sul do estado de Santa Catarina e distante de Florianópolis 190 Km (via BR 101). No final do século XIX, a região sul do estado de Santa Catarina constituiu-se num encontro de etnias das quais a italiana representa uma parcela significativa. A cidade de Criciúma foi fundada em 1880, por um contingente de 22 famílias de imigrantes italianos, mais tarde vieram os alemães e poloneses. No início do século XX, com a descoberta do carvão, outros contingentes migratórios chegam à região vindos de outras cidades ds região, são em sua maioria negros e portugueses.

Os imigrantes, que chegaram no final do século XIX, vieram através de incentivos do governo brasileiro que se utilizavam de companhias de migração para trazer os imigrantes (BALDIN 1987, ARNS 1985, ALVIM 1999). Eram homens e mulheres que migravam em famílias. As mulheres não migravam sozinhas. Em sua maioria eram pequenos agricultores que vieram em busca de um pedaço de terra para garantir melhores condições de vida para seus filhos.

60 Expressão utilizada pela autora durante a argüição do exame de qualificação ao se referir às redes sociais.

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Nos relatos sobre a fundação da cidade destaca-se a imagem do imigrante pioneiro e da migração familiar. É importante observar que os relatos sobre a história da cidade enfatizam a imagem heróica do pioneiro. Os relatos enfatizam como os imigrantes deixaram a Itália, um país em crise após a unificação, e migraram para o Brasil em busca de terra e melhores condições de vida. O sucesso migratório é apresentado como resultado da coragem e do empenho dos imigrantes, pois eram colonos sem terra na Itália, tornaram-se proprietários de pequenos lotes de terra no Brasil e prosperaram.

Passados 120 anos que os imigrantes chegaram à cidade, na cidade os descendentes dos imigrantes iniciaram um novo movimento, um caminho inverso, conforme denominou Savoldi (1998) ao se referir ao movimento de retorno dos descendentes de imigrantes italianos para a terra de seus tataravôs.

No final do século XX, Criciúma tornou-se um ponto de partida de emigrantes para a Europa e para os Estados Unidos. Embora grande parte desses emigrantes informe que tem ascendência italiana, o movimento de criciumenses, assim como os migrantes valadarenses, dirige-se majoritariamente para os EUA nas regiões da grande Boston (MA), concentrando-se nas cidades de Lowell, Sommerville e Everett e para algumas cidades da Itália.

Segundo os moradores da cidade, o movimento de emigração estaria relacionado com a crise do setor carbonífero (TEIXEIRA 1996), o qual, até início dos anos 90, constituía-se na principal atividade econômica da cidade. A crise econômica enfrentada pela cidade, iniciada no final da década de 80 e agravada na década de 90, aponta para uma das razões que tornaram a cidade ponto de partida de inúmeros emigrantes em busca de trabalho na Itália ou nos Estados Unidos, embora não possamos reduzir a migração às motivações econômicas.

Em meados da década de 1980, o setor carbonífero apresentou os primeiros sinais de uma crise, a qual se agravaria na década de 1990 com o governo Collor (1990-1992). Segundo Teixeira (1996) e Carola (2001), a crise ocorreu por um conjunto de fatores, como a queda da produção, a retirada dos subsídios por parte do governo e o fim do protecionismo estatal e a concorrência internacional, o que teria reduzido o mercado em mais de 30 %, causando, assim, uma alta taxa de desemprego na região.

A crise econômica atingiu não apenas o setor carbonífero, mas também os setores da cerâmica que se desenvolveram na região. Em 1990, a recessão enfrentada pelo setor cerâmico foi tão intensa que, das treze fábricas de cerâmica existentes na região, nove interromperam suas atividades, ocasionando um desemprego ainda maior na região (TEIXEIRA, 1996, p. 71).

A crise econômica enfrentada pela cidade, iniciada no final da década 80 e agravada na década de 90, aponta para uma das razões que tornaram a cidade ponto de partida de inúmeros emigrantes em busca de trabalho nos Estados Unidos ou na Itália, embora não possamos reduzir a migração às motivações econômicas. Como demonstram os relatos dos emigrantes, a emigração para a Itália e para os Estados Unidos também está associada ao imaginário presente na cidade, o qual constrói uma conexão entre os imigrantes do passado e os emigrantes do presente, mas principalmente ao desenvolvimento e ao amadurecimento de redes sociais ao longo do processo migratório.

O período que compreende de 1970 até 1989 corresponde a apenas 5% do total das viagens dos criciumenses em direção aos Estados Unidos ou à Europa. Foi na virada dos anos 90 que eles começaram a voar em direção ao exterior, ocorrendo um crescimento contínuo do número de primeira viagem nos anos de 1993 (com 4,9%) e 1994 (com 6,0%) do

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total das viagens. Esses dados foram os primeiros indicativos de que a migração esporádica estava tornando-se um movimento contínuo de migrantes. Esse período corresponde exatamente ao que é conhecido na cidade como a “crise do setor carbonífero”, período em que o setor perdeu os subsídios governamentais e enfrentou a concorrência com o carvão mais barato e de melhor qualidade vindo do exterior. Ao analisarmos o período de 1998 a 2000, percebe-se que 48,4% do total realizaram sua primeira viagem nesse período, assim distribuído: 12,5% em 1998, 17,2% em 1999 e 18,7% em 2000.

Assim, diferentemente dos emigrantes de Governador Valadares, que realizaram 40,8% das primeiras viagens nos períodos de 1987 a 1989 (FUSCO, 2001), poderíamos dizer que o “triênio da desilusão61”, na região de Criciúma, ocorreu 10 anos depois. Como os dados de 2001 referem-se apenas ao primeiro semestre, não representam o ano, mas indicam a tendência ascendente da emigração na cidade, pois sendo computados apenas o período de janeiro a julho encontram-se 13,4% do total das viagens.

O crescimento do movimento migratório está associado também à conjuntura nacional (crise do câmbio, desvalorização do real em relação ao dólar, desemprego) e ainda à crise enfrentada pelo setor cerâmico, indústria muito importante para a economia local (informações da Prefeitura Municipal de Criciúma). Por outro lado, podemos também atribuir esse crescimento ao amadurecimento das redes sociais, nas quais homens e mulheres migrantes estão inseridos em diferentes contextos.

OS LAÇOS ENTRE OS EUA E O BRASIL: AS REDES SOCIAIS DOS MIGRANTES CRICIUMENSES

Os domicílios dos quais partiram os emigrantes e revelam que os migrantes partem de domicílios constituídos por arranjos familiares que comportam pai, mãe, filhos e outros parentes, que são 12% dos integrantes dos domicílios. Também revela que os migrantes partem de domicílios com índices de escolaridade um pouco melhores que a média da cidade. Demonstram ainda que há 18,2% de chefes de família ausentes no exterior. Este último dado, quando analisado considerando o sexo do chefe de domicílio, indica que, embora predominem os homens considerados chefes, há um número expressivo de mulheres (30,6%) nesta condição o que pode nos dizer um pouco sobre como e quando homens e mulheres migram.

Assim, as mulheres migram mais na condição de filhas e mais jovens, como veremos nos dados apresentados a seguir, que traçam um perfil daqueles que partem.

Em entrevistas com famílias de descendentes de imigrantes constatamos que os emigrantes são em geral jovens. Os dados demonstram que a população de emigrantes é jovem, no entanto, há uma distribuição diferenciada entre homens e mulheres migrantes por grupo de idade.

No grupo de idade onde se concentra a maior porcentagem de migrantes, a faixa de 25-29 anos, onde situam-se 19,4% dos migrantes, encontramos 19,1% de homens e 20,1% de mulheres. Em seguida encontramos, na faixa etária de 20-24 anos um total de 17,8% dos migrantes assim distribuídos: 16,5% são homens e 20,1% são mulheres. Os emigrantes constroem posicionamentos diferentes sobre as vantagens e desvantagens de ir para um lugar ou outro. Os EUA parecem emergir como lugar de mais vantagens financeiras, enquanto que a Itália ofereceria o encontro com suas raízes e maiores garantias sociais pela possibilidade de

61 Sales (1999a) denominou “triênio da desilusão” o período − entre os anos de 1987 a 1989 − quando milhares de brasileiros deixaram o país decepcionados tanto com a política econômica, quanto com a situação política.

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trabalharem como cidadãos e conseguirem inclusive uma aposentadoria. Ao longo da pesquisa de campo pude constatar que o destino preferido pelos que desejam migrar é os EUA. Como podemos ver no gráfico 1.

Gráfico1 - País de destino na primeira viagem dos

migrantes segundo sexo Criciúma 2001

11,7

11,7

6,4

2,3

1,8

1,2

3,5

10,1

18,1

1

1

3,5

1,5

6,5

60,258,3

0 20 40 60 80

Estados Unidos

Portugal

Inglaterra

Alemanha

Outros paises

%S exo (% ) FS exo (% ) M

Fonte: As Redes Sociais nas migrações internacionais os migrantes brasileiros para os EUA e Japão, 2001

O país de destino dos emigrantes de Criciúma, assim como outros emigrantes brasileiros, é os Estados Unidos para onde 60,2% dos homens e 58,3% das mulheres partem para “fazer a América”. Para a Itália migram 11,7% dos homens e 18,1% das mulheres, seguido de Portugal com 11,7% para os homens e 10,7% para as mulheres. Este dado sugere que embora nas associações italianas exista um discurso de valorização da identidade italiana, da busca da dupla cidadania, das oportunidades de trabalho na Europa, os criciumenses escolhem emigrar para os EUA. Esta seletividade do lugar de destino sugere que nos EUA os migrantes encontram redes estejam mais consolidadas o que atenua os riscos do empreendimento migratório para este país.

Gráfico 02 – Acompanhantes do emigrante

0

20

40

60

80

Nenhum Conhecido

Acompanhante do migrante na primeira viagem segundo o sexo

Sexo (%) M

Sexo (%) F

Fonte: As Redes Sociais nas migrações internacionais os migrantes brasileiros para os EUA e Japão, 2001.

Quando partem os emigrantes criciumenses em sua maioria, 58,8% viajam com um conhecido. Se analisarmos segundo o sexo, veremos que os homens viajam mais sozinhos

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43%, do que as mulheres com 38,2%. Isto significa que em 61,8% dos casos as mulheres viajaram com amigos, parentes ou namorados contra 57% dos homens. No gráfico seguinte veremos com quem o migrante viajou e qual a relação e parentesco com o mesmo.

Gráfico 3 - Qual parente acompanhou o migrante na

primeira viagem ao exterior segundo sexo

0

5

10

15

20

25

30

35

PaiFilh

o

Espos

o

Espos

a

Outro

s par

ente

s

Sexo (%) M

Sexo (%) F Fonte: As Redes Sociais nas migrações internacionais os migrantes brasileiros para os EUA e Japão, 2001

Quando partem para realizar o projeto de migrar homens e mulheres levam diferentes integrantes da família, como pode-se observar no gráfico 3. Os homens em sua maioria viajam com o pai (19,7%), em seguida a mãe (17,5%). A esposa é a terceira opção de acompanhante (15,4%) e os irmãos com 9,3%. Já as mulheres viajam com os maridos em primeiro lugar (25, 9%), em seguida vêm os filhos que representam 24,7%, as mães (11,8% dos casos) e os irmãos (9,4%). Este dado é muito interessante, apontando para o fato de que as mulheres levam os filhos, pois os homens, mesmo sendo a maioria, viajam acompanhados dos filhos em apenas 4,1% dos casos.

Tal dado demonstra que enquanto os homens viajam com os pais e mães, as mulheres viajam com os maridos e filhos, revelando que as redes sociais não atuam da mesma forma para todos os membros do domicílio. Este dado colabora com o argumento de Pessar (1999), segundo o qual os estudos de redes sociais, ao tratarem as redes familiares como sendo neutras segundo o gênero, encobriram o fato de que os direitos e responsabilidades nas mesmas são informados pelas normas do gênero e parentesco.

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Gráfico 04 - Referência para hospedagem no país de destino

segundo o sexo Criciúma, 2001

Gráfico 4 - Referência para hospedagem segundo o sexo - Criciúma - 2001

10,2

0,62,91,5

7,4

44,541,8

6,5

35,3

49,3

0

10

20

30

40

50

60

Ninguém Parentes Amigos Agência deviagem

Outros

%

Masculino%

Feminino %

Fonte: As Redes Sociais nas migrações internacionais os migrantes brasileiros para os EUA e Japão, 2001

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Uma das dificuldades para quem chega nos Estados Unidos é conseguir moradia. Assim, é muito comum entre os migrantes “dar um help”, que significa ajudar o emigrante recém-chegado com hospedagem e nas dicas para o primeiro emprego. Conforme demonstra o gráfico 4, os homens viajam mais sem referência para hospedagem que as mulheres. Mesmo assim é uma proporção pequena (10,2%) dos homens e apenas 6,5% das mulheres. Isso evidencia a importância de ter alguém esperando no destino.Quando analisamos quem possuía referência para hospedagem no destino constata-se que as mulheres contam bem mais com os parentes (49,3%) do que os homens (41,8%). Os homens, por sua vez, contam mais com as ajuda dos amigos (44,5% versus 35,3% das mulheres).

Os dados apresentados sobre os imigrantes criciumenses revelam como essa ajuda é diferenciada para homens e mulheres, por exemplo, enquanto as mulheres contam mais com os parentes, os homens contam mais com os amigos, o que corrobora com a análise de Bott (1976). No entanto, matizando um pouco mais essas informações, conforme demonstrado acima, percebemos que, embora predomine a ajuda dos amigos para os homens, os parentes também têm um importante papel no momento da chegada e de arranjar o emprego. A ajuda recebida por homens e mulheres de diferentes integrantes dos laços de parentesco revela quais os parentes ajudam e qual a implicação nas relações de familiares.

Quando viajam para arriscar a vida no exterior, os homens estão acompanhados de pais, mães e irmãos, contando mais com seus laços consangüíneos, e as mulheres viajam acompanhadas dos esposos e do filho, seus laços de conjugalidade e depois dos parentes. No caso de ajuda para a hospedagem, novamente entre os homens predomina a ajuda dos parentes de sangue: os irmãos e os pais, seguidos tios e primos. No caso das mulheres, há o predomínio dos laços de conjugalidade, as mulheres migram para se encontrar com seus cônjuges e o restante para se reunir com parentes consangüíneos.

Tais dados evidenciam que, quando migram, homens e mulheres utilizam-se das redes de parentes e amigos em diferentes momentos do processo migratório e não se utilizam necessariamente da mesma forma, o que sugere que as mulheres estariam mais ligadas aos laços conjugais e às redes de parentesco que os homens. Fusco (2001, p. 75), quando analisa as redes sociais dos migrantes valadareneses, também constata a importância desses laços de parentesco para as mulheres ao demonstrar que 65,1% do total das mulheres conheciam parentes no destino versus 50,5% dos homens. Em ambos os casos, há uma ampliação da rede de parentes que integra a migração de longa distância em relação ao estudo de Massey et al. (1987), uma vez que esse autor analisou as redes de parentesco masculinas.

Quando chegam ao destino, os migrantes, depois de conseguirem um lugar para ficar por um tempo, precisam arranjar um trabalho. Neste momento, como já demonstraram outros estudos sobre migrantes brasileiros (SALES, 1999; SCHUDELER, 1999; MARTES, 1999; FUSCO, 2000) as redes sociais são muito importantes, pois os migrantes tendem a se encaminhar para os serviços onde se concentram os conterrâneos, amigos e parentes. Os migrantes de Criciúma, como os outros migrantes, utilizam-se das redes sociais para conseguir emprego.

No entanto há uma diferença em relação ao auxílio para hospedagem, onde há predomínio da ajuda dos parentes para as mulheres e dos amigos para os homens. Neste momento, os dados indicam que para arranjar emprego, no geral o auxílio dos amigos tem um peso maior representando 47,5% do total da ajuda recebida enquanto a ajuda dos parentes representa 38% dos casos.

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Estes dados evidenciam que homens e mulheres quando migram utilizam-se das redes sociais em diferentes momentos do contexto migratório e necessariamente não se utilizam da mesma forma, sugerindo que as mulheres estão bem mais ligadas/sustentadas nas redes familiares que os homens.

Os dados apresentados evidenciam que os laços de parentesco são o principal componente das redes sociais dos migrantes criciumenses e que as mulheres utilizam-se mais desses laços. A importância das redes familiares também foi observada por Fusco (2001), com relação aos migrantes de Governador Valadares ao revelar a predominância das conexões familiares (56,1%) quando apresenta os dados de quem o migrante conhecia no destino. Portanto, os migrantes criciumenses, assim como os valadarenses, apóiam-se nas redes de parentesco e amizade para realizar o projeto migratório.

O predomínio dessas redes informais articuladas entre amigos e parentes, ajudam a compreender porque redes institucionais são pouco mencionadas pelos imigrantes. Quando perguntados acerca de quem ajuda no financiamento da viagem os imigrantes revelam, mais vez, a importância desses laços e qual a contribuição das agências nesse processo. Nesse ponto é importante ressaltar que não estou me referindo aqui às redes de tráfico de pessoas que atuam tanto em Governador Valadares quanto em Criciúma, com o recrudescimento da política de emissão de vistos de entrada para os brasileiros, estou analisando apenas as agências que atuam como agências de turismo ou de recrutamento, como veremos a seguir.

Os dados demonstram que, no caso da migração de Criciúma, as agências de viagem e de recrutamento têm um papel pouco significativo no que se refere ao financiamento e recrutamento dos imigrantes, bem como no help inicial no destino. Embora seja através das agências que esses migrantes comprem suas passagens, organizem a documentação para tirar o visto e enviem o dinheiro recebido, não são elas que articulam o processo e, sim os amigos e parentes que aqui e lá conectam a origem e o destino, configurando as redes sociais. Fusco (2001) também constata a importância das redes de parentesco, de amizade e de origem comum, no caso dos migrantes de Governador Valadares, ao demonstrar quem esperava os migrantes e quem ajudou a arranjar o primeiro emprego.

Quando as agências de turismo passam a integrar essa rede migratória, não é no sentido nem de arrumar dinheiro, nem trabalho, que é que o possibilita o empreendimento migratório, mas sim para receber as remessas dos imigrantes, como se pode observar em Fusco (2001) e Soares (2003). Portanto, pode-se dizer que as agências ajudam na venda de passagens e informações sobre como conseguir o visto, no caso do visto americano, e ganham com o crescimento e a consolidação do fluxo migratório através das remessas feitas pelos imigrantes. A constituição de uma rede migratória é concretizada no cotidiano de relações tecidas por vários integrantes do grupo de parentesco ao longo do processo migratório. No caso da migração de Criciúma, como foi demonstrado, não é quaisquer parentes que auxiliam na empreitada, o que implica em diferenciados acessos às redes para homens e mulheres imigrantes.

Nesse ponto, é importante destacar o que ocorre quando outros agentes articulam o processo migratório, como é o caso da cidade de Maringá, no estado do Paraná. Diferentemente da organização social da migração de criciumenses e valadarenses, no caso dos migrantes de Maringá para Japão, as agências de recrutamento têm um papel crucial para o empreendimento migratório. Segundo Sales et alli. (2001) e Sasaki (2001), 70,4% dos migrantes maringaenses, que são em sua maioria descendentes de nipo-brasileiros, contam

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com algum tipo de serviço prestado pelas agências de recrutamento62, as quais atuam em proporção bem maior que as redes de parentesco e de amizade.

As agências de recrutamento em Maringá organizam o processo de migração legal para o Japão e atuam fornecendo empréstimo para o migrante em 57,4% dos casos, auxiliando na hospedagem em 64,3% dos casos e arranjando o primeiro emprego, em 72% dos casos. Atuando como agenciadoras de imigrantes legais, tais agências tornam-se articuladoras do processo migratório e têm participação mais significativa que as redes de parentesco e de amizade, que emergem como segunda opção para os maringaenses.

No entanto, mesmo com o predomínio desses agentes, que agem como recrutadores de imigrantes para firmas japonesas, a ajuda oferecida por parentes é substantiva. Os parentes representam 28,2% daqueles que ajudam na hospedagem, 20,2% daqueles que auxiliam a arranjar o primeiro emprego e, no caso dos recursos financeiros, os parentes representam 19,4% daqueles que fornecem empréstimo para a primeira viagem.

Esses dados são sugestivos, pois demonstram diferenças entre as cidades de origem dos fluxos de migrantes brasileiros que sugerem uma configuração dos mesmos. Tais fluxos direcionam-se para lugares diferentes, os migrantes criciumenses e valadarenses seguem como primeira opção para os Estados Unidos, enquanto os maringaenses migram principalmente para o Japão. Há o predomínio da migração legal pra o Japão, em 95% dos casos, enquanto predomina a migração indocumentada entre os migrantes criciumenses (86,9%) e valadarenses.

Essas características gerais dos fluxos podem ter impacto na configuração das redes sociais, porque enquanto os maringaenses contam com uma estrutura formal representada pelas agências de turismo, agências de recrutamento ou empreiteiras, os migrantes valadarenses e criciumenses utilizam os laços informais propiciados pelas redes de parentesco e amizade, ou de outras redes igualmente informais e até mesmo clandestinas, como as que “montam passaportes” para aqueles que se aventuram pelo México.

Ao longo das duas últimas décadas do século XX, os brasileiros residentes no exterior foram construindo múltiplas relações econômicas, culturais e familiares, o que sugere que os imigrantes, mesmo ausentes no exterior, continuam em contato com as suas cidades de origem (ASSIS, 1995; SALES, 1999).

Tal contato é traduzido em investimentos nas cidades de origem que movimentam o comércio local − notadamente a construção civil, que movimenta o mercado imobiliário − e também fazem surgir microempresas movimentadas pelos dólares que os familiares recebem. Tais investimentos têm movimentado a vida de cidades que se tornaram ponto de partida de emigração, como Governador Valadares63 (MG) e Criciúma (SC)64 ou Maringá (PR)65,

62 Segundo Sasaki (2001), as agências de recrutamento seriam não apenas as lojas de turismo que vendem passagens aéreas, mas também podem ser algumas pessoas ou agenciadores que ganham uma comissão ou quantia de dinheiro ao recrutar e enviar ao Japão trabalhadores migrantes. Em geral, os recrutadores têm forte vínculo com a colônia japonesa no Brasil e são ligadas a empreiteiras de mão-de-obra no Japão ou mesmo às próprias empresas que demandam trabalhadores. Na maior parte das vezes, quando uma fábrica precisa de trabalhadores, a empreiteira é acionada e envia as propostas à agência brasileira que, por sua vez, recruta os candidatos a trabalhadores migrantes. 63 Sobre a dinâmica imobiliária em Governador Valadares, ver Soares (1999). 64 Segundo Manoel Alves, presidente do sindicato de compra, venda e administração de imóveis de Criciúma, os negócios com imóveis crescem cerca de 30% nos meses de dezembro e janeiro, que é quando os migrantes vêm visitar os familiares ou retornam para o país (Vitali, Marli. Moradores da região sul tentam a sorte nos EUA .Jornal A Noticia. Caderno AN Economia, p. B2, 16/01/2000). Numa outra reportagem, Gilson Marcos presidente do Criciúma United soccer club, chegariam à cidade cerca de US$ 800 mil através das agências de

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cidades que ao longo das últimas décadas construíram múltiplas relações entre a sociedade de origem e a de destino. Os investimentos demonstram que os migrantes têm projeto de retornar ao país e que se mantêm em contato com ele. Somados às remessas enviadas para manter os familiares que permaneceram no país, os investimentos representaram, em 2002, a entrada de US$ 2,6 bilhões de dólares no país66.

Na cidade de Criciúma, algumas imobiliárias abriram filais na região de Boston, na cidade de Somerville, para vender casas e apartamentos para os imigrantes no Brasil. Durante o trabalho de campo, conversei com Bia Tramontim, proprietária de uma imobiliária em Somerville, que relatou que os migrantes olham o projeto de apartamento ou casa pronto ou na planta, mas é o parente que ficou no Brasil, em geral os pais, que acompanha as obras e manda os retratos ou filmagens mostrando o andamento da obra. Assim, muitos migrantes quando retornam para o Brasil já encontram a casa ou o apartamento pronto.

Embora os dados sobre os investimentos em Criciúma sejam estimativos e possam estar superestimados, as informações ressaltam a importância das remessas para o local de origem e revelam a constituição de uma rede de agências de turismo e imobiliárias que se inserem nessa rede migratória. Nesse ponto, as redes de parentes cruzam-se com as redes agências de turismo e imobiliárias na realização do projeto migratório, num negócio bastante lucrativo para as empresas.

Os migrantes criciumenses, assim como outros migrantes internacionais, partem com o projeto inicial de trabalhar e juntar dinheiro a fim de melhorar o padrão de vida no Brasil. Nesse sentido, as remessas são um importante indicativo da realização desse projeto e também dos laços de reciprocidade que envolve as redes, pois aqueles que partem ficam com o compromisso de ajudar os parentes que ficaram.

Gráfico 5 - Remessas dos emigrantes

0

10

20

30

40

50

60

Chefe Cônjuge Filho/a Outros

Não remete

Remete para mantera família

Remete parainvestimento

Outra finalidade

Fonte: As Redes Sociais nas migrações internacionais os migrantes brasileiros para os EUA e Japão, 2001

turismo, bancos e doleiros (Mendes, Maneca. Criciumenses em Boston – Chegam US$ 800 mil por mês dos EUA. Jornal da Manhã, 15 e 16 de abril de 2000). 65 Sobre as remessas dos dekassegui, ver Sasaki (1999). 66 Folha de São Paulo, 18/08/2002.

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Ao analisarmos os dados das remessas dos migrantes distribuídas segundo a sua condição no domicílio (gráfico 5) verifica-se que são os chefes de domicílio que mais remetem dinheiro para o Brasil: 55% enviam dinheiro para manter a família e 15,8% remete para investimento. Os cônjuges vêm em seguida com 41% enviando dinheiro para manter a e 10% fazendo investimento. Os filhos, que constituem a maioria da população migrante, no entanto, são os que realizam menos remessas para manter a família (28.6%) e 16.6% que enviam dinheiro para investimento. Este dado revela que o projeto migratório pode variar entre os pais e os filhos, sendo que estes podem ter projetos que não incluam toda a família enquanto os chefes teriam mais obrigações com o domicílio.

Siqueira (2006) também observa em Governador Valadares, a importância das remessas para os investimentos na terra natal e como esse investimento tem alterado a dinâmica nas cidades de origem dos fluxos, tanto valorizando imóveis a taxas acima do valor de mercado ou propriedades rurais nas pequenas localidades da região, o que torna o investimento muito lucrativo para as imobiliárias, mas pode se traduzir num investimento incorreto para o migrante retornado, como os vários relatos de insucesso nos investimentos no retorno, parecem demonstrar.

Portanto, em Criciúma, assim como em Governador Valadares construíram-se conexões entre os EUA e a região, dessa forma podemos compreender, porque essa cidade da região sul do Brasil se insere no cenário brasileiro como um novo ponto de partida para os emigrantes brasileiros. Nesse artigo, ao comparar sucintamente as experiências de valadarenses e criciumenses pretendi demonstrar como algumas cidades no Brasil, estruturaram conexões transnacionais criando um singular campo social que envolve os que partiram e os que ficaram numa complexa rede de relações que auxilia tanto no momento da partida, quanto na chegada no destino, bem como na administração dos investimentos na cidade de origem.

Neste sentido, embora tanto em Governador Valadares quanto em Criciúma as políticas públicas aos emigrantes ainda sejam muito incipientes, iniciam-se projetos nas cidades para orientar os investimentos dos emigrantes e oferecerem suporte àqueles que ficaram.

As conexões possíveis entre os imigrantes e os emigrantes do presente evidenciam-se através dessas redes familiares que demonstram que este projeto individual, em geral está sustentado nas relações familiares, que são muito importantes para todo o projeto desde o momento de preparar para a partida, o apoio emocional e financeiro, até as viagens que os pais fazem para os EUA para matar as saudades, ou as ajudas para arranjar emprego nos locais de destino. Nessas redes as mães, esposas, namoradas, irmãs são muito importantes, pois fazem circular as informações entre os demais membros das famílias. O que se constata tanto daquele que partiram quanto daqueles que ficam é uma tentativa de manter seus laços com o Brasil, com os familiares o que aponta pra uma transnacionalização das relações familiares que se constroem entre os dois lugares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os migrantes criciumenses inserem-se na migração internacional ao longo da década de 90. Assim como os mineiros de Governador Valadares, os catarinenses partiram em direção à “América” com um projeto migratório comum: comprar uma casa, um carro, montar um negócio. Esse fato revela um aspecto interessante das redes sociais que atuam na migração, pois uma parcela dos novos migrantes criciumenses é descendente de italianos e,

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portanto, têm a cidadania italiana o que abre o mercado de trabalho na Europa. No entanto, em vez de fazerem o caminho inverso, migrando para a Itália, a maioria segue o caminho aberto pelos mineiros, goianos, cariocas e outros brasileiros de diferentes origens regionais partindo rumo à região da grande Boston. Assim, um século depois, os criciumenses repetem a trajetória de seus nonos e nonas, continuando num certo sentido o projeto de “fazer a América”, partindo em direção aos Estados Unidos.

Portanto, como foi demonstrado, tanto no survey quanto na pesquisa qualitativa67 realizada na região de Boston, os criciumenses partem para onde há melhores oportunidades de trabalho, mas fundamentalmente para onde possam encontrar uma rede de apoio para recebê-los. Assim, tecem as redes sociais na migração. Esse movimento, relativamente autônomo ao Estado e às forças estruturais, é caracterizado por ser de difícil apreensão, pois é fundamentalmente baseado em laços informais, construídos entre parentes, amigos e conterrâneos, muitas vezes distantes, mas que em terras estrangeiras tornam-se uma referência fundamental.

Assim, procurei apreendê-las analisando o tipo de ajuda dada e recebida por mulheres e homens no processo migratório. Desse modo, as redes sociais acionadas no contexto da migração foram analisadas como práticas sociais que envolvem tipos diferentes de ajuda material, logística, emocional e simbólica que possibilitam aos futuros migrantes partirem com referências mínimas de onde ir, qual o trabalho que irão fazer, com quem vão morar, etc.

Enquanto seus filhos/as e netos/as trabalham pelo mundo, seus/suas “nonos/as” e mães/pais (quando não são eles próprios migrantes) tocam sua vida, preparam a casa para recebê-los, muitas vezes administrando o dinheiro que é enviado. Tais questões sugerem vários arranjos familiares em que as mulheres assumem um status peculiar. O contato com o Brasil entre os que emigram e os que ficam é mantido por meio das cartas, fotos, telefonemas, remessas e, mais recentemente, por meio da internet, atualizando e reforçando a idéia do projeto familiar, econômico e afetivo que é a imigração. Dessa forma, o projeto de emigrar não é visto apenas como desestruturador das relações familiares (este é um estereótipo recorrente na cidade), mas como uma realidade que possibilita novos arranjos familiares e de gênero.

A migração de longa distância provoca grandes transformações para os sujeitos que vivenciam essa experiência. Porém, em vez de pensá-la apenas como um fator que provoca o rompimento de laços, procurei complexificar a análise demonstrando que também possibilita novos arranjos familiares e de gênero. Portanto, a família migrante não pode ser vista apenas como aquela cujos laços são desfeitos no contexto de migração, mas como aquela que tem suas relações reconstruídas em um contexto no qual também se redefinem as relações de gênero, construindo um campo complexo de relações entre os dois lugares que aponta para a com configuração de laços transnacionais que conectam em diferentes contextos o estar aqui e estar lá.

Iracema voou para a América, não domina o inglês, lava chão americano, mas com certeza tece ao longo desse processo várias redes que, em diferentes momentos, ajudam-na nessa arriscada empreitada.

67 Uma análise detalhada das trajetórias de vida dos emigrantes e suas relações estabelecidas entre os dois lugares encontra-se em Assis (2004).

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A PEDRA E O RIO: RASTROS DE RELIGIÃO NA DIÁSPORA DO S BRASUCAS

VICENTE DE PAULO FERREIRA 68

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RESUMO:

Este artigo examina os rastros de religião presentes em duas narrativas que têm como tema a diáspora dos mineiros do Vale do Rio Doce para os Estado Unidos. Empregam-se, para isso, reflexões teóricas sobre o fenômeno das migrações na atualidade, especialmente as teorias voltadas aos Estudos Culturais cujo interesse converge para os problemas de identidade e do exílio. Os subsídios teóricos são buscados no pensamento de Derrida, Lévinas, Kristeva, Hall e Bhabha, entre outros, tanto na perspectiva da aventura da travessia da fronteira, da disciplina e do poder, quanto do exílio e do retorno dos migrantes, bem como as implicações da migração no que diz respeito à construção de uma identidade cultural da região do Vale do Rio Doce. O método empregado é a análise crítica das teorias relacionadas à diáspora, vinculando-as ao referido corpus de produções simbólicas resultantes do fenômeno migratório naquela região específica. Os rastros de religião encontrados nos textos são analisados à luz das reflexões de Derrida sobre três categorias que nos permitem ver a religião como traço de ancoragem para as identidades em deslocamento: a khôra, o messiânico e a hospitalidade abraâmica.

Palavras-chave: religião, diáspora, disseminação, identidade, rastro.

ABSTRACT

This Work examines the traces of religion in three disseminated texts – two narratives and a poem – that have as theme the diaspora of “mineiros” from the Vale do Rio Doce region to the United States. Theoretical support is found on the reflexions made by Derrida, Lévinas, Kristeva, Hall and Bhabha. The method employed consists in the critical analysis of the texts under the light of those theories regarding the phenomenon of diasporas, specifically the Derridean categories of Khôra, messianic and abrahamic hospitality, which allow us to see religion as anchorage for identities in displacement. Keywords: religion, diaspora, dissemination, identity, trace.

INTRODUÇÃO

O fenômeno do deslocamento não é novidade no mundo pós-moderno. Nem tampouco estudá-lo. Há, sem dúvida, muitos escritos sobre o tema, quer este seja chamado de migração, quer seja denominado diáspora. O interesse desta pesquisa se volta para um fenômeno específico: a migração dos mineiros da região do Vale do Rio Doce para os Estados Unidos – tendo como referência a cidade de Governador Valadares. É abundante a fortuna crítica em diversos campos do conhecimento que versa sobre a migração valadarense para os Estados Unidos. Contudo, neles não se encontra uma abordagem específica das produções simbólicas que resultaram desse processo. Na presente perspectiva, não nos interessa aferir a qualidade literária dessas produções simbólicas ou seu valor. O rastro de religião a que nos referimos não remete a nenhuma religião institucionalizada, cristã ou não, mas tão somente ao vestígio do religioso, externado pelas ações e falas dos distintos personagens. Nesse caso, os rastros encontrados provêem do discurso cristão, religião predominante no Ocidente, também professada pelos personagens dos textos. A fé é o elemento externado no discurso, que conduz aos vestígios de religião no texto. Os textos disseminados da diáspora de que tratamos

68 Vicente de Paulo Ferreira é mestre pela UFSJ – Universidade Federal de São João Del Rei e professor no Curso de Letras da UNIVALE – Universidade Vale do Rio Doce.

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estabelecem uma relação dialógica com os corpos em diáspora, ou seja, a produção simbólica resulta da aventura da migração dos mineiros do Vale do Rio Doce. Entretanto, esses textos possibilitam uma visão existencial dos deslocamentos desses corpos migrantes entre realidade e desejo, dúvida e coragem.

O objetivo principal da pesquisa é, portanto, buscar rastros de religião nos textos e relatos “disseminados” que tratam da aventura do exílio e do retorno. Utilizo de forma particular o termo “disseminados” para me referir aos textos estudados, uma vez que estes foram produzidos em diáspora, como diaspóricas são suas personagens ou seus narradores, ou ainda as circunstâncias nas quais esses textos foram construídos. A hipótese geral que norteia a pesquisa baseia-se na idéia de que a religião desempenharia ainda hoje um papel relevante na estruturação das relações sociais e de poder na sociedade. De acordo com Reimer (1994) esse fato tem sido demonstrado nas recentes pesquisas interdisciplinares. A relação existente entre religião e construção de identidades pode variar conforme o contexto ou o local, tendo sido predominante nas sociedades ditas “primitivas”. Na medida em que atuam como “elemento fornecedor de configurações ontológicas ou metafísicas, para vivências e práticas de pessoas no coditidiano” (op. cit: 13), as crenças e doutrinas religiosas estão presentes na construção de identidades culturais e sociais, ainda que se deva admitir que o papel por elas desempenhado não seja precípuo na modernidade ocidental. Contudo, seja qual for a religião, seu sentido se encontra no propósito de (re)ligar os seres humanos com Deus e interligar as pessoas numa dinâmica de amor, solidariedade e gratuidade para o estabelecimento da justiça e da paz.

Uma das configurações identitárias mais interessantes que resultam do fenômeno migratório valadarense é o “brasuca”. Na definição de um migrante, o brasuca seria “aquele que não mais conseguiria viver no Brasil, aquele que ficaria em um vaivém sem fim” (Bicalho, 1989:63) e que, portanto, reconstrói a sua identificação nesse movimento contínuo entre as culturas brasileira e norte-americana, o que perturba os limites impostos pelas fronteiras geográficas, uma vez que leva o Brasil para os Estados Unidos e traz a cultura norte-americana ao retornar, disseminando, desse modo, a cultura dos “desenraizados” por toda a região do Vale do Rio Doce, de forma a consolidar a vocação dispersiva daquele local. Como aquele que se sente estrangeiro em qualquer lugar, mesmo em sua terra natal, o “brasuca” está entranhadamente ligado à tradição judaico-cristã, revelando traços de religião a serem investigados nos textos que são objetos desta pesquisa. É intuito desta pesquisa descrever a construção dessas identidades em trânsito, buscando na religião uma possível mediação cultural.

DERRIDA E O PENSAMENTO DO RASTRO

Os conceitos-chave que orientam a presente leitura originam-se das reflexões de Jacques Derrida: deslocamento, rastro, disseminação e religião. O descentramento, a que chamamos de deslocamento, ou différance, é uma idéia de forte apelo, pois possibilita a inserção de diferenças e diferentes no jogo de inclusão e exclusão de sentidos e rastros que não se sujeitam aos pré-conceitos do etnocentrismo discriminador dos corpos migrantes. Do deslocamento da différance chega-se ao rastro. O rastro – trace – é identificado por Derrida como sendo a própria différance. Isto se explica porque o “pensamento do rastro” não se conforma com a lógica da busca da origem, do transcendental, da presença plena, do centro (ao mesmo tempo gerador e controlador de tudo que é gerado). Se a différance é o deslocamento e o descentramento, o rastro é a impressão imotivada na forma, como movimento de retenção e distensão que estabelece a possibilidade da significação enquanto

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devir (Nascimento, 1999). Todo deslocamento deixa impressões, rastros de corpos e textos – discursos da diferença cultural em situações de migração.

A disseminação é mais do que o espalhar-se de povos do Terceiro Mundo. Sua lógica joga com os deslocamentos de sentido que questionam a idéia de totalização, ou seja, procura sentido no rastro do suplemento. No pensamento de Derrida, o termo “suplemento” diz respeito à impossibilidade de totalização. Suprir é fornecer o necessário como excedente. Trata-se de um excesso que, de maneira contraditória, vem suprir uma falta. Nada é tão abrangente que não necessite de um suplemento. É dentro desta lógica que se inscreve a disseminação.

Para Derrida (1997) a religião não se confunde com a linguagem do sonho de Feuerbach, nem é apenas reflexo de uma situação alienada, como afirmava Marx. É uma linguagem que imprime o seu rastro como devir e convoca ao testemunho. O filósofo argelino explica-a nos seguintes termos: Deus é um nome, sendo este o seu rastro. Na presença/ausência desse nome é que a religião funciona enquanto testemunho, penhor ou juramento. A idéia de testemunho relaciona-se ao procedimento bíblico de que qualquer declaração sobre um fato somente será verdadeira se atestada por duas ou três testemunhas. Sendo Deus o nome da terceira testemunha, aquele que dispensa qualquer atestação como supérflua, colocamo-nos, neste caso, diante do absoluto. Mas o nome de Deus é, antes de tudo, o rastro da ausência, é inominável, impronunciável, logo não apropriável, ou improdutível.

Noutros termos, Lévinas pressupõe que o transcendente é uma relação de socialidade, que, para o filósofo, é excelência do amor, do temor pelos outros e da responsabilidade pelos outros. A socialidade como responsabilidade para com o próximo seria a excelência própria do espírito, precisamente a perfeição ou o Bem (Lévinas, 1991). O ato ou a experiência de fé – a fiabilidade – fundamenta a socialidade ou a messianicidade, que é a relação com o outro enquanto tal e não como parte do mundo. Para Lévinas, não se pode falar de Deus sem se estabelecer uma relação com outrem. É isso que caracteriza a hospitalidade.

Para Jacques Derrida haverá sempre um outro lugar de dispersão exatamente onde se divide a fonte. Entre a fé e o saber se interpõe uma reatividade original a uma teletecnociência expropriadora e deslocadora. Respondem a isso duas figuras que se interpõem, produzindo, primeiramente

o arrancamento, decerto, à radicalidade das raízes [...] e a todas as formas de physis originária, a todos os recursos supostamente dotados de uma força geradora própria, sagrada, indemne, ‘sã e salva’ (heilig): identidade étnica, filiação, família, nação, terra e santidade, nome próprio, cultura e memória próprias. (Derrida, 1997, p.80)

O processo de deslocamento está vinculado ao próprio conceito de globalização – ou seja, o desenraizamento e a crença no relativo (PACE, 1997, p.21). Em resposta à pressão da globalização ou da mundialização, o migrante perde as referências que lhe são mais caras, ou seja, ocorre o desenraizamento de sua identidade cultural (que o colocaria como um ser pertencente a uma comunidade específica). É travessia, experienciada “na perda da identidade ou na tendência ao desenraizamento planetário” (Op. cit.:19). Perda de identidade, nesse caso, é entendida como uma questão de posicionalidade, que corresponde ao desenraizamento planetário, pois a diáspora provoca conflitos de força insuperáveis e instáveis, isto é, a dialética entre “identificações e desidentificações”, num constante processo.

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A outra figura – ou outro rastro da mesma fonte – “produz o contrafetichismo do mesmo desejo invertido, a relação animista com a máquina teletecnocientífica, que se torna doravante máquina do mal, e do mal radical, mas máquina de manipular tanto como de exorcizar” (Op. cit. p.80). É a relação contraditória que o rastro da religião explicita e esconde. É como um corpo que já passou, mas que ao deixar uma marca, oculta mais do que revela. A mundialização se apresenta como um paraíso tecnológico, que atrai e desloca, mas encobre – quando não revela o saber, somente o resultado do saber-fazer – e estabelece uma relação religiosa com o produto, com a máquina. Quando os deslocados empregam o discurso econômico para explicar o seu movimento, sob sua fala está o desejo invertido, ou seja, a atração do progresso, do desenvolvimento, da realização pessoal e familiar possível – sem se dar conta de que o desenraizamento é resultado da ação do mesmo poder que atrai e promete. A força da fé, que alimenta a esperança de dias melhores para além da fronteira, em terras estrangeiras, aliada à rede de apoio – que tem uma preocupação acentuada com o outro que chega – bem como à procura de solução para as crises econômicas imediatas, impulsiona de forma intensa à superação dos riscos, transformando o deslocado em estrangeiro em sua terra ou fora dela.

A religião como hospitalidade, re-enraizadora, é um entrecruzar de rastros que aponta, pelo menos, três vertentes que suplementam a falta e conferem sentido à busca. O primeiro rastro – também um nome – é o messiânico, ou a messianicidade “sem messianismo” (DERRIDA, 1997, p.29 – destaque do autor). O messiânico ou a messianicidade “seria a abertura ao porvir ou à vinda do outro como advento da justiça, mas sem horizonte de expectativa e sem prefiguração profética” (Op. cit. p.29). O segundo rastro – outro nome, outra raiz – seria khôra,69 definido como “corpo sem corpo, corpo ausente, mas corpo único e lugar de tudo, no lugar de tudo, intervalo, lugar, espaçamento” (DERRIDA, 1995, p.38). Esse espaço não diz respeito a nenhuma geografia, uma vez que não é objetivo nem mesmo terrestre. “Khôra está lá, porém, mais aqui do que todo aqui...” (DERRIDA, 1995, p.38). É a procura por um lugar que sempre está adiante, onde se pode jogar o jogo de todas as possibilidades e desejos. O terceiro rastro é o da hospitalidade abraâmica. É inspirada no ato de Abraão, ao acolher três pessoas – sendo uma delas o próprio Deus, e os outros dois, anjos – conforme o relato de Gênesis, capítulo 18. Na verdade, Abraão não pergunta nada, identifica nos visitantes – estrangeiros como ele na terra – seres divinos, aos quais ele alimenta e de quem cuida. É uma hospitalidade absoluta e incondicional, que vê no estrangeiro um ser divino ao qual se deve abrir a morada, sem restrições.

O RIO: A AVENTURA DA FRONTEIRA

O fenômeno da diáspora dos mineiros do Vale do Rio Doce não se explica de uma forma única e definitiva. As hipóteses que procuram responder aos porquês dos deslocamentos não fazem mais que deslizar entre si, tornando-se suplemento umas das outras, cobrindo uma falta que nunca chega a ser plenamente preenchida. Para alguns estudiosos, a crise econômica, social e política do Brasil, nos anos 80 do século passado, não justificaria, por si só, o número expressivo de saídas de valadarenses (e de praticamente todas as cidades ao redor de Governador Valadares), pois o fenômeno não se constatou em outras regiões do país, tão penalizadas ou mais pelo cenário nacional (SCUDELER, 2000, p.1). A resposta vem sendo construída ao longo da história da região do Vale do Rio Doce, através de uma “cultura

69 Khôra é transliteração da palavra grega χορα, termo usado por Platão no Timeu, num sentido de lugar não claramente definido, o que permite a Derrida empregá-lo como um espaço além do objetivo, do material.

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migratória” e de um “imaginário coletivo” do que seria a “América”. Essa “cultura migratória” é definida como uma predisposição, motivada por fatores de ordem histórica, cultural e sócio-econômica, a deslocamentos geográficos, tanto internos como externos a um território nacional.

Em A Fronteira, Ronaldo R. Sampaio (1996) narra a aventura do narrador e de um grupo de pessoas oriundas de Minas Gerais, que partem de Governador Valadares para entrar nos Estados Unidos pela fronteira do México. Na história, o protagonista estabelece vários relacionamentos, de amizade e de conflito, até chegar ao seu objetivo naquele país.

É na perspectiva da fronteira como um espaço cultural de travessias, não só de corpos, mas também de anseios e expectativas que procuramos rastros de religião na aventura narrada no texto de Sampaio. Procuramos verificar o papel cultural da religião frente à diáspora e aos mecanismos de vigilância e controle erigidos pelo poder para coibir os deslocamentos ilegais. Em resumo, buscamos verificar a existência de rastros de religião nas descrições textuais do confronto dos aventureiros brasileiros com o aparelho disciplinar durante a travessia que os levará aos Estados Unidos.

Observa-se um rastro de religião – uma fonte ou um caminho – num momento altamente significativo da narrativa. O narrador é esquecido e deixado para trás em um bar no momento da travessia da fronteira. Sem saber o que fazer, espera que alguém se lembre dele:

Já começava a me desesperar quando o garoto de doze anos surgiu à minha frente, super agitado. “Que passa? Que passa?” Puxou-me pelo braço para que o seguisse. Todo o pessoal que estava no interior do bar parou para assistir àquelas manobras. Não tive coragem de encarar ninguém, apenas seguia o coyote, apressadamente, quase correndo. Ganhamos os calçadões da avenida, sempre no mesmo pique, eu logo atrás dele.

[...] Duas quadras à frente havia um grande estacionamento, e nos dirigimos até um velho Opala parado já na saída. “Entre, vamos!”, ordenou-me o garoto. O velho Opala não tinha banco traseiro, propositadamente para essas ocasiões. Deitados, encaixados um no outro, de maneira que não pudesse ser visto do lado de fora, se encontravam os meus quatro colegas. Haviam guardado meu lugar, não deixando que eu ficasse para trás. (SAMPAIO, 1996, p.69-70)

O trecho acima ilustra a noção derridiana de messianicidade, ou seja, da abertura ao outro como advento de justiça. Manifesta-se ali a preocupação com o colega que ficou para trás. Não havia entre eles qualquer laço de parentesco, somente uma amizade construída ao longo da aventura. Era uma questão ética. E, segundo Lévinas, a ética não é uma invenção da raça branca, leitores do pensamento grego, mas sim, um ideal de santidade que seria irrecusável pela humanidade: “O único valor absoluto é a possibilidade humana de dar, em relação a si, prioridade ao outro” (Lévinas, 1997:150). O outro, nesse caso, é o companheiro de aventura na travessia da fronteira.

Pode-se encontrar, ainda, na narrativa, outro rastro de religião, a que Derrida (1997) denomina Khôra. Uma parada no Rio de Janeiro – antes do embarque para o México – leva o narrador de A Fronteira a visitar familiares ali residentes. A descrença destes era a nota maior da conversa à mesa do café da manhã. A reação foi um passeio pela cidade e uma projeção do que ele poderia encontrar nos EUA.

Precisava ver isso de perto, bater o pé, derrubar barreiras, levantar poeira se precisasse correr, porque o pó da Califórnia resiste firme em suas planícies, em

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torno da carretera sem fim. Enfrentar o rigor dos federais e as artimanhas do coyotes mexicanos. (SAMPAIO, 1996, p.22)

Khôra é essa procura por um lugar que sempre está adiante, onde se pode jogar o jogo de todas as possibilidades e desejos. Esse lugar que é tudo e nada. Espírito e matéria. Que tenta e nega. Mas que atrai de modo irresistível. Que move a aventura pela fronteira. Que é a própria fronteira como abertura a possibilidades abstratas, ao absolutamente outro. Promove a hospitalidade do eterno no temporal, na comunhão dos anseios e esperanças.

Num outro momento, o narrador de A Fronteira e seu grupo estão dentro dos EUA, numa escala em Houston, Texas, a caminho de Nova York, sem visto nos passaportes e, o que é pior, sem os bilhetes de embarque. No momento de tomar o avião, seus colegas de viagem são chamados pela aeromoça, mas ele não. Os minutos tornam-se angustiantes à espera de uma solução. Frente a frente com a aeromoça, entabula-se uma comunicação sem palavras.

A doce aeromoça sofria junto comigo aqueles momentos difíceis, mas não tinha meios de me socorrer, nem tampouco falávamos o mesmo idioma. Prevalecia então aquela coisa de telepatia. Como se estivéssemos nos comunicando com um simples olhar. Na verdade, eu estava perguntando para ela: “o que faço?” Às vezes, como se fizesse um apelo: “por favor, me ajude, deixe-me entrar!” Em seu rosto eu via as respostas que não vinham em forma de som. Algo como: “calma, tudo sairá bem!” (Sampaio, 1996, p.112).

Resolvido o impasse, quando os bilhetes de passagem chegam, a moça estende a mão para cumprimentar o narrador e a linguagem corporal continua a funcionar: “Em seguida sua face se abriu num sorriso mágico, apertou forte minha mão e me entregou os envelopes, abrindo-me passagem” (SAMPAIO, 1996, p.112). A hospitalidade se processa sem uma língua determinada: não há pergunta, não se procura o nome, mas se solidariza com o estrangeiro, com o outro, com o deslocado. Serve-lhe de apoio, de caminho, travessia.

A PEDRA: O EXÍLIO ALÉM DA FRONTEIRA

A narrativa poética de Arnoldo de Souza, que conta, com certo humor crítico, a história de Governador Valadares, faz uma afirmativa pertinente:

A terra foi devastada, o rio assoreado,

mas o sertanejo resiste, com seu olhar puro e triste,

se misturando aos brasucas.

(Souza, 1998, p.19)

Numa leitura superficial, a estrofe citada faz crer que o sertanejo resiste à devastação da terra e ao assoreamento do rio convivendo com os brasucas. No entanto, numa leitura mais atenta, observa-se que a palavra escolhida pelo poeta é o gerúndio do verbo misturar, no seu emprego pronominal que tem, segundo o Aurélio, as seguintes acepções: confundir-se, juntar-se, unir-se, mesclar-se, fundir-se (FERREIRA, 1980, p.931). Mais que apenas estar junto, o

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sertanejo e o brasuca se mesclam, no sentido de uma interseção de realidades, vividas conjuntamente, inseparáveis, pois hibridizadas na vida e na convivência ao longo do tempo.

O texto de José Victor Bicalho, Yes, eu sou brazuca, aborda a experiência de exílio dos mineiros do Vale do Rio Doce nos Estados Unidos, caracterizada pela solidão e angústia, sentimentos que levam alguns a uma espécie de peregrinação em busca de sentido para a existência e levam outros ao desespero. Há uma crise de identificação cultural, que é própria do brasuca, de se sentir expatriado, desenraizado. A esperança está no retorno à pátria, o que não garante re-enraizamento, pois o brasuca está sempre indo e vindo.

Nesse nomadismo, que combina as desidentidades ao desejo de retorno à terra natal, encontram-se muitos rastros de religião, que informam a linguagem e o comportamento das várias personagens do texto. O sentir-se exilado dissemina-se não só do lado de lá da fronteira, mas pode estar também do lado de cá, caracterizando uma visão de mundo de toda uma região.

Entre os deslocados do texto de Bicalho (1989), há os que têm consciência de que estão passando por um ritual, como há aqueles que não aceitam as dificuldades e situações que lhes advêm no exílio. A peregrinação ora se explicita como teste da Khôra – a inquietação da busca, ora como o messiânico – abrindo-se ao outro como bem ou como mal, ou como a hospitalidade do encontro nas ocasiões sociais e no lazer.

No discurso de Miro, um dos personagens principais de Yes, eu sou brazuca encontra-se uma referência aos que “perderam a sua pátria” e, por isso, “ficam num vaivém sem fim, pessoas que acabaram amputando suas raízes e que estão soltas no ar” (BICALHO, 1989, p.56). Em outras palavras, levanta-se a discussão da identidade cultural dos brasileiros exilados, daqueles que perderam o referencial da terra de origem e se encontram desenraizados, sem um solo cultural que os sustente.

O termo pátria traz, entre outros sentidos, o de terra natal, terra de origem. É, certamente, esse o significado da palavra empregada no texto para aqueles que perderam a sua pátria – perderam o seu referencial de terra de origem. Já o sentido de nação, de acordo com Homi Bhabha, é “uma forma obscura e ubíqua de viver a localidade da cultura” (BHABHA, 2001, p.199). Essa localidade, com toda a sua complexidade, gira mais em torno da temporalidade que sobre a historicidade, sendo desse modo mais híbrida na articulação das diferenças e identificações culturais, contrapondo-se a qualquer estruturação hierárquica ou binária do embate cultural. Isso propicia um deslocamento de categorias, entre as quais a de território e a de diferença cultural. O sentido de localidade pode ser ampliado, ou seja, a nação se dissemina no deslocamento dos migrantes.

Como já foi dito, estar além da fronteira é se colocar num entre-lugar, é olhar o mundo de uma perspectiva intersticial, onde os “embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos” (Op. Cit. p.21). Cornejo Polar (2000), em sua análise do discurso migrante, parte do pressuposto de que esse discurso é radicalmente descentrado, pois é construído ao redor de eixos vários e assimétricos, incompatíveis, contraditórios e não dialéticos. Em contraposição ao discurso de um personagem migrante, como Miro, que vê na migração a celebração da desterritorialização – os que “estão soltos no ar” – o autor afirma:

[...] considero que o deslocamento migratório duplica (ou mais) o território do sujeito e lhe oferece a oportunidade de falar a partir de mais de um lugar ou o condena a essa fala. É um discurso duplo ou multiplamente situado. (Cornejo Polar,

2000, p.304)

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Os migrantes – nessa perspectiva – têm, na verdade, mais de uma ancoragem territórial, possuem um discurso multiplamente situado, ou seja, falam a partir de lugares diversos. O que não significa consenso ou isenção de conflitos, pois a identidade cultural está sempre marcada pela diferença. Diferença que sobressai na escrita mesma do texto de Bicalho, que nomeia o migrante brasileiro nos Estados Unidos como brazuca (com z), enquanto outros pesquisadores grafam o termo com s (brasuca). É um caso de suplemento, um deslocamento da palavra – a différance, como preconiza Derrida – que imprime um novo rastro sem apagar o anterior. A palavra brazuca ganha, no texto, um sentido suplementar, além do que já possuía.

Segundo pesquisa realizada por José Carlos Meihy, o gentílico brasuca (com s) foi adaptado por um jornalista brasileiro em Nova York, Guttemberg Moreira, a partir do apelido dado a ele pelos demais estrangeiros com quem jogava futebol – uma mistura dos adjetivos brasileiro e carioca (brasoca, que depois se transformou em brasuca). Foi generalizado porque o jornalista usou o termo como nome de um herói de história em quadrinhos, o personagem Zé Brasuca, que sintetizava ironicamente o brasileiro médio que vivia em Nova York, em situação ilegal, com todas as suas dificuldades, inclusive sem falar inglês. Em entrevista registrada pelo historiador (MEIHY, 2004), Guttemberg Moreira reivindica o termo para designar somente os brasileiros que vivem em Nova York, sugerindo que os demais procurassem outro termo para identificá-los. A grafia (com s e não com z) foi uma forma de sustentar a identificação brasileira do jeito de escrever a palavra.

Mas não há como estabelecer limites na construção de identidades, seja na criação de novas ou na sustentação das antigas. Isso porque não há melhor discurso sobre identidade do que aquele que se enraíza na incessante (e inevitável) transformação (Cornejo Polar, 2000, p.304). Transformação, nesse caso, implica romper os limites do significante e do significado do nome. Um termo pode se disseminar para além da fronteira estabelecida, como um suplemento, inserindo a différance, que ao mesmo tempo mantém o rastro do sentido original, fazendo deslizar, contudo, não só o significante como a significação, dando-lhe uma característica ambivalente. É o que ocorreu com o termo brasuca.

A primeira fronteira a ser ultrapassada foi a do território. Da circunscrição à área de Nova York, o termo brasuca passou a designar os brasileiros que vivem nos Estados Unidos, seja em Nova York, seja em Miami ou em Boston. O brasuca não tem mais um território único. Sua identificação foi ampliada, multiplicada. Na narrativa, os brasileiros que moram em Framingham são designados por esse termo.

O segundo limite a ser rompido foi aquele do sentido. No texto, o nome ganha um significado adicional. O verdadeiro brasuca seria aquele que não mais conseguiria viver no Brasil, aquele que ficaria “em um vaivém sem fim”. Esta é a definição do personagem Miro. Além de se referir ao brasileiro que vive nos Estados Unidos, o nome identifica aquele que não consegue mais se fixar em lugar algum, “os que estão soltos no ar” ou os que estão multiplamente situados. Seriam aqueles que fazem jus ao título da dissertação de Assis (1995): Estar aqui, estar lá... – ou seja, procuram sustentar a vida em dois lugares: no Brasil e nos Estados Unidos.

Por fim, o significante adquire, no texto, outra grafia, que corresponde à posição em que o discurso migrante é construído. Daí o nome grafado com z para identificar aqueles que já perderam o seu chão de origem, o brazuca – a palavra reflete no hibridismo de sua escrita o hibridismo cultural dos que estão duplamente situados. Reflete o discurso do migrante localizado nos Estados Unidos, influenciado pela cultura norte-americana. O z funciona como suplemento de s, criando uma dupla cena na escrita, um suplemento que faz do brazuca que migra um brazuca que se posiciona de modo ambivalente, e um brasuca que se

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torna estrangeiro em sua própria terra. O descentramento do significante corresponde ao deslocamento dos corpos na diáspora.

Esse hibridismo cultural ou essa identidade multiplamente situada, para Bhabha (2001), configura a diferença cultural na produção de identidades minoritárias que se fendem (que em si já se acham divididas) na constituição de um corpo coletivo. As questões de solidariedade e comunidade são vistas, desse modo, em uma perspectiva intersticial. A placa de identificação da República que os migrantes organizam revela esse espaço liminar, o entre-lugar em que se situa o estrangeiro:

Ao lado da porta de entrada, uma placa de madeira, oval, aproximadamente 80 cm de comprimento, com vistosas letras entalhadas na madeira: WELCOME, REPÚBLICA DO EXÍLIO ECONÔMICO. No canto direito da placa, uma pequena bandeira brasileira, também esculpida na madeira. (Bicalho, 1989, p.54)

Há uma duplicidade de idioma na escrita da placa, sinalizando a ambivalência cultural dos exilados. A presença da bandeira brasileira procura afirmar uma identificação com a terra de origem dos migrantes que, em contraposição, explicitam a sua condição de exilados econômicos. De um lado, afirmação; de outro, negação de sua identidade cultural.

A ambivalência cultural também se explicita no ato de Miro, que surge na noite de Natal na República do Exílio Econômico enrolado em uma bandeira americana. Sua fala é a de um exilado brasileiro, que se ressente de estar em terra estrangeira para conseguir um padrão digno de vida, mas o seu gesto demonstra o quanto a cultura americana já penetrou em seu modus vivendi. Suas ações, na República, vão sempre colocá-lo nessa posição intervalar, como um conselheiro que ajuda as pessoas a encontrar um sentido para a vida no exílio.

O edifício em que moram os mais de quinhentos exilados brasileiros – antes de se organizar a República – chama-se Lord Chesterfield, um nome que ironicamente remete à cultura inglesa. Junto com a Republica do Exílio Econômico, o Lord Chesterfield também se constitui um espaço intersticial, culturalmente ambivalente. Essa ambivalência se revela ainda na visão que o exilado tem de si mesmo e de outros brasileiros.

O exilado vê a si mesmo como aquele que está no estrangeiro para trabalhar. É emblemática a frase de Rafael: “Estou aqui para trabalhar, pego qualquer coisa, não escolho serviço” (BICALHO, 1989, p.37). Segundo Teresa Sales, ao afirmar sua marca identitária como um povo trabalhador, o imigrante reproduz nos Estados Unidos o que, há séculos atrás, era dito dos imigrantes que vinham da Europa e da Ásia para o Brasil (italianos, japoneses etc.), em contraposição ao brasileiro, então visto por aqueles imigrantes estrangeiros como preguiçoso. Essa auto-imagem de povo trabalhador, que a pesquisadora denomina estereótipo, surgiu das “próprias características do fluxo migratório para aquela região dos Estados Unidos [Massachusetts], caracterizada como uma migração de mão-de-obra [...]” (SALES, 1999:177). Além disso, a imprensa americana contribuiu para a idéia, veiculando a imagem do brasileiro trabalhador. Seguindo o pensamento de Julia Kristeva, no entanto, essa visão do exilado não é apenas um estereótipo:

O estrangeiro é aquele que trabalha. Enquanto os nativos do mundo civilizado, dos países adiantados, acham o labor vulgar e assumem ares aristocráticos da desenvoltura e do capricho (quando podem...), você reconhecerá o estrangeiro pelo fato de que ele ainda considera o trabalho como um valor. (KRISTEVA, 1994:25)

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A narrativa está pontuada de expressões dos personagens que revelam a sua preocupação com o trabalho como prioridade. O desabafo de Toni sintetiza a situação dos brasileiros nos Estados Unidos: “O brasileiro faz o que o americano não quer fazer, pega no pesado ou então trabalha com limpeza, é construção, ‘landscape’, lavar panelas e pratos, limpar casas, lavar bunda de velho, é isto o que o brasileiro faz“ (Bicalho, 1989:42). Não só as falas, mas também as ações dos exilados demonstram que todo e qualquer tipo de atividade pode ser desempenhada, até porque o que importa, nesse caso, é o valor agregado ao trabalho. Por outro lado as relações com outros brasileiros nem sempre são de cordialidade e companheirismo.

A visão que os exilados têm uns dos outros desnuda o preconceito e a rivalidade. Anízio, ao elogiar a sua república, emite opinião sobre a forma como os brasileiros vivem nos outros apartamentos do Lord: “Não existe acordo, ninguém confia em ninguém, muita desconfiança e discórdia. Aqui não temos estes problemas, tudo é feito corretamente” (BICALHO, 1989, p. 37). O outro exilado é sempre identificado como alguém não-confiável, carregado de problemas e de difícil convívio. O panorama descortinado por Bia é emblemático:

─ Para o Lord vêm todos os recém-chegados, carregados de problemas, dívida, desemprego, saudade, as dificuldades de adaptação. Você vê gente deprimida, mal-humorada, com gastrite, úlcera, dor-de-cabeça, insônia. É um inferno. (BICALHO, 1989, p. 50)

Esse inferno se estende a todas as relações, inclusive as de trabalho, onde a competição provoca situações de conflito. Essa foi a constatação da personagem Graça, no restaurante em que começara a trabalhar: “No restaurante, isto é flagrante, um querendo ser melhor do que o outro, toda hora surge uma situação de discórdia” (BICALHO, 1989, p. 46). Em outro trecho, Toni classifica aquilo que faz, numa dishwash, oito horas seguidas, ganhando seis dólares por hora, como sendo um sofrimento e não um trabalho. Em seguida, aconselha um amigo que está trabalhando para um brasileiro: “Cuidado com os brasileiros, tem muito malandro por aí” (BICALHO, 1989, p. 39). Essas situações explicitam a decepção dos exilados diante das dificuldades encontradas, com a constatação de que o imaginário sobre o fazer a América exige mais coragem do que eles supunham.

Mais que competição, no decorrer do tempo, a relação entre brasileiros nos Estados Unidos se transformou em um sistema de exploração de mão-de-obra. Os recém-chegados são levados, por circunstâncias adversas (não falar inglês, não conhecer a cidade, não ter documentação legal, entre outras), a se colocar nas mãos daqueles que já estão lá há mais tempo, tendo o seu trabalho explorado inescrupulosamente. A imagem que o exilado brasileiro tem de si mesmo, como integrante de um povo trabalhador, transforma-se em desconfiança na relação com o outro exilado, que é visto como interesseiro, explorador dos incautos, enfim, um típico malandro. O que poderia ser um processo de integração pela hospitalidade, torna-se um peregrinar quase solitário. Apesar de tudo isso, muitos continuam atravessando a fronteira em busca de realização do seu sonho, movidos pelo imaginário sobre o que é viver nos Estados Unidos.

O imaginário sobre a América é um dos fatores de deslocamento dos brasileiros para os Estados Unidos. Os brasileiros que retornam dos Estados Unidos se encarregam de manter o imaginário coletivo sobre a América quando revelam somente as possibilidades, omitindo as dificuldades e sofrimentos por que passam os exilados.

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Agora sabia que eles não contavam toda a história. Quem voltava, a passeio ou definitivamente, falava das vantagens, dos dólares no bolso, não contavam sobre o sofrimento, o quanto haviam ralado para ganhar dinheiro. “As pessoas são orgulhosas e vaidosas”, pensou. Só querem mostrar o que é bonito, não contam do sofrimento e das fraquezas. (BICALHO, 1989, p:11)

A manutenção desse imaginário hoje é garantida também pela própria mídia e pela indústria cultural (Hollywood, Disney World, etc.), ou seja, a supremacia econômica dos Estados Unidos é também reafirmada em termos culturais, como nos lembra Fredric Jameson. E tudo isso obedece a um estratagema, que tem uma missão oculta: “preparar um presente puramente fungível, no qual o espaço e as psiques possam igualmente ser processados à vontade, com tal “flexibilidade” que a criatividade dos ideólogos [...] mal pode acompanhar” (JAMESON, 1997, p.29).

E aqui os rastros de identidade se sobrepõem aos rastros de religião. Sustentar o imaginário coletivo é uma das formas de manifestação da Khôra, que desperta o desejo ex-cêntrico, que não se explica, mas que coloca o mineiro do Vale do Rio Doce numa constante e duradoura disposição para a diáspora. Sempre em busca da realização de um sonho, de uma vida melhor, de preencher o vazio existencial, o brasuca se dispõe a viver além da fronteira. No entanto, como a Khôra é um rastro de religião que impulsiona sem cessar, o exilado sente, com mais ou menos freqüência, o desejo de voltar para casa.

A pedra, como metáfora da coragem, representa os brasucas a partir da similaridade dos seus componentes – nesse caso, a dureza para enfrentar as adversidades e a capacidade de permanência, mesmo exposta às intempéries que possam advir. A metáfora, no entanto, se fecha na similaridade. Sem descartá-la, mas em contraponto à sua limitação, a pedra se torna, ao longo da narrativa de Bicalho, metonímia dos brasucas na contigüidade do seu ir e vir, levada na disposição corajosa de atravessar fronteiras e buscar a realização dos sonhos. Para Cornejo Polar (2000, p.308)., é atraente relacionar os rastros do itinerário dos migrantes com este ir e vir metonímico: “[...] talvez à deriva do curso metonímico o migrante encontre lugares desiguais, a partir dos quais sabe que pode falar, porque são lugares de suas experiências. Seriam as vozes múltiplas das muitas memórias que se negam ao esquecimento”

No relato de Bicalho (1989), a “República do Exílio Econômico”, fundada pelos brasileiros nos Estados Unidos, se revela como recorte metonímico (ou “espaçamento”) da República Federativa do Brasil, pelo qual se define uma identidade cultural brasileira em plena performance, manifesta na diversidade de se viver e representar o “ser brasileiro” fora do Brasil, proporcionando assim uma visão da nação que transborda fronteiras geográficas, que não se fecha nem se “petrifica” em conceitos e imagens “homogêneos” como aqueles que estruturam o discurso oficial, como sugere Homi Bhabha (1998).

Rastros encontrados nos interstícios da pedra – metáfora de coragem – e no nascimento de Pedrinho – personagem símbolo de resistência, que também remete à fragilidade do viver no estrangeiro. Apesar de sua dureza, a pedra remete ao contínuo deslocamento, enquanto a vida se revela em sua vulnerabilidade, como a criança que requer cuidados. Etimologicamente, Pedrinho é uma pequena pedra. A criança é fruto do desejo e da resistência de sua mãe, mas também um ser que carece da hospitalidade e da generosidade dos demais. Por isso, se torna o centro da experiência (descentrada) dos habitantes dessa “república brasileira” situada “nas margens”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos textos nos permitiu a compreensão de que a diáspora já se incorporou à cultura do Vale do Rio Doce, seja quando os indivíduos vivenciam crises de identificação cultural no estrangeiro, seja ao disseminarem a diáspora na própria terra. Ao habitarem o entre-lugar que lhes reserva a experiência da migração, estes se tornam porta-vozes de múltiplas experiências possíveis. Deslizando como o rio, que os possibilita estar em constante movimento, esses estrangeiros testemunham a existência de fronteiras territoriais que se imbricam e de histórias que se entrelaçam, conforme sugeriu Edward Said.

Pela presente leitura, verifica-se que a fronteira é mais do que um espaço geográfico que separa os Estados Unidos do México. Compreendemos a fronteira como um local de intersecção de realidades múltiplas, um entreespaço, uma área móvel, polifônica, híbrida, feita de incessantes travessias, tanto físicas como culturais. Conforme localizamos os rastros, descobrimos que a religião é ambivalente: colabora no processo de desenraizamento, característica da pós-modernidade, à medida que faz aliança com a mundialização; em contraponto, ela também se constitui em ancoragem para os aventureiros, sustentando a esperança, promovendo a fraternidade e a hospitalidade entre eles. Observamos, ainda, que a linguagem religiosa se imiscui no aparelho disciplinar que vigia pelo jogo do olhar. Aqui, também, sua posição é ambivalente: a linguagem religiosa é empregada por personagens que se colocam a serviço do poder disciplinar, mas também é força para que outros enfrentem o desafio de transpor a fronteira em busca da realização dos seus anseios. E o poder torna-se um simulacro de si mesmo, aparentando ser um aparelho disciplinar que vigia, enquanto na verdade explora os aventureiros em sua jornada.

O texto de José Victor Bicalho, em especial, confere visibilidade à experiência de um viver intervalar. Para alguns, foi escrito com linguagem pouco elaborada, como opina Teresa Sales (1999), sem uma definição clara entre o trabalho acadêmico e a ficção. Segundo Graciela Ravetti, a escrita performática tem algo do trabalho de arquivista, do colecionador, do antologista e do tradutor, pois os textos valem como testemunhas de sinais percebidos que funcionam como mapas sentimentais, estéticos e expressivos de um modo de vida. Já que o mundo contemporâneo vive um momento em que busca se assumir como sociedade da diferença, pode-se pensar em disseminação do performático. Assim diz a autora:

Podemos pensar a disseminação do performático como uma das vias privilegiadas de materializar os fluxos criativos que atravessam a contextualização contemporânea em vias de se assumir como uma sociedade da diferença, onde todas as posições laterais ou periféricas vão construindo lugares, espaços reconhecíveis pelos discursos de projeção do eu que lhes deu forma, nos quais confluem imagens e palavras que lhes dão existência, ainda que participem da natureza do simulacro, mas que podemos visitar e voltar a edificar no plano simbólico. (Ravetti, 2002, p.58)

O performático é exatamente isso: mescla gêneros, conteúdos e formas. Além do pioneirismo, o texto de Bicalho (1989) é uma das poucas produções literárias que tratam da vida dos migrantes do Vale do Rio Doce nos Estados Unidos. É uma narrativa performática em que se pôde encontrar rastros de religião, de identificação cultural e disseminação da diáspora.

Rastros de religião não são sinais isolados, mas se mostram em todo o texto, desde o ritual de peregrinação, passando pela identificação cultural, até a disseminação da diáspora

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com os que retornam. São traços entrecruzados que se explicitam nas ações, falas e pensamentos dos brasucas em sua experiência além (e aquém) da fronteira.

NOTA

1 Khôra é transliteração da palavra grega, termo usado por Platão no Timeu, num sentido de lugar não claramente definido, o que permite a Derrida empregá-lo como um espaço além do objetivo, do material.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AS INTERFACES ENTRE EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL E RELIG IÃO: UM

ESTUDO DE CASO.

Aparecida Amorim70

RESUMO

Este estudo de caso é parte da pesquisa em andamento na UNIVALE com apoio da FAPEMIG. O estudo foi feito com um pastor de uma igreja protestante da cidade de Governador Valadares e um fiel da mesma, que a partir da emigração do seu familiar assumiu a responsabilidade sobre a sua família. O objetivo foi identificar as relações entre o processo migratório e a participação e adesão de familiares dos emigrados às igrejas protestantes como um espaço para amenizar as incertezas e riscos provocados pela emigração. Foram levantados: razões e mecanismos utilizados para emigrar; a posição da Igreja em relação a estes; a posição doutrinária da igreja em relação ao fenômeno da emigração internacional; as principais dificuldades enfrentadas por familiares de emigrados em relação à ausência destes e o tipo de amparo oferecido pela igreja; o comportamento da família do emigrante em relação à igreja como espaço de socialização e fé antes e depois da emigração. E as ações executadas pelas igrejas para amenizar as incertezas e riscos decorrentes da emigração internacional, vivenciadas pelos familiares que ficam no país de origem.

Palavras-chave: Emigração, família, adesão, igreja protestante.

ABSTRACT

This study of case is part of an in progress research at UNIVALE with the support of FAPEMIG. It was made with a shepherd of a protestant church in the city of Governador Valadares and a member of the same one that from the emigration of one of her familiar assumed the responsibility on the family. The objective was to identify the relations between the migratory process and the participation and adhesion of familiar of the emigrated ones to the protestant churches as a space to brighten up the uncertainties and risks provoked by the emigration. Was investigated: reasons and mechanisms used to emigrate; the position of the Church in relation to these; the doctrinal position of the church in relation to the phenomenon of the international emigration; the main difficulties faced by familiar of emigrated ones in relation to the absence from these and the type of support offered by the church; the behavior of the family of the emigrant in relation to the church as a space of socialization and faith before and after the emigration, and the actions performed by the churches to brighten up the uncertainties and risks of the international emigration, deeply lived by the familiar ones that remain in their native country.

Keys-word:

INTRODUÇÃO

O presente estudo de caso foi feito com um pastor de uma igreja protestante da

cidade de Governador Valadares e uma fiel da mesma, que a partir da emigração do seu

cônjuge se tornou a única responsável pela sua família. Para garantir o anonimato dos

entrevistados utilizamos nomes fictícios para identificá-los. Ao pastor entrevistado chamamos

de João e à entrevistada membro de sua Igreja, Elisa. O objetivo da pesquisa foi identificar as

relações entre o processo migratório e a participação e adesão de familiares dos emigrados às

70 Bacharel e licenciada em Ciências Sociais. Mestre em Comunicação Social pela UMESP- São Bernardo do Campo (2002). Professora das disciplinas de Sociologia, Antropologia e Metodologia Universidade Vale do Rio Doce. Desenvolve pesquisa na área de Migração e Religião. [email protected].

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igrejas protestantes como um espaço para amenizar as incertezas e riscos provocados pela

emigração.

O trabalho se faz relevante na medida em que trata da inter-relação entre dois

fenômenos sociais em bastante evidência na cidade: emigração internacional e religião.

Existem estudos importantes sobre a emigração internacional na cidade, porém, a maior parte

deles investigou o fenômeno sob a ótica daquele que emigra. O trabalho aqui proposto, ao

contrário, lança o olhar para as relações emigração internacional e religião sob o ponto de

vista dos familiares que ficam na cidade a espera do retorno daquele que partiu em busca da

melhoria das condições de vida para si mesmo e para a sua família. Sobre o tema religião, não

temos o conhecimento da existência de muitos estudos relacionados a essa área na cidade.

O estudo que aqui se apresenta, também utilizou 71dados quantitativos de uma

pesquisa em andamento na Univale – Universidade Vale do Rio Doce.

Pudemos evidenciar que a relação entre a instituição religiosa e o fenômeno

emigratório se estabelece ora de forma complementar, ora de maneira contraditória e

ambígua. A Igreja se coloca contra a emigração internacional ilegal, mas ao mesmo tempo

não deixa de apoiar nem o fiel que emigrou e nem o membro que aqui permaneceu. Por outro

lado, mantém o discurso calvinista que estimula a idéia de prosperidade sócio-econômica dos

seus membros, numa circunstância social que nem sempre permite a inclusão igualitária de

todos, o que acaba por estimular indiretamente o processo migratório.

EMIGRAÇÃO E RELIGIÃO: DOIS ASPECTOS SINGULARES EM V ALADARES.

A cidade mineira de Governador Valadares situa-se na região leste do Estado é

uma cidade de médio porte que chama a atenção, dentre outras coisas, por duas características

em especial: a forte presença dos protestantes na cidade que a levou a ser considerada, ainda

que de forma exagerada, como a capital evangélica do Brasil e o fenômeno da emigração

internacional que faz parte da história da cidade desde a década de 1960.

Em Governador Valadares dado às características que a emigração assumiu, é

possível dizer que essa se faz presente no imaginário coletivo não só como uma saída para a

crise financeira, mas também, como um projeto simbólico com o qual muitos cidadãos se

71 Pesquisa: “o impacto do processo migratório sobre a participação e adesão de fieis às igrejas protestantes na região do vale do Rio Doce”. Pesquisadores: Amorim, A.; Dias, C. A. e Siqueira, S. (dados parciais de pesquisa em andamento com o apoio da FAPEMIG).

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identificam. A decisão de emigrar tem por um lado um caráter utilitarista que envolve uma

relação de custo-benefício, mas não só. O movimento emigratório passa por questões de

ordem cultural, política e pelo estabelecimento de redes sociais, tanto no país de origem,

quanto no país receptor que oferecem o suporte necessário para a decisão de emigrar.

(MARTES, 1999).

Sobre esse assunto, muitas pesquisas foram desenvolvidas na tentativa de se

compreender a influência do processo migratório na cidade e região. Trabalhos importantes

desenvolvidos por Assis (2004), Martes (1999), Sales (1999), Siqueira (2006), Soares (1995),

entre outros, realçaram as motivações, as conseqüências e as inter-relações sociais, culturais e

econômicas desse processo na vida dos emigrantes, de suas famílias e da sociedade local.

A micro região do Médio Rio Doce, onde se localiza a cidade, agrega vinte e

cinco municípios e foi historicamente marcada por ciclos econômicos baseados no

extrativismo predatório. Essas atividades apresentaram no decurso do seu desenvolvimento

sinais de esgotamento dado a sua incapacidade de manter um curso auto-sustentável. A

substituição de uma atividade predatória por outra, acabou por gerar o declínio dessas

atividades e a impossibilidade de as mesmas continuarem existindo como base econômica da

cidade e região.

O esgotamento das atividades de exploração mineral e vegetal na década de

1960 decorreu no fechamento das serrarias e das indústrias de beneficiamento da madeira,

promovendo uma crise econômica local. Naquela época a atividade mais significativa, a

exploração extensiva de terras, geradora dos latifúndios, foi incapaz de absorver o contingente

de desempregados oriundos das atividades extrativistas. Os anos de 1970 se configuraram

como tempos estagnação econômica, que se tornou ainda mais aguda no decênio seguinte.

Os problemas decorrentes dos ciclos extrativistas na região do Médio Rio

Doce se manifestam no aumento e na concentração da pobreza e nas crises sociais retratadas

periodicamente pela mídia local e nacional e que são claramente perceptíveis, como o tráfico

de drogas; a violência; os crimes de lavagem de dinheiro; a existência do chamado “cônsul” –

pessoas que agenciam os emigrantes para entrarem ilegalmente nos os Estados Unidos

especialmente via fronteira mexicana, etc.

Nos anos de 1980 o fenômeno da emigração internacional tornou-se mais

evidente, as escassas perspectivas de sobrevivência na cidade e região acabaram por

impulsionar a emigração de valadarenses para o exterior, em especial para os Estados Unidos.

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Soares (1995, p.15) afirma que “O número de emigrantes valadarenses que se encaminham

para outros países [...] é da ordem de 33.468 pessoas; o que representa, tendo como base o

Censo de 1991, 15,9% da população encontrada na sede do município e 14,5% da população

do município”.

A outra característica da cidade que necessita uma melhor compreensão

sociológica é a religiosidade. O guia evangélico harmonia de 2005, que lista o número de

templos protestantes, seja do ramo denominado de protestantismo histórico, pentecostal ou

neo-pentecostal, na cidade, relacionou a existência de 731 igrejas em Governador Valadares.

Cidade que em 2000, apresentava uma população de 227.440 habitantes (Fundação João

Pinheiro, 2004). Os dados realçam o fato de que houve um crescimento no número de igrejas,

se comparado com o ano de 2004, de 5, 78%. Em 2004 a cidade contava com 692 templos.

O estudo em andamento na Univale, mencionado anteriormente, até o

momento levantou 225 templos protestantes e entrevistou 116 líderes religiosos das várias

denominações protestantes na cidade, apresentou dados parciais que revelaram que a igreja

tem sido de fundamental importância no apoio aos familiares dos emigrados. Seja do ponto de

vista espiritual ou afetivo / psicológico e em alguns casos até mesmo financeiro.

A maior parte das Igrejas (76%) que tiveram seus pastores entrevistados foram

fundadas de 1971 até 2006. Dessas igrejas, 32% surgiram nos anos de 1951 a 1971. Vale

realçar que os norte - americanos se fizeram presentes na cidade desde a criação da Estrada de

Ferro Vitória a Minas em 1904, quando os engenheiros e técnicos estadunidenses atuaram na

sua construção. Além disso, quando nos anos de 1940 a cidade vivenciou o ciclo da mica, o

domínio na exploração da riqueza foi feito por empresas norte-americanas para fomentar a

indústria bélica na segunda Guerra Mundial.

Naquela época, muitos norte-americanos vieram para a cidade e região

representando as empresas que exploravam o mineral e trouxeram vários benefícios para a

cidade dentre eles o tratamento de água. Contribuindo assim, na construção do imaginário

coletivo de que esses representavam a modernidade em contraposição ao atraso que por aqui

era imperativo. Presume-se que dentre essas pessoas, muitas eram fiéis de Igrejas protestantes,

religião que segundo Mendonça (1990), chegou ao Brasil no século XIX e expressava os

valores da sociedade civil norte-americana, país mais desenvolvido sócio-economicamente

que o Brasil, e contrastavam com o catolicismo, religião considerada por aqui, como

expressão do atraso sócio-econômico.

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Dos líderes religiosos entrevistados, 31,4% afirmaram que os fundadores das

suas igrejas mantiveram contato com norte-americanos na época da fundação das igrejas.

(2,6% com membros das igrejas nos Estados Unidos; 25% com missionários e líderes de

Igrejas norte-americanas e 3,4% com organizações paraeclesiásticas daquele país).

Atualmente, estes contatos se mantêm em 50% das igrejas. Das 116 igrejas cujos pastores

foram entrevistados, 44,5% possuem de 11 a mais de 91 dos seus membros no exterior.

O estudo de caso aqui proposto lança o olhar para as interfaces estabelecidas

entre uma Igreja do ramo do protestantismo histórico missionário (MENDONÇA, 1990) e a

emigração internacional. Pretendemos saber como se processa a inter - relação entre a Igreja e

os familiares dos emigrantes que alçam vôo para o exterior em busca de melhores condições

de vida e trabalho. O presente estudo foi feito com um pastor de uma Igreja da cidade de

Governador Valadares e uma fiel da mesma que na ocasião da emigração do seu cônjuge teve

que assumir a liderança de sua família.

Desde que foi implantado o templo da igreja investigada, em outubro de 1942,

essa se destacou pela ação social através da assistência às populações pobres tanto no trabalho

de alfabetização quanto na evangelização. Seu público era inicialmente formado pelas

camadas sociais mais empobrecidas e despossuídas. Ainda hoje, ao nos conceder a entrevista,

o pastor da igreja que se localiza na região central da cidade, região habitada pela classe

média local, afirmou que “a maioria [dos membros da sua igreja] é [composto] de assalariados

em torno, calculo eu, de 20% de classe média e 5% de classe média alta. Mas a maioria

esmagadora é de assalariado”. (pastor João).

Vale realçar aqui, que na década de 1960 a Igreja foi liderada durante seis anos

por um pastor norte-americano que conseguiu, através dos seus contatos com a Igreja da

mesma denominação nos EUA, de onde ele era oriundo, a doação de parte da herança de uma

professora, também norte-americana, que morreu sem deixar herdeiros. A doação possibilitou

a construção do prédio anexo ao templo. Nesse prédio funciona um salão utilizado para a

confraternização entre os membros da Igreja e salas destinadas ao ensino bíblico. A única

exigência feita na ocasião foi de que o prédio recebesse o nome da pessoa de quem veio a

herança. No entanto, o pastor entrevistado não soube dizer se a presença do pastor norte-

americano, bem como de sua esposa da mesma nacionalidade, contribuiu de alguma forma

para a emigração de fiéis da sua Igreja naquela época. Mas certo é, que a vinda do casal para o

Brasil tinha um caráter missionário, inclusive a esposa do pastor era missionária da Igreja da

qual eles eram membros nos EUA.

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Ao ser argüido sobre o teor das orientações que fornece aos fiéis da sua igreja,

quanto à conduta moral/ econômica o pastor João demonstrou a valorização do ascetismo e da

ética voltada para o investimento numa vida de trabalho cotidiano.

Ultimamente estou pregando uma série de mensagens, as regras gerais da Igreja dizem assim: Trabalhe o máximo que você puder trabalhar; economize o máximo que você puder economizar; dê o máximo que você puder dar. É o que eu tenho ensinado a eles: estude, estude, estude. Procure fazer concursos. Procure crescer no seu trabalho. Chegue ao ponto mais alto que você puder, sem deixar de ser honesto, sem esquecer esses princípios. Eu tento motivar algumas pessoas da Igreja a participar da vida pública...”

O estímulo à participação na vida pública, relaciona-se, segundo o pastor, à

oportunidade de contribuir com a política através de uma atuação permeada dos valores

morais defendidos pela igreja, como a honestidade, o que contribuiria para modificar

positivamente a política local.

Se expressa aqui em meu entendimento, a atualidade do pensamento de Weber

que nos ensinou que o sucesso do capitalismo exigiu a construção de um novo estilo de vida

relacionado em parte com a “disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta

racional” (2001b, p. 14), existe uma indicação de que a conduta pleiteada pelo protestantismo

criou um ethos que se relaciona com o modo capitalista de produção. Ou que a “ética

protestante” corresponde ao “espírito do capitalismo”. O protestantismo motivava e, ainda

hoje motiva, seus fiéis para a produção e conseqüente acumulação de riqueza através do

estímulo à poupança. A vocação protestante, ou seja, o chamado de Deus, se manifesta na

concentração cuidadosa no trabalho cotidiano. O homem agora serve a Deus através do seu

trabalho. A riqueza extraída do trabalho deve ser reinvestida na vocação, no trabalho como

uma maneira de ser colocar a serviço de Deus.

A fala do pastor nos remete para a contradição presente entre os valores

religiosos difundidos e a impossibilidade de efetivá-los no contexto social em que nos

inserimos. Há do lado da instituição religiosa todo um estímulo ao trabalho, estudo e

poupança, num contexto sócio econômico que não permite a ascensão igualitária dos seus

membros. O pastor afirma que é possível a ascensão social dos indivíduos no Brasil desde que

os preceitos citados por ele (trabalhar, economizar, estudar, doar e ser honesto) sejam

rigorosamente seguidos. Pudemos perceber o quanto esses valores foram incorporados por

Elisa a nossa entrevistada e, segundo ela, pelo seu marido também. A sua fala demonstra o

quanto eles valorizam os aspectos estimulados pela Igreja.

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Segundo Elisa a decisão por emigrar foi estimulada pela necessidade de

melhoria das condições econômicas e de vida. O que eles pretendem alcançar com a

emigração é a realização de “Alguns sonhos, como eu e meus filhos podermos cursar a

faculdade, a aquisição da casa própria, a melhoria de vida econômica”. Como é impossível a

realização desses sonhos com o trabalho realizado no Brasil, a emigração surge como uma

alternativa que vai ao encontro dos preceitos difundidos pela Igreja, ainda que não seja

estimulada diretamente, sobre esse aspecto falaremos mais adiante.

Por outro lado, o pastor João se colocou enfaticamente contra a emigração

ilegal: “Isso é coisa ilegal e por ser ilegal a Igreja não trabalha com coisas ilegais, a Igreja não

usa de subterfúgio para driblar nenhuma lei. A Igreja então quebrou isso. A Igreja central de

Valadares”. Deixou claro que essa postura se refere à Igreja que ele lidera e não

necessariamente a todas as Igrejas da mesma denominação de Governador Valadares ou do

Brasil. A sua Igreja tem um estatuto que foi alterado em 2005 para inserir uma cláusula que

prevê o afastamento do membro que emigrar ilegalmente. Porém, não há restrições em relação

à emigração em si, possibilidade que permeia o imaginário coletivo local.

A conselho a pessoa a ir legalmente [no caso daqueles que eventualmente o procuram para saber a sua opinião a cerca da possibilidade de emigrar]. Nós percebemos que as pessoas têm um sonho muito alto, aí não dá pra nós atendermos [aqui o pastor se refere a possibilidade da Igreja auxiliar na realização dos sonhos materiais dos seus membros]. A Igreja procura incentivar e colaborar com os estudos, saúde pagamos exames médicos para as pessoas não ficarem na fila de INSS...

A fala acima demonstra a contradição entre os valores cultivados pela Igreja e

a possibilidade de efetivá-los, num contexto sócio histórico em que o Estado não consegue

responder adequadamente as demandas sociais e econômicas. Os problemas sociais não são

relacionados às estruturas sociais desiguais, ao sistema econômico e político excludente que

se impõe sobre os indivíduos. Ao contrário, os problemas tornam-se responsabilidade

individual onde os sujeitos são responsabilizados pessoalmente pelo sucesso ou fracasso da

sua empreitada.

As instituições religiosas tentam a todo custo ocupar o profundo hiato deixado

pelo Estado, já que o mesmo não responde aos anseios sociais. Buscam então, formas de

auxiliar a melhoria de vida dos seus fiéis e também assisti-los nas suas necessidades mais

imediatas. A Igreja investigada ajuda seus membros naquilo que pode, seja custeando parte

dos seus estudos, os liberandos da freqüência aos cultos (aqueles membros que estudam) em

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momentos do ano letivo em que estão muito atarefados com trabalhos e provas escolares,

enfim, estimulando e apoiando os fiéis na sua caminhada rumo a ascensão.

Entendemos que o estímulo da Igreja à ascensão sócio – econômica de seus

membros pode ser vista como um impulso simbólico à emigração, saída valorizada na

sociedade local para a melhoria das condições materiais de vida. Para que o conjunto de

práticas e pensamento religioso exerça a função social que pretende, é necessário que esse

seja mais que coerentemente estruturado. A religião tem de ser capaz de inculcar-se na

consciência de seus membros de maneira que os valores preconizados sejam incorporados

como se fossem naturais se transformando assim, em hábitos. Sua eficácia simbólica e social

reside nessa capacidade, pois a religião não justifica a condição humana abstrata, mas a

condição de existência humana socialmente determinada, objetiva. Segundo Bourdieu

O trabalho religioso realizado pelos produtores e porta vozes especializados, investidos do poder, institucional ou não, [devem ser capazes] de responder por meio de um tipo determinado de prática ou discurso a uma categoria particular de necessidades próprias a certos grupos sociais. (2004c, p. 32 - 33).

Assim, o discurso do líder religioso relaciona-se às necessidades práticas de

uma população socialmente desfavorecida ansiosa por adquirir as condições mínimas

necessárias para a elevação do seu nível sócio econômico e a aquisição dos bens valorizados

pelo sistema. Percebe-se que o discurso do líder religioso estimula não só o atendimento das

necessidades objetivas dos seus membros -a melhoria das condições econômicas – mas

valoriza subjetivamente essas demandas. Observemos outra afirmativa do pastor a esse

respeito: “Se você pode ser cabo não seja soldado, se você pode ser sargento não seja cabo.

Se você for uma pessoa justa poderá influenciar positivamente no ambiente em que vive”.

Ao ser argüido sobre a postura da Igreja em relação aos dízimos e ofertas

enviados do exterior pelos emigrantes indocumentados, o pastor afirmou que tal situação

nunca aconteceu na sua Igreja. Mas que a Igreja não aceitaria, caso soubesse que a origem dos

dízimos enviados pelos emigrados ou doados pelos seus familiares que aqui ficaram é fruto do

dinheiro recebido nos EUA com o trabalho de imigrantes ilegais. Porém, Elisa nos afirmou

que faz a doação de ofertas e dízimos do dinheiro enviado pelo seu cônjuge, mesmo sabendo

que a posição da Igreja é contrária a emigração ilegal. No entanto, ela não se constrange em

fazê-lo.

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Entendemos que as Igrejas e as religiões são algo fundamental no sentido de

fornecer aos indivíduos o amparo necessário à angústia característica da fragilidade humana

em relação não só a sua existência subjetiva, mas também objetiva (CAZENUEVE, 2003).

Podemos pensar do ponto de vista da fiel, que existe uma transfiguração do ato econômico

inscrito na prática de doar o dízimo e as ofertas, em ato simbólico. Esse manifesta e confirma

para si mesma, para Deus e para a comunidade religiosa a sua fé e o seu compromisso

religioso que se torna explicito na disposição em doar em troca do que recebe da igreja: o

apóio emocional, psicológico e espiritual de que necessita. Mesmo que o dinheiro doado

provenha de um tipo de trabalho que a Igreja condena enfaticamente, isso, entretanto, não

significa que a entrevistada tenha elaborado de forma clara e consciente a sua ação.

No que diz respeito à agência religiosa, percebe-se que existe um acordo tácito

no aceite do dízimo e das ofertas, sem saber da sua procedência, mesmo que podendo saber,

ou ainda “intuir” de onde vem. Não queremos dizer, entretanto, que o líder entrevistado tenha

refletido objetivamente sobre isso ou ainda, que tenha uma consciência clara da relação que se

estabelece. Bourdieu (2003b) nos chama a atenção para o fato de que ainda que possa existir

um acordo tácito na relação de troca simbólica, o ato não é cínico, ou seja, os envolvidos não

o percebem necessariamente como atos de interesse.

Daí a sua afirmação de que na economia de trocas simbólicas há sempre o

envolvimento de verdades duplas e “difíceis de se manterem unidas”. Essa é uma das

ambigüidades presentes na realidade “uma espécie de contradição entre verdade subjetiva e

realidade objetiva” (BOURDIEU, 2003b p.161). O trabalho de construção simbólica leva a

dissimular a realidade objetiva da prática. Na contemporaneidade, a Igreja para existir precisa

inserir-se racionalmente nesse mundo de trocas e de múltiplas possibilidades.

No que diz respeito aos fiéis emigrados, a Igreja os orienta a manterem “a obra

lá”, ou seja, a devolverem os dízimos e ofertas para as Igrejas que freqüentam nos EUA. “...

nós sugerimos que lá onde ele estiver ele alimente a obra. Ofertas [caso sejam enviadas]

aceitamos, mas nunca aconteceu... Mas se mandarem aceitamos.” (pastor João).

Ao ser perguntado, se na hipótese do emigrado não ser membro da Igreja, mas

deixar como líder de sua família alguém que o seja e, que depende financeiramente das

divisas enviadas do exterior, independente da forma como emigrou, se o membro doa o

dízimo e as ofertas ele afirmou que: “Não tem obrigação, porque só é considerado renda,

quando ela [membro que ficou] trabalha... Fica a critério dela, não é o dever”. Mais uma vez

fica explicitado aqui que, caso o emigrado se disponha a devolver os dízimos e ofertas do

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dinheiro adquirido nos EUA, será aceito. Da mesma forma acontecerá se membro que ficou se

dispuser a fazê-lo.

A emigração de um dos membros da família fragiliza não só a quem vai, mas

também àqueles que ficam. Esses expressam claramente o abatimento e a tristeza que sentem

quando seus parentes emigram. Aparece aqui uma similaridade com a relação estabelecida

entre imigrantes e Igreja nos EUA (MARTES, 1999) e o familiar de emigrante e a Igreja da

qual é membro aqui no Brasil. Perguntamos a Elisa qual era o significado da Igreja para ela,

ela nos afirmou que:

Para mim, depois da viagem dele a Igreja é um dos únicos lugares que eu consigo ir sem muito sofrimento psicológico, era o lugar que agente ia junto. A ida dele foi muito sofrida e quem participou do processo foi o pessoal da igreja. Na época tínhamos um grupo de estudos bíblicos que participou do processo, se interessando pela ida dele, pela chegada lá e na contagem regressiva para a sua volta.

O trecho acima demonstra a importância da Igreja como espaço de

socialização, mas também como um lócus onde se encontra mais do que essa possibilidade. É

o único lugar que Elisa vai “sem muito sofrimento psicológico”. Talvez por que a Igreja seja

um local sagrado onde é possível socializar sem culpa, já que seu parente está fora do país a

trabalho, exerce uma função marginalizada, é indocumentado, enfrenta sozinho uma série de

situações de risco, que o deixam inseguro, numa situação de instabilidade objetiva e subjetiva.

No caso específico de Eliza, a situação assume um contorno importante já que

seu marido emigrou pelo México. A mídia brasileira tem mostrado nos últimos tempos o

quanto é perigoso tentar entrar nos Estados unidos pela fronteira do México. Muitas pessoas

perderam a vida nessa tentativa. Não há a certeza de que se chegará e menos ainda de que se

sobreviverá à passagem. Além do fato de que, a política estadunidense nos últimos tempos é

de repressão aos imigrantes estrangeiros que entraram ilegalmente no país.

Elisa afirmou que a decisão que ela e o marido tomaram acerca da emigração

ocorreu de maneira totalmente independente da Igreja da qual é membro desde 1998. Seu

marido emigrou há três anos e oito meses e ao decidirem pela emigração não consultaram o

líder da Igreja, mas também afirmou que sabia que a Igreja era expressamente contra a

emigração ilegal. Segundo ela:

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Foi uma decisão tomada entre eu e ele. Sem considerar a posição da igreja (...) Ela não exclui [o membro que emigra ilegalmente], mas também não incentiva. Ela sabe que é uma coisa ilegal, mas não incentiva. Não deixa de apoiar a gente como membro e como pessoa.

Somente num mundo secularizado os indivíduos têm a possibilidade de

escolher não só a religião que pretendem seguir como a maneira como irão aderir-se a ela,

abre-se a possibilidade de agir segundo uma autonomia não só racional como emocional. O

indivíduo racionalizado parece não depender tanto quanto antes da moral especificamente

religiosa e da fidelidade a essa moral. Mesmo quando o fiel age em desacordo com as

orientações e regras recebidas da agência religiosa, ele sente-se plenamente capaz de acionar

o sagrado e a agência religiosa, para que legitime o curso de sua vida, ainda que a ação que

rege esse curso não esteja em consonância com o que é moralmente difundido pela Igreja.

Segundo a Elisa a sua participação na Igreja, especialmente após a

emigração do marido tornou-se fundamental para suportar a distância do mesmo. Para ela a

Igreja:

... é um referencial. Ouvindo a palavra, praticando o que é passado [grifo meu]. Se não fosse a Igreja eu estaria muito pior. Não [freqüenta] como fuga, mas como necessidade de busca constante. Até quando agente tá sem forças para ir ao final de semana. Até isso é administrado pela liderança da igreja...

Percebe-se na fala da entrevistada uma simbiose que mescla a importância

espiritual e psicológica como motivação para participar da Igreja. Ao mesmo tempo em que

ela afirma que a Igreja é um “referencial”, fazendo menção à questão espiritual, afirmando

que não freqüenta a Igreja como “fuga”, ela também realça a relevância do apoio recebido

pelo líder religioso nos momentos em que se sente enfraquecida emocional e

psicologicamente.

A fala de Elisa nos remete para o fato de que na atualidade existe a

possibilidade de acionar o sagrado a atuar de maneira a efetivar simbolicamente o desejado

pelo indivíduo. Para Berger (1985, p.38) a religião é um empreendimento humano, através do

qual é criado o cosmo sagrado. Na contemporaneidade, entretanto, esse cosmo se torna cada

vez menos dependente das instituições religiosas. Mesmo buscando nas empresas religiosas

os sentidos para as suas vidas, a segurança em relação às questões cotidianas, as pessoas não

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parecem aderir à religião através de uma fidelidade unívoca. As construções não só das

práticas religiosas, mas os usos que se fazem da religião, se tornam mais independentes.

Sua assertiva demonstra o quanto às religiões perderam a capacidade de

definirem as ações dos sujeitos segundo os seus princípios. Os indivíduos gerenciam a sua

vida independente da visão oficial e institucional da Igreja a que pertencem. Ainda que a

religião seja importante para a construção de sentido e percepção dos indivíduos, esses agem

segundo os seus interesses, mesmo quando esses são contrapostos à regulamentação e ao

controle institucional. Os indivíduos se beneficiam dos sentidos e eficácia oferecidos pela

religião para a resolução dos seus problemas e ao mesmo tempo praticam ações que são

expressamente condenadas pela Igreja.

Da mesma forma acontece com a agência religiosa que se coloca efetivamente

contra a emigração ilegal, mas não desampara os familiares que aqui ficam. A religião é

requisitada através dos grupos de oração e da assistência da liderança, inclusive quando os

projetos para os quais se pretende a oração e a benção, destoam da moral religiosa

preconizada. Mesmo professando a fé, sendo membro de determinada igreja às ações dos

sujeitos não são mais regulamentadas pela instituição, já que burlam as orientações de

conduta oferecidas pela Igreja. Há um afrouxamento do controle, esse só ocorre quando não

se confronta com os projetos individuais.

Essa posição foi expressa na decisão de emigrar tomada por Elisa e seu marido

à revelia da Igreja, de forma particularizada, mesmo professando a fé religiosa, freqüentando

a Igreja, a reconhecendo como um importante espaço de socialização, e exercício de fé desde

antes da emigração do seu marido. Se a religião se mantém como importante na construção de

sentido, esse é agora negociado segundo as necessidades individuais do crente.

Nesse ponto é possível identificar uma certa adaptação da Igreja ao mundo

circundante. O pastor João mesmo não apoiando a emigração ilegal foi contundente em

afirmar que não desampara os seus liderados. Ele continua orientando e orando por aqueles

que emigraram e que ainda o procuram, seja por amizade, ou por necessidade de orientação e

aconselhamento.

Em relação aos que aqui ficaram, a sua postura de amparo é ainda mais

contundente. Elisa nos afirmou o quanto esse apoio tem sido importante para a sua vida,

quando ela se sente muito triste e não vai a Igreja como de costume, o pastor telefona para ela

e / ou a visita. No dia em que seu marido emigrou o pastor João passou boa parte do dia com

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eles orando e os aconselhando. Os amparando psicológica e espiritualmente. A postura do

líder religioso equivale à postura do sacerdote, que segundo Weber (1999a, p. 118 – 119) para

manter-se enquanto tal é necessário adaptar o seu discurso às práticas dos leigos. Ele deve

adequar a “sua doutrina e suas ações ao mundo tradicional dos leigos”. Assim, o pastor age

segundo uma coerência relativa no que diz respeito aos valores que propaga, sem, no entanto

perceber a ambigüidade de sua postura: não apóia a emigração ilegal, mas não deixa de apoiar

os fiéis que decidem emigrar ilegalmente, uma vez que não pode desampará-los é preciso

oferece-lhes os bens simbólicos de que necessitam, como aconselhamento, amizade, oração,

etc.

O pastor João foi enfático ao afirmar que mesmo o estatuto da sua Igreja

prevendo o afastamento do membro que emigrou ilegalmente, esse não é impedido de

freqüentar a Igreja, inclusive na ocasião de sua volta se ele se disser arrependido poderá voltar

a ser membro comungante. Mais um paradoxo aqui se coloca: no retorno ele trás um dinheiro

que foi conseguido de forma ilegal. Porém, isso não será posto em discussão. Ele poderá

continuar na Igreja caso se arrependa, sem ter que se desfazer do dinheiro e / ou bens

adquiridos com o trabalho ilegal. O que é óbvio que não faria, uma vez que a emigração é um

projeto familiar que envolve muito sofrimento; insegurança. É um momento em que Segundo

Siqueira (2006) o indivíduo vive em suspensão, momento de exceção na sua vida, quando o

curso normal da mesma é interrompido na busca de melhorar sua condição material para

depois retomar o curso normal, quando voltar ao país de origem.

Para quem fica o sentimento é o mesmo. Vive-se de aguardar o retorno do

parente. Eliza narrou o seu sofrimento nos seguintes termos:

Primeiro a ausência da companhia dele que para mim não tem preço. Ele faz falta na resolução de todas as pendências domésticas, na administração da casa e das finanças, na criação dos filhos [na realidade são enteados do seu marido]. Os filhos sofreram muito também, ainda que administrem bem a ida do padrasto, não deixam de sofrer.

Diante do exposto acima, percebemos que a Igreja não é só um espaço para

exercitar a fé, mas é um importante suporte para enfrentar a distância do marido, lá as pessoas

são solidárias, estão dispostas a abrir mão do seu tempo para ouvir aquele que precisa.

Segundo Elisa a Igreja:

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Apóia a caminhada espiritual. O pastor é uma das pessoas que desde o primeiro momento da viagem dele [do marido] até hoje me apóia muito. Fim de semana quando não dou conta de ir à igreja porque estou muito triste e depressiva, ele sempre me liga para saber como estou. Ele é o principal, mas tem as pessoas antes mencionadas, os casais do grupo de estudo da época anterior a emigração me dão muito apoio, companheirismo mesmo...

Por fim, Igreja aparece também como espaço importante na afirmação da sua

identidade de mulher casada, segundo Eliza, até hoje ao chegar à Igreja se senta no mesmo

banco que ela e o marido se sentavam antes da emigração dele, ao lado do mesmo casal amigo

desde o tempo anterior à emigração. Aparece aqui uma curiosidade: ao lado de Eliza fica a

sua bolsa, marcando o local onde anteriormente o seu marido se sentava, segundo ela, todos

na Igreja reconhecem o seu gesto como legítimo “ninguém senta no lugar dele, ao meu lado”

um gesto que assume um aspecto ritual no sentido de reafirmação da sua identidade de

casada. Se o marido não está presente fisicamente, à memória da sua existência como marido,

é periodicamente revificada através da reserva do espaço em que ele anteriormente ocupava

ao assistir os cultos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo nos mostrou que a complexidade; a ambigüidade e a contradição da

sociedade em que nos inserimos se manifesta nas várias instâncias de sociabilidade. A relação

estabelecida entre a agência religiosa e a emigração internacional em Governador Valadares

apresenta algumas singularidades importantes. No discurso a Igreja se coloca frontalmente

contra a emigração ilegal, mudou inclusive o seu estatuto que agora tem como prerrogativa a

exclusão do membro que decide pela emigração ilegal. Na prática, porém, legitima a

emigração, uma vez que continua apoiando aquele que emigrou, bem como o fiel que fica.

Reconhece que a emigração não é um problema em si, desde que aconteça legalmente. Aqui

um paradoxo se coloca: ao estimular a ascensão sócio –econômica dos fiéis, numa sociedade

que limita essa possibilidade, ela acaba por estimular simbolicamente a emigração.

Lembremos que essa é uma possibilidade que permeia o imaginário coletivo na sociedade

valadarense. Ao mesmo tempo, tenta regulamentar a ação dos membros no sentido de não

cometerem aquilo que é ilegal, com o qual a Igreja não pode concordar.

O campo da religião é uma esfera social que para efetivar-se socialmente

precisa responder a demandas socialmente demarcadas, assim acaba por adaptar-se à

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realidade onde se insere. O intercâmbio das formas simbólicas ocorre em conexão com a

realidade objetiva e concreta marcada dentre outros, pelas necessidades materiais, numa

sociedade que impossibilita ao indivíduo alcançar a condição material estimulada tanto pela

sociedade e quanto pela agência religiosa. O fiel que se insere nesse contexto lida com as

vicissitudes do mundo real e, acaba por resignificar os valores religiosos difundidos pela

Igreja que freqüenta.

Ele busca e encontra na Igreja um espaço de realização simbólica da sua

condição de crente, lá ele encontra um espaço que o acolhe na fé, mas que também o ampara

diante as inseguranças que a vida o impõe. Mesmo quando a sua decisão confronta

diretamente as normas instituídas pela Igreja que freqüenta. A postura doutrinária da Igreja

nesse caso contradiz a sua ação na prática. O campo social segundo Bourdieu (2000a) é

estruturante na medida em que oferece as normas de conduta a serem seguidas pelos sujeitos e

é estruturado no sentido de que recebe a influencia da sociedade circundante no seu interior.

Como todo campo social precisa abrir-se para efetivar-se, com o campo religioso não é

diferente, a luta que se estabelece dentro do campo o mantém em constante movimento.

Assim, sua postura diante do mundo não raramente é relativizada para adequar-se ao mundo

onde se insere.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RAÇA/ETNIA/NACIONALIDADE: NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS IDENTITÁRIAS ENTRE IMIGRANTES BRASILEIRAS NA REGIÃO DE BOSTON

Cileine Izabel de Lourenço 72

Judith McDonnell73

RESUMO

Este artigo faz parte de um projeto mais amplo que consiste de um estudo sobre políticas identitárias entre imigrantes brasileiras que residem e trabalham na área de Boston. Neste artigo, as autoras questões de gênero, classe social e raça/etnia no contexto da globalização e no das relações de poder entre os Estados Unidos e América Latina e damos atenção especial ao mito da democracia racial no Brasil. Por último, o artigo levanta certas questões, a partir de alguns resultados que as autoras obtiveram no transcurso da pesquisa.

Palavras-chave: Imigração, raça, etnia, gênero, Boston

ABSTRACT

This article is part of a larger research project that consists of a study on the politics of identity among Brazilian immigrant women who live and work in the Boston area . In this article the authors discuss issues related to gender, class, race and ethnicity within the contexts of globalization and power relations between the U.S.A. and Latin America. Special attention is given to the myth of racial democracy and its displacement in the racial perceptions generated by the immigrants. It raises questions based on some of the results the authors obtained throughout their research.

Key-words: Immigration, race, ethnicity, gender, Boston

INTRODUÇÃO

Este artigo faz parte de um projeto mais amplo que consiste de um estudo sobre políticas identitárias entre imigrantes brasileiras que residem e trabalham na área de Boston. O estudo consiste em análises de experiências do dia-a-dia dessas imigrantes e enfoca certos processos de identificação nos quais essas brasileiras tecem, desarticulam e/ou rearticulam políticas identitárias na intersecção entre raça/etnia, gênero e classe social.

Neste artigo, discutimos questões de gênero, classe social e raça/etnia no contexto da globalização e no das relações de poder entre os Estados Unidos e América Latina e damos atenção especial ao mito da democracia racial no Brasil. Por último, levantamos certas questões, a partir de alguns resultados que obtivemos no transcurso da pesquisa, que iniciamos em 2003 e que continuamos a explorar em vários projetos de artigos. A intenção é suscitar um debate que preencha certas lacunae na literatura sobre imigrantes brasileiros nos

72 Cileine Izabel de Lourenço, Ph.D (1998) pela Ohio State University em estudos literários e culturais latino americanos. Professora de Estudos Latino Americanos no Departamento de Inglês e Estudos Culturais da Bryant University, Rhode Island, E.U.A. O eixo central de sua pesquisa e docência tem sido a intersecção entre raça, gênero e classe onde se sobressaltam questões relacionadas à diáspora africana na América Latina e no Caribe. 73 Judith McDonnell, Ph. D. (1990) em sociologia pela Brown University in Rhode Island, é professora de sociologia na Bryant University. Tanto na pesquisa como na docência seus interesses incluem imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, questões de desigualdade de raça, etnia, gênero e classe e injustiça social.

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Estados Unidos e que faça jus a uma longa história de dominação e exclusão de certos agentes sociais tanto em relação aos EUA como a “Nuestra América”.

Uma dessas lacunae é a falta de uma discussão profunda sobre políticas identitárias na intercessão entre gênero, raça/etnia e classe que esteja historicamente radicada e inserida no contexto da globalização e das políticas de dominação dos EUA frente a América Latina e do Brasil perante as demais nações latino-americanas. Também nos parece sumamente importante que tal discussão não perca de vista a questão racial no Brasil, especialmente ao que diz respeito à genealogia do mito da democracia racial e suas conseqüências. O perfil teórico do nosso trabalho é interdisciplinar e se baseia em conceitos partindo da sociologia, etnografia, antropologia, teoria literária, dos feminismos e de estudos culturais. Nossa metodologia inclui questionários, 30 entrevistas de uma hora e meia cada, realizadas entre junho de 2004 a junho de 2005 e um extensivo uso de anotações obtidas durante dois anos de trabalho de campo. O trabalho de campo incluiu participação em festas e observações e conversas informais em restaurantes, igrejas, lojas e salões de beleza freqüentados por brasileiros, além de pesquisa no Brasil em 200574.

Primeiramente, nossa abordagem aqui se restringirá a uma discussão breve e geral sobre gênero e processos de racialização,75 levando-se em conta o papel da globalização, da histórica relação desigual de poder entre os EUA e a América Latina e, mais especificamente, a presença do mito da democracia racial nas políticas identitárias entre brasileiras na área de Boston.

GÊNÊRO E PROCESSOS DE RACIALIZAÇAO

Ao discutir-se construção de identidades em relação à imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, parece-nos imprescindível explorar a fundo questões étnico-raciais na interseção entre gênero e classe, principalmente porque as ocupações que os imigrantes exercem no mercado globalizado são por si mesmas marcadamente racializadas, além de determinadas por gênero e por classe social. Escolhemos estudar apenas as narrativas de mulheres pela posição única e complexa da mulher na participação da globalização. Como na maioria dos fluxos mais recentes para os E.U.A., o de brasileiros conta com um grande contingente de mulheres que migram em busca de uma vida melhor para si e para a família deixada no país de origem. Os empregos produzidos pela globalização são marcados pelas experiências sociais ligadas a gênero, etnia e raça, como por exemplo, as ocupações em limpeza de casa, o emprego predominante das brasileiras na área de Boston.

A economia globalizada gera um processo em que a classe média do primeiro mundo passa a ter mais recursos para pagar serviços como a limpeza de casa, jardinagem, comer em restaurantes, além de outros serviços relacionados à indústria turística. Também com a compressão do tempo e espaço, característica do capitalismo tardio (HARVEY), fica mais acessível as viagens de “managers”, executivos e profissionais que utilizam serviços tais como os de hotéis e de restaurantes. Por outro lado, a emigração de terceiro mundistas oferece uma oferta ampla de mão-de-obra barata. Os deslocamentos, tanto físicos como de valores

74 Queremos agradecer a Bryant Univeristy pela licença outorgada à Cileine de Lourenço para pesquisa no Brasil. Também agradecemos a atenção e assistência de Prof. Dra Petronilha B. Gonçalves e Silva, Prof. Dra Lúcia A. Barbosa e dos estudantes do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos, durante a pesquisa lá realizada. 75 Neologismo derivado do inglês “racialization” utilizado na literatura atual na antropologia, sociologia e nos estudos culturais. É um conceito que se refere a processos que associam construtos sociais raciais baseados em noções hierárquicas que atribuem superioridade e relegam poder de dominação a um grupo social enquanto marca outros com registros de inferioridade e posições de subordinação. Todo processo de “racialização” (impor caráter racial em alguém ou contexto) implica a naturalização da dinâmica entre a superioridade e inferioridade.

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simbólicos, provocados pelos processos sociais, econômicos, demográficos e culturais da globalização, geram então posições racializadas, feminizadas e periféricas para serem ocupadas por mulheres de países descentralizados, cujo papel no contexto global é o de economias de exportação76.

Acentuando essa relação entre gênero e globalização o patriarcado ainda possui certos construtos sociais que estabelecem um compromisso forte entre mulher, domesticidade e maternidade. Historicamente, o patriarcado tem relegado a mulher a espaços privados e domésticos ao passo que ao homem provê espaços públicos, fora do lar. Atualmente ainda predomina a concepção da “naturalidade” que opera fazendo da mulher, por natureza, a responsável principal na criação e cuidados dos filhos e pela manutenção do lar e da família. Sem riscos de cair em essencialismos banais ou totalidades homogeneizantes, pode-se afirmar que a experiência de um grande número de mulheres ainda se encaixa nesse ditame. De acordo com as nossas observações, a experiência de muitas imigrantes sugere um vínculo ainda forte com esse tipo de suposições. Como nos disse Ana, uma das entrevistadas,

Quando o homem sai do Brasil, em muitos casos, ele não sabe nem fazer uma comida. Ele depende da mulher. Ele tem um círculo de amigos lá. Aí quando ele sai, ele se sente perdido e depende mais ainda da mulher aqui. […] No Brasil, a mulher está mais disposta a fazer de tudo p’ra ele. Porque lá ela é dona de casa, mãe, esposa, trabalha fora.

Tanto para a mulher que migra sozinha, deixando os filhos no país de origem, como para as que os trazem consigo, os confrontos do dia-a-dia com a maternidade e a domesticidade fazem desta uma experiência, no mínimo, diferente da do homem77. Como nos relatam Soraya Fleisher e Cristina Braga Martes (1999), no caso das faxineiras brasileiras na região de Boston, muitas se sentem liberadas e orgulhosas de si mesmas por serem bem remuneradas pelo trabalho que fazem. Porém, nos nossos estudos, notamos que essa sensação de liberação, muitas vezes, vem acompanhada de conseqüências nem tão nobres. Muitas delas, além de confrontarem-se com as dificuldades do não-pertencer, de estar em uma terra alheia e longe da família e de trabalhar por volta de 60 horas por semana, - ainda são responsáveis pelo espaço doméstico e cuidam dos filhos e do lar. Neste sentido, a jornada de trabalho dupla as faz ocupar simultaneamente a posição tanto de provedoras de bens materiais, como de sustentadoras (nurturer) da família e do lar. Várias de nossas entrevistadas ilustram suscintamente esta situação. Nas palavras de Paula,

A gente observa as pessoas e a gente pode ver o tanto que as mulheres especialmente precisam de muitas coisas. Elas precisam ser fortes. Elas tem tanto o que fazer, cuidar da casa, limpar, cozinhar, cuidar dos filhos, fazer isso fazer aquilo. […] elas se sentem na obrigação de fazer tudo isso […]

Em termos de classe social e escolaridade, notamos que a população que chegou a área de Boston depois de 1996, na sua maioria, já não se classifica em categorias de classe média e profissional, como a população estudada por Sales78. Em geral, encontramos que vários dos recém-chegados procedem de áreas rurais e são provenientes das classes sociais média- baixa

76 Ver Pierrette Hondagneu-Sotelosobre o papel da globalização na feminização do trabalho. 77 Temos plena consciência de que nem todas as mulheres assumem a maternidade e a domesticidade como algo inerente no seu ser. Também não queremos negar que existem pais que assumem as responsabilidades do criar filhos e da domesticidade. 78 Sales realizou seu trabalho de campo antes de 1996. Ela mostra que a maioria dos brasileiros possuíam nível médio e superior.

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e pobre. Entre nossas entrevistadas não havia nenhuma da classe miserável. Dentro das ocupações exercidas pela maioria das brasileiras na região de Boston, a faxina de residências, escritórios e hotéis é a predominante. No contexto da enorme desigualdade gerada pela globalização, essa ocupação é marcada em termos de gênero e é altamente racializada, além de ser de pouca remuneração. Por exemplo, são raros os homens brancos americanos que se sujeitam a fazer este tipo de trabalho. Também não é comum ver americanas brancas nessa ocupação.

Historicamente, esse tipo de trabalho estava designado às negras e “hispanas”, mas aos poucos as negras estão sendo substituídas e a grande maioria das faxineiras em residências e nos hotéis são brasileiras e “hispanas”. É importante assinalar que, dentro deste quadro da globalização, onde também se encontra a histórica desigualdade entre os Estados Unidos e a América Latina e entre gênero, raça e classe social, as brasileiras de ascendência africana são relegadas a uma posição quatro vezes marginalizada por serem mulheres, negras, imigrantes latinas e pelas ocupações indesejáveis que a maioria dos imigrantes exerce nos Estados Unidos.

Em termos de racialização, a do imigrante brasileiro na região de Boston, infelizmente, se evidencia claramente no discurso de certos grupos americanos que buscam se legitimar através da oposição à imigração ilegal. Na sua grande maioria, os imigrantes normalmente trabalham e moram com outros brasileiros e vivem às margens da sociedade americana e, praticamente, em estado de anonimato devido a não possuírem os documentos necessários que lhes permitem residir e trabalhar legalmente nos Estados Unidos. Porém, em lugares como a cidade de Framingham os imigrantes deixaram de ser uma comunidade totalmente invisível, sendo assim o contrário do que constatou Margolis (1998) na cidade de Nova York há mais de uma década.

Infelizmente, essa visibilidade ofuscada dos brasileiros em Framingham também se reflete na aparição de um grupo de indivíduos, a grande maioria estadunidense branca, que identifica o brasileiro com estereótipos também historicamente atribuídos aos negros americanos e “hispanos”. Freqüentemente, este grupo utiliza os brasileiros como bode expiatório e os acusa de todo tipo de desgraças, desde a falta de empregos para americanos, sujeira na cidade, baixo salário para americanos e até mesmo a predisposição dos brasileiros para o estupro. Esse tipo de discurso se ouve de dirigentes deste grupo que ventilam seus preconceitos e racismo, em jornais locais, em reuniões pública e em um programa local de televisão. Certamente, o comportamento do grupo reflete um processo de racialização que outros grupos latino-americanos e seus descendentes também enfrentaram e ainda enfrentam.

No que diz respeito à auto-percepção etno-racial, encontramos que as brasileiras sentem dificuldades de identificar-se tanto como afro-brasileira como com as “hispanas”, como assinala Martes (2003). Demais, nossos resultados demonstram uma certa consistência com os de algumas antropólogas (Margolis,1998; Martes, 1999; Fleisher, 2000; Sales, 1999; Beserra, 2003) ao revelerem que vários brasileiros, ao responderem o censo e outros formulários, se colocam na categoria de “outro” ao não verem uma categoria “racial” para brasileiros. O imigrante, que já traz consigo noções diferentes das dos estados-unidenses79, com respeito a raça e etnia, também encontram no próprio censo e formulários categorias etno-raciais dúbias com as quais o brasileiro não se identifica. Como nos disse uma entrevistada, “[…] deveriam inventar uma raça para os brasileiros […]” . Também nos mostram Margolis, Sales, Martes e Fleisher que uma das categorias etno-raciais mais rejeitadas pelos brasileiros é a de “Hispanic”.

Nossa pesquisa confirma até certo ponto tal rejeição ao detectarmos nas narrativas de algumas entrevistadas certo desdém e às vezes até mesmo um auto-posicionamento de 79 Preferimos utilizar o termo “estadounidense” ao invés de “americano” sempre que possível por convicções em políticas identitárias que concebem a “América” como um continente e não como o privilégio de uma nação.

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superioridade do brasileiro vis-à-vis ao “hispano”. Por exemplo, quando perguntamos à Olga como ela acha que os brasileiros vêem os “hispanos”, nos diz o seguinte:

Eu acho que [...] eu mesma não tenho preconceito, mas lá em casa [no apartamento em que mora com outros brasileiros], eles não querem nem ouvir falar de “hispanos”.

Por quê?

Não sei. Se eu ligar numa rádio hispana, imediatamente eu escuto, desliga isso aí e se a gente passa perto de um hispano, eles não gostam. Não sei. Eu não ligo, mas… […] Eles dizem que eles [os hispanos] são sujos e que eles são mal educados e problemáticos.

Também confirmamos as observações de Martes (1999) a respeito da preponderância do brasileiro pelo termo “branco” ao invés de “hispano” onde “branco” é “Other”. Segundo a antropóloga, “ os brasileiros percebem a categoria “White” e “Other” como sendo inclusivas, isto é, complementares à identidade nacional do grupo.” (MARTES, 2003, p. 94) Neste mesmo contexto, é importante mencionar que o resultado da nossa pesquisa diverge dos de Oliveira em Miami80, porque, apesar de que alguns dirigentes de organizações comunitárias como por exemplo o Centro do Imigrante Brasileiro situado em Allston, Massashusetts, se unirem à entidades “hispanas” nas lutas por direitos do imigrante, não observamos tal identificação a nível de população. Tanto nas entrevistas como nas conversas informais que tivemos com brasileiros, não há evidência de que os brasileiros sentem que pertencem a uma comunidade hispana.

Algumas justificativas apresentadas para a falta de identificação dos brasileiros com o “hispano”, especialmente os da área de Boston, incluem: a diferença entre classificações étnicas no Brasil e nos EUA. Esta diferença permite certa confusão da parte do imigrante brasileiro, introjeção de estereótipos consumidos na sociedade receptiva, que desencadeiam um desejo de ser diferente e melhor que os “hispanos”, competição por emprego e no trabalho e diferença lingüística (Margolis, 1998; Sales, ano; Fleisher (2000); Martes, 2002; Siqueira e de Lourenço, 2006). Apesar de encontrarmos similaridades entre o nosso estudo e os já mencionados, algumas das justificativas nos parecem insuficientes. Neste sentido, concordamos com Beserra (2003) que relaciona a racialização do brasileiro, e a do latino em geral, com as relações desiguais de poder entre EUA e América Latina81. Em termos étnicos/raciais, talvez a semelhança do processo de racialização dos brasileiros e dos latinos82 de fala espanhola pelos anglo-americanos explique, em parte, a rejeição do brasileiro pela identificação com o “hispano”. Como se sabe, antes do surgimento dos fluxos migratórios de brasileiros para os Estados Unidos, outros grupos originários das áreas que hoje chamamos de América Latina e Caribe já contavam com uma longa, diversa e

80 Os resultados obtidos por Oliveira revelam uma certa vantagem para os imigrantes brasileiros que se identificam com a população hispânica porque, segundo a autora, “ser hispânico em Miami é estar em casa” (em MARTES e FLEISHER, 2002, p. 132) 81 Destacamos aqui o trabalho de Beserra por ser o único a discutir cuidadosamente a relação entre o imperialismo e dominação econômica dos EUA no continente e as políticas identitárias dos imigrantes brasileiros vis-à-vis outros Latinos. 82 Preferimos usar o termo Latino para referir-nos as pessoas que de origem latino-americana que residem nos EUA, inclusive os imigrantes brasileiros. Essa preferência é política já que “hispanic”ou até mesmo “hipano” é um termo de classificação ética imposto pelo governo americano para designar pessoas de origem nas ex-colonias espanholas. Para uma discussão profunda desses conceitos, ver Oboler (1996)

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complexa experiência nos E.U.A. A presença dos mexicanos e dos porto-riquenhos já é centenária e os cubanos e dominicanos começaram a chegar em massa nos anos 60 e ainda hoje continuam desembarcando nas praias do leste dos E.U.A. Entre os grupos mais recentes, destacam-se os mexicanos, que continuam a atravessar a fronteira, hondurenhos, salvadorenhos, guatemaltecos e brasileiros. Todos esses grupos compartem várias experiências históricas, inclusive a conquista e o colonialismo ibéricos que deram origem as suas respectivas nações e que geraram instituições similares em toda a América Latina. Além disso, todas essas nações mantiveram, e ainda mantêm, relações tensas e de subordinação com os Estados Unidos e ocupam uma posição marginal na economia global. Todos esses grupos passaram e ainda passam por processos de racialização similares e, portanto, ocupam uma posição de inferioridade na sociedade americana. Porém, afirmar simplesmente que o fato de que o “Hispano” ocupa um espaço desfavorecido, tanto no imaginário nacional estadunidense, como na própria sociedade, não explica completamente a rejeição do brasileiro pelo “hispano”.

A não-identificação do imigrante brasileiro com o “hispano” também não se explica pela mera introjeção de estereótipos gerados pela sociedade receptora. O que temos de levar em consideração são processos históricos de dominação que geraram e geram posições de inferioridade para serem preenchidas por Latinos através da homogeneização e da subordinação de toda a América Latina ante os Estados Unidos.

Esses processos, que tiveram início com a conquista e decorrente colonização da América pelos Europeus, no caso da posição de superioridade tomada pelos Estados Unidos sobre a América Latina, se exacerba a partir do século XIX com o famoso Manifest Destiny e a Doutrina Monroe. Ambos faziam parte de uma ideologia imperialista expansionista que projetavam e projetam as nações latino-americanas como a barbárie necessitada da ajuda civilizatória e da proteção do Norte. Tal ideologia provenia da visão colonialista européia que legitimou e justificou não só a conquista e a escravidão de povos da Ásia, África, e América como também a colonização e subjulgo dos mesmos por vários séculos. Essa ideologia racista, porém, não ficou apenas na Europa e nos Estados Unidos, pois ela tomou forma especial na América Latina especialmente no século XIX. Por isso, toda discussão sobre políticas identitárias em relação ao imigrante brasileiro, desprovida de uma ponderação sobre o papel do mito da democracia racial, nos parece ser necessariamente insensata.

Historicamente, a elite intelectual da América Latina, que produziu vários homens de estado, a cada passo encontrava dificuldades em explicar o caráter nacional cientificamente, através de teorias européias Darwinistas e positivistas, por não poderem provar o progresso social e a evolução histórica quando seus países eram ex-colônias européias, conjuradas por um amálgama de “raças inferiores”. Afinal, quem determinava os limites da civilização e da modernidade era a Europa e não a América. No Brasil, o ”contingente negro” foi praticamente ignorado até por ocasião da abolição e só veio à superfície mais tarde quando o negro passou a ser um dos três ingredientes (Europeus, índios e negros) utilizados para forjar o mito de origem da nação brasileira, através do processo da mestiçagem. Foi a mestiçagem que respondeu questões sobre o aspecto diferenciador da identidade nacional e que explicou a “inferioridade” do caráter brasileiro ante o processo civilizatório europeu (Ortiz, 1995). No imaginário nacional, tanto brasileiro como de muitas ex-colônias espanholas, a mestiçagem passou a funcionar como um fator mediador nas barganhas entre a civilização européia e o barbarismo americano (leia-se latino-americano). Nos anos 30 do século XX, Gilberto Freyre atribuiu à mestiçagem um aspecto “positivo” ao explicar que essa mistura geraria, pouco a pouco, um povo esbranquiçado e de bom caráter. As teorias de Freyre contribuíram de maneira significativa para a articulação do mito da democracia racial no Brasil, da mesma forma que a “Raza Cósmica” de José de Vasconcelos, no México, e outros

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conceitos raciais igualmente formulados em outros paises latino-americanos de população diversa, davam origem e intensificavam a validade da “mestizaje”83, (Wade). Infelizmente, essa noção de que “somos todos iguais” se propaga ainda hoje dentro e fora do Brasil. Persistente, o mito da democracia racial é um dos principais fatores que atuam na perpetuação de estruturas e instituições etnicamente hierárquicas que buscam condenar o afro-descendente a uma posição de subordinação social, econômica e política. Outro aspecto moroso ainda vigente no Brasil e propagado por emigrantes é o reducionismo das questões raciais à problemas de classe. Junto ao mito da democracia racial esse reducionismo contribui para o indeferimento da discriminação racial, e até mesmo à aparente ausência de aspectos étnicos-raciais na sociedade brasileira. De fato, o classismo tem uma tradição acentuada na sociedade brasileira, porém se faz ainda mais ameaçador quando serve para camuflar o racismo e suas conseqüências perversas. Guimarães explica que reducionismos à classe social se relacionam ao fato de que a grande maioria da população brasileira vive em condições de indigência e que o racismo se disfarça em discriminação de classe pelo fato que o pobre, indigente “não-negro” também é relegado a uma posição de subordinação. Várias das narrativas que estudamos ilustram esse resíduo histórico em que aparecem brechas no discurso onde se dá uma ausência marcada até mesmo de um conceito de raça. Tanto durante nosso trabalho de campo nos Estados Unidos, como no Brasil84 ouvimos com freqüência frases como, “a raça brasileira é complicada” ou “isso já vem da própria raça brasileira”. Isso nos revela que além da confusão entre raça, etnia e nacionalidade, a tendência de homogeneizar a diversidade étnica do Brasil ainda persiste. Ao perguntarmos qual sua raça no Brasil, na maioria das vezes nos deparamos com um silêncio seguido de respostas como a de uma entrevistada que mora na região há 8 anos: “ O que você quer dizer? Eu não entendo a pergunta. Para mim eu era brasileira. Eu não pensava sobre raça naquela época... Eu não sei. Eu era… amarela?” Ao perguntarmos sua raça nos Estados Unidos, a mesma nos responde: Eu não penso muito sobre isso.

Várias imigrantes, depois de demonstrar incerteza e até mesmo certo desconforto com nossa pergunta, nos perguntaram, “como assim, raça?” “o que você quer dizer com raça?” e uma ou outra nos disse que, devido à miscigenação, fica difícil responder a essa pergunta.

Com certeza, essas situações nos remetem ao mito da democracia racial e à mestiçagem que, não somente encobrem a discriminação contra afro-descendentes, como também impedem qualquer tipo de discussão aberta sobre a questão étnico-racial no Brasil. O nosso trabalho de campo e a pesquisa recente no Brasil confirmam nossa suspeita de que muitos brasileiros sentem desconforto e dificuldades para falar sobre raça e que, com freqüência, aparentam não possuir sequer um vocabulário que lhes permita esclarecer os valores simbólicos e sociais fixados nos seus conceitos étnico-raciais.

Os exemplos acima ilustram a “ausência” que se gera pelo poder de uma ideologia da superioridade branca que busca manter-se através da democracia racial e da mestiçagem. Mostram, também, o deslocamento e a reprodução de conceitos étnico-culturais mesmo após considerável contato com os construtores sócio-raciais da sociedade receptora. Essa reprodução não difere das que observamos ainda hoje no Brasil. Nas configurações identitárias, tanto lá como cá, a presença do negro vem marcada pela sua total ausência, o que não somente encobre a discriminação contra afro-descendentes, como também impede qualquer tipo de discussão aberta sobre a questão étnico-racial no Brasil.

83 Para explicações sobre o “mestizaje” na América Latina, leia-se a compilação de ensaios de Applebaum, Macpherson e Rosemblatt (2003). 84 Uma das autoras deste artigo coletou informação no Brasil recentemente.

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Essas ausências tornam impossível o reconhecimento de diferenças raciais e negam a existência e a atuação histórica do negro não apenas no imaginário nacional como também na vivência do dia-a-dia. Ressaltamos que as conseqüências do mito da democracia racial se manifestam inclusive na ausência do negro na maioria dos estudos sobre configurações identiárias nos trabalhos das antropólogas brasileiras já mencionados.

Por outro lado, a rejeição ao “hispano” desvenda uma variedade de entroncamentos complexos alojados nas articulações de identidades no novo ambiente do imigrante brasileiro que se contrapõem às configurações identitárias relacionadas ao negro no Brasil. Freqüentemente, ao insistirmos com a investigação perguntando: “Como você se identifica aqui nos E.U.A., por exemplo, ”hispanic”, branca, negra, Brazilian-American…?” Na sua grande maioria, a resposta toma forma dupla ao nos dizerem que, com certeza, não são “hispanas” e que se sentem brasileiras, respostas também obtidas por Margolis (1998) e Fleisher (2000) entre outros.

Ao perguntarmos porque não se identificam como “Hispanic”, várias nos afirmaram que “… não sou hispana porque falo português e eles falam espanhol.” Algumas adicionaram informação sobre suas percepções ao dizer-nos que os hispanos são diferentes dos brasileiros porque são sujos, preguiçosos, bagunceiros e predispostos a violência. Porém, ao perguntarmos quem são os hispanos, freqüentemente, nos indicaram incerteza e/ou nos afirmaram que são os centro-americanos85. Nesses exemplos confirmamos que, apesar de desconhecer exatamente quem são os hispanos, que além de se apresentar uma possível adoção de estereótipos gerados pelo grupo dominante, descendentes de europeus, nos Estados Unidos, em referência ao latino, também existe um potencial deslocamento de um paradigma descritivo em relação ao negro no Brasil que, quando utilizado na área de Boston, passa a caracterizar os “hispanos”.

Contudo, as respostas revelam que ao construírem seu “Outro” no “hispano”, existe pelo menos um reconhecimento da presença do “hispano” nos processos identitários. Isso implica um reconhecimento tanto da diferença como da semelhança. É mais fácil para essas brasileiras se identificarem com a imagem que geram do “hispano” porque vêem nela um pouco de si mesmas. Ao contrário do processo identitário com o “hispano”, a presença do negro se dá pela ausência em um processo que sequer reconhece a existência de um “Outro”. Esta comparação nos remete outra vez ao poder exercido pela mestiçagem e pelo mito da democracia racial que continua a negar a diferença e a desigualdade entre negros e brancos até mesmo em um país “receptor” onde a fronteira entre brancos e negros é, marcadament,e visível e constantemente reforçada.

CONCLUSÃO

Para concluir, notamos que apesar de existir interesse acadêmico enfocado em articulações identitárias entre imigrantes brasileiros nos Estados Unidos, uma discussão mais profunda sobre o assunto, onde se ampliem as fronteiras para incluir no debate a questão étnica-racial, além da descrição das percepções de brasileiros sobre outros latinos, ainda se faz necessária. Assim sendo, propomos uma discussão mais inclusa, onde também apareçam colocações que demonstrem uma análise mais minuciosa de relações de poder no contexto da globalização e no das relações entre Estados Unidos e a América Latina, e que leve em consideração, também, o mito da democracia racial no Brasil.

85 Mais detalhes em Siqueira e de Lourenço.

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No que diz respeito a gênero, fica claro que a posição da imigrante brasileira no contexto da globalização é duplamente marginalizada uma vez que ela, não só executa trabalhos tradicionalmente relegados ao seu gênero e a seres humanos vistos como de segunda categoria, como também se vê na obrigação de cuidar dos afazeres do lar e de fazer o papel de nurturer da família tanto “aqui” como “la”.

Os resultados apresentados neste artigo em relação as percepções dos outros latinos, forjadas por nossas entrevistadas, nos levam a concluir que, em alguns casos, pode se dar uma transposição de um paradigma de percepções existentes no Brasil sobre o negro que no novo contexto se desloca e define os “hispanos”. Afirmamos que a identificação do “hispano” como inferior também vem a ser o resultado de uma longa história de dominação, primeiro européia e depois estadunidense, sobre a América Latina. Em comparação, a questão racial branco-negro na maioria dos casos se resolve através da invisibilidade do negro, ou seja, pela total ausência de qualquer registro que possa fazer possível a auto-identificação da entrevistada como negra.

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ESTRANGEIROS EM SEU PRÓPRIO PAÍS

Alpeniano Silva Filho86 RESUMO

A emigração de valadarenses para países estrangeiros, especialmente para os Estados Unidos, ganha espaço na imprensa sempre que acontece um fato relevante, como a deportação de emigrantes. No entanto, alguns os fatos relacionados à emigração que são transformados em notícia, chegam ao receptor de forma distorcida, fruto de apurações mal feitas, sem contextualização, ou com conteúdo opinativo, que traçam um perfil inverossímel da cidade de Governador Valadares e dos valadarenses.

Palavras chave: Emigração, mídia, notícia, preconceito.

ABSTRACT The emigration of “valadarenses” for foreign countries, specially to United States of America is emphasized when some interesting fact happen, like the deportation of emigrants. However, some facts about emigration that became news, are passed with wrong information, or because they weren’t well written and they are out of context, or because the express the opinion of the journalist or publisher. These facts show an unreal profile of Governador Valadares and “valadarenses”.

Key words: Emigration, media, news, preconception

1.0 – INTRODUÇÃO A emigração de valadarenses para países estrangeiros, especialmente para os Estados

Unidos, é assunto pautado com freqüência pelos editores dos grandes jornais e revistas do país. As abordagens da grande imprensa sobre as relações de Governador Valadares com os Estados Unidos quase sempre desagradam os valadarenses, que são vistos com desconfiança por causa das inúmeras tentativas que fazem para entrar legal ou ilegalmente em território norte-americano. Nas reportagens, matérias e artigos sobre o assunto, os jornalistas adotam abordagens irônicas ou opinativas, quase sempre com erros de apuração, que influenciam negativamente o conteúdo do material produzido. Parte-se da hipótese de que este material repassa ao público informações distorcidas ou inverossímeis sobre Governador Valadares, sua população e o processo migratório que os envolve. Quais os fatores que determinam a angulação das matérias sobre a emigração de valadarenses para os Estados Unidos? As matérias analisadas ferem os princípios do fazer jornalístico? Neste artigo, a intenção é responder estas questões através de uma análise de conteúdo que discute a objetividade jornalística, a construção da imagem de Governador Valadares pela mídia e a teoria do newsmaking.

2.0 – ESTRANGEIROS NA MÍDIA

Desde a década de 1980, quando a migração de moradores de Governador Valadares para os Estados Unidos começou a se intensificar, os fatos relacionados a este fluxo migratório ganharam maior visibilidade na imprensa, não só no âmbito local, mas também no âmbito nacional. No entanto, nem sempre estes fatos, quando reportados, contextualizam a emigração com a história da cidade e as razões pelos quais os valadarenses migram. Para

86 Jornalista, especialista em Metodologia do Ensino pela Universidade Vale do Rio Doce, professor do curso de Jornalismo da Univale.

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compreender a emigração, é necessário compreender como este fato social ganha visibilidade na esfera midiática, mais especificamente na imprensa, e observar como a imprensa trata a questão da emigração de valadarenses para os Estados Unidos. Nesta observação, é de suma importância compreender o fazer jornalístico, partindo da compreensão de que o jornalismo deve ser entendido como uma atividade que, ao contrário da suposta objetividade, interfere na construção social da realidade, seja agendando temas, seja expondo visões sobre culturas, como acontece com a cobertura feita em relação a emigração de valadarenses para os Estados Unidos.

Os editores dos grandes jornais e revistas do Brasil, pautam com freqüência os assuntos relacionados à conexão Governador Valadares/Estados Unidos, quando envolvem a emigração ilegal, a falsificação de vistos consulares nos passaportes e a deportação de emigrantes presos pelas autoridades americanas.

As notícias acerca destes fatos constroem a imagem de Governador Valadares e de seus habitantes de uma forma que exige uma reflexão. A construção desta imagem, quase sempre sem levar em consideração os aspectos históricos e sociológicos que determinam a emigração, acaba privando a opinião pública de informações que poderiam estabelecer um contraponto entre a causa e meio, algo que, em princípio, define-se entre o bem e o mal, o certo ou o errado.

No artigo “A construção do estrangeiro pela mídia”, Arbex Júnior (1998) discute o problema e levanta questões sobre a forma como a mídia constrói a imagem do estrangeiro. Para ele, a sociedade entende o estrangeiro como o “outro”. O artigo discute a abordagem da mídia internacional sobre a guerra civil na antiga Iugoslávia pela mídia internacional, que estabeleceu o lado bom e o lado mau da guerra. Os sérvios foram eleitos, à revelia, o lado mau. O autor diz que o leitor medianamente interessado na cobertura da guerra foi convidado a identificar-se com croatas e muçulmanos na mesma proporção em que foi levado a reconhecer nos sérvios o lado escuro e bárbaro da guerra.

Para chegar a esta conclusão, Arbex Júnior apresenta um estudo desenvolvido por Peter Brock, editor de projetos especiais do jornal Herald Post de El Paso, e especialista em questões da Iugoslávia e do Leste europeu, que trata das distorções na cobertura feita pela mídia internacional.

Neste estudo de Peter Brock, no dia 17 de agosto de 1992, a foto de capa da revista Times, extraída de uma reportagem da televisão britânica, mostra um homem sorridente, esquelético e descrito com um dos “prisioneiros muçulmanos num campo de concentração da Sérvia”.

Na realidade, o homem era sérvio, seu nome era Slobodan Konjevic, 37 anos, que junto com seu irmão Zoran, de 41 anos, tinha sido preso sob a acusação da prática de saque. Em 1992, a BBC filmou um homem bastante velho, que supostamente era um bósnio muçulmano, prisioneiro de guerra num campo de concentração da Sérvia. Mas o homem posteriormente foi identificado por seus parentes como um bósnio sérvio, chamado Branko Velec, oficial aposentado do Exército da antiga Iugoslávia e detido num campo de concentração muçulmano.

Na sua edição de 4 de janeiro de 1993, a revista Newsweek publicou a foto de vários cadáveres que ilustrava um texto em que se perguntava: “Haverá alguma maneira de interromper as atrocidades dos sérvios na Bósnia?” Na realidade, a foto era de sérvios vitimados por seus inimigos, incluindo um homem claramente identificado por seu uniforme vermelho.

A partir deste estudo, Arbex Junior (1998), contextualiza a forma como a mídia reportou os fatos relacionados aos conflitos entre bósnios e sérvios, com a forma que a imprensa e a sociedade brasileira constrói a imagem do estrangeiro em seu próprio país, considerando que no “Brasil da elite branca”, estrangeiro é o “negro”, o “nordestino”, o

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“baiano”. O estrangeiro, em seus estudos, é a representação daquilo que não sou (Arbex Júnior 1998, p.17).

3.0 – OBJETIVIDADE JORNALÍSTICA

A partir destas questões fica evidente que a objetividade jornalística é vista como um “mito”, uma “construção ideológica”, uma “estratégia mercadológica”. Barros Filho (1995) faz uma discussão da objetividade como discurso. Segundo o autor, se “objetividade” informativa enquanto representação (jornalisticamente interessada) do jornal ideal vem sendo preconizada como regra deontológica não só por profissionais da ética87, mas também por jornalistas profissionais. São cada vez mais numerosos os que a consideram impossível e até mesmo prejudicial.

Emil Dovifar (apud BARROS FILHO, 1995) observa, em seu livro Periodismo, que a notícia “é uma comunicação controlada e dirigida”. Sustenta que o jornal informará o melhor que possa, não sendo objetivamente verdadeiro, mas subjetivamente verossímil. Defende a inviabilidade de um jornal puramente objetivo. Para ele, um jornal puramente objetivo ou não seria lido por ninguém ou se desmoronaria no primeiro erro de cálculo. Dovifar vai mais longe, enfatizando que a pretensão de objetividade nunca chegará a ajustar-se à autenticidade objetiva.

Reconhecida a imperfeição intrínseca ao processo comunicacional, e aceita a “objetividade informativa” como tendencial, os autores, ao avaliar essa tendência, ora enfatizam as características do produto mediático, ora consideram que a “objetividade informativa” não pode ser avaliada pelo produto e sim pelo procedimento ou intenção do seu autor.

A objetividade como um tipo de mensagem se confunde com o próprio conceito de “informação”. A noção de informação, como a de comunicação, é passível de múltiplas abordagens, como contornos pouco precisos. A confusão persiste quando os autores se propõem a estabelecer as diferenças entre os dois conceitos. O termo informação, em português, é polissêmico, apresentado pelo menos três significados distintos: os dados (de um certo problema ou da informática – data), as notícias jornalísticas (news) e o saber de uma forma geral (knowledge). (BARROS FILHO, 1995, p.34)

A restrição da informação ao conteúdo do ato de comunicação fundamenta a análise de

muitos autores. A idéia de diferenciar comunicação como processo, relação e forma de informação (conteúdo transmitido) assegura a quantificação da informação e permite mensurar a objetividade. O autor esclarece que essa visão é hoje fortemente criticada, como veremos a seguir. Assim, se a comunicação advém da intersubjetividade (processo entre sujeitos), a informação se instituiria em relação ao real. A instituição da objetividade no espaço simbólico da comunicação se traduz na quantificação da informação, ou seja, na ênfase em seu conteúdo.

4.0 - AS ROTINAS DE PRODUÇÃO E A CULTURA PROFISSIONAL DOS JORNALISTAS

A cobertura que muitos meios de comunicação fazem sobre a emigração de valadarenses para os Estados Unidos acaba caindo na superficialidade e na distorção de dados e fatos. Muitas vezes, os repórteres escalados para fazer a matéria ficam durante poucas horas na cidade, outros apuram a matéria por telefone, coletando dados de forma rápida, sem ter

87 Vendedores mais ou menos circunstanciais do “dever-se” jornalístico a compradores variados como escolas, jornais, associações etc.

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tempo de checar as informações. Este procedimento resulta em reportagens com dados equivocados e visões distorcidas da realidade.

Wolf (1999), ao discutir as tendências contemporâneas da comunicação e do jornalismo, trabalha com a teoria do newsmaking, que procura explicar o fazer jornalístico a partir das rotinas de produção e da própria cultura profissional dos jornalistas, fatores que também servem para colocar em questionamento a objetividade jornalística e a veracidade das notícias veiculadas pela imprensa.

O julgamento sobre o que deve ser notícia ou não é algo que se evidencia nas redações dos jornais a cada dia. Os editores fazem uma triagem dos fatos e elegem aqueles que no seu modo de ver e pensar, será pautado com a notícia do dia. Os outros, não escolhidos, são condenados a inexistência social. De acordo com Erbolato (1991), os principais critérios de noticiabilidade são: a) proximidade; b) marco geográfico; c) impacto; d) proeminência – personalidades; e) aventura e conflito; f) conseqüências; g) humor; h) raridade; i) progresso; j) interesse humano; l) importância; m) rivalidade; n) política editorial do jornal; o) utilidade; p) oportunidade; q) culto de heróis; r) descobertas e invenções; s) repercussão.

A abordagem do newsmaking articula-se dentro de dois limites: a cultura profissional dos jornalistas e a organização dos trabalhos e dos processos produtivos num jornal ou emissora de televisão.

Wolf (1999) explica que os critérios de noticiabilidade estão estreitamente ligados aos processos de rotinização e de estandardização das práticas produtivas dos meios de comunicação. Nesse sentido, a definição de noticiabilidade liga-se ao conceito de perspectiva-da-notícia, que é a resposta que o órgão de informação dá à questão que domina a atividade dos jornalistas: quais os fatos cotidianos que são importantes e devem virar notícia?

Contrariando os princípios de que o jornalismo retrata fielmente a realidade, Wolf (1999), com base nestas novas tendências da comunicação, explica que as notícias são aquilo que os jornalistas definem como tal, ou seja, a notícia é o produto de um processo organizado que implica uma perspectiva prática dos acontecimentos, perspectiva essa que tem por objetivo reuni-los, fornecer avaliações, simples e diretas, acerca de suas relações, e fazê-lo de modo a entreter os espectadores/leitores. A definição e a escolha daquilo que é noticiável são sempre orientadas pragmaticamente, isto é, em primeiro lugar, para o que é mais factível, o que pode virar produto informativo no tempo possível e com recursos limitados.

Em decorrência das rotinas produtivas, o fazer jornalístico vai ser marcado pela fragmentação da informação. Segundo Wolf (1999), o conjunto de fatores que determina a noticiabilidade dos acontecimentos permite efetuar cotidianamente, a cobertura informativa, mas dificulta o aprofundamento e a compreensão de muitos aspectos significativos dos fatos apresentados como notícias. A noticiabilidade, dentro desta visão, constitui um elemento da distorção involuntária contida na cobertura informativa dos mass media. Isso significa que os critérios de relevância são, por um lado, flexíveis e variáveis quanto à mudança de certos parâmetros e, por outro, são sempre considerados em relação à forma de operar do organismo que faz a informação.

Definida a noticiabilidade como o conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, entre os quais há que selecionar as notícias, pode-se definir os valores/notícia como um componente da noticiabilidade. Esses valores constituem a resposta à pergunta: quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias? Como explica Wolf (1999), os valores/notícia operam de uma maneira peculiar, ou seja, a seleção das notícias é um processo de decisão e de escolhas realizadas rapidamente. Os critérios devem ser fácil e rapidamente aplicáveis, de forma que as escolhas possam ser feitas sem demasiada reflexão.

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5.0 – A EMIGRAÇÃO NA MÍDIA A cobertura jornalística da grande imprensa sobre a emigração valadarense para países

estrangeiros, especialmente para os Estados Unidos, no período compreendido entre 1993 e 1995, teve um grande volume de matérias, reportagens e artigos, tendo em vista alguns fatos da época que ganharam repercussão nacional, como a deportação de um grupo de brasileiros pelo governo português e de um outro grupo de 66 mineiros da região de Governador Valadares pelo governo dos Estados Unidos. No artigo intitulado Crise de amor próprio, publicado na Folha de S. Paulo no 31 de janeiro de 1993, o jornalista Josias de Souza constrói a imagem de Governador Valadares e dos valadarenses de uma forma que pode ser analisada a partir das idéias trabalhadas por Arbex Júnior. Ao analisar um episódio acontecido em Portugal, em 1993, quando um grupo de emigrantes valadarenses foi deportado pelas autoridades portuguesas tentando entrar naquele país, o articulista da Folha de S. Paulo descreveu na abertura do seu artigo uma imagem deturpada de Governador Valadares e dos valadarenses.

Se tivesse um amigo ou parente nascido em Governador Valadares juro que o olharia de esguelha. Se me telefonasse manifestando o desejo de conhecer Brasília, suspeitaria no ato. Se dissesse que gostaria de passar uns dias na minha casa, inventaria uma desculpa. Se batesse à minha porta, olharia pelo olho mágico e me fingiria de morto. Abrir, nem pensar. Com mineiro de Governador Valadares não se brinca. Sabia-se que tinham uma quedinha pelos Estados Unidos. Descobre-se agora que alguns querem adotar Portugal. Barrados pela aduana portuguesa, oito deles desembarcaram sexta-feira no Rio. Três admitiram que pretendiam arrumar um empreguinho em terras dos descobridores. Tinham visto de turista e viveriam como clandestinos (SOUZA, 1993).

Nos dois primeiros parágrafos de seu artigo, Souza (1993) construiu uma imagem aterradora de Governador Valadares e dos valadarenses, transmitindo um sentimento xenofobista. O jornalista repassa aos leitores da Folha de S. Paulo um conceito pré-concebido dos valadarenses. A opinião é resultado da rotina produtiva que resulta na fragmentação da informação, conforme relato de Wolf (1999). Ao escrever o artigo na redação da Sucursal da Folha de S. Paulo, em Brasília, e ter demonstrado desconhecimento em relação aos fatos históricos e econômicos de Governador Valadares, que geraram a emigração, Souza (1993) acaba emitindo opinião de total aversão aos valadarenses. Fazendo uma análise a partir dos princípios do fazer jornalístico, constata-se que a opinião explícita toma lugar do informativo.

A exemplo do que aconteceu na cobertura jornalística da Guerra na Iugoslávia, quando a mídia internacional criou uma visão maniqueísta dos fatos, elegendo o lado bom e mau no confronto entre Sérvios e Croatas, conforme descrição de Arbex Júnior (1998), o artigo de Souza (1993) elegeu os valadarenses como o lado mau da emigração de brasileiros para países estrangeiros. A opinião impactante e corajosa relacionada a Governador Valadares e os valadarenses, mostra um jornalismo opinativo que vende notícia dentro de uma lógica dicotômica e maniqueísta. É também uma opinião formada em descompasso com as razões históricas que levam os valadarenses aos caminhos da emigração. Em um dos parágrafos do seu artigo, Souza descreve:

É de impressionar que um cidadão saia de seu país, atravesse o oceano, para disputar o mercado de subemprego em nação estrangeira. Há casos de pessoas com formação universitária. Aqui, se não encontram emprego qualificado, danam a falar mal da vida. Lá fora, aceitam de tudo. Carregam mala, equilibram bandeja, lavam pratos etc. Nos Estados Unidos, há quem lave defuntos sem piar. Pergunte-se a qualquer um deles se valeu a pena e dirão que sim( SOUZA, 1993,1).

Ao escrever o trecho acima, Souza (1993) mostra desconhecimento das razões históricas que determinam as causas da emigração de valadarenses para países estrangeiros.

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Sem o conhecimento necessário sobre o assunto do qual emite sua opinião, Souza se espanta com a determinação dos valadarenses em migrar.

Nos critérios de noticiabilidade, listados por Erbolato (1991), estão o humor e a raridade, elementos que parecem ter motivado a escolha da pauta de uma matéria publicada na revista IstoÉ, em sua edição de 6 de outubro de 1993, um ano antes da Copa do Mundo de Futebol, realizada nos Estados Unidos. O humor está presente no texto a partir do título Uai not?, que é uma paródia com a expressão “Why not?” (Por que não?), na qual o “Why” é trocado pelo “Uai” de mineiro. No subtítulo, mais uma dose de humor: “Turistas de Governador Valadares vão torcer na Copa. Para ficar nos EUA.” A matéria confere aos torcedores valadarenses uma característica atípica, afinal a paixão pelo futebol da Seleção Brasileira, conforme sugere a matéria, inexiste em Governador Valadares, ou existe, movido por interesses não relacionados ao futebol, fato raro, inusitado, que atende a mais um critério de noticiabilidade.

O Brasil vai à Copa em 94 e ninguém vibrou mais com os fantásticos gols de Romário do que a torcida de Governador Valadares, essa cidade afastada 500 km de Belo Horizonte, muito popular no consulado americano no Rio. Aqueles dribles irreverentes garantiram o pontapé inicial da “Conexão Copa”, um plano para entrar nos Estados Unidos como torcedor e ficar por lá vivendo de bicos. Os valadarenses prometem bater um bolão com passaportes e vistos falsificados. Afinal, ir e ficar nos EUA é a principal atividade econômica do município (VITÓRIA e AFONSO, 1993, p.35).

O leitor da Isto É foi privado de informações corretas neste trecho da reportagem, apresentando um texto que contraria a objetividade jornalística e a veracidade dos fatos. Governador Valadares localiza-se na região Leste de Minas Gerais e está distante 320 quilômetros de Belo Horizonte, e não no Norte de Minas, a 500 quilômetros da capital mineira. Também é questionável afirmar que a intensidade da vibração da torcida brasileira com os gols de Romário foi maior em Governador Valadares. Tendo como base os critérios da objetividade jornalística, como medir intensidade da vibração? A atividade econômica de Governador Valadares não pode ser atribuída ao fato de ir e ficar nos Estados Unidos, mesmo porque a emigração não é atividade econômica e sim um fenômeno mais amplo, que incorpora não só o econômico, mas principalmente o aspecto social. Abdelmalek Sayad diz que a migração é, em primeiro lugar, um deslocamento de pessoas no espaço. Os fluxos migratórios, de acordo com Sales (1999), são fortemente influenciados pelas redes sociais. Estes fluxos constituem um fenômeno global. A comunidade de brasileiros nos EUA é uma das menores se comparada aos hispânicos, portugueses, chineses e outros povos. Além disso, a emigração dos países periféricos para os mais ricos é um fenômeno mundial e não apenas de brasileiros, menos ainda de valadarenses. Vale ressaltar que o fluxo migratório começou em Governador Valadares, mas atualmente, atinge a outras cidades e regiões do sul de do sudeste do Brasil.

Esses cidadãos do norte de Minas arranjam qualquer jeito para pisar na América. Se

precisar até pulam de pára-quedas, como aconteceu com dois brasileiros mais desvairados. Prova contundente e malemolente dessa preferência é a vasta colônia de mais de 10 mil patrícios valadarenses espalhada por Nova Jersey, Nova York e Boston. (VITÓRIA e AFONSO, 1993, p.36)

Outra informação equivocada está contida neste trecho da reportagem da revista Isto

É. Esses cidadãos do norte de Minas não podem ser os valadarenses, que na verdade, são cidadãos do leste de Minas. A notícia ganha contornos de suposição de uma imaginação fértil das repórteres, supondo que a ousadia dos valadarenses para entrar em território norte americano levaria a utilização de pára-quedas.

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Na reportagem intitulada “Bye Bye Brasil”, publicada na revista Os caminhos da terra, em 20 de dezembro de 1993, o repórter Geraldo Hasse, enviado especial da revista à Governador Valadares, permaneceu pouco tempo na cidade, tentando buscar identificações entre a cultura valadarense e a cultura norte-americana.88 Chegou até mesmo a distorcer essas identificações, repassando aos leitores de sua revista informações históricas e geográficas completamente deturpadas. Isto pode ser explicado até mesmo pela teoria do newsmaking, em que as rotinas de produção, o pouco tempo de apuração, podem afetar o resultado final da matéria, contrariando os princípios de que o jornalismo é a retratação fiel e objetiva da realidade.

O vínculo dos valadarenses com os americanos é antigo. Nasceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando se instalou na cidade uma empresa ianque com uma única missão: comprar mica (um minério empregado como isolante) para o Exército dos Estados Unidos (HASSE, 1993).

A informação colocada na reportagem a respeito do vínculo dos valadarenses com os norte-americanos é sem consistência. Qual a empresa ianque que se instalou na cidade com a missão de comprar mica?

Na reportagem da revista Os caminhos da terra,89 outras informações equivocadas que revelam o total desconhecimento da história do município, do Brasil e de aspectos primários da geografia mundial estão contidas neste trecho da matéria.

O ímpeto extrativista de Valadares também fez desaparecer na década de 70 as últimas manchas de uma floresta rica em madeiras como o Jacarandá. No seu lugar foram plantados pastos, agora em decadência. Não fosse essa estranha vocação para colocar gente no mercado americano, o destino de Valadares seria ser mais uma pequena estação de trem no caminho do minério de Itabira. Mas os americanos contratados na década de 40 para reformar a EFVM influíram tanto na cidade que: 1)Até hoje Valadares mantém um serviço de saúde pública criado pelos gringos; 2)Valadares é uma cidade protestante, com mais de 50 tempos evangélicos; 3)Um dos maiores clubes locais é a Sociedade Recreativa Filadélfia, que homenageia o estado norte-americano onde viveu Teófilo Otoni, colonizador do Leste de Minas. (HASSE, 1993, p.26)

Buscando dados sobre as conclusões expostas pelo jornalista Hasse, constatam-se muitos equívocos que ferem a correta apuração e divulgação jornalística. Primeiramente, é preciso retificar a informação sobre Teófilo Otoni, que fundou Filadélfia, lugarejo que deu origem a cidade de Teófilo Otoni, localizada na região Nordeste de Minas. Teófilo Otoni90

88 - De acordo com informações do jornalista valadarense Marcondes Tedesco (1993), o jornalista Geraldo Hasse permaneceu apenas um final de semana para apuração da matéria publicada na revista. 89 - A revista Os caminhos da terra é editada pela Editora Peixes, com circulação mensal e distribuição em todo o território brasileira. Sua linha editorial é voltada para o turismo e a geografia de diversas regiões do Brasil e do exterior. 90 - Nascido no Serro, em 27 de novembro de 1807, Teófilo Benedito Otoni teve formação técnica na Marinha, ingressando na política em 1835, quando elegeu-se deputado pela Assembléia Provincial e lutava pela manutenção de importantes conquistas liberais como, por exemplo, maior descentralização do poder (Fundação João Pinheiro, 1993, “A colonização alemã no Vale do Mucuri”, Página 27). Em suas propostas, encontram-se vários traços de racionalidade capitalista, tendo sido um homem de visão bastante progressista para a época. O Vale do Jequitinhonha, região onde nasceu, poderia ter ligação com o mar, por um caminho que atravessasse a Bacia do Mucuri. Esta região fazia parte da Mata Atlântica e necessitava, em primeiro lugar, ser desbravada e povoada, para, então, integrar-se economicamente à Província. Em 1847, Teófilo Otoni fundou a Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri, com capital aberto, contando com apoio dos governos Imperial e Provincial (Fundação João Pinheiro, 1993, “A colonização alemã no Vale do Mucuri”, p. 28). De posse da resolução imperial e dos privilégios, o primeiro trabalho empreendido pela companhia foi a desobstrução do rio Mucuri que, ao contrário do que se imaginava, não era navegável em toda a sua extensão. A Companhia, que objetivava o comércio por via fluvial, foi obrigada a construir a estrada ligando Santa Clara, na divisa de Minas

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não colonizou o leste de Minas nem viveu no “estado norte-americano da Filadélfia. Filadélfia” é o nome da cidade norte-americana, localizada no estado da Pensylvannia. Um outro equívoco do repórter Hasse é afirmar que Governador Valadares é uma cidade protestante por causa dos mais de 50 templos evangélicos existentes na cidade, não é correto. O Reverendo Adão Carlos Nascimento,91 da Primeira Igreja Presbiteriana de Governador Valadares, diz que o fato de Governador Valadares ter mais de 50 templos evangélicos não significa a cidade seja evangélica. Ele esclarece que antes mesmo dos primeiros norte-americanos virem para Governador Valadares comprar mica ou trabalhar na reconstrução da Estrada de Ferro Vitória Minas, a família Cabral, pioneira da cidade, fundou a Primeira Igreja Presbiteriana e a partir daí surgiram novos templos protestantes, de outras denominações como Batista, Assembléia de Deus, Metodista, dentre outras, sem que houvesse relação desta expansão com a influência de norte-americanos. Os Cabral, de acordo com o Reverendo Adão Carlos, também foram os fundadores do clube Sociedade Recreativa Filadélfia. O nome, de origem grega, significa “amor fraternal”. O Reverendo Adão Carlos diz que os Cabral queriam que a cidade tivesse um clube social no qual as pessoas convivessem em clima de harmonia e fraternidade.

Numa outra matéria, publicada na capa do caderno Cotidiano, de 8 de outubro de1993, do jornal Folha de S. Paulo, a informação sobre o período de início da migração de valadarenses para os Estados Unidos foi colocado como ocorrido na década de 40. Soares (1995) descreve que o fluxo migratório de valadarenses para os Estados Unidos tem início nos anos 60. Descreve (citando Sales, 1992, p.51) que o período pós-Segunda Guerra Mundial inaugura um novo tipo de migrações internacionais, provocadas pela necessidade de mão-de-obra dos países de destino dos fluxos migratórios. São os Guest Work Programs implementados na Alemanha, Suíça ou França, ou o Bracero Program, nos Estados Unidos, ou até as migrações espontâneas de trabalhadores do Cone Sul na América Latina em direção à Argentina, cuja economia estava em pleno crescimento naquela ocasião. Nesse mesmo apogeu do pós-guerra, o Brasil esteve ausente dessa dinâmica migratória internacional, sustentando a expansão territorial do Centro-Sul do país com afluxo de mão-de-obra da região nordeste. A realidade desse período pós-guerra atingiu a cidade, portanto, recentemente, quando Governador Valadares passou a exportar trabalhadores para outros países, ao impacto de uma brutal recessão econômica que marcou toda a década de 1980.

Fuga para exterior é usual na cidade. O município de Governador Valadares (a 310 quilômetros de Belo Horizonte) transformou-se em um dos maiores exportadores de mão-de-obra do país. Os habitantes da cidade têm se aventurado no exterior em busca de oportunidades de trabalho desde a década de 40 (Folha de S.Paulo, 08 de outubro de 1993).

No parágrafo abaixo, escrito por Hasse (1993) em um box de sua reportagem para a revista Os caminhos da terra, fica caracterizado a forma pejorativa como o fluxo migratório dos valadarenses é tratado. O termo “Conexão Caipira” é adotado porque Governador Valadares é uma cidade do interior de Minas Gerais. Um fluxo migratório idêntico, desenvolvido em outra grande cidade brasileira, talvez não recebesse a adjetivação. No mesmo parágrafo, ao citar que nove entre dez habitantes de Governador Valadares tem parentes nos Estados Unidos, o repórter, em sua rotina de apurar rapidamente uma reportagem, característica do fazer jornalístico, não informa a fonte da pesquisa que sustenta sua afirmação. Supõe que o décimo já está lá, juntando dólares e incentivando os amigos a ir também.

com Bahia, ao ponto considerado estratégico para as suas operações, meio caminho até a Vila de Minas Novas. Ali foi fundado o povoado de Filadélfia, atual Teófilo Otoni, como ponto central de suas atividades. 91 - O Reverendo Adão Carlos Nascimento prestou estes esclarecimentos em entrevista concedida em outubro de 2000.

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A CONEXÃO CAIPIRA – Em Governador Valadares nove entre dez habitantes têm parentes nos Estados Unidos – o décimo já está lá, juntando dólares e incentivando os amigos a ir também (HASSE, 1993:26).

As notícias analisadas constroem uma imagem endinheirada de Governador Valadares e denominam a cidade como “Valadólares”. Algumas informações que motivam a grande imprensa a utilizar esta denominação são apuradas junto a estudiosos do processo migratório, com citação de fonte, porém alterando alguns dados e constatações dos estudos. Outras nascem de estimativas e suposições feitas pelos próprios repórteres sem citar fontes. Com ou sem citação de fontes, as matérias não abordam o dualismo social de Governador Valadares. Mostram apenas uma suposta imagem de sucesso dos valadarenses, como se todos vivessem numa cidade rica, com economia dolarizada. É correto afirmar que o dinheiro remetido pelos “brazucas”92 aquece o mercado imobiliário da cidade, mas a notícia deveria estabelecer um contraponto com a realidade sócio econômica do município, sem mascará-la. Ao contrário da imagem de sucesso repassada ao público, Governador Valadares é uma cidade que possui graves problemas sociais. O município está localizado em uma região pobre e com muitos problemas sociais.

Segundo Beato Filho (apud CAETANO, 2001), Governador Valadares encontra-se entre as regiões mineiras com baixo nível de desenvolvimento econômico. O nível de desigualdade econômica em Minas Gerais ainda é muito alto e o Vale do Rio Doce inclui-se entre as regiões que estão abaixo do nível de pobreza.

Nesta outra informação da revista Os caminhos da terra, na reportagem intitulada Bye Bye Brasil, o repórter Geraldo Hasse descreve que os imigrantes valadarenses enviam dos Estados Unidos para Governador Valadares de 2 a 15 milhões de dólares. Sem citar a fonte, Hasse atribui à informação aos diferentes cálculos feitos na cidade. Constrói, desta forma, uma imagem inverossímil da realidade econômica de Governador Valadares.

Valadares é a primeira cidade a se dolarizar maciçamente. Segundo diferentes cálculos feitos na cidade, os valadarenses enviam do exílio de 2 a 15 milhões de dólares por mês (HASSE, 1993, p. 26).

Analisando todas estas matérias, observa-se que os problemas relacionados ao fazer jornalístico, aparecem em todas, interferindo na qualidade da informação passada ao público e criando uma imagem distorcida de Governador Valadares e do processo de emigração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que algumas matérias produzidas pela grande imprensa sobre a emigração de valadarenses para os Estados Unidos constroem uma imagem distorcida dos emigrantes e da cidade, através informações equivocadas ou opiniões baseadas idéias pré-concebidas. Fica evidente nas matérias aqui apresentadas que as rotinas do trabalho jornalístico, estabelecidas na teoria do newsmaking, influenciam na apuração deficiente das matérias e nas informações repassadas ao público. A rotina do trabalho jornalístico impõe aos repórteres e editores um desafio: apurar e redigir uma matéria ou reportagem com pouco tempo para executar o trabalho. Isso determina a escolha inadequada de fontes ou impede que uma pesquisa histórica seja feita para subsidiar a correta informação, principalmente quando se trata de coberturas em cidades distantes das redações dos grandes jornais e revistas, em que os jornalistas acabam tendo pouco tempo para fazer a apuração.

A imagem deturpada de Governador Valadares e dos emigrantes acaba influenciando não só a opinião pública como a dos próprios jornalistas que escrevem sobre a emigração. O artigo “Crise de amor próprio”, escrito pelo jornalista Josias de Souza no jornal Folha de S. Paulo, é um exemplo. Com informações esparsas sobre o processo migratório nas quais os

92 “Brazuca”é o termo utilizado para identificar o emigrante brasileiro que está nos Estados Unidos.

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valadarenses e mineiros do Vale do Rio Doce estão integrados, o articulista acabou emitindo uma opinião carregada de xenofobia.

Os critérios de noticiabilidade estabelecidos por Erbolato (1991) também são facilmente identificados no material jornalístico analisado. Dentre estes critérios destacam-se o impacto, o humor e a raridade. O fato de um número significativo da população de Governador Valadares migrar para os Estados Unidos e outros países, associada a sua localização no interior de Minas Gerais, reforça a raridade e o ineditismo deste fluxo migratório. Desta forma, a utilização do termo “conexão caipira” é uma referência depreciativa para uma cidade do interior, sendo utilizada como de atingir o humor. É natural o impacto destas informações junto ao público, principalmente quando se noticia as vultosas quantias em dólar que são enviadas a cidade.

Entre o fato e o acontecimento noticiado, intervêm inúmeros fatores, desde as rotinas de produção, passando pelas subjetividades inerentes aos jornalistas e chegando mesmo a falta de seriedade e de responsabilidade social, visto que muitas matérias revelam não somente uma visão irônica de uma realidade, mas uma visão de mundo carregada de preconceitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS FILHO, Clóvis. Ética na comunicação / da informação ao receptor. São Paulo: Moderna, 1995.

CAETANO, Cristina Salles. A organização da cidade e o fenômeno da violência: um estudo dos crimes de homicídio ocorridos em Governador Valadares. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2001. 92p. (Dissertação de mestrado em sociologia)

FOLHA DE SÃO PAULO. EUA devolvem 66 mineiros ilegais. São Paulo: Empresa Folha da Manhã Ltda. Caderno Cotidiano (Caderno 3), 8 de outubro de 1993. p.1.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. A colonização alemã no Vale do Mucuri. Belo Horizonte, MG. Coleção Marianinha, 1993.

HASSE, Geraldo. Bye, Bye Brasil. Os Caminhos da Terra. São Paulo: Azul, 1993.

KOLTAI, Caterina (org.). O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

SALES, Tereza. Brasileiros longe de casa. São Paulo: Cortez, 1997.

SAYAD, Adelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

SOARES, Weber. Emigrantes e investidores: Redefinindo a dinâmica imobiliária na economia valadarense. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. 127 p. (Dissertação, Mestrado em Economia).

SOUZA, Josias de. Crise de amor próprio. Folha de São Paulo, 31 de janeiro de 1993. Primeiro Caderno. p. 1 - 2.

VITÓRIA, Gisele & AFONSO, Beatriz. Uai not? Turistas de Governador Valadares vão torcer na Copa. Para ficar nos EUA. Revista Isto é, 06 de outubro de 1993. p. 35 -36.

WOLF, Mauro. Teoria da Comunicação. 5. ed. Lisboa: Presença, 1985.

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,ASSIMILAÇÃO E TRANSNACIONALIDADE DA SEGUNDA GERAÇÃ O DE MIGRANTES VALADARENSES NOS EUA

Lucas Coelho Siqueira93

RESUMO

Análise dos impactos da migração internacional na vida dos jovens migrantes valadarenses que nasceram ou emigraram muito jovens para os Estados Unidos, com ênfase no processo de assimilação e nas inter-relações destes jovens com a terra natal e a sociedade norte-americana. Para tanto, foram utilizados os dados de uma pesquisa realizada pelo autor entre janeiro e maio de 2006.

Palavras-chave: Migração, transnacionalidade, segunda-geração.

ABSTRACT

An Analysis of the impacts of the international migration in the daily lives of the young valadarenses (brasilian) migrantes that had been born or emigrated very young to the United States, with emphasis in the assimilation process and the Inter-relations of these youngesters with the native land and the North American society. For such a way, it had been used the data of a research carried through by the author between January and May of 2006.

Key words: Migration, transnacionality, second-generation

INTRODUÇÃO

A cidade de Governador Valadares ganhou destaque na mídia nacional nos meados dos anos de 1980 por um movimento populacional peculiar: a emigração em grande escala para os Estados Unidos. Estima-se que, desde os primeiros “pioneiros” da década de 60, mais de 27.000 valadarenses emigraram em busca de melhores oportunidades de trabalho e remuneração. Nada menos do que 10% da população total da cidade, que atualmente gira em torno de 260.000 habitantes (SOARES, 1995).

As razões para este fenômeno são variadas. Sem dúvida, a estagnação econômica que atinge a região do Vale do Rio Doce no Leste Mineiro – cuja cidade-pólo é Governador Valadares - foi um dos fatores que estimulou a população local a buscar alternativas para melhorar sua condição de vida. A saída representada pela imigração internacional não surge por acaso. Ela é fruto de um longo contato entre a cidade e os EUA, contato esse que, por sua vez, gerou no imaginário popular a visão que associa os Estados Unidos a uma espécie de “terra da riqueza”, da oportunidade de trabalho e de ascensão econômica. Margolis (1994, p.93) afirma que se criou em Valadares uma “cultura de migrar para o exterior”.

Passados quarenta anos do início desse movimento migratório – que, apesar de mudanças em seu ritmo e intensidade, perdura ainda hoje - entram em cena os filhos dos emigrantes valadarenses. Muitos deles nasceram nos EUA, outros emigraram muito jovens, geralmente acompanhando seus pais na busca pelo sonho de sucesso econômico. Diante desse novo aspecto do fenômeno migratório coloca-se as seguintes questões que norteiam este

93 Licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais ([email protected])

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artigo: Quem são estes jovens que constituem a segunda geração? Como vivem? E, sobretudo, como se relacionam com o Brasil? Os jovens emigrantes sentiriam e vivenciariam a ambigüidade de sentimentos em relação à terra natal e a sociedade de imigração, o “estar aqui, e estar lá”, tão característico da primeira geração? Ou já teriam assimilado a nova cultura e não ficariam assim tão divididos? As novas formas de comunicação, sobretudo as facilidades proporcionadas pela internet, influenciariam nesta relação?

Para responder a estas e outras questões, realizamos uma pesquisa entre janeiro e maio de 2006, cujos principais objetivos poderiam ser resumidos em: (1) traçar o perfil sócio econômico e cultural da segunda geração de emigrantes provenientes da microrregião de Governador Valadares; (2) descrever o processo de assimilação à sociedade norte-americana, a inserção na comunidade brasileira e no mercado de trabalho; (3) investigar os efeitos do trabalho, da escola, do lazer e da convivência étnica na vida do jovem migrante.

O método de pesquisa adotado para localizar os informantes foi a “bola de neve”. Essa técnica consiste em identificar alguns elementos com características necessárias para compor a amostra, no caso jovens entre 12 e 25 anos que emigraram com no máximo 10 anos (esta é a faixa etária de inserção no sistema educacional), ou nasceram nos Estados Unidos. Esses primeiros indicaram outros, que por sua vez fizeram outras indicações, até chegar a um numero em que as informações e indicações começaram a se repetir. A técnica para a coleta de dados foi a entrevista formal. Foram entrevistados trinta e dois jovens, vinte moças e doze rapazes, residentes nos EUA. Ressalta-se que os questionários foram aplicados por telefone ou via “Skype” (voz sobre IP). A identificação dos primeiros entrevistados foi feita através de pessoas que residem na cidade de Governador Valadares, foram realizadas um total de 32 entrevista.

O FENÔMENO MIGRATÓRIO NA TEORIA SOCIOLÓGICA

Como ponto de partida, é fundamental uma reflexão sobre a própria noção de “gerações” e sua sucessão. O esquema tradicional no qual a juventude associa-se ao estudo, a maturidade ao trabalho e a velhice à aposentadoria, fica definitivamente abalado no contexto da pós-modernidade (MOODY, 1993 citado por SALES, 2001. p.361). Os papéis mesclam-se, os espaços e valores que antes separavam uma geração da outra (generation gap), tornam-se cada vez mais tênues, perdendo sentido as classificações tradicionais (BOUTINET,1995 citado por SALES, 2001. p.361).

A própria idéia de juventude deixa de se relacionar com um determinado grupo etário. Juventude tornou-se, para o mundo pós-moderno, um ícone, um ideal almejado em qualquer idade. A busca pela juventude influi no estilo de vida contemporâneo, moldando comportamentos, posturas e, sobretudo, hábitos de consumo.

A pesquisa publicada por Teresa Sales no livro “Migrações Internacionais, Contribuições para Políticas” (2001. p. 361) demonstra de forma clara que, no contexto migratório, os pressupostos pós-modernos são relativisados. O embaraçamento das gerações continua, mas são o trabalho e o consumo, e não a busca pela juventude, os valores que pautam de forma mais marcante as comunidades de imigrantes, inclusive os jovens emigrantes da segunda geração. Para uma melhor compreensão do universo e do imaginário destes jovens e adolescentes, precisamos analisar a complexa dinâmica dos fenômenos migratórios sob a luz dos diversos enfoques teóricos produzidos pela teoria sociológica.

O ato de migrar é um fenômeno que acompanha o ser humano desde seus primórdios. O deslocamento populacional no espaço está, normalmente, relacionado a uma busca constante por melhores condições de vida, descoberta de novas fontes de riqueza e

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oportunidades de trabalho. Na dinâmica capitalista, a mobilidade populacional tanto interna quanto internacional, exerceu e exerce influencias marcantes no processo de urbanização e aceleração da acumulação de capital.

No campo da teoria sociológica, a migração não foi considerada um tema central pelos teóricos clássicos. Isto porque, na visão de Marx, Weber e Durkheim, o fenômeno migratório era conseqüência do crescimento industrial, da urbanização acelerada e do desenvolvimento do capitalismo, não implicando em um problema sociológico relevante. Segundo SASAKI e ASSIS (citado por SIQUEIRA, 2003 p.7) “Migração não era um assunto central dos grandes teóricos da Sociologia, nem no século XIX, nem no começo do século XX, pois compreendiam este fenômeno como parte do processo de metropolização”.

Este quadro sofre uma mudança com o advento da sociologia contemporânea. Motivado, principalmente, pela grande leva de imigrantes poloneses que chegou aos Estados Unidos entre 1880 e 1910, estabeleceu-se, nos meios acadêmicos norte-americanos, um intenso debate referente à migração. A principal preocupação dos sociólogos nestes primeiros estudos era discutir como se constituiria uma sociedade singular frente à presença marcante dos imigrantes. A Escola de Chicago desenvolveu como resposta a concepção de “Melting pot”. A idéia era de que os recém-chegados seriam gradualmente assimilados, adaptados ao estilo de vida norte americano, sofreriam um processo de “americanização”.

No campo da analise econômica, a teoria neoclássica convencional abordava o migrante como individuo economicamente racional. O trabalho e a renda, segundo esta vertente, são vistos como mercadorias comercializadas livremente no mercado. Partindo destas duas premissas, o individuo migrava porque buscava maximizar as vantagens oferecidas pelos pólos de atração, e era impelido pelos fatores de repulsão (econômicos, principalmente) dos seus paises de origem. O ato de migrar é explicado através de um cálculo custo-benefício por parte do migrante.

Buscando escapar da visão excessivamente individualizante associada à teoria neoclássica, e também explicar as migrações internacionais a partir de análises estruturais, a teoria histórico-estrutural concentrou sua investigação nos países de destino, quer dizer, nas condições econômicas e estruturais oferecidas aos imigrantes. Uma das vertentes desta teoria trabalha com a idéia de segmentação do mercado de trabalho representada por Piore (1979) e Portes (1981). Os imigrantes participariam, nos países de destino, de segmentos de mercado rejeitados ou pouco ocupados pelos habitantes nativos. Seriam geralmente funções pouco qualificadas e mal remuneradas. Não haveria, segundo esta vertente, uma disputa por empregos entre habitantes locais e imigrantes, pois ocupariam nichos diferentes. Outra vertente da teoria histórico-estrutural (defendida principalmente por SASSEN, 1988) ficou conhecida como teoria do capital humano, e trabalha com a idéia da mobilidade do capital como a grande geradora de novas condições para a mobilidade dos trabalhadores. Para esta vertente, os imigrantes ilegais sobrecarregam os serviços de seguridade social dos países de destino (welfare state), retirando recursos e rebaixando salários dos nativos.

Recentemente, o estudo das redes sociais tornou-se um dos instrumentos teóricos mais utilizados pelos estudiosos da migração. Isto porque a idéia da rede social rompe com a visão individualizante do projeto migratório e ressalta a importância do conjunto de conexões estabelecidas, tanto na sociedade de origem como na sociedade de destino, para a viabilidade deste projeto. Os estudos de Boyd (1986), Massey (1990) e Tilly (1990) demonstram que “as redes sociais são formadas pelos primeiros migrantes que se fixam em determinadas regiões, mantêm estritas relações com o país de origem e percebem, constroem ou descobrem mecanismos facilitadores do processo de migração”.(SIQUEIRA, 2003 p.13). O auxilio na obtenção de empregos para os recém-chegados é um bom exemplo de como as redes

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amenizam os riscos inerentes ao projeto migratório. Destaca-se também o impacto que estas redes sociais imprimem ao meio onde se estabelecem. O imigrante não se despe de seus valores, costumes e identidade étnica ao embarcar na aventura migratória, e estes fatores acabam reconfigurando os espaços físicos e sociais da sociedade de destino.

TRANSNACIONALIDADE

A visão de que o emigrante rompe os laços com seu país de origem ao chegar a seu destino torna-se extremamente problemática quando são levados em conta os movimentos migratórios modernos. Atentos a este problema, a partir do final da década de cinqüenta, novos teóricos da sociologia começaram a trabalhar com a idéia de transnacionalização. Esta análise parte exatamente do princípio inverso da visão anterior, ou seja, não há uma ruptura definitiva. O emigrante, valendo-se das facilidades de comunicação inerentes a um mundo globalizado, participa ativamente da vida familiar, acompanha o cenário político-econômico, vivencia o dia-a-dia da sua comunidade e das instituições do seu país.

Emerge, neste contexto, o conceito de transmigrante. O transmigrante caracteriza-se por viver entre o desejo de retornar e o de ficar. Não se enquadra adequadamente no conceito de imigrante permanente, pois nutre constantemente o desejo de retornar a terra natal, e tão pouco é identificado como temporário, porque já estabeleceu sólidas conexões com o país hospedeiro. Vive entre dois mundos, torna-se transacional.

“ Pode-se ainda argumentar que esta ambigüidade, estar aqui e estar lá, é característica dos emigrantes da primeira geração, que com o passar dos anos os emigrantes assimilados numa outra cultura não ficariam assim tão divididos, mas o que o enfoque transnacional propõe é justamente que: dadas todas as possibilidades de comunicação e transporte contemporâneos torna-se efetivamente mais fácil manter-se em contato. Essa seria a identidade multifacetada do emigrante dos novos tempos.” (ASSIS, 1992. p.17)

Esta é exatamente a questão que proponho investigar ao voltar minha análise para a segunda geração de emigrantes; reconhecendo, sobretudo, a poderosa ferramenta que os pesquisadores da migração possuem quando combinam, aos diversos enfoques teóricos, as análises das redes sociais (relacionais) aliada à posição transnacional do emigrante.

A EMIGRAÇÃO VALADARENSE NO CONTEXTO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

O Brasil, até meados do século XX, caracterizou-se por ser um país de atração de imigrantes. Percebe-se, desde o início da sua formação, passando pela migração forçada de mais de três milhões de africanos no período colonial, até a chegada em grande escala de imigrantes europeus a partir de meados do século XIX, como a migração internacional influiu decisivamente na constituição da identidade, cultura e dinâmica econômica nacional (BAENINGER, 2003). Entretanto, a partir dos anos 60, o Brasil, que já se inseria no contexto do capitalismo mundial como um dos paises periféricos, tornou-se também um fornecedor de mão-de-obra para os centros industrializados. O destino da maioria dos emigrantes brasileiros, dentro desta nova dinâmica global, são os Estados Unidos, destacando-se assim os emigrantes valadarenses.

A “Conexão Valadares-USA” (ASSIS, 1995) pode ser compreendida a partir de três momentos principais. O primeiro momento foi na década de 40, durante a Segunda Guerra Mundial, conhecido como “Ciclo da Mica”. A mica é um mineral utilizado no isolamento de aeronaves e como componente de artefatos de guerra, e era encontrada em abundância na região de Governador Valadares. Neste período a cidade recebeu muitos americanos que

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coordenavam a extração do mineral. Este primeiro contato com os norte-americanos, e com os dólares que estes injetavam na economia local, foi fundamental para a criação de um imaginário que associava a “América” ao progresso e a melhores condições de vida.

Um segundo momento ocorreu na década de 60 quando, inspirados pela idéia de uma vida melhor e pelo fascínio econômico representado pelo dólar, os primeiros habitantes da região partiram para “fazer a América” (ASSIS, 1995). Estes pioneiros foram os responsáveis por “preparar o terreno”, ou seja, por configurar as redes de relações e apoio que seriam a base para uma emigração de maiores proporções. Contudo, foi somente a partir dos anos 80 que o fluxo migratório realmente toma vulto, despertando, na década seguinte, o interesse da imprensa e dos estudiosos do fenômeno da migração.

SEGUNDA GERAÇÃO E GERAÇÃO 1.5

O termo “segunda geração”, conforme definido por Menezes (2002), engloba três grupos distintos de emigrantes: O primeiro inclui jovens que nasceram e passaram os primeiros anos da infância no Brasil. Emigraram ainda crianças, mas conservam uma forte carga referencial de suas origens. O segundo grupo é constituído pelos que nasceram no Brasil, mas emigraram na primeira infância, efetivando o processo de socialização na sociedade norte-americana. Estes possuem um conjunto de referências da terra natal formada principalmente a partir de relatos dos pais e de pessoas mais velhas da comunidade brasileira, além das informações recebidas através dos canais de televisão e outros meios de comunicação. Alguns teóricos denominam estes dois primeiros grupos de “Geração 1.5”, para melhor distinguir suas características peculiares das características do terceiro grupo, formado pelos jovens nascidos nos EUA: a segunda geração propriamente dita. (MENEZES, 2002. p.8) Esta distinção é importante sobretudo porque os jovens nascidos nos EUA possuem o status legal de cidadãos americanos, enquanto a Geração 1.5, na sua maioria, não possui a documentação que regularizaria sua situação. Sem dúvida, a situação legal influi profundamente no dia-a-dia e na própria construção da identidade destes jovens.

Os dados preliminares da pesquisa que deu origem a este artigo apontam que, na amostra selecionada, 53% dos entrevistados poderiam ser categorizados como Geração 1.5, enquanto os nascidos no EUA correspondem a 47%. O gráfico abaixo sintetiza a divisão em categorias mais específicas:

Gráfico 1

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

Idade ao chegar nos EUA

28,1

12,5

12,5

46,9

nasceu nos EUA

menos de 1 ano a 3anos de idade

mais de 3 anos a 6anos de idade

mais de 6 anos a 10anos de idade

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Podemos observar que, dentro da Geração 1.5, destaca-se o grupo dos jovens que emigraram com mais de seis anos de idade (28,1% do total dos entrevistados - representando mais da metade do grupo correspondente à Geração 1.5). É principalmente neste grupo que podemos extrair os relatos de uma série de dificuldades relativas a adaptação à nova sociedade. A barreira representada pela língua (40%) e pela dificuldade de se adaptar ao frio (20%) são apontados como os aspectos mais difíceis de suportar nos primeiros anos fora do Brasil. Adriana94, hoje com 17 anos, nos fez o seguinte relato:

“No começo foi difícil, a língua é a maior dificuldade... o frio também é outra adaptação... o frio até hoje é muito sofrido... saudade da família e amigos. Aqui agente não faz amigos como no Brasil, mesmo com filhos de outros brasileiros... no final das contas eu convivia mais com as pessoas mais velhas mesmo”.

Said (2003), no texto Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, cita um trecho do conto “Amy Foster” de Joseph Conrad, que expressa magistralmente a angustia sentida pelo imigrante que se encontra numa terra estrangeira, onde se fala uma língua que lhe é estranha. A situação da personagem Yanko é comovente: ele é um estrangeiro, sozinho, incapaz de fazer amigos, numa sociedade que não o compreende:

“Com efeito, é duro para um homem achar-se como um estrangeiro perdido, indefeso, incompreensível e de origem misteriosa, em algum canto obscuro da Terra. Contudo, entre todos os aventureiros naufragados em todas as regiões selvagens do mundo, não há um, assim me parece, que tenha sofrido um destino tão simplesmente trágico quanto o homem de quem estou falando [...]”. (SAID, 2003. p.53)

Mais adiante, Said completa:

“A primeira coisa a reconhecer é a perda do lar e da língua no novo cenário, uma perda que Conrad tem a severidade de retratar como irrecuperável, inexoravelmente angustiosa, rude, intratável, sempre aguda...”. (SAID, 2003. p.302)

É difícil quantificar o impacto que uma experiência como essa exerce na formação identitária do jovem migrante. Porém, diferente da personagem de Joseph Conrad, estes rapazes e moças não se encontram “sozinhos” - apesar de sentirem a angustia inerente ao processo migratório. Como vimos, a própria migração em grande escala não seria possível sem a presença de redes sociais consolidadas, capazes de receber o imigrante e auxiliá-lo nos primeiros momentos na nova terra. Ao chegar aos EUA, o jovem valadarense se vê imediatamente inserido na comunidade brasileira que geralmente acolhe seus pais. Encontra outros jovens em situação semelhante à sua, recebendo o apoio e os recursos disponíveis na comunidade.

Talvez, sob este ângulo, podemos compreender a resposta dos entrevistados quando lhes foi pedido que classificassem sua vida nos Estados Unidos numa escala de notas que variava entre 1 significando “muito ruim”, até a nota 10 que significava “muito bom”. Mais de 87,5% dos jovens classificaram a vida nos EUA, de uma forma geral, como “boa” ou

94 Para garantir a privacidade dos jovens, todos os nomes dos entrevistados neste artigo são fictícios.

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“muito boa”, numa demonstração clara de adaptação. Entretanto, é importante distinguir qual seria o peso da avaliação dos que nasceram nos EUA neste quadro favorável, em comparação com a avaliação da Geração 1.5. Cruzando as duas variáveis observamos que, apesar de seguir o padrão da segunda geração na avaliação positiva, a Geração 1.5 apresenta o dobro de respostas que classificam a vida na sociedade norte-americana como “regular”.

Gráfico 2

Fonte: Pesquisa de campo 2006. Total de casos: 32

Gráfico 3

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

IDENTIDADES PARTIDAS

Portes (1995) faz uma abordagem interessante e inovadora quanto às características peculiares dos jovens que nasceram na sociedade de destino e dos que chegaram dos seus paises de origem. Sua análise tem como pressuposto a idéia de que a segunda geração de imigrantes vive um conflito permanente entre manter a língua, os costumes e a orientação cultural dos pais ou ceder às pressões por assimilação da sociedade de destino.

Estudando o processo de assimilação dos jovens das comunidades de cubanos e haitianos em Miami, indianos da vertente Punjabi Sikh, vietnamitas e mexicanos na Califórnia, Portes elaborou o conceito de Assimilação Segmentada. Tomando como exemplo

Avaliação da vida nos EUA

34,4

53,1

12,5

(4 a 6) regular

(7 a 8) boa

(9 a 10) muit o boa

Avaliação vida EUA - Segunda Geração e Geração 1.5

7

40

53

18

29

53

0

10

20

30

40

50

60

(4 a 6) regular (7 a 8) boa (9 a 10) muitoboa

Segunda Geração

Geração 1.5

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o caso dos mexicanos no sul da Califórnia, podemos observar que os jovens de ascendência mexicana são divididos em três grupos: os recém-chegados, com pouco ou nenhum domínio da língua inglesa; os de “orientação-mexicana”, que nasceram no México, preservam sua identificação com a terra natal, mas já vivem nos Estados Unidos a mais de cinco anos; e os Chicanos e os Cholos, que constituem a segunda geração, nascidos nos EUA. Apesar de estarem em desvantagem quanto ao domínio da língua, os dois primeiros grupos apresentam médias escolares, e um comprometimento em relação aos estudos e ao planejamento de uma carreira profissional, superiores aos apresentados pela segunda geração.

A explicação para este resultado passa pelo seguinte mecanismo: os imigrantes recém-chegados, com poucos recursos econômicos, acabam concentrando-se nas regiões mais centrais das áreas urbanas, onde entram em contato direto com as minorias étnicas locais. Essas minorias são constituídas pela descendência de imigrantes anteriores que falharam no seu projeto de ascensão econômica e social, sofreram um processo de descriminação e exclusão, e criaram, até como mecanismo de defesa, uma postura contrária e combativa aos valores da maioria - representada pela classe média branca. Uma mensagem típica associada à juventude de algumas minorias étnicas é a descrença no sistema educacional como veículo de ascensão social dentro de uma sociedade fortemente excludente. Portes (1995, p.255). cita, como exemplo, que “existe um dilema entre ser chicano e se sair bem na escola”. Os jovens recém-chegados são pressionados pelos seus colegas a adotarem as mesmas posturas e as mesmas “normas da minoria”. O resultado é que; aqueles que optam pelo caminho da assimilação aos traços culturais dos que nasceram nos EUA apresentam um desempenho mais fraco. Os que mantêm uma identidade cultural mais preservada apresentam melhores resultados escolares, maiores possibilidades de engessarem nas universidades e ascenderem socialmente.

Esta conclusão é inovadora na medida que vai de encontro à maioria dos estudos anteriores, que sempre enxergavam na assimilação à cultura norte-americana o caminho mais seguro para a mobilidade econômica do imigrante. Porém, o que Portes (1995) questiona não é o valor da assimilação em si. A grande questão que os movimentos migratórios recentes nos coloca é: Qual setor da sociedade de destino um grupo particular de emigrantes é assimilado? Vários imigrantes sequer têm acesso aos valores e costumes da cultura majoritária. A assimilação não é uniforme, mas sim segmentada:

Assimilação Segmentada pode ser definida como uma nova forma de análise da assimilação cultural dos imigrantes onde é possível distinguir três principais caminhos de aculturação: 1) o caminho consagrado pela teoria, onde à integração com a maioria, representada pela classe média branca, anda em paralelo com a mobilidade social, 2) o caminho que leva na direção oposta: à pobreza permanente e a assimilação às camadas pobres da sociedade, 3) terceiro caminho que une mobilidade econômica com preservação da solidariedade e do pertencimento à comunidade migrante. (PORTES, 1995, p.251)

Quanto mais coesa for uma comunidade imigrante, menos suscetível ela será à influência das “normas da minoria”, e menores serão as possibilidades de uma assimilação ligada a um “nivelamento por baixo”. Portes (1995) utiliza o exemplo dos Punjabi Sikhi, no norte da Califórnia, para ilustrar este caminho alternativo. Num ambiente onde a discriminação da maioria branca mostra-se bastante elevada é possível notar a grande influência que a comunidade indiana exerce sobre seus jovens de segunda geração. Os pais imigrantes instigam nos filhos a evitarem brigas e o contato excessivo com os brancos, ressaltam a importância do domínio do inglês e de um bom desempenho escolar. A conseqüência é que os jovens Punjabi apresentam uma média escolar (GAP) superior a da maioria.

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Tirando o fato de que os imigrantes indianos não encontram um grupo étnico já estabelecido que pressione seus jovens para uma assimilação niveladora, nota-se que, dentro dessa comunidade específica, e de outras comunidades imigrantes bem sucedidas, as redes sociais são bastante densas e o capital social é abundante. Capital Social pode ser definido, no caso referente aos pais dos imigrantes, como a habilidade ou capacidade de contar com vários “parceiros étnicos” (vizinhos, parentes, amigos, e pessoas da comunidade) para reforçar suas expectativas sobre sua prole e supervisionar o comportamento da mesma. (PORTES, 1995)

Apesar de não oferecer informações sobre as médias escolares dos jovens valadarenses, é possível extrair das entrevistas alguns insights sobre o processo de assimilação. Variáveis como o tamanho da rede familiar, o número de horas dedicadas aos estudos e dever de casa, os principais empregadores e os principais parceiros étnicos, fornecem indícios sobre a densidade das redes sociais e a abundância do capital social dentro da comunidade brasileira. É importante lembrar que os entrevistados, no caso, não são todos pertencentes à mesma comunidade, apesar de concentrarem-se me Massachusetts (46,9%) e na Flórida (28,1%).

Gráfico 4

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

Gráfico 5 Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

Tamanho da rede Familiar nos EUA

16

31

25

1316

0

5

10

1520

25

30

35

até 8pessoas

9 a 20pessoas

21 a 40pessoas

mais de 41pessoas

nãorespondeu

Horas dedicadas ao Estudo e dever de casa

25

18,8

9,412,5

9,4

25

0

5

10

15

20

25

30

nenhuma 2 horas 2 a 4horas

4 a 6horas

6 a 8horas

mais de 8horas

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Gráfico 6

Gráfico 7

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

Uma rede familiar extensa é geralmente um sinal de abundância de Capital Social dentro de uma comunidade de imigrantes. Sabe-se que o simples fato da existência de muitos parentes na mesma comunidade não é sinal da configuração de redes sociais suficientemente densas para influenciar os jovens. Contudo, a presença de irmãos, tios, primos, etc, reforçando os mesmo referenciais e valores, é sem dúvida uma importante força para evitar o caminho de uma assimilação às minorias marginalizadas. Podemos observar que 56% dos jovens entrevistados informam a presença de 9 a 40 parentes diretos morando nos EUA, um número suficiente para a configuração de um capital social relativamente abundante.

Aqui cabem duas ressalvas. A primeira é o fato de que a metodologia adotada por esta pesquisa (método “Bola de Neve”) não gera amostras probabilísticas, ou seja, não permite generalizações e reduz a eficácia das comparações com os resultados de pesquisas de maior porte. A segunda está ligada ao fato de que, como os imigrantes indianos, os jovens brasileiros não encontram uma minoria étnica local solidamente estabelecida que os pressionem a aderir valores combativos aos valores da maioria. Os hispanos não são, de modo algum, uma referência identitária para os jovens brasileiros. Pelo contrario, estes se esforçam

Prncipais Empregadores

6,3 6,3

50

37,5

0,010,020,030,040,050,060,0

Bra

sile

iros

Em

igra

ntes

de

outr

asna

cion

alid

ades

Am

eric

anos

não

se a

plic

a

Principais Parceiros Étnicos

34,4

43,8

21,9

Brasileiros

Americanos

Emigrantes de outrasnacionalidades

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para se diferenciar dos “latinos” considerados por eles excessivamente agressivos e preguiçosos.

Com estas duas ressalvas em mente, observamos que comunidades que evitaram o caminho da assimilação “por baixo” , como os vietnamitas na Califórnia e os cubanos na Flórida, apresentam uma espécie de economia intracomunitária, com vários pequenos estabelecimentos e serviços voltados para o próprio grupo étnico. Quanto mais pujante e dinâmica for esta economia intracomunitária, mais empregos e oportunidades ela gerará para os jovens imigrantes, facilitando sua adesão aos valores e princípios da comunidade (PORTES, 1995).

Apesar dos brasileiros nos EUA serem fortemente orientados e balizados pelo trabalho, observa-se que 50% dos jovens trabalham ou trabalharam para algum empregador norte-americano, enquanto apenas 6,3% indicam trabalhar para empregadores brasileiros. Este resultado é reforçado quando os jovens são perguntados com quais grupos de amigos convivem mais no dia-a-dia; 43,8% responderam que no seu dia-a-dia mantêm um contanto maior com norte-americanos, enquanto 34,4% responderam que convivem mais com outros brasileiros.

Para ilustrar, Portes (1995) indica que cubanos e vietnamitas apresentam um contato com jovens do mesmo grupo étnico, respectivamente, em 94,2 e 54,4% dos casos; enquanto mexicanos e haitianos, que apresentam indícios de uma assimilação às minorias marginalizadas locais, apresentam um contato com amigos co-étnicos em 49,2 e 45,9% dos casos respectivamente.

De forma preliminar, podemos concluir que a comunidade brasileira não parece seguir o caminho da coesão identitária e fidelidade aos valores da terra natal que caracteriza comunidades imigrantes bem-sucedidas. Porém, os jovens brasileiros também não apresentam sinais de assimilação a segmentos excluídos do corpo social, até pela falta de identificação com uma minoria marginalizada local. Há indícios de assimilação ao main stream da sociedade norte-americana. A segunda geração parece seguir o caminho tradicional de assimilação, o caminho da “americanização” progressiva. Para ilustrar esta conclusão notamos que mais de 46% dos entrevistados dedicam mais de 4 horas por semana para estudos e deveres de casa, num claro sinal de valorização do estudo e da educação como meio de ascensão social.

CONTATOS COM A TERRA NATAL

Uma boa forma de iniciar a análise sobre os contatos da segunda geração de imigrantes valadarenses com a sua terra natal é observar a freqüência destes contatos. Como podemos notar no gráfico abaixo, a maioria dos contatos com o Brasil concentra-se nas opções “mais de uma vez por semana”, “semanalmente” e “quinzenalmente”. Ou seja, é possível inferir que os jovens mantêm um contato bastante estreito com seus parentes e amigos no Brasil.

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Gráfico 8

Frequência de Contatos com Parentes no Brasil

31,2525 25

3,13

15,63

mai

s de

um

ave

z po

rse

man

a

sem

anal

men

te

quin

zena

lmen

te

men

salm

ente

rara

men

te

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

Outra observação interessante é a diferença na freqüência de contatos entre a Segunda Geração e a Geração 1.5:

CONTATOS: SEGUNDA GERAÇÃO E GERAÇÃO 1.5

Gráfico 9

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

O gráfico 9 indica que a média dos contatos da Segunda Geração é menos freqüente com o Brasil, sobretudo se comparada com a média da Geração 1.5, cujos valores concentram-se nas opções que indicam uma maior freqüência de contatos.

Um dos resultados mais importantes para a investigação sobre a posição transnacional da segunda geração é a definição de quais meios de comunicação os jovens migrantes mais utilizam para entrar em contato com sua terra natal. No gráfico 10 podemos observar que exatamente metade dos entrevistados apontou a Internet como principal meio de

raramente

mensalm

ente

quinzenalmente

semanalm

ente

mais de um

a vez por

Per

cent

40

30

20

10

0

Segunda Geração

Geração 1.5

12

24

29

35

20

7

27

20

27

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comunicação, enquanto a outra metade escolheu o telefone. Além da coincidência dos números, o empate entre a preferência pela Internet e pelo telefone confirma uma das premissas da minha investigação, qual seja: a Internet tem influenciado de forma marcante o contato entre a segunda geração e a sociedade de origem. Novamente, cruzando as informações sobre a Segunda Geração propriamente dita e a Geração 1.5, observamos uma ligeira preferência da Geração 1.5 pelo uso da Internet. Uma das explicações possíveis para este resultado baseia-se na idéia de que a maior disposição da Geração 1.5 de manter contato com a terra natal torna-se um motivador para a busca por meios de comunicação que facilitem este contato.

Gráfico 10

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

Gráfico 11

Pretende Voltar a residir no Brasil

21,88

28,13

50 sim

não

Talvez

Fonte: Pesquisa de campo 2006 Total de casos: 32

No gráfico 11 ao responderem “talvez” (50%) à pergunta se um dia gostariam de voltar a residir no Brasil, estes rapazes e moças demonstram como os dois mundos do universo do migrante se entrelaçam em suas expectativas e sonhos. O “talvez” aqui pode ser traduzido como uma vontade de ficar na sociedade de destino conjugado com um anseio de voltar. Segundo as palavras de Carlos, 19 anos:

Meios de Comunicação: Segunda Geração e Geração 1.5

53,33

46,6647,05

52,94

42

44

46

48

50

52

54

Telefone Internet

Segunda Geração

Geração 1.5

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“Eu gostaria de voltar um dia sim... mas um dia, agora não. Tem dias que eu falo com meus primos e tenho vontade de correr e fazer as malas... mas a vontade passa. Pra te falar a verdade, eu não sei o que eu quero...”.

CONCLUSÃO

Retomando as questões que levantamos inicialmente, ou seja, Os jovens emigrantes da geração 1.5 e 2.0 sentiriam e vivenciariam a ambigüidade de sentimentos em relação à terra natal e a sociedade de imigração, o “estar aqui, e estar lá”, tão característico da primeira geração? Ou já teriam assimilado a nova cultura e não ficariam assim tão divididos? As novas formas de comunicação, sobretudo as facilidades proporcionadas pela internet, influenciariam nesta relação?

A segunda geração parece seguir o caminho tradicional de assimilação traçado por Portes (1995), o caminho da “americanização” progressiva. Para ilustrar esta conclusão notamos que mais de 46% dos entrevistados dedicam mais de 4 horas por semana para estudos e deveres de casa, num claro sinal de valorização do estudo e da educação como meio de ascensão social.

A idéia de um dia voltar a residir no Brasil está presente entre estes jovens, pois 50% respondem talvez quando inquiridos se pretendem residir no Brasil. Nesta resposta está presente a marca dos dois mundos em suas vidas.

A internet é o meio de comunicação muito utilizado pelos entrevistados. Esta forma de comunicação tem facilitado o contato destes jovens com os familiares que permaneceram no Brasil.

Consideramos que a comunidade brasileira não parece seguir o caminho da coesão identitária e fidelidade aos valores da terra natal que caracteriza comunidades imigrantes bem-sucedidas. Porém, os jovens brasileiros também não apresentam sinais de assimilação a segmentos excluídos do corpo social, até pela falta de identificação com uma minoria marginalizada local. Há indícios de assimilação ao main stream da sociedade norte-americana.

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL EM FILHOS DE EM IGRANTES

Agnes Rocha de Almeida95

Sueli Siqueira96 Carlos Alberto Dias97

RESUMO A criança normalmente assimila traços da cultura dos pais durante a construção da sua identidade. Quando seus pais valorizam o país que os acolheram como emigrantes, os filhos tendem a desenvolver sentimentos semelhantes em relação àquele país contribuindo para o surgimento de uma crise de identidade cultural. Procurou-se verificar se o processo emigratório exerce influência sobre a construção da identidade cultural de filhos de emigrantes. Participaram do estudo 14 alunos de uma escola localizada no Bairro Santa Rita. Responsáveis e professores forneceram impressões acerca da emigração e do comportamento destas crianças. Estas forneceram para análise, desenhos e histórias acerca da emigração e do ambiente vivencial delas e de seus pais. Atentou-se para suas expectativas quanto ao futuro. As crianças em idade inferior a nove anos compreendem as mudanças ocasionadas pela emigração de um dos pais. Entendem que estes estão em um país distante, o que impede de se encontrarem facilmente. Vivem na expectativa de que os pais as levem para junto deles. Para elas o exterior é uma “terra encantada”, onde os brinquedos são fabricados e o dinheiro conseguido facilmente. O interesse em morar ou passear nos EUA, e o apego pelo lugar onde moram, gera conflitos em estar aqui e estar lá. Embora desenvolvem sentimentos de afeição pela comunidade local e cidade natal, a maneira como pais e responsáveis reforçam a importância e benefícios de viver nos EUA contribui para o surgimento de impasses na construção da identidade das crianças. Isto é observado no deslumbramento delas por aquele lugar. Palavras-chave: Emigração, Identidade Cultural, Filhos de Emigrantes ABSTRACT A child normally assimilates features of the parents’ culture during the formation of his identity. When parents value the country that welcomed them as emigrants, the children tend to develop similar feelings in relation to that country contributing to the appearance of a crisis of cultural identity. We sought to verify whether the emigration process exerts influence on the formation of the cultural identity of emigrants’ children. Fourteen pupils of a school located in the Neighborhood Santa Rita participated in the study. Caretaker parents and teachers provided impressions about emigration and behavior of these children. These provided designs and stories for analysis about the emigration and the environment experienced by them and their parents. We paid attention to their expectations in relation to the future. Children under 9 years of age comprehend the changes caused by the emigration of one of their parents. They understand that these are in a distant country that prevents them from meeting one another easily. They hope that their parents bring them close to themselves. For them the foreign country is an “enchanted land” where toys are produced and money obtained easily. The interest in living or traveling in the U.S.A. and the attachment for the place where they live cause conflicts between being here or there. Though they develop feelings of affection for the local community and the native city, the way how parents and caretaker parents stress the importance and benefits of living in the U.S.A. contributes to the appearance of impasses in the formation of the children’s identity. This is observed in their fascination for that place. Key words: Emigration, Cultural Identity, Children of Emigrants

95 Graduada em Psicologia pela Universidade Vale do Rio Doce, Pós-graduada em ‘Dependência Química e Outros Transtornos Compulsivos’ e em ‘Gestão de Territórios e do Patrimônio Cultural’ pela mesma Universidade. Atua como docente na União de Ensino São Francisco – UNESF/ ES. 96 Professora da Universidade Vale do Rio Doce. Doutora em Ciências Humanas, Sociologia e Política, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Núcleo de Estudos e desenvolvimento Regional – NEDER da UNIVALE onde desenvolve pesquisa sobre migração internacional. 97 Graduado em Filosofia e Psicologia, Pós-graduado em Psicologia pela PUCMG no ano de 1986 e em Administração e Gerência pela Fundação João Pinheiro em 1993. Mestre em Psicologia pela Université de Picardie Jules Verne em 1996 e Doutor em Psicologia Clínica em 2004 pela mesma universidade. Atualmente é professor adjunto da Universidade Vale do Rio Doce, desenvolvendo pesquisas nas seguintes linhas: (1) Subjetividade, representações e território e (2) Prevenção, promoção e acesso aos serviços de saúde.

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INTRODUÇÃO

O processo emigratório é uma realidade que afeta famílias de diversas regiões brasileiras. Seu crescimento é decorrente do desejo de muitos em encontrar oportunidades não fornecidas atualmente no País. Embora esta realidade comece a ser uma preocupação em âmbito nacional, na Região de Governador Valadares suas proporções colocam em alerta diversos segmentos da sociedade.

Aparentemente tal alerta decorre do número de passaportes falsificados, da existência de emigrantes indocumentados, do número de valadarenses que partiram em busca de melhores oportunidades e dos riscos de uma economia regional fragilizada. Fragilizada por ser fundamentada na importação de divisas sem que produtos estejam de fato sendo aqui produzidos para exportação nacional ou internacional. De fato o que merece um espaço nas preocupações atuais é a cultura emigratória que ganha mais e mais espaços no projeto de vida de grande número de valadarenses. A perspectiva de conseguir em pouco tempo ganhar dinheiro, retornar e ser independente economicamente é o motivo que leva muitos jovens e adultos a construir o projeto de emigrar. Essa idéia habita o imaginário da população que desde os anos de 1960 vêem seus vizinhos, parentes e amigos empreendendo essa jornada. Alguns obtêm sucesso o que estimula ainda mais o crescimento desse fluxo. Estes são muito visíveis, enquanto os que são mal sucedidos são pouco aparentes.

Dentre os vários os vários efeitos dessa Cultura podemos destacar a mudança da e as relações de poder no seio familiar até os resultados obtidos pelas instituições de ensino. Nas relações familiares a autoridade dos pais fica comprometida pelo distanciamento físico, e muitas vezes psicológico, da figura paterna ou materna. As instituições que devem promover uma consciência cidadã encontram dificuldades em fazer frente ao imaginário infantil que muitas vezes acredita que o futuro está além das fronteiras nacionais.

Durante o desenvolvimento da pesquisa intitulada Impactos da emigração sobre a sexualidade da esposa do emigrante98, iniciada em março de 2006, com previsão de término para fevereiro de 2008, foi observado que os reflexos do processo emigratório têm sido notados não só sobre o sujeito que emigra ou a parceira que permanece fisicamente isolada no Brasil. Os filhos dos emigrantes também apresentam dificuldades no âmbito escolar. A escola, por sua vez, encontra dificuldades em promover uma adequada socialização das crianças e não dispõe de informação e mecanismo para promover a intervenção nessa realidade. Por se acreditar que uma vida melhor pode ser alcançada através do trabalho emigrante, o que a escola oferece não é percebido como um instrumento para o sucesso.

Durante a infância a escola se apresenta como um lugar de referência do conhecimento e de relações sociais. Contudo, na medida em que crianças e adolescentes, filhos de emigrantes, caminham em direção à possibilidade de fazer parte do processo migratório, mudanças significativas podem ocorrer. Muitos são os casos de indivíduos desta fase que se distanciam do processo de socialização e de identificação com os costumes e cultura locais. Esse processo, embora se estabeleça silenciosamente, anuncia o surgimento de uma crise eminente: crise de identidade cultural.

Não ver o Brasil como um local de possibilidade é considerado um sinal de crise porque antes dos pais emigrarem o processo de identidade cultural da criança já havia começado. Com a emigração esse processo sofre alterações. As influências de uma outra cultura tiram a cultura brasileira ou valadarense do foco de filhos de emigrantes.

98 A pesquisa desenvolvida na Universidade Vale do Rio Doce contou com a minha participação na qualidade de idealizadora e colaboradora.

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Oliveira (1996, p.43) cita Mezan para explicar como se dá o processo de identificação dos sujeitos. Segundo o autor neste processo “ o sujeito assimila um ou mais traços de um outro indivíduo, integra-os a seu ego e portanto se modifica de acordo com o ou os modelos em causa”. A criança tem como primeiro e principal modelo a sua família, mais especificamente seus pais. Como conseqüência, assimila um ou mais traços dos mesmos durante a construção da sua identidade. Se seus pais tendem a valorizar o país que os acolheram como emigrantes, é de se esperar que também seus filhos desenvolvam o mesmo comportamento.

O vínculo que o emigrante possui com a comunidade que vive é transmitido à criança assim como o vínculo do pai que permanece na sua própria comunidade. Além de assimilar traços da maneira de falar e de se comportar deste pai emigrante, a criança assimilará também o conceito que este tem da região de origem e da de destino. Assim, por exemplo, assimilará a idéia de que em Valadares não se tem condições de ganhar dinheiro e que os EUA é a terra de oportunidades. Vale citar Aulagnier quando diz que “a relação entre os pais e a criança envolve sempre o vínculo do casal com o meio, a sociedade ou comunidade em que vivem” (citado por OLIVEIRA, 1996, p. 35).

A maneira como o emigrante relata as vantagens do país estrangeiro e o crédito que lhe é atribuído pelos filhos é fundamental nesse processo. A partir do momento em que o emigrante descreve as maravilhas de um país desenvolvido (agilidade para receber o salário, facilidade em obter produtos de alta tecnologia, preço dos produtos, tecnologia em comunicação), a criança percebe e compreende aquele país como sendo realmente um “lugar do futuro”.

Parte daqueles que permanecem na sua terra enquanto um membro da família se encontra no exterior, passa por uma desvalorização identitária local. Desvalorização esta, que se dá pela influencia de uma outra cultura que representa uma imagem de desenvolvimento e superioridade. Este processo atinge de forma especial e acentuada a criança. Por ainda estar em processo de formação da identidade se encontra mais vulnerável diante dos atrativos de ordem material, correndo o risco de ter substituídos os valores locais, culturais e identitários por valores estranhos a suas origens. Essa situação fez emergir a questão: O processo emigratório exerce influência sobre a construção da identidade cultural em filhos de emigrantes?

Em termos gerais esta investigação teve como objetivo verificar se o processo emigratório exerce influência sobre a construção da identidade cultural em filhos de emigrantes. Em termos específicos procurou-se: Fazer um levantamento das percepções infantis a respeito do processo emigratório; Fazer um levantamento das expectativas da criança em relação ao tempo e lugar de reencontro com os pais.

Coletar através de desenhos as diversas representações infantis a respeito do país para o qual emigrou seu pai e/ou mãe; Coletar através de desenhos as diversas representações infantis a respeito do local em que vive; Listar as expectativas quanto ao futuro segundo a perspectiva de tais crianças; Fazer um levantamento da importância dada ao processo emigratório pelos responsáveis das crianças observadas. Verificar o efeito da ausência de um ou de ambos os pais sobre o comportamento da criança na família e na escola segundo a percpectiva de seus responsáveis e professores.

Pesquisa realizada com esposas de emigrantes (ALMEIDA, BARBOSA e SOUZA 2006) suscitou o interesse de compreender os efeitos psíquicos nos filhos devido a ausência do pai. Sofrimento este geralmente evidenciado no ambiente escolar sob a forma de agressividade, dificuldades de aprendizagem e de sociabilização.

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Essa situação justifica o foco dessa investigação que é de conhecer mais profundamente a realidade de filhos de emigrantes no âmbito escolar. Investigação que poderá fornecer subsídios para uma melhor abordagem daqueles que procuram a clínica psicológica com vistas a reduzir os prejuízos psicossociais ocasionados pelo processo emigratório. Bem como auxiliar os profissionais da educação na forma de lidar com estas crianças.

Para a realização desse estudo, fez-se o uso de uma pesquisa de campo tendo como procedimento o Estudo de caso. Método este considereado o mais adequado a esta investigação pela busca de uma descrição mais abrangente possível de uma determinada situação. Pretendeu-se estabelecer as inter-relações lógicas dos vários componentes do fenômeno em observação: A construção da identidade cultural em filhos de Emigrantes. Ou seja, procurou-se observar se a emigração do pai e/ou mãe da criança exerce alguma influência na construção da identidade cultural desta última.

O estudo de caso possibilita a realização de uma pesquisa qualitativa. Para compreender melhor sobre o Estudo de Caso, convém citar Siqueira (1999, p. 159) quando diz:

O estudo de caso é, portanto, um tipo de investigação qualitativa, que de um sistema destaca uma unidade para estudo. Essa unidade ou caso é algo singular que será analisada profundamente. O estudo de um caso particular nas ciências sociais permite concentrar esforços e retirar dele as propriedades gerais ou invariantes, ocultas debaixo das aparências de singularidade (BORDIEU, 1981). Para esse estudo, reúne-se o maior número de informações possível através de diferentes técnicas de coleta de dados, sendo as mais freqüentes a observação participante e a entrevista em profundidade.

O estudo de caso é uma modalidade de pesquisa que consiste no estudo profundo e de um ou mais objeto, proporcionando um amplo e detalhado conhecimento. O estudo de caso pode ser definido como uma exploração de um sistema delimitado, envolvendo múltiplas fontes de informação.

Em todas as áreas, os estudos de caso são desenvolvidos para proporcionar um maior conhecimento e envolvimento do profissional, aluno ou pesquisador, com uma situação real observada. Este estudo fornece então, subsídios para a elaboração de estratégias que auxiliem os profissionais a lidar com filhos de emigrantes, de maneira a ajudá-los a passar por esse período de suas vidas.

A pesquisa foi realizada em uma escola de ensino infantil, localizada no Bairro Santa Rita. A Escola oferece ensino para alunos de maternal à 3ª série sendo que seus alunos se encontram na faixa etária de 2 a 9 anos. Funciona nos turnos matutino e vespertino e conta com sete (7) professoras. Atualmente 14 alunos da escola possuem pelo menos um (1) dos pais residindo no exterior.

Os participantes dessa pesquisa foram crianças que possuem pai e/ou mãe no exterior que estudam na referida escola. Participaram 14 crianças que possuem idade entre 4 e 8 anos, os responsáveis pelas crianças, as professores e a diretora da escola. Os dados foram coletados em duas etapas. Na primeira etapa foram realizadas entrevistas através de um questionário estruturado com os Responsáveis e com os professores da criança. Este questionário objetivou levantar o ponto de vista desses sujeitos acerca da emigração e da percepção do comportamento da criança após a emigração do pai e/ou da mãe. O quadro abaixo apresenta as características e o número de crianças que participou da pesquisa.

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Características No

O pai reside nos EUA como emigrante 9

A mãe reside nos EUA como emigrante 1

O pai, a mãe e irmãos residem nos EUA 2

O pai retornou recentemente 1

Residiu nos EUA por 5 anos 1

TOTAL 14

Foram realizados quatro encontros no turno matutino e quatro no turno vespertino, com participação de todas as crianças presentes em sala de aula. A participação daquelas que não possuíam os pais no exterior objetivou evitar possíveis sentimentos de exclusão entre elas.

Na segunda etapa realizou-se diversas atividades com as crianças. Tais atividades foram: Atividade lúdica (desenhos e histórias da criança acerca da emigração), desenhos e histórias relativos ao ambiente vivencial da criança, entrevistas lúdicas semi-estruturadas com os filhos de emigrantes, desenhos relativos ao ambiente vivencial dos pais das crianças, desenhos relativos ao futuro das crianças.

PANORAMA DA EMIGRAÇÃO EM GOVERNADOR VALADARES

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (Censo 2000), Governador Valadares possui uma população de 246.944 habitantes, com um IDH de 0,762 e ocupa uma área de 2.433 Km². Seu histórico de ocupação aponta uma grande expansão urbana no período da construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas, como também da BR 116, construídas na primeira metade do século XX.

Localizada na região leste de Minas Gerais, Governador Valadares apresenta uma trajetória de desenvolvimento rápida, em alguns momentos meteórica, no entanto marcada por ciclos na maioria com características predatórias. Segundo Siqueira (2006 p. 12) “a precária substituição de uma atividade predatória por outra, levou os ciclos ao esgotamento, gerando estagnação e crise”.

O primeiro ciclo de desenvolvimento ocorreu a partir da exploração da Mica por empresas estrangeiras, principalmente norte americanas, na década de 1930. Esgotado o interesse por este mineral, seguiu-se em frente com a exploração da madeira e com a implantação de uma bovinocultura igualmente exploratória, com regime extensivo e sistemática utilização do fogo nas pastagens de capim colonião. Ciclos também já em esgotamento. Atualmente já se identifica mais uma das atividades econômicas da região, a atividade migratória, como uma atividade cíclica.

Siqueira (2006) cita Brito para demonstrar que a partir da década de 60, a migração para outros estados tornou-se uma forma de fugir da estagnação econômica da região do Vale do Rio Doce. E é na década de 80 que a migração para o exterior ganha maiores proporções. Estima-se que de 1986 a 1991, aproximadamente 12 mil valadarenses emigraram para outros países, em busca de novas oportunidades de trabalho. Espindola (1999) cita Soares ao informar que em 1993 calculava-se que 27.000 valadarenses se encontravam nos EUA.

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Os estudos sobre o fenômemo da emigração apontam o perfil dos envolvidos, o motivo da decisão de migrar para o exterior, o tipo de trabalho exercido, a remuneração alcançada, a família de origem, a família construída, as redes sociais, dentre outros. De acordo com Oliveira (2002, p. 4) a população emigrante caracterizava-se à principio pelo seguinte perfil:

[...] eram, no geral, homens jovens que buscavam trabalho em outros países (no caso estudado os EUA, mas não só), com a intenção de acumular capital em alguns pares de anos para, posteriormente, retornarem ao Brasil e investirem este dinheiro ganho no exterior aqui. Suas famílias permaneciam no Brasil a sua espera. O retorno era dado como certo.

No entanto este perfil não se manteve por muito tempo. Durante a pesquisa de campo realizada pela autora durante os anos 2001, 2002 na região de Miami, um novo perfil pôde ser observado. A começar pela paridade entre os sexos de emigrantes, dos 194 entrevistados, 98 eram homens e 96 eram mulheres. Na pesquisa realizada por Siqueira (2006), dentre os 141 que fazem parte da amostra 69 são homens e 72 são mulheres.

O crescimento da emigração de mulheres foi também analisado por Assis (2004) em seu estudo na cidade de Criciúma demonstra que 37% dos emigrantes de criciúma são do sexo feminino. A autora relembra que durante muitos anos a mulher que emigrava o fazia para acompanhar o marido durante ou após a emigração do mesmo. No entanto esta realidade vem mudando a partir do momento em que “em busca de autonomia, para fugir de poucas oportunidades ou de discriminações nos locais de origem” (ASSIS, 2004, p.322), as mulheres passaram a emigrar sozinhas.

A emigração da mulher pode trazer conseqüências mais sérias em relação àqueles que permanecem no Brasil. Independente do motivo da emigração não se pode negar o grande interesse em melhorar a vida financeira da família, principalmente quando nesta família estão incluídos os filhos. Este interesse, no entanto, acaba modificando por completo a vida destes, que precisarão conviver com a ausência da mãe, ou do pai, ou de ambos.

Atualmente os emigrantes tem buscado maneiras de evitar o sofrimento de sua família devido à separação. Uma das maneiras então é levar para o exterior os membros da família mais afetados: cônjuge e filhos. Considerando que um dos principais motivos que leva o sujeito a emigrar é melhorar a vida financeira da família, pode-se supor que a maioria dos emigrantes possui filhos. Esse dado foi observado na pesquisa de Assis (2004) que apontou que 49,5% dos entrevistados possuíam filhos. Estes se encontravam tanto no Brasil quanto nos EUA, como observado na tabela abaixo.

Tabela 1. País onde moram os filhos.

PAÍS N %

Brasil 25 26,0

EUA 56 58,3

Brasil/EUA 15 15,6

Total 96* 100,0

Fonte: ASSIS, Gláucia de Oliveira, 2004 p. 16

Como pode ser observado, pelo menos 26% de crianças possuem pelo menos um dos pais nos exterior, isso levando em conta uma amostra de 194 sujeitos. No entanto este

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número certamente é bem maior considerando que o número de emigrantes brasileiros no exterior está próximo a 200.000 conforme o censo de 2000 (GOZA, 2004).

Outro fato que merece destaque é o de que 58,3% dos entrevistados possuem seus filhos em sua companhia no exterior, apontando assim que os emigrantes mantiveram os esforços de levar os filhos para junto deles. Segundo Goza (1992, p.72) “ [...] entre os casais brasileiros que emigram juntos, há maior probabilidade de presença de todos os filhos [...] quando somente o marido/pai havia emigrado para a America do Norte, quase sempre todas as crianças haviam ficado no Brasil com a mãe”.

Em alguns casos mesmo a mãe emigrando com o pai, não é certo que todas as crianças trilhem o mesmo caminho. Na tabela 1 podemos observar que 15,6% dos entrevistados possuem filhos tanto no Brasil, quanto nos EUA. O que revela que os pais podem não levar todos os filhos. Há ainda o caso de casais que deixam os filhos no Brasil e acabam tendo outros no exterior.

Os filhos de emigrantes nascidos no Brasil e que mudaram-se para os países de destino de seus pais é denominada na literatura de “geração 1,5”. Segundo Siqueira L. (2006, p. 8) a geração 1,5 é constituída de dois grupos.

“O primeiro inclui jovens que nasceram e passaram os primeiros anos da infância no Brasil. Emigraram ainda crianças, mas conservam uma forte carga referencial de suas origens. O segundo grupo é constituído pelos que nasceram no Brasil, mas emigraram na primeira infância, efetivando o processo de socialização na sociedade norte-americana.”

A geração 1,5 reflete o fato de que o filho do emigrante que permanece no Brasil tem grande probabilidade de deixar o país. Um outro fator importante é a fácil adaptação que esse jovem emigrante apresenta em relação a seu novo país de moradia, mesmo considerando as dificuldades com a língua.

Siqueira L. (2006) destaca que dos 32 jovens entrevistados nos EUA, 47% nasceram nos EUA e 53% faziam parte da Geração 1,5. Dentre estes foi observado que 29% consideram a vida nos EUA “boa” e 53% a consideram “muito boa”. A pesquisa realizada por Sales e Loureiro (2004) aponta que dentre os 72 adolescentes que responderam à questão sobre onde preferem morar, 52% preferem os Estados Unidos, 39% preferem morar no Brasil e 9% que querem morar nos dois lugares.

Estes 52% que preferem morar nos EUA, refletem a facilidade de adaptação. A preferência pelos EUA pode ser explicada pelo fato de que além de serem jovens e por tal motivo terem mais facilidade de adaptação ao meio que vivem, possuem maiores oportunidades de se socializarem entre os americanos.

Um exemplo de oportunidade é a Escola Bilíngüe que oferece ao jovem o ensino da nova língua, bem como a manutenção à língua original. A facilidade de encontrarem vagas nas escolas mesmo sendo emigrantes ajuda o jovem a conviver com a cultura norte americana e a desenvolver interesses no que se refere ao futuro propriamente dito, como entrar na Universidade, por exemplo. Um outro fator que auxilia os jovens a se adaptarem à vida no exterior é a expectativa que tinham desde crianças de viver esta experiência. Expectativas estas geradas pelo desejo de seus pais emigrantes em levá-los para o exterior.

Percebe-se então que existe no imaginário da criança bem como naqueles que se tornaram seus cuidadores, a imagem dos EUA como o lugar em que poderá estar em família, o lugar onde seu futuro se encontra. Também não deve se desconsiderar que a criança recebe desde cedo influências dos países desenvolvidos e de suas vantagens. Além de ser influenciada pelos benefícios que recebe do ente emigrante (presentes), a criança visualiza estes países de maneira peculiar.

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Através de filmes e desenhos a criança pode coletar imagens para formar em seu imaginário um lugar perfeito. Um lugar que possui neve onde a criança poderia brincar de fazer bonecos, um lugar onde possui alta tecnologia quando se trata de brinquedos, transportes, eletrônicos, etc. Além do mais este lugar perfeito é onde a criança poderá se sentir amada pelos seus pais. E estes são os principais propagadores da boa imagem dos lugares onde moram. Quando o pai fala que lá é que tem oportunidades, que lá é que tem chances de ter uma vida melhor, a criança constrói fantasiosamente um lugar maravilhoso.

Preocupar-se que a criança esteja imaginando os EUA como um país perfeito não é de fato o problema. Mesmo que ela vá encontrar uma outra realidade ao chegar lá. A preocupação é como fica então a imagem que a criança constrói do país em que realmente vive. Se o Brasil não é o país onde viverá no futuro, ele passa a ser um local transitório. Sendo transitório a criança acaba sentindo dificuldades em aceitar alguns mecanismos de socialização do meio em que vive. A criança cria barreiras em participar de atividades em comunidades ou de se envolver em projetos da mesma. Claro que essas barreiras funcionam na verdade, como uma defesa para a criança. Se ela não se envolve com os projetos do meio em que vive, ela não sofrerá por ter que abandoná-los.

Assim também é na vida escolar da criança. Para uma criança de 7 anos compreender a necessidade de aprender a escrita da Língua Portuguesa se ela se imagina morando nos EUA em pouco tempo é algo difícil. Pode-se considerar que a criança desenvolve essas dificuldades devido à maneira que passa pelo processo de construção de sua identidade. Processo este que recebe forte influência de uma cultura emigrante.

O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

De acordo com a Wikipédia (enciclopédia livre) o termo Identidade é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com os quais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimados uns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seus semelhantes. Nesse sentido o conceito de identidade serve para diferenciar cada ser com a sua particularidade.

Vários são os estudos para explicar a identidade. De acordo com Laurenti e Barros (2000, p. 2) “historicamente o termo empregado para significar o que hoje se entende por identidade foi personalidade”, tal conceito classificava os indivíduos em categorias levando em consideração a estrutura psíquica e a normalidade do sujeito. Segundo as autoras, “o comportamento, em si, configurava-se como recurso para alimentar os princípios constitutivos da personalidade normal ou patológica” (p. 2). Essa classificação separava os sujeitos de acordo suas personalidades, ou seja, buscava-se neste momento encaixar o ser humano dentro de classes pré-determinadas.

A preocupação dos psicólogos sociais em entender o homem como um “sujeito social” e inserido em um contexto sócio-histórico é que deu início ao que se entende por identidade atualmente. Este entendimento da identidade abrange a história social e singular do indivíduo como fundamental à sua formação. Através dessa compreensão da identidade observa-se que ela se constitui como um produto da socialização, produto da interação do sujeito com aqueles que estão presentes em sua vida. Ou seja, desde o seu nascimento o sujeito recebe informações advindas das pessoas que estão ao seu redor. Essas informações é que vão aos poucos contribuindo para a formação da identidade do sujeito.

Ao nascer o homem é idêntico aos outros enquanto ser humano. Não possui neste momento nenhuma característica peculiar que o diferencia dos outros. Segundo Freire (2006, p. 58) “na concepção sociológica, a identidade do sujeito se forma através da relação deste

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com outras pessoas, da interação de valores, sentidos, símbolos e cultura dos mundos habitados pelo sujeito”. O processo de formação de identidade ao mesmo tempo em que iguala o sujeito aos demais faz com que ele passe a se diferenciar dos mesmos no sentido de que sua subjetividade também é construída.

Laurenti e Barros (2000, p. 17) citam Jacques para lembrar que identidade se constitui ao mesmo tempo diferença e igualdade: a palavra identidade evoca tanto a qualidade do que é idêntico, igual, como a noção de um conjunto de caracteres que fazem reconhecer um indivíduo como diferente dos demais. Uma maneira de se compreender essas duas dimensões da identidade é observar o que o sujeito recebe do seu primeiro grupo social, a família. É da família que o sujeito recebe o sobrenome que o iguala aos seus entes, e dela também recebe um nome, que o diferencia dos mesmos.

A construção da identidade do ser humano se baseia na incorporação de impressões e informações provenientes de seu círculo de relacionamento. Embora as primeiras impressões e informações sejam provenientes da relação com seus entes familiares, não se pode desconsiderar, mesmo no desenrolar da infância, o grupo social ao qual faz parte. Pois de certa forma, este grupo social é responsável por boa parte das informações contidas no grupo familiar. Dessa maneira, pode-se entender a explicação dada por Laurenti e Barros (2000, p.18) sobre o que se entende por idêntico na construção da identidade: “igualdade é expressa na história social compartilhada pela família, grupo social, localização geográfica, condições econômicas, culturais.”

Convém destacar aqui as famílias em Governador Valadares envolvidas com o processo emigratório. No que se refere á localização geográfica, há que se lembrar de que Valadares é palco deste processo. Em relação às condições econômicas, é preocupante o fato da economia regional ter a emigração como um de seus pilares. Percebe-se então que o fato da cidade possuir na atualidade uma cultura emigrante, leva o sujeito a conviver em grupos sociais distintos, mas que em suma possuem a emigração como parte de sua história social. Entende-se então que os sujeitos de famílias de emigrantes acabam por se identificar com aqueles que vivenciam a mesma situação e nesse sentido se iguala a eles.

Avaliando esta situação percebe-se a importância do grupo social para a formação da identidade do sujeito, entende-se então a necessidade de compreender o processo de socialização do sujeito, pois a identidade psicológica “é gerada pela socialização e garantida pela individualização” (JACQUES, citado por NASCIMENTO, 2006, p 152). Nascimento nesta mesma página acrescenta que:

[...] os processos de socialização que orienta modos de inserção social, e o processo de formação de identidade psicológica, que solicita a constituição de valores e princípios norteadores na construção da diferença entre um indivíduo e outro, de certo modo se completariam ou se complementariam.

Os processos de socialização do sujeito o tornam, portanto membro de um grupo quando passa a se identificar com o mesmo. Ao mesmo tempo, o sujeito ao se relacionar com esse grupo sabe o que lhe pertence e o que pertence ao grupo. Em conseqüência, o sujeito entende os valores e as normas do grupo, pois por ele foi socializado.

O processo de socialização da criança perpassa pela socialização primária e secundária. A primária consiste naquela que o indivíduo experimenta na infância e a secundária é aquela que introduz o indivíduo em novos setores da sociedade (BERGER E LUCKMANN, 2003). A socialização primária consiste na interiorização dos processos subjetivos de outros que sejam significativos para o sujeito, ou seja, os pais. A criança compreende sua existência relacionando-a com a de seus cuidadores. Ela aprende a ser ela mesma através da elaboração daquilo que observa naqueles que a acompanham.

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“Na forma complexa de interiorização, não somente ‘compreendo’ os processos subjetivos momentâneos do outro, mas ‘compreendo’ o mundo em que vive e esses mundo torna-se o meu próprio” (BERGER E LUCKMANN, p. 174). Através deste pensamento, os autores observam que durante a socialização primária a criança toma o mundo de seus pais como seu. Desta forma a criança que possui um dos pais no exterior acaba interiorizando a idéia de que aquele mundo também é seu. Não só pelo fato de o pai ou a mãe morar nos EUA, mas pelo fato de que é a este país que os mesmos fazem referência durante as conversas com a criança, ou durante as narrativas sobre o cotidiano.

Sem dúvidas a socialização primária da criança que possui um dos pais no exterior não é marcada apenas por valores “estrangeiros”. Deve-se levar em consideração que aqueles que permanecem como cuidadores (seja um dos pais, seja avós e tios) também influenciam neste processo. No entanto, segundo Berger e Luckmann (2003, p. 176) “a criança identifica-se com outros significativos por uma multiplicidade de modos emocionais”.

Os cuidadores podem exercer influência sobre o comportamento, os valores morais e éticos da criança, mas certamente o peso emocional da relação pai x filho tem mais força no momento em que ela escolhe o país que amará, ou não. Se a criança é socializada pelos primeiros cuidadores e se estes compartilham do desejo do pai/mãe emigrante, seria natural que a criança se identificasse com a cultura da emigração.

Além do fator emocional devemos considerar também o fenômeno da globalização, no que diz respeito a comunicação. As distâncias através da comunicação, dos sistemas de informação e dos meios de transportes são encurtadas. Dessa forma “províncias, regiões e nações, bem como culturas e civilizações, são atravessadas e articuladas pelos sistemas de informação e comunicação” (IANNI, citado por FREIRE, 2006, p. 58). Segundo Freire (2006, p. 58) “Neste espaço social ocorre um processo de difusão de padrões culturais globais que acarretam alienação dos valores e das culturas locais”. Em outras palavras, a globalização é um agente no processo de socialização dos sujeitos. Agente no sentido de que acelera o fornecimento de uma gama de informações capazes de influenciar o desenvolvimento da identidade pessoal e cultural do sujeito.

Freire (2006) alerta que a cultura local vem perdendo importância principalmente em cidades pequenas. A autora observa que grande parte da população manifesta uma cultura importada. Essa importação não se refere apenas às culturas norte-americana, européia ou oriental, pois a importação de cultura de outra região/estado é bastante comum. Este fato pode ser observado quando uma pequena cidade adota eventos de cidades maiores e abandona eventos regionais como, por exemplo, festivais e eventos religiosos. Todo esse movimento afeta diretamente os sujeitos que ainda estão em processo de socialização e construção de identidade.

Essa comprovação se dá através do próprio contato com as informações remetidas pelos EUA. Esse contato se dá através de filmes americanos, música, brinquedos e objetos de tecnologia avançada (considerando os produtos nacionais/regionais). Observa-se que a criança além de aprender com seus entes a importância da emigração para a sua família ela tem desperta a atenção à tudo que é referente aos EUA.

Setton (2005, p. 347) observa que as biografias individuais e coletivas “[...] poderiam ser influenciadas por modelos e referências produzidos e vividos em contextos sociais longínquos e/ou virtuais, possibilitados por essa nova configuração cultural”. Isso revela que a proximidade virtual entre Valadares e EUA é capaz de criar um sentimento de identificação com ambos os locais.

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Gonçalves (2004, p. 76) lembra que “a formação da identidade do eu supõe valorações que se inserem em uma compreensão de si que envolve uma apropriação de sua história pessoal [...], essa compreensão de si significa não somente como uma pessoa se descreve, mas também como ela desejaria ser”. No caso das crianças que possuem os pais no exterior observa-se o desejo de permanecer ao lado dos pais, onde quer que eles estejam. Já aquelas cujos pais residem no Brasil podem desejar que os mesmos emigrem para que possam ter as mesmas vantagens das primeiras. Por motivos diversos existe a possibilidade da criança, através de seu próprio entendimento, classificar a emigração como positiva ou negativa. Deve-se atentar para o fato de que seu entendimento está geralmente mais relacionado com o campo afetivo do que com o campo financeiro.

A EMIGRAÇÃO SOB O OLHAR DA CRIANÇA

A forma como os valadarenses representam a emigração, depende tanto do envolvimento com este fenômeno quanto com sua capacidade de entender o mundo e sua própria realidade existencial. No processo emigratório além dos adultos as crianças, mesmo de forma indireta, participam das discussões relativas ao tema. Em outras palavras, a forma como um adulto entende a emigração é bem diferente da forma de entendimento de uma criança, tal como será relatada abaixo.

A percepção das crianças que participaram da pesquisa sobre o processo emigratório fica explicitada nos fragmentos de uma conversa informal realizada com um grupo de crianças cuja idade variava de 7 a 9 anos.

“Entrevistadora: Quem sabe me dizer algo sobre os EUA? - É um país! - Fica bem longe... - Já sei que lá é muito frio. - Lá tem neve! - Lá eles falam inglês! - Lá tem furacão, tem tornado... - O dinheiro lá não é igual ao nosso, é dólar! - Só tem jeito de chegar lá só de avião! E.:Para que as pessoas vão para os EUA? - Para ganhar dinheiro!!!!! (coro) E.: Para quê esse dinheiro? - Para mandar! Minha mãe falou que aqui no Brasil não tinha jeito de arranjar dinheiro. Por isso que ela foi lá e ela trabalha lá e depois manda dinheiro pra cá... - Pra ir pra lá! Manda o dinheiro pra gente ir pra lá também! - Manda dinheiro para mim ir pro shopping, para ir para o parque.”

Fragmentos de uma conversa informal com as crianças de 6 anos.

“Pesquisadora: O que as pessoas que moram aqui em Valadares vão fazer nos EUA? - Trabalhar! - Ganhar dinheiro! - Divertir! - Aprender falar inglês! P.: Por que pessoa vai trabalhar lá? - Para ganhar dinheiro (coro)! - Para ganhar dólar! - Pra dar pra família que mora aqui! - Ontem meu pai mandou dinheiro para mim! P.: Onde que ganha mais dinheiro, aqui em Valadares ou lá nos EUA? - Lá nos EUA (coro) P.: Como que vocês sabem disso?

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- Uai, porque lá ganha dólar! - Porque lá trabalha muito! - Porque lá tem mais trabalho! - Lá tem mais emprego! - Mais loja! - Mais banco! P.: E as pessoas que trabalham lá, trabalham pouco ou muito? - Muuuiiito!! (coro) P.: E como ficam as pessoas que ficam aqui? - Fica triste! - Ganha dinheiro!”

Em sua maioria, as crianças de 6 a 9 anos são capazes de perceber que o processo emigratório está intimamente ligado à obtenção de recursos financeiros. Entendem que os EUA é um país onde as pessoas trabalham e ganham dólares. O mesmo não ocorreu com o grupo de crianças que possuem entre 4 e 5 anos. Numa turma composta por 9 crianças de 5 anos, não havia nenhum filho de emigrantes. Dentre elas 6 possuíam tios ou tias morando nos EUA. Estas percebem os EUA como um lugar lúdico. Nele as pessoas andam na neve e se divertem. Os fragmentos abaixo ilustram essa ocorrência.

Pesquisadora: O que as pessoas daqui de Valadares vão fazer lá nos EUA? - Vão mandar retrato! - Brincar! - Ir na neve! - Morar lá! - Esquiar na neve!

As crianças de 4 anos também não relacionaram a emigração com trabalho, embora 5 delas tenham o pai residindo nos EUA. Mais prolixas no tocante ao tema, o conteúdo de sua fala é semelhante ao grupo anterior.

Pesquisadora: Quem sabe alguma coisa de um lugar chamado EUA? - Minha mãe já chegou de lá! A minha mãe mandou muito dólar para mim... quando ela tava lá. Ela mandou uma boneca que anda também e o carro da Barbie! - Eu sei que lá tem controle remoto! - Minha mãe mandou um celular - Minha mãe foi presa nos EUA. - Sei que tem uma torre bem alta - Lá é frio! - Lá tem neve. - O meu tio sente frio lá! - O meu pai sente frio lá!

As crianças observadas podem ser divididas em três grupos distintos de acordo com a forma que percebem o contexto emigratório:

• Grupo 1: Crianças de 6-9 anos que possuem pais residindo nos EUA e que correlacionam processo emigratório e obtenção de recursos financeiros.

• Grupo 2: Crianças de 5 anos que não possuem pais residindo nos EUA e que correlacionam processo emigratório e atividades lúdicas.

• Grupo 3: Crianças de 4 anos que possuem pais residindo nos EUA e que correlacionam processo emigratório e atividades lúdicas.

A ocorrência dessas situações gera três possibilidades de análise. A primeira seria de que ao vivenciar uma privação financeira, a criança se torna mais sensível à relação entre o “ter dinheiro” e o “ter os objetos que se deseja”. Assim a criança desenvolve uma consciência

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de que através do “trabalho” do pai ou mãe no exterior, é possível ter acesso ao dinheiro e aos presentes que antes não podia ter. É também essa a justificativa dada pelos pais para que a criança “aceite” o distanciamento.

A segunda análise é de que algumas crianças podem ter conhecimento do processo emigratório, sem estar diretamente envolvidas nele. Este é o caso dos sobrinhos de emigrantes. Tais crianças não vivenciam o sofrimento proveniente da falta de um pai ou mãe, sendo ainda beneficiados pelos aspectos positivos da emigração como o receber presentes de tios residentes no exterior. Não obstante, percebem os seus primos (filhos de emigrantes) como sendo aqueles que ganham computador para conversar com os pais, dinheiro para ir ao shopping além do privilégio de recebem as últimas novidades através de presentes que muitas vezes não são facilmente encontrados na região.

A terceira possibilidade de análise está relacionada à fase de desenvolvimento da criança, mais especificamente à sua idade. Quanto mais nova a criança, menor é sua percepção do fator econômico como condição para aquisição de bens. No imaginário infantil os desejos podem se realizar como que por mágica ou sob a ação de um “poder quase ilimitado” do pai ou mãe, dependendo apenas a aceitação destes. Assim, para se obter os brinquedos mais cobiçados, basta que seus pais decidam atender a seus pedidos. Da mesma forma, não existe para elas uma clara percepção de que a estada de um ou ambos os pais no exterior é decorrente diretamente da necessidade de se comprar uma casa ou outro bem. Para elas é uma simples opção na qual seus pais têm a oportunidade de viver num lugar mágico onde se pode fazer bonecos de neve, ter contatos com Papai Noel e outros heróis. Não é o dinheiro especificamente que gera a possibilidade de que a criança receba presentes, mas a proximidade dos pais com um lugar onde existem muitas fábricas de brinquedos.

Embora o lúdico e o econômico se apresentem de forma mais marcante em uma ou outra faixa etária, não seria adequado criar uma percepção estática em relação a essas ocorrências. Deve-se considerar que enquanto são crianças o lúdico faz parte de suas percepções. Além disso, enquanto não chegam à puberdade, as idades não se constituem em barreiras para a comunicação permitindo a interação entre elas. Assim, as impressões das mais velhas são transmitidas às mais novas e vice-versa. O diferencial é que possuindo idades mais próximas, mais do que impressões, existe o estabelecimento de diálogos entre as mesmas.

O diálogo abaixo, ocorrido entre um grupo de crianças cuja idade varia de 6 a 8 anos, demonstra que embora possuam uma visão econômica da emigração, a percepção lúdica relativa ao estar nos EUA é mantida. Essa idéia pode se observada através da discussão onde relatavam o que achavam dos EUA.

P. (8anos): Acho que é bom, fazer boneco de neve, brincar de bola, esquiar, quando eu for nos EUA eu vou pedir minha mãe para comprar uma prancha de esquiar na neve...

A. (8): Eu já morei lá, ah era ruim, não podia passear de carro às vezes porque as ruas estavam cheias de neve...

P.(8): É, mais brincar podia né? Fazer boneco de neve...

A. (8): É, podia...

C. (8): Lá deve ser bom. Porque tem neve, da pra brincar na neve, da pra esquiar.

A. (8): Lá tem Mac Donalds sem ser no shopping, tem parque lá igual da exposição.

Y. (7) Lá tem neve, lá é gostoso, da pra brincar de guerra de neve. E lá é frio, eu gosto muito de frio. Lá tem muito shopping.

R. (8): Lá é bom, porque tem boneco de neve.

L. (6): Lá é bom, porque da pra fazer boneco de neve. E é ruim porque às vezes a gente fica enjoado de frio. Aqui é bom porque é calor, da pra tomar banho de piscina.

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A. (8): Tia, lá nos EUA não tem violência!

C. (8): É lógico lá tem mais de um milhão de polícia.

A.(8) : É e se a criança tiver na rua na hora de ir pra escola, prende a mãe dela!

Na discussão acima é veiculada a perceção de que os EUA é um país onde o brincar é intenso. A presença da neve permite que todas as crianças e em todos os lugares possam esquiar, fazer bonecos de neve e outros. Apesar disso, na mesma discussão realidade e fantasia são confrontadas. Esse confronto é decorrente do fato de que A(8), residiu nos EUA e portantao suas informações e percepções são baseadas em vivências ocorridas naquele país. Importante observar que sua percepção de que a neve atrapalhava seus passeios (realidade), foi confrontada por P(8) que imaginou que A (8) não podia passear, mas podia brincar com a neve (fantasia). Por não conhecer de perto a neve, a criança tem dificuldades em entender que a nevasca que impede o trânsito nas ruas, é a mesma que impede as crianças de sair de casa ou ir à escola devido ao frio e vento intenso.

A(8) também faz comparações entre o Brasil e os EUA ao falar que lá tem Mac Donalds na rua, parques para brincarem e não tem violência. Inegavelmente a violência é uma realidade universal, que ocorre tanto no Brasil quanto nos EUA. Contudo, tanto a mídia internacional quanto nacional acentuam a presença desse fenômeno nos países em desenvolvimento e do terceiro mundo negando em grande parte sua ocorrência nos países desenvolvidos. O sensacionalismo dos meios de comunicação, relacionado à violência, não poupa os olhos e ouvidos infantis. As reportagens criam consdições de banalização do tema da violência fazendo com que as crianças associem esse fenômeno à realidade brasileira. Já aquela presente nos desenhos, filmes e seriados americanos é mascarada pela presença de heróis que no final colocam o bandido por detrás das grades tornando seguros os espaços sociais.

Comparar o Brasil e os EUA, através de desenhos, foi uma das atividades propostas ao grupo de crianças do turno matutino (7 a 9 anos). Uma das características do desenho infantil é de que ele representa mais o que a criança sabe a respeito de um objeto ou situação, do que aquilo que ela vê (PEREIRA, 2007). Por não se prender aos labirintos da linguagem, a criança representa mais direta e livremente seus sentimentos e conhecimentos através do desenho. Ao ouvir a criança falar a respeito do que ela desenhou, o pesquisador obtém os elementos necessários para uma adequada análise do das vivências infantis em relação ao tema enfocado. Assim foi pedido que fizessem um desenho onde de um lado da página representassem o que sabem sobre “os EUA” e do outro lado sobre “o Brasil”. Os desenhos abaixo possibilitaram a coleta de representações infantis a respeito do país para o qual emigrou seu pai e/ou mãe.

O desenho das crianças retrata aquilo que elas realmente percebem a respeito de um determinado assunto. Nos desenhos acima, pode-se observar que mesmo as crianças que possuem pais residindo nos EUA e que correlacionam processo emigratório com obtenção de recursos financeiros representaram em seus desenhos apenas situações lúdicas. Embora a existência de neve seja real e seja um problema para o adequado funcionamento das cidades, as crianças a percebem como um brinquedo. Daí os temas esquiar e fazer bonecos de neve. Apenas A (8) desenhou uma cachoeira ao representar os EUA, o que justifica o fato de que veja a neve como um obstáculo ao lazer. Na discussão com os colegas, havia relatado a dificuldade em passear quando nevava.

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L. 7 anos

EUA: Neve,

BRASIL: Sol. Gosta mais de frio do que de calor

S. 7 anos

EUA: neve.

BRASIL: flor, sol, nuvem

Gosta + do calor do que do frio.

A. 8 anos

EUA: Cachoeira, la é bom ir na cachoeira e a praia.

BRASIL: Shopping

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P. 8 anos

EUA: Eu esquiando na neve.

BRASIL: Fiz uma cachoeira, aqui é um golfinho, nunca vi um golfinho

A representação dos EUA como um lugar que possui muita neve está relacionada

à maneira como os pais emigrantes se comunicam com suas crianças. Na busca de estabelecer

um diálogo com os filhos, um diálogo que leve em conta o modo como os filhos entendem o

mundo e a vida, utilizam-se de imagens lúdicas que aumentam ainda mais a admiração dos

pequenos em relação àquele País. Pode-se ainda observar que a representação dos EUA como

um país da neve relaciona-se a dois fatores. O primeiro é o costume dos emigrantes de enviar

fotografias nas quais aparecem em uma cena com objetos cobertos de neve. O segundo aos

filmes americanos com temas natalinos. Nestes, a família se reúne para comemorar as festas

de fim-de-ano, há trocas de grande número de presentes e toda a atmosfera é envolvida num

cenário onde a neve ocupa um lugar de destaque.

O costume de enviar fotos onde as pessoas aparecem na neve pode ser

exemplificado pela fala de G. (8 anos), cujo pai enviou uma foto no qual fazia um boneco de

neve e a L. (6 anos) que recebeu uma foto do pai em frente a um carro coberto de neve.

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G. 8 anos

EUA: Neve, a neve é muito boa, da pra patinar. Meu pai já tirou foto de lá, ele tirou foto de dois carros cheinhos de neve. Ele fez um boneco de neve. Ele pegou uma cenoura bem comprida e colocou no nariz dele. Ai ele tirou foto e mandou

BRASIL: é praia, golfinho. Já vi um golfinho quando fui a S.P. Eu nasci lá!

L. (6 anos)

Uma menina andando na neve. As pessoas estão tristes. Porque tá muito frio. Não sei para onde eles estão indo não. Meu pai já mandou uma foto para mim com o carro cheio de neve.

Não são apenas as fotografias que dão à criança uma idéia dos EUA como

um lugar lúdico. As conversas telefônicas mantidas frequentemente entre o residente

nos EUA e sua família, atuam como instrumentos de construção de representações

lúdicas. Aqui realidade e fantasia se confundem sem que se possa ter uma exata medida

de quem constrói a fantasia: o adulto ou a criança. Vale citar fragmentos do discurso de

G.(5 anos):

“G.: O marido da minha titia é amigo do papai Noel. E.: É mesmo? Como você sabe? G.: Ele ligou pra mim e contou pra mim e pra minha mãe.”

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Mesmo sendo sobrinha de emigrantes, essa garotinha escuta de seus tios que

eles são amigos do Papai Noel. Como ela pode não acreditar nessa afirmação se além de

não ter idade para desconfiar dos tios, ela ainda acredita que ele existe. Certamente,

várias são as crianças que recebem algum tipo de informação sobre os EUA, mesmo não

tendo seus pais naquele país. A título de exemplo dentre os desenhos dessas crianças a

neve apareceu em dezessete vezes, o boneco de neve apareceu duas vezes e brinquedos

também duas vezes.

Os presentes enviados dos EUA são também fonte para a construção da

imagem lúdica daquele país. Tanto os filhos de emigrantes, quanto os sobrinhos relatam

o que ganharam quando as famosas “caixas” chegaram:

G. (8 a): Meu pai vai voltar, vai trazer os presentes, quero dizer o amigo do meu pai que vai trazer. Ai meu pai vai vir, eu acho que ele vai trazer mais presentes, vai trazer um microondas para minha mãe... meu tio já mandou um pra ela. P.(8 a): Minha mãe vai mandar uma caixa de brinquedos, sabe quantas ela já mandou? 5. Agora vai mandar mais uma... G.: Meu pai vai trazer um notebook pra mim G. (4 a:) Minha mãe mandou um celular!! Ela mandou uma boneca que anda também e o carro da Barbie J. (4 a): Lá em casa tem um carrão de controle remoto que corre muito, foi meu tio que mandou. Ele mandou pequeno também. L(4 a): Meu pai mandou um dinossauro pra mim! A (5 a) Minha tia manda um tanto de boneca para mim, meu quarto e cheio de boneca! A minha tia mandou 3 caixas dos EUA com um tanto de roupa. F (5 a) Minha tia manda um tanto de roupa! A (5 a) Minha tia manda um tanto de carrinho! L (6 a) Eu ganhei um microondas com um tanto de ursinho dentro. Meu pai comprou um pra minha mãe porque ela não tinha. D (6 a) A minha tia ela também mora nos EUA. Ela mandou uma garrafa, e um ursinho que ora e uma bóia. (O urso ora em inglês e ela não entende o que ele diz) D (6 a) A minha mãe mandou um carro de bombeiro pra mim.

Com todos esses presentes, não é difícil para uma criança imaginar que os

EUA é um lugar de brincadeiras, bem como concluir que Antes dos brinquedos

chegarem aqui, vão lá primeiro! G (4):

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G. 4 anos

Uma boneca e um carro da Barbie que veio lá dos EUA.

B. 4 anos

Fiz um monte de menininho que mora nos EUA. Eles estão brincando

Uma das consequências esperadas quando a criança supervaloriza o que

vem dos EUA é a desvalorização do lugar onde vive. Para observar se essa

consequência já é presente no cotidiano da criança foi pedido que desenhasse o lugar

onde ela morava e que contasse como era esse lugar. Através dos desenhos foi possível

coletar diversas representações infantis a respeito do local em que vive.

Como pode ser observado nos desenhos das crianças, apresentados abaixo, a

maioria das casas possui dois andares. São grandes moradias acompanhadas por seres

vivos (pessoas, árvores e borboletas), externando o sentimento de aconchego, afeição e

de carinho dessas crianças pelo seu lar. A manifestação de sentimentos e atitudes

positivas em relação a tal ambiente é indicador de satisfação e harmonia com o mesmo.

É comum que as crianças valorizem tudo aquilo que se apresenta como gerador de

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prazer. Em decorrência não se pode afirmar que crianças de até 9 anos tenham um

sentimento de desvalorização do lugar onde vive.

L. (6) – A casa possui uma escada que leva para o segundo andar. Ela mora na parte de cima. A garotinha está sentindo frio, por isso o gorro e o casaco. Ao pedir uma segunda folha, desenhou a rua e uma casa vizinha.

L. (7) – A casa possui dois andares, além dos desenho de árvore e borboleta, desenhou pessoas andando na rua e escreveu que sua casa é bonita que muitas pessoas vão na sua casa.

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G. (7) Mora com os tios. Observa-se uma casa grande, ao mesmo tempo uma casa vazia e ele está do lado de fora. Sinais de sensação de não pertencimento. Ao contar sobre a casa, escreveu o endereço e descreveu quem mora na sua casa.

J. (6) O pai morou na Nova Zelândia, por isso tem uma casa grande. Os tios ajudaram a construir. É uma casa linda e com piscina.

D. (6) Mora com os avós e madrinha. Uma casa que embora seja pequena é calorosa, se observarmos chaminé e as pessoas.

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G. (8) Desenhou uma casa de dois andares, mora na parte de cima. Ao dizer que é “uma casa onde ninguém passa fome” reflete o discurso dos pais ao justificar a necessidade do trabalho emigrante.

A (8) Embora tenha uma casa grande de 3 andares, ainda não tem o carro. Ao mesmo tempo que demonstra gostar e valorizar onde mora, mantém o discurso de emigrante: “ainda não temos carro”.

S. (7) Uma casa pequena porém em um espaço aconchegante, com vizinhos, árvore, borboleta e arco-íris. Relata os planos da família de se mudarem para Vitória, quando o pai voltar.

Mesmo não desvalorizando o local em que vive a criança já faz planos de deixar o país. A ida para os EUA reflete o desejo de reencontrar o pai ou a mãe

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residente no exterior, bem como o interesse do responsável pela criança em partirem para aquele país. Embora a criança goste do lugar onde mora, por estar envolvida pela cultura da emigração e conviver diretamente com o fenômeno é capaz de perceber que é mais fácil irem ao encontro do emigrante do que este deixar de sê-lo. Os fragmentos apresentados da conversa com uma criança permitem levantar as expectativas da criança em relação ao tempo e lugar de reencontro com os pais.

P. (8): Quando eu for nos EUA eu vou pedir minha mãe para comprar uma prancha de esquiar na neve... E: Você vai para os EUA? P. (8): Vou em 2008. A minha mãe E vai me levar para encontrar minha mãe R. Eu tenho uma irmã lá. G. (8): Hã, eu vou esse ano eu vou pra lá!! E.: Quem vai te levar? G. (8):Meu pai vai voltar[...] Ai quando ele chegar, aí a gente vai também! E: Sua mãe vai também? G. (8): Vai, e minha irmã também. Ela tem 12 anos.

Entrevistadora: É verdade que você vai para os EUA? L (4): É!!!! L (4): Vai morar eu meu pai, minha mãe, minha tia e minha irmã. E.: Você vai pra lá de que? L (4): Não sei!!!! E.: Vc vai de avião? L (4): Eu vou de trem...

Ô tia, a L (6) vai pros EUA!! E.: É verdade L? L (6): É sim, talvez eu vou semana que vem, mas eu não sei ainda, minha mãe que me falou, mas eu não lembro.

Para verificar as expectativas quanto ao futuro segundo a perspectiva de tais crianças foi pedido que elas fizessem um desenho sobre a profissão que querem exercer quando crescerem e que desenhassem onde vão morar quando crescerem. Em relação às expectativas de futuro deve-se considerar que ao desenhar, “a criança revela mais do que aquilo que conscientemente queria dizer, e através disso se expressa, no sentido profundo da palavra” (Marinho & Godinho, 2004). As crianças que desenharam que no futuro vão morar nos EUA ou em outras cidades, revelam tanto o desejo de reencontrar os pais, quanto o desejo de ter uma vida diferente.

Quando o D(6) desenha que vai morar em Belo Horizonte com o pai e com aqueles que mora atualmente, ele está dizendo que ele precisa da presença de um dos pais, mas também não quer correr o risco de desapontar aqueles que cuidam dele. G (8) desenha que no futuro vai morar nos EUA com sua esposa e seus filhos. De certa forma, está fazendo uma crítica ao pai que deixou ele, a irmã e a mãe aqui no Brasil. Como pai, G não faria isso.

No caso de L(7), ela desenha uma casa menor do que aquela que desenhou como sendo a casa que mora, colocando em questão o desejo do pai em ter uma casa grande. Também desenhou um portão com grades demonstrando desejo de ficar sozinha, longe daquilo que atualmente a faz sofrer. É fato que ultimamente ela tem passado muito tempo dormindo, tanto à noite quanto durante o dia99. Ao ser questionada sobre o que faz quando está triste, ela disse que dormia.

Enfim o desenho pode mostrar como a criança se imagina, como ela gostaria que sua família agisse, como ela gostaria de ser tratada, dentre outras tantas 99 Informação fornecida pela família

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interpretações. As profissões escolhidas pelas crianças como aquela que querem exercer no futuro, está de alguma forma remetida ao cuidado com as pessoas, com as crianças, como médicos, policiais e professores. Embora esses sejam os profissionais com os quais as crianças se relacionam, são também aquelas que as fizeram sentirem-se bem cuidadas e protegidas.

P (8) - Deseja trabalhar como motorista de ambulância e vai morar em Curitiba. A mãe separou-se de seu pai e casou-se com um Emigrante desta cidade. Quando a mãe voltar se mudará para lá, a avó vai também. Irá nos EUA só passear, o ano que vem.

A (8) – Quando crescer será policial ou professora. Pensa em morar com os pais no Brasil quando crescer na casa onde mora atualmente.

D. (6) – A mãe não dá esperanças de voltar ou de levá-lo. Em seu desenho fala que vai morar em Belo Horizonte (cidade onde o pai mora), juntamente com aqueles com quem mora atualmente (vó, vô, madrinha e prima).

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G. (8) – Deseja ser professor de karatê (identificação com o professor da aula que está fazendo). Vai morar nos EUA com a esposa e filhos.

L (6) – Deseja ser médica para cuidar das crianças. Quando crescer vai morar nos EUA com o papai. Interessante notar que a casa é bem parecida com a que mora atualmente.

M (6) – Vai ser médica quando crescer para cuidar das crianças. Vai morar nos EUA com os pais.

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B. (4) – Vai trabalhar lá nos EUA com o “papai”. Mas não sabe com o quê vai trabalhar. Não sabe com o que o pai trabalha.

L. (4) Queria trabalhar nos EUA. Mas se ele for lá, o pai dele vai mandar ele vir embora. O pai não quer deixar ele trabalhar lá. O desejo de ir encontrar o pai aparece como um desejo de ir trabalhar lá. No entanto não é possível que ele vá para os EUA, então ele diz que o pai não deixa ele ir para trabalhar.

L (6) – Quer ser médica para cuidar das pessoas. Vai morar sozinha quando crescer no Brasil. De fato, embora more com a mãe, passa a maior parte do tempo sozinha, conversa raramente com o pai. Sua vida não será muito diferente no futuro.

O fato de a criança afirmar que no futuro vai se mudar para os EUA pode estar relacionado com o real interesse do responsável em emigrar. No entanto é necessário saber o que o responsável pela criança realmente pensa a respeito dessa decisão. Para tanto vale ressaltar as falas dos mesmos ao que se refere à necessidade da emigração e à possibilidade de emigrarem:

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Mãe do G(8): “Acredito que não justifica, ele ter ido, pois a vida financeira continua quase como antes. Apesar de termos reformado a casa e comprado um lote, acho que se ele estivesse aqui, isso também aconteceria, isso levaria tempo, mas conseguiria com o trabalho que tinham aqui.”. “Meu marido gostou muito de lá, em função disso tentará legalizar-se em julho e eu já até mandei os papeis para ir legalmente com as crianças.” Entrevistadora: O que seus filhos acham disso? Mãe: Ah, eles vibram! Avó do P (8): “Entendo a necessidade, pois a mãe dele precisa trabalhar para poder dar uma vida boa para ele e ate para resolver a própria vida, financeiramente. Acredito que não tem vantagens, porque tanto as crianças como os pais sofrem demais com a solidão. Não tem dinheiro que pague a união.”. Estou organizando os documentos para ir para a Disney com ele. Assim ele vai ver a mãe dele. Talvez ele fique e eu volte. Minha filha se casou com um rapaz de Curitiba e quando ela for voltar, irá para lá. Ele é um rapaz bom e o P. até chama ele de pai. E.: E a senhora, vai agüentar a saudade do P? Avó: Não, eu vou pra Curitiba também. Olha, eu sou divorciada e a criança é muito grudada em mim, então já ta certo que eu vou. Tia do G (7): Não vejo vantagens na emigração porque os filhos sofrem demais. Acho que se os pais forem tem que levar a família toda. A mãe dele veio ficou um ano e levou os irmãos dele. Antes ele pedia muito pra ir, agora fala que só vai se o avô for. É muito apegado a ele! Não quer morar lá! Só passear. Avó da M (7) – Tem a vantagem financeira, né? Ela pode comprar as coisas pras meninas, um brinquedinho... As desvantagens é que eu acho ruim as crianças ficarem longe da mãe, mas a vida é assim mesmo. Nada é fácil. Tenho outros filhos no exterior também, lá em Portugal. As vezes ela fala que queria levar as meninas, mas é difícil né? Mãe da L(6) e do L(4) – Vantagem eu não vejo nenhuma. Acho que tem muita desvantagem em ir para lá. As crianças trocaram o pai pelo dinheiro. Mas se eu conseguir o visto, eu vou com as crianças. Já até mandei uns documentos pra lá, porque eu fui convidada para pregar em uma igreja lá (é missionária), talvez com a carta eu consiga ir, mas só se eu conseguir levar as crianças. Avó do D(6) – Acho que a mãe dele tem que aproveitar as oportunidades... ir para um lugar desses. Ela foi para lá “para fazer pra ela e pro filho dela”. Ela trabalha lá para ver se faz algo aqui. Tenho outros filhos lá com ela, eles falam comigo: ah mãe, a gente quer fazer alguma coisa por ela... Quando ele pergunta pela mãe, eu falo pra ele: sua mãe foi trabalhar lá pra comprar brinquedinho pra você. Ele gosta muito de brinquedos. A mãe fala que vai levá-lo. Ele fala que não vai. Mãe da L(6) – Graças a ele ter ido ela pode estudar em escola particular, fazer natação. O ruim é que ela está perdendo o amor pelo pai. Começa a querer falar com ele só quando quer algo. Eu não vou de jeito nenhum, tenho minha mãe que eu cuido, ela é doente. Se fosse ocaso de levar a L. quando ela crescer, aí sim. Ele quer levar meu filho pra lá. Ele é doido para ir. Mãe do B(4) Eu acho que só tem desvantagem. Sempre acreditei que quando o homem vai para os EUA, ou ele não volta ou ele volta e termina com a mulher. Tem 2 anos que ele ta fora e a vida não melhorou nada. Só tivemos problemas. Antes as crianças falavam q queriam passear na casa do papai. Agora que entendem que o pai tá longe e tá trabalhando não falam mais. Eles não têm interesse de ir mais. Mãe da G(4) – Só vejo desvantagens. Eu não tenho interesse de ir, mas vou tentar o visto e se conseguir, vou com minha filha. Só se for assim. Ela falava muito que iria pra lá, mas quando eu falei que lá ela teria que trabalhar muito, ela desistiu, ela achava que lá ela ia ficar brincando na rua, andando de bicicleta.

Através das falas dos responsáveis pela criança pode se observar que dentre as 8 que participaram da entrevista, existe uma possibilidade de 5 irem com as crianças para o exterior. Mesmo aquelas que afirmaram que a emigração não vale a pena, estão preparando os documentos para irem legalmente, o que demonstra que seria melhor a família estar lá, do que o emigrante voltar. Ao mesmo tempo reflete a certeza de quem espera que seu parceiro, ou filho (a) não conseguirá cumprir com a promessa de retorno breve.

Em relação à perspectiva dos professores da escola sobre o efeito da ausência de um ou de ambos os pais sobre o comportamento da criança foi observado que a maior dificuldade da criança é no relacionamento social e no campo afetivo. Poucas crianças ficam

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agressivas, a carência é o principal “sintoma” percebido pelas professoras. Diante disso, a intervenção feita geralmente envolve abraços e beijos. A dificuldade maior encontrada pelas professoras é falar sobre a emigração dos pais da criança. Por acreditarem que falar do assunto traria algum tipo de sofrimento, elas evitam trazer o assunto à tona.

É compreensível (considerando a maturidade) o fato de que as crianças não “falarem” sobre a questão da emigração dos pais. No entanto através dos desenhos elas podem expressar com muita fidedignidade aquilo que pensam sobre o assunto. Lowenfeld, (apud PEREIRA, 2007), ressalta que além da importância do desenho para o desenvolvimento da criatividade e da capacidade de representar da criança, o desenho funciona como um veículo de auto-expressão. Quando a criança desenha a neve ou um boneco de neve para descrever os EUA, ela está expressando as informações que recebeu dos pais emigrantes vinculadas à sua fantasia. Pode-se dizer que:

O desenho, forma de pensamento, propicia oportunidade de que o mundo interior se confronte com o exterior, a observação do real se depare com a imaginação e o desejo de significar. Assim, memória, imaginação e observação se encontram, passado e futuro convergindo para o registro da ação no presente. (DERDYK, citada por PEREIRA, 2007, p. 4).

No entanto não se pode analisar o desenho da criança com o conceito de que ela estaria expressando uma “verdade fantasiosa”. Moreira (citado por PEREIRA, 2007), “salienta a necessidade do respeito ao desenho infantil não apenas pelo espaço de liberdade de expressão que constitui, como também pela sua condição de linguagem”. Um exemplo é a análise dos desenhos da casa, a maioria das crianças desenhou casas grandes refletindo em alguns casos que sua casa ainda não estava pronta, como no caso do G. (8) e da L. (6) que moram no andar de cima enquanto a avó mora embaixo. Por outro lado mostra que embora a casa esteja “pronta”, como a casa da L.(7), mas o pai ainda não voltou.

Importante considerar que Renso, Castelbianco e Vichi (citado por PEREIRA, 2007, p.5), consideram que o desenho também é “resultado de atividade intencional envolvendo aspectos cognitivos e emotivos no seu ajuste à realidade com a qual convive”. No caso de D (6), pode-se observar uma casa calorosa, com pessoas e chaminé, o que “esconde” o fato de que a mãe mora nos EUA e o pai após a separação não dá notícias. Percebe-se que ele se adapta a essa realidade se aproximando daqueles que ficaram com ele, pensando até em levá-los para morar com esse pai quando crescer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os filhos de emigrantes estão sujeitos a terem em sua identidade marcadas pelo processo emigratório a que estão submetidas. Isto se dá pelo envolvimento da criança com o pai ou mãe emigrante que por sua vez, atribuem aos EUA, valores superiores ao país de origem. Essa assimilação de valores pela criança, decorrente da relação que ela mantém com seus pais emigrantes, está em conformidade com o pensamento de Aulagnier (citado por Oliveira, 1996). Este autor defende a tese de que a relação das crianças com seus pais envolve o vínculo dos mesmos com o meio em que vivem.

Dentro dessa perspectiva constatou-se, com a realização desta pesquisa, que as crianças fazem referência aos EUA tendo como base a bagagem de experiência de seus pais e tios. Bagagem esta que recheada de falas, estórias e presentes, demonstra a simpatia dos filhos de emigrantes com a cultura Americana. Tal simpatia é decorrente de impressões relativas a esta cultura, que se fizeram presentes durante o processo de construção da identidade infantil.

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Freire (2006) afirma que a interação com outras pessoas e a vivência conforme os valores destas têm importante papel no mecanismo de formação da identidade do sujeito. Fica claro que a criança que interage com pais, avós, tios e vizinhos que possuem como valores o trabalho emigrante, tende a interiorizar estes como seus. Esse processo pode ser compreendido também através da fala de Berger e Luckmann (2003) quando lembram que no processo de interiorização o sujeito não só ‘compreende’ o mundo em que vive, como também torna este mundo como sendo seu.

Apreender o mundo do outro como seu próprio mundo, faz parte de um processo que torna um indivíduo igual a outros indivíduos. Ao mesmo tempo em que um filho de emigrantes se iguala aos seus parentes no sentido de compreender a emigração como uma possibilidade, se iguala também à outros filhos de emigrantes. Deve-se levar em conta que as crianças que possuem pelo menos um dos pais no exterior, são idênticas nos quesitos solidão e fantasia. Solidão por conviverem com a falta do pai e/ou da mãe. Fantasia por “acreditarem” que essa situação existe para que possam ter uma vida melhor. Vida esta que consiste em ter uma casa grande, um carro, muitos brinquedos e dinheiro para os passeios no shopping. No discurso das crianças percebe-se que suas expectativas se misturam à inúmeras expectativas próprias dos adultos.

Sendo crianças parte-se do pressuposto de que elas realmente vão aprender que essas obtenções lhe trarão mesmo a felicidade. Aprendem também a entender e a fantasiar (afinal, são crianças) as vantagens e desvantagens de terem seus pais fazendo parte do processo emigratório. A pesquisa revelou que mesmo tendo as crianças idade inferior a nove anos, possuem algum grau de entendimento em relação à emigração de um dos pais. Entendem que os pais estão em um local onde não podem se encontrar facilmente, devido a distância. Aguardam o dia em que os pais cumprirão as promessas de levá-los para junto deles. Fantasiam que o país onde os pais moram é uma “terra encantada” na qual a neve não proporciona nada além de um eterno brincar, onde os brinquedos são fabricados e onde o dinheiro pode ser conseguido com facilidade.

Embora tenham interesse em morar ou passear nos EUA, as crianças observadas não possuem um sentimento de rejeição pelo lugar onde moram. Diferente disto, demonstraram um grande conflito em estar aqui e estar lá, visto que aqui estão as pessoas que ela conhece, se diverte e ama. Por outro lado, lá está uma pessoa da qual ela sente falta e que mora num lugar mágico onde coisas boas acontecem.

O objeto central deste estudo foi, através das observações com filhos de emigrantes, verificar se o processo emigratório exerce influência sobre a construção da identidade cultural destas crianças. A análise das observações confirma essa hipótese. Embora as crianças tenham um sentimento de afeição por sua cidade, a maneira como seus pais e responsáveis reforçam a importância de viver nos EUA e reafirmam o quão vantajoso pode ser trabalhar naquele país, gera nelas um deslumbramento e uma expectativa de um dia residir naquele lugar tão valorizado. É nesse sentido que o processo emigratório interfere na construção da identidade destas crianças.

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O REFLEXO DA MIGRAÇÃO NA VIDA ESCOLAR DOS FILHOS DE MIGRANTES

Ana Clara de Paula100 Maria Terezinha Bretas Vilarino101

“Retenho em minha memória o teu nome, aqui, comigo; saudade

que é a minha glória, saudade que é o meu castigo.” (Frei Afonso Maria da Paixão)

RESUMO É conhecido o fenômeno de migração de valadarenses para terras estrangeiras. O presente trabalho tem por objetivo analisar como este fenômeno migratório se reflete sobre a família do migrante, especialmente sobre os filhos em idade escolar. Para esta reflexão tomou-se como referência a Escola Municipal Duque de Caxias, que concentra um razoável número de alunos filhos de migrantes. O problema apresentado merece ser analisado com atenção por educadores e gestores com a finalidade de acompanhar e auxiliar estes alunos para superação ou amenização das dificuldades vivenciadas. Palavras chave: Migração, família, escola. ABSTRACT

The phenomenon of migration of valadarenses for foreign lands is known. The intent of this paper is to analyze how this phenomenon affects the grante family, especially the children in school ages. The Duque de Caxias Municipal School had been elected as reference because it concentrates a reasonable number of pupils children of migrantes.. Educaters and managers should pay more attention on this problem with the purpose to follow and to assist these students for overcoming or ease their difficulties.

Keys Word: Migration, Family, School

A MIGRAÇÃO COMO FATOR DE NOVA DINÂMICA FAMILIAR.

A migração não é um fato recente; o deslocamento da população está relacionado, na historia da humanidade, com o objetivo de obter melhores condições de vida e de trabalho.

Os autores clássicos compreendiam este fenômeno como parte de um processo de urbanização e metropolização. Para Max, Durkheim e Weber, citados por L. Siqueira (2006), o fenômeno da migração é conseqüência do processo de desenvolvimento do capitalismo. Para o sociólogo do século XXI, compreender esse fenômeno torna-se uma questão essencial, tendo em vista o crescente movimento das populações.

100 Ana Clara de Paula é professora da Escola Municipal Duque de Caxias, onde trabalha no Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries). Este trabalho é fruto de sua monografia de conclusão de curso de especialização em História e Cultura Brasileira, pela UNIVALE. 101 Maria Terezinha Bretas Vilarino é professora do Curso de História da UNIVALE; especialista em História, atualmente é mestranda em História pela UFMG. Foi professora-orientadora deste trabalho.

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A migração internacional passou a ocupar um lugar de destaque na agenda de discussão sociológica, tendo em vista o crescimento desse fluxo e os problemas dele decorrentes tanto no continente europeu como na América (SIQUEIRA, 2006).

A migração internacional foi uma variável fundamental na historia da economia brasileira. O Brasil recebeu um número alto de imigrantes, aproximadamente quatro milhões e 400 mil pessoas no último quartel do século XIX, estendendo-se até o final da década de 1930 do século XX, vindos de vários países principalmente da Alemanha, Portugal, Itália, Espanha e Japão. Estes dedicavam principalmente ao serviço agrícola (SOARES, 1995). A chegada da primeira leva desses imigrantes ocorreu no período de 1880 a 1903. O Brasil recebeu um grande número de imigrantes até 1927, fato descontinuado entre outros motivos pelo rompimento do subsidio para emigração estrangeira, vetada pelo governo de São Paulo (SIQUEIRA, 2006).

As condições estruturais que deram suporte ao padrão migratório 1930/1980 modificaram-se em função de grandes crises que assolaram a economia brasileira na década de 1980, com forte recessão e desemprego, momentos difíceis para a sociedade brasileira. Em razão dessas novas condições estruturais a imigração estrangeira desacelera-se ocorrendo o oposto nos anos 1960, quando se percebe uma mudança desse caráter de receber imigrantes para emissor de mão-de-obra aos países industrializados (SIQUEIRA, 2006). A partir de meados da década de 80, o Brasil é surpreendido por um novo movimento de sua população: a emigração de brasileiros para o exterior. Conforme demonstram vários estudos, entre estes, Patarra e Baeninger (1995, p. 35),

O fenômeno da migração internacional deve ser observado dentro da complexidade da economia global atual que corresponde a certas desconjuntaras fundamentais entre economia, cultura e política. Este movimento, que na década de 1990 consolidou um fluxo em direção ao estrangeiro, acrescenta uma nova característica ao país que tem a imagem de nação de imigrantes.

Diante dessa mudança de estrutura social e econômica, surgem mecanismos facilitadores para o processo de emigração brasileira. A região de Governador Valadares contribuiu e contribui com um grande número de imigrantes. Siqueira (2006, p.45) concorda que,

As razões para este fenômeno são variadas. Sem dúvida, a estagnação econômica que atinge a região do Vale do Rio Doce no Leste Mineiro cujo pólo central é Governador Valadares é uma das razões que estimulam a população local a buscar alternativas para melhorar suas condições de vida.

Estima-se que desde os primeiros ‘pioneiros’ da década de 60, mais de 27 mil valadarenses emigraram em busca de melhores oportunidades de trabalho e remuneração (SIQUEIRA, 2006, p.2). O deslocamento de valadarenses, de caráter permanente ou temporário, é movido pela falta de trabalho, baixos salários, dificuldades variadas, estes e outros motivos, aliando-se à esperança de melhores condições para a existência.

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Conseguir trabalho no exterior e ganhar dinheiro para conseguir bens no Brasil, principalmente em Governador Valadares, são motivações que levavam e levam valadarenses a se aventurarem em outros países, principalmente nos Estados Unidos, permanecendo lá enquanto encontram serviços ou podem auferir vantagens.

A maior escolha pelos Estados Unidos da América e menor para outros países, como rota de imigração, tem suscitado questionamentos sobre por que esta escolha e não outra, porém discuti-la aqui foge aos objetivos deste trabalho. No entanto, calcula-se que quase todas as famílias residentes na cidade e região próxima possuem parentes ou amigos que foram ou são imigrantes (SIQUEIRA, 2006). Bicalho (1989, p. 105), afirma que “praticamente todas as famílias da região contariam com um ou mais membros que emigraram ou pretendem emigrar”.

Esta conexão com os Estados Unidos teve seu primeiro momento na década de 1940, durante Segunda Guerra Mundial com o ciclo da mica, material usado como componente de artefatos de guerra, e que era encontrada na região de Governador Valadares; a chegada à cidade de norte-americanos para coordenar os trabalhos de exploração desperta nos valadarenses, a idéia de que o país dos americanos era um Eldorado com muita riqueza, conforto e bons empregos, pois, a gorjeta pelos trabalhos prestados e os salários recebidos eram muito valorizados se comparados ao salário e à moeda brasileira, passando a idéia de opulência e fartura. Com o declínio da extração da mica a idéia de migrar para os Estados Unidos torna-se uma aspiração na cidade (ASSIS, 1995).

Na década de 1960, de acordo com Siqueira (2006, p.6) “ Inspirados pela idéia de uma vida melhor e pelo fascínio econômico representado pelo dólar, os primeiros habitantes da região partiram para ‘fazer a América’”.

Porém, é a partir da década de 1980, que o fluxo migratório se fortalece, pois, “ [...] associadas, a crise econômica brasileira e a estagnação econômica da cidade geraram um boom no fluxo de valadarense para os EUA” (SIQUEIRA, 2006, p. 12).

Uma suposição possível é que as experiências vividas pelos primeiros emigrantes valadarenses, que ao fazerem contato ou retornarem relatavam suas experiências sempre de forma positiva, estimularam os demais a desejarem a migração, deixando em seu país seus familiares e amigos. Para Bicalho (1989, p. 20)

Normalmente, os brasileiros que voltam pouco falam de seus trabalhos, contam sobre os bons momentos que viveram, sobre uma ou outra dificuldade e, principalmente, sobre os dólares que ganharam e os investimentos feitos no Brasil.

De acordo com levantamento realizado por Siqueira (2006, p. 58) “o número de brasileiros que emigraram nos últimos anos é uma incógnita, isto porque grande parte dos migrantes internacionais, atualmente, são indocumentados, isto é, não possuem documentação de entrada legal nos EUA, especialmente”. Muitos valadarenses também se encontram nesta situação.

A emigração, geralmente, é vivida na aflição compartilhada pelos que partem e pelos que ficam. O emigrante sempre será tratado como uma força de trabalho provisória e, a consciência desta situação tenciona sua permanência no exterior. Ele passa a conduzir sua vida como se fosse uma âncora que se fixa em outro país e lhe permite sobreviver longe de sua pátria, sua cultura, de tudo que lhe era familiar, mas do que se encontra afastado. De outro lado está sua família que sofre com sua ausência, principalmente os filhos, se houverem.

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Deste modo, confirma-se a observação de que “[...] o fato de migrar não é uma decisão individual, é compartilhada, pela família, vizinhos e amigos. É, portanto, uma construção coletiva” (SIQUEIRA, 2006, p.56).

De acordo com Bicalho (1989) a decisão de viver temporariamente em outro país determina pesadas alterações na dinâmica familiar. Nota-se que a migração, às vezes, desfaz a família pela distância entre o casal, as relações afetivas vão se esfriando pela falta de proximidade ou pela ausência de diálogo.

Assis (1995) observou em Governador Valadares uma preocupação com a desestruturação familiar como uma das conseqüências do fluxo migratório para os EUA ao ouvir de seus entrevistados casos de divórcios, separações, traições, filhos com problemas escolares.

A NOVA ORGANIZAÇÃO DA FAMÍLIA E O COMPORTAMENTO ESC OLAR DOS FILHOS DE MIGRANTES

Os recentes estudos sobre a migração de valadarenses e vizinhos regionais para outros países têm focado diversos aspectos e impactos deste fenômeno sobre a cidade e região.

Aquelas famílias tradicionais, constituídas de pai, mãe e filhos, agora enfrentam o processo da migração, os filhos passam a conviver em outro lar; aquele núcleo tradicional passa a dar lugar para outra família formada por tios, padrinhos, avós e amigos. Esses novos contextos familiares geram muitas vezes, uma sensação de insegurança e até mesmo de abandono, pois “a idéia de um pai e de uma mãe cuidadores dá lugar a diferentes pais e mães gerenciadores de filhos que não são seus” (HULSENDEGER, 207, p.25).

Segundo REGO (1996, p. 97) estes “[...] novos responsáveis’ apresentam dificuldades em exercer algum tipo de controle sobre a criança ou adolescentes. Conseqüentemente, são bastante tolerantes e até mesmo indulgentes em relação aos desejos ou atitudes de rebeldia”. Além da marcante ausência de regras e normas capazes de nortear as ações daqueles, tais como hora de comer, dormir, ver televisão, que acabam sendo definidas por eles mesmos, e, esses ‘tios, padrinhos, avós, amigos’, pelo que se percebe, às vezes deixam de exigir responsabilidade por parte daqueles que lhes são confiados para cuidado.

O pai e a mãe são as primeiras e mais importantes referências para a educação infantil. Reconhece-se que “as crianças necessitam da cooperação dos pais para ajudá-las identificar seus sentimentos, bem como sua fonte, e expressá-los de modo construtivo” (ERIGHT, 2000, P. 129)

A família, entendida como o primeiro contexto de socialização, exerce indiscutivelmente grande influência sobre a criança e o adolescente. A atitude dos pais e suas práticas de orientação e educação são como afirma Rego (1996, p. 97) “aspectos que interferem no desenvolvimento individual e, conseqüentemente, influenciam o comportamento da criança e/ou adolescentes na escola”.

A ausência do pai e ou mãe poderá causar um desequilíbrio na família. Essa situação acaba gerando uma série de sentimentos conflitantes, não só entre pais e filhos, mas também entre os próprios pais. Um dos sentimentos mais comuns entre os pais ausentes é o de culpa. É ela que, na maioria das vezes, impede um pai ou uma mãe de dizer não às

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exigências de seus filhos. É ela que faz o pai ou a mãe dar a seu filho tudo que este deseja, pensando que assim poderá compensar a sua ausência. É a culpa que faz os pais não avaliarem corretamente as atitudes do seu filho, pois isso poderá significar que eles não estiveram suficientemente presentes para corrigi-las. Como avalia Zagury (1999), inseguros e desgastados, os pais tendem a deixar as crianças fazer tudo que desejam. Observa-se que muitos pais emigrados, pensando resolver o problema da distância presenteiam seus filhos com uma variedade de brinquedos, tais como vídeo-games, celulares, bicicletas, bonecas, patins, computadores, disckman, entre outros brinquedos eletrônicos.

Segundo Assis (1995) a vontade de se fazer presente e de compensar a ausência faz com que os pais mandem inúmeros agrados e procurem animar os filhos que estão no Brasil, aos cuidados dos avós ou outros, com dinheiro para festas e passeios. Com o avanço tecnológico, modernas formas de comunicação são usadas entre os migrantes e a família que fica. Telefones e Internet são utilizados para o diálogo familiar, para dividir os projetos, alegrias, tristezas, comentar o trajeto da viajem, as decepções, a indiferença da sociedade americana, o impacto da diferença cultural, a solidão, ausência de amigos e receber informações do Brasil, da família que ficou e principalmente dos filhos, o progresso ou fracasso nos estudos, as novidades do cotidiano.

A família precisaria ter disponibilidade para acompanhar seus filhos, oferecendo-lhes elementos importantes para ajudá-los em sua educação. Hannas (1985) afirma que para ter um desenvolvimento normal a criança precisa encontrar na família um clima de segurança, solidariedade e estabilidade entre os membros. É no grupo familiar que a criança experimenta e manifesta tipos de ajustamentos essenciais que vão proporcionar-lhe o equilíbrio e desenvolvimento.

É impossível negar, portanto, a importância e o impacto que a educação familiar tem, do ponto de vista cognitivo, afetivo e moral, sobre os filhos. Conforme Hülsendeger (2007, p.27) “[...] a família deve ser o espaço indispensável para garantir a sobrevivência e a proteção integral dos filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma como se vêm estruturando”.

A citação abaixo, embora longa, corrobora a assertiva anterior e resume apropriadamente a situação que pretendemos apresentar a seguir, qual seja a insegurança e/ou desestruturação emocional que afetam escolares, filhos de migrantes:

A proteção dos pais inclui proteção de doença, dano, transtorno emocional e responsabilidades sociais. Ameaças comuns à vida podem provocar (a) medo, a resposta emocional para a ameaça de dano físico, doença desastre econômico ou rejeição social e (b) tristeza, sentido de perda ou privação de algo tangível como bens materiais, ou de algo intangível como o afeto de outra pessoa. A intensidade desses sentimentos ativa o sistema afetivo da criança ou do jovem na procura de proteção contra ameaça. A procura por proteção nos pais cria, no decorrer da infância e adolescência vínculos de afetivos para os quais os pais – figuras de apego - formam as bases para a integração da criança em seus relacionamentos futuros. Também é crucial na formação da criança como elas arcam com a angústia do meio em que vivem quando separados dos pais. Em outras palavras o significado dado à qualidade dos afetos vividos nas relações com os pais será replicado primeiramente na escola e posteriormente em outros contextos da sociedade (SCHABBEL, 2002, p. 18).

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A AUSÊNCIA DOS PAIS MIGRANTES E OS REFLEXOS NA VIDA ESCOLAR DOS FILHOS

Identifica-se neste trabalho, particularmente, o reflexo da emigração sobre a vida escolar de filhos de migrantes, fato comentado, mas ainda não investigado com profundidade, em várias escolas da cidade de Governador Valadares, sejam públicas ou particulares. Diante desta problemática três questões nortearam esta investigação: a não participação dos pais na vida escolar dos filhos prejudica o seu desenvolvimento? Que mudanças vêm acontecendo no comportamento escolar dos filhos de migrantes? A escola está preparada para este fenômeno?

Sob um enfoque específico, faz-se necessário analisar a importância da presença da família na vida escolar dos filhos e os reflexos positivos daí advindos. A partir dessa discussão verificar-se-á em que medida a ausência dos pais afeta o comportamento escolar dos filhos de migrantes.

A pedagogia insiste na presença ativa dos pais na escola dos filhos. Sua presença implica colaboração, envolvimento e comprometimento. Chechia (2002) afirma que esta participação tem apresentado um papel importante no desempenho escolar dos alunos assistidos por suas famílias. Segundo a autora, se os pais acompanharem o rendimento escolar dos filhos desde o começo do ano poderão identificar, precocemente, suas dificuldades e, com o apoio dos professores, reativar seu interesse pelas disciplinas ou por determinada disciplina em que vai mal, evitando assim a reprovação e ou não participação às aulas.

O comparecimento e o envolvimento da família devem ser permanentes e acima de tudo, construtivos, para que a criança e o jovem possam se sentir amparados, acolhidos e amados. Os pais devem estar atentos às dificuldades não só cognitivas, mas também comportamentais. Eles devem estar prontos para intervir, da melhor forma possível, buscando o melhor para seus filhos.

Pais e mães devem comparecer à escola não apenas para entrega de avaliações ou quando a situação já estiver fora de controle. A escola e a família devem, portanto, compartilhar de um mesmo ideal, pois só assim realmente estarão formando e educando, superando conflitos e dificuldades que tanto têm angustiado professores, pais e os próprios alunos (HULENDEGER, 2007).

Diante da decisão de migrar tomada pelos pais, estas orientações não se podem cumprir ou são interrompidas. Faltando a estas crianças e adolescentes a presença da família na sua formação e acompanhamento na educação básica, muitos problemas e distúrbios de ordem emocional e/ou cognitiva prejudicam o seu desenvolvimento pessoal e social. Se a parceria entre família e escola for formada todos terão muito a lucrar. A criança/adolescente que estiver bem vai melhor e aquela que tiver problemas receberá a ajuda tanto da escola quanto dos pais para superá-los, solução inaplicável para os alunos cujos pais são emigrados.

No caso de migrantes que deixam filhos menores a preocupações se redobram e forma-se uma rede de co-responsáveis por estas crianças e adolescentes: avós, tios, padrinhos, amigos. Pelo que se pode concluir que a migração dos pais leva as complexas alterações na dinâmica familiar.

Educar filhos é uma tarefa complexa, cada nova fase do desenvolvimento da criança e do adolescente exige dos pais certo preparo para ajudá-los e presume-se que os pais migrantes não têm essa disponibilidade pela distância em que se encontram. A arte de educar consiste, sobretudo, na possibilidade dos pais ‘crescerem’ junto com a criança, ajudando-a e

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acompanhando-a em sua trajetória da fase de dependência quase total, sua trajetória juvenil, até a independência quase total da fase adulta (MALDONADO, 1981).

De acordo com Hannas e Saboya (1985) o fato de a criança ficar entregue aos cuidados de várias pessoas, sem a presença física dos pais, poderá desenvolver nela sentimentos de insegurança e ansiedade. Portanto, verifica-se que a ausência do pai e/ou mãe causa um desequilíbrio ou desestruturação familiar, especialmente transtornos em relação aos filhos em idade escolar. A presença da família na escola contribui para o bom desempenho do aluno e os filhos de migrantes estão desguarnecidos de maiores cuidados em vista de que somente um dos pais, avós, tios, padrinhos ou amigos co-responsabilizados pela ‘guarda’ não dão conta de acompanharem a dinâmica escolar.

Esta reflexão preliminar e problematizadora é que inspirou esta investigação ora apresentada. Ela foi fruto de conversas com professores, colegas de trabalho102 e conhecidos que de alguma maneira convivem com a realidade da migração e seus efeitos subjetivos, para além dos dados quantitativamente contabilizados na cidade e região.

A observação da alteração do comportamento escolar de alunos, filhos de pais migrados, numa escola pública de Governador Valadares, fornece indícios de que esta alteração de comportamento relaciona-se, entre outros fatores, com a migração dos pais e com a dificuldade dos ‘novos responsáveis’ por estes alunos acompanharem as exigências e necessidades escolares ou mesmo afetivas.

Observou-se que este grupo de alunos costuma reagir apresentando atitudes agressivas, rebeldia, apatia ou hiper-atividade, irresponsabilidade, arrogância, instabilidade emocional e muitos outros tipos de condutas que não contribuem para seu bom desempenho escolar, mas sim para seu fracasso. Vários exemplos são encontrados na referida escola, entre eles, uma aluna que cursa a 8ª série, pela segunda vez, apresenta uma instabilidade emocional fortíssima, fica sorridente, falante e às vezes, no mesmo dia se isola na carteira chegando a chorar.

Essas mudanças de comportamento dos alunos dentro do espaço escolar, geralmente prejudicam a aprendizagem dos mesmos durante o ano letivo. Esses alunos, muitas vezes são rotulados de preguiçosos, desligados e indisciplinados. Falta a essas crianças e adolescentes a presença da família na sua educação. Paralelamente, não há mobilização da escola, tanto entre gestores como entre educadores, para lidar e/ou compreender os problemas de ordem emocional e familiar desses alunos.

Em termos escolares, em geral, espera-se que os alunos sejam participativos nas aulas, responsáveis pelas atividades em sala e extra-classe, que respeitem os colegas e os professores, que sejam freqüentes, que tenham limites, que respeitem as opiniões e sentimentos alheios e que saibam dialogar e conviver de modo cooperativo com todos da escola. Dito de outra forma, porém sem a pretensão de nos determos nesta discussão que é inclusive polêmica, estamos aqui considerando que há um padrão de comportamento escolar esperado, e que alterações neste padrão quebram a rotina dos processos de ensino e aprendizagem, e neste sentido, as preocupações dos pais e gestores se aproximam. Parece, entretanto, que muitos comportamentos ou dificuldades apresentados pelos alunos são entendidos como questões meramente disciplinares, descontextualizadas de seu âmbito sociocultural ou psicológico.

102 As autoras são professoras do ensino fundamental e médio das redes particular e pública na cidade de Governador Valadares.

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Considerando estas questões e a falta de respostas para muitas delas é que nos decidimos por verificar em que medida a ausência paterna e/ou materna (em função da migração) traz prejuízos em relação ao processo de ensino-aprendizagem e se relaciona com alterações de comportamento de filhos de migrados em ambiente escolar.

Nesse sentido, foi preciso delimitar o contexto espacial para a pesquisa proposta e o seu enfoque, por questões de oportunidade e interesse profissional, tomou como referência a Escola Municipal Duque de Caxias103, localizada no Bairro São Raimundo, em Governador Valadares.

Foi nessa instituição, averiguando as quatro últimas séries, de 5ª a 8ª, do Ensino Fundamental no turno matutino, que o acompanhamento da alteração do comportamento de filhos de migrantes que ali estudam foi realizado. A escola em apreço foi fundada em 1971, é mantida pela administração da SMED (Secretaria Municipal da Educação), administrada por uma diretoria composta de um diretor e dois vices, serviço pedagógico, serviço administrativo, serviço financeiro e seus auxiliares. Com sede própria, a escola tem 23 salas de aula e funciona em três turnos, matutino, vespertino e noturno, com um total de 2120 alunos. Por ser uma escola de grande porte, a pesquisa foi realizada somente no turno matutino entre as turmas de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries, que somam um total de 584 alunos104.

A pesquisa de campo partiu do levantamento, nas salas de aula, entre os alunos de 5ª a 8ª série do ensino fundamental do turno matutino, de quantas daquelas crianças e adolescentes eram filhos de pais emigrados. Identificamos nesta fase que 20%, (116 alunos) são filhos de emigrantes. O número elevado surpreendeu muitos professores da própria escola que desconheciam existir tal situação. A proposta inicial era que todos estes alunos respondessem ao questionário espontaneamente aceitando o convite feito, porém este objetivo não foi alcançado.

Após esse levantamento, aplicou-se um questionário, não personalizado, com perguntas relacionadas com os temas em estudo. Esse questionário foi também enviado aos responsáveis através dos alunos.

Onze professores do turno matutino igualmente responderam a um questionário sobre as atitudes dos alunos diante da situação vivenciada por eles, as conseqüências da ausência dos pais na vida escolar dos filhos e a necessidade do envolvimento dos educadores para com o aluno e a sua família. A tabulação e análise dos dados serão discutidas adiante.

Possivelmente para tentar ocultar sua realidade familiar, ou por motivo de segurança dos membros da família, pai e/ou mãe emigrados, e que se encontram indocumentados no país onde residem, alguns alunos e responsáveis negaram-se a preencher o questionário. Participaram 40 alunos, 19 responsáveis e 11 professores do turno, num total de 70 participantes. O número de alunos que responderam ao questionário é significativo e expressa percentualmente 34% do total dos filhos de emigrantes identificados.

OS RESULTADOS:

Conforme os questionários tabulados a busca pelos EUA é prioritária, pois 65% dos alunos relataram que seus pais migraram para este país da América do Norte e 27% alegaram que a migração ocorreu para Portugal. 103 Nessa escola a autora Ana Clara de Paula é professora da 5a a 8a série. 104 Dados fornecidos pela Secretaria da Escola Duque de Caxias.

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Como já mencionado a busca por melhores condições de vida e salários é que impulsiona os emigrantes. Confirmando esta afirmação, os relatos dos alunos são expressivos: 50% deles disseram que seus pais migraram em busca de emprego e 35% que eles saíram do Brasil para ter a oportunidade de comprar casa e carro para a família. 90% dos responsáveis alegam que a parte positiva da migração é o conforto que a família passa a ter e alguns deles relatam sobre a compra de casa própria.

Em relação ao período de ausência dos pais deste grupo de alunos verificou-se que ele é bastante longo: 25% dos alunos está há mais de quatro anos afastados de seus pais, 27% estão afastados há aproximadamente três ou quatro anos e 38% de um a dois anos.

Em conseqüência, a ausência do pai ou da mãe reflete-se em toda a família, pois, percebe-se através das respostas dos ‘responsáveis’ que há um desequilíbrio no lar, e boa parte deles mencionou a dificuldade em acompanhar e educar as crianças e/ou adolescentes que ficaram no Brasil; neste caso também se confirmam a insegurança, preocupação, e frustração de ambas as partes, por não conseguir superar a falta do pai e ou mãe (filhos) nem supri-la (responsáveis).

Os responsáveis, no caso da Escola em questão, na maioria são as mães, pois pelos dados coletados 57% das crianças ficaram com as mães, 25% com os avós, 12% com os pais e 5% aos cuidados dos tios.

A ausência do pai e/ou mãe não tem sido detectada sistematicamente pela referida escola. Os professores pesquisados relataram que não receberam informações no início do ano letivo de quantos alunos em sala de aula têm os pais emigrados e no decorrer do ano, não conversam nem procuram saber quais e quantos alunos são filhos de migrantes. Os relatos dos alunos confirmam esta realidade sendo que 68% deles responderam que a migração dos pais não é do conhecimento de seus professores.

Entre os 11 professores entrevistados, apenas um declarou ter trabalhado com os alunos um projeto sobre maturidade, abordando especialmente a migração e suas conseqüências, levando os alunos, através de filmes e palestras a refletirem sobre a necessidade de um equilíbrio nos momentos difíceis da vida e sobre os problemas enfrentados pelas pessoas que optam por migrarem para os EUA. Porém esta atividade foi pontual e não houve desdobramentos maiores que a discussão em sala.

Depreende-se dessa situação que muitos educadores não se preocupam com a inclusão do conhecimento sobre as famílias no trabalho educativo, buscando soluções mais costumeiras e regimentais para as situações com as quais se defrontam diariamente. Com a saída do pai e/ou mãe as crianças e adolescentes alteram seu comportamento, fato esse comprovado pela pesquisa aplicada, pois os próprios alunos percebem que sua forma de agir, seu comportamento mudou; 40% deles confirmam tal atitude, entre esses 7,5% disseram que passaram a conversar durantes as aulas; 2,5% alegaram que acabou a alegria e no lugar ficou a tristeza; 10% perceberam que após a migração do pai e/ou mãe, sofreram algum fracasso escolar; 20% negaram-se a responder.

Os responsáveis confirmam as reações apresentadas pelos filhos do migrante, declarando que com a ausência do pai e/ou mãe o filho ficou inseguro, triste, apático, agressivo, rebelde, solitário ou chora com freqüência. Diante de tais situações, compreende-se a atitude dos alunos, pois 80% deles disseram que antes de migrarem seus pais participavam da sua vida escolar e com a migração sua função foi delegada aos responsáveis, o que tem contribuído para vários problemas educacionais; de acordo com relatos de alguns

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responsáveis o ‘filho’ tem ficado disperso para com os estudos, achando que estão sós. Entretanto 55% dos responsáveis afirmaram que a ausência dos pais não alterou o comportamento dos filhos. Este último dado chama a atenção e merece ser questionado, pois destoa da situação encontrada de desequilíbrio e dificuldades; uma hipótese possível é a necessidade de afirmação de segurança, controle ou condição de quem é responsabilizado pelo acompanhamento e cuidado dos filhos/protegidos.

Alguns pais, apesar da ausência física, procuram acompanhar seus filhos no seu dia-a-dia; dos 40 alunos que aceitaram participar da pesquisa 25% dizem conversar com o pai/mãe diariamente e 42% semanalmente, o que confirma a preocupação daqueles para com os filhos. Em seus contatos através de telefones, Internet, falam sobre a família, escola, assuntos pessoais, futebol, possibilidades de emigração daqueles que ficaram; 32,5% conversam sobre suas particularidades, 22,5% sobre o seu desenvolvimento escolar.

É preocupante que 22,5% dos alunos relataram que raramente conversam com os pais, demonstrando assim um distanciamento do pai/mãe muito forte na vida do filho/aluno.

Esta situação, de certa forma indica porque a ausência dos pais não é bem aceita pelos filhos, e significativos 55% dos alunos responderam que quando se tornarem adultos e tiverem filhos não migrarão, para seus filhos não passarem pela mesma situação que estão passando e que o pai e a mãe precisam ficar ao lado dos filhos. Ao responderem a questão sobre o retorno dos pais, 70% afirmam que gostariam que seus pais retornassem ao Brasil.

Outro problema inquietante que atinge alunos cujos, pais emigraram, na Escola Municipal Duque de Caxias é a dificuldade de concentração no decorrer das aulas, além de desinteresse pela escola e aprendizado. Uma hipótese considerada para explicar esta situação, além de outras possibilidades, é o desejo interno nutrido pelo sonho de mudar-se para os Estados Unidos da América. Tal desejo explicar-se-ia pela vontade de reencontrar a família, parentes e amigos que lá residem.

Assim a justificativa principal para explicar o desinteresse e a dificuldade de concentração nos estudos entre alguns alunos deste grupo, seria este desejo de realizar os sonhos, principalmente dos jovens que vivem em função do grande dia em que irão viajar para a terra do ‘Tio Sam’.

Bicalho (1989, p. 35) relata sobre um migrante que se preparava para realizar o sonho de ir para os EUA e realizar-se financeiramente, ou seja, ter bom salário e adquirir bens materiais. Abandonou os estudos, sem concluir o 2º grau apesar da insistência da mãe, que dizia: “[...] sem estudo, você não vai ser nada na vida; sacrifico o que for preciso para pagar seus estudos”. Tal fato é verificado entre alunos, filhos de emigrantes, estudantes da Escola Municipal Duque de Caxias, cujo sonho de encontrar-se com os pais que migraram, a expectativa pelo momento de ir para os EUA produz desapego pelos estudos.

Os pais, ao migrar, têm como objetivo buscar soluções financeiras para a família, principalmente os gastos com a educação dos filhos. Bicalho (1989) afirma que a possibilidade de ganhar em dólares passa a ser visto como uma saída milagrosa. De longe, os pais migrantes, desejam que seus filhos sejam felizes, com bom relacionamento e rendimento escolar, participativos durante as aulas, cumpridores dos deveres. Mas a ausência, às vezes, produz resultados contrários ao esperado.

O que se percebe nos plantões pedagógicos realizados bimestralmente na Escola Duque de Caxias, é a ausência dos pais que migraram e a presença do ‘substituto responsável pelo aluno’. Conforme relatos, este responsável, um dos pais, avós, tios, padrinhos, amigos

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etc., nem sempre dá conta de responder sobre as necessidades ou dificuldades apresentadas por seus ‘filhos, netos, afilhados ou protegidos’.

Os pais, por sua vez, mesmo a distância, procuram (re)animar a família através dos meios de comunicação existentes e presenteiam os filhos com passeios, festas e brinquedos, materiais escolares caros ou diferentes, com objetos de tecnologia avançadíssima, porém tais atitudes não completam a sua ausência, porque, evidentemente, os pais precisam estar disponíveis e próximos também fisicamente para acompanhar o crescimento de seus filhos. Um aluno entrevistado, filho de migrante, relatou que sua mãe prometeu-lhe uma viajem ao Beto Carreiro, Região Sul, caso fosse aprovado em todas as disciplinas, mas como ele não conseguia concentrar-se e ser participativo durante as aulas, ficou reprovado em duas disciplinas.

Migrar é uma decisão compartilhada pela família, amigos e vizinhos que se envolvem com as expectativas, aflições, sofrimentos, inseguranças dos que partem e dos que ficam (ASSIS, 1995, SIQUEIRA, 2006). Tal afirmativa confirma-se através do relato de uma avó cuidadora:

É muito difícil educar os netos com a ausência dos pais, mas por amor à família a gente vai superando as barreiras e obstáculos mesmo quando a barra está pesada. Porque nada supera a saudade que os filhos têm dos pais.

O relato de uma mãe também é significativo:

Acho absurdo (migração), a família é um projeto de Deus, e Ele não a construiu para viver separados. O resultado da migração, muitas vezes não é bom. Pois os filhos se perdem ou seja, não sabem qual o caminho a seguir (obedecer) e é desastroso o resultado [...].

Os filhos também se ressentem da ausência dos pais como fica evidente no desabafo de um entrevistado:

“Não posso ter ele perto de mim e ele faz muita falta para mim...as desvantagens são a saudade que sinto, e não poder conversar pessoalmente... tudo antes ia muito bem na escola agora (com a migração da mãe) estou mais ou menos nos estudos”.

Enfim, os relatos apresentados nos provocam muitas inquietações e reclamam uma prática pedagógica comprometida e compromissada com estes alunos e suas famílias. A abordagem destas questões se fez na expectativa de contribuir, de algum modo, para a compreensão de problemas extremamente complexos que envolvem a vida escolar de inúmeras crianças e adolescentes valadarenses; cabe refletir se as escolas e seus gestores como também os professores na sua formação e prática estão atentos para esta nova conjuntura social que afeta não só o processo de ensino-aprendizagem de seus alunos como também sua vida afetiva e social.

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CONCLUSÃO:

Analisar o fenômeno migratório na sociedade valadarense e seus reflexos no âmbito familiar é também considerar os sonhos dos imigrantes e sua busca por melhores condições financeiras.

Emigrar, como dito, foi a solução encontrada por muitos valadarenses, para solucionar problemas financeiros, profissionais ou de cunho pessoal, fenômeno acentuado pela crise econômica que se instalou no Brasil, especialmente nas décadas de 19660/1970 trazendo desemprego, recessão, entre outras dificuldades. A experiência da migração é fortemente vivenciada em Governador Valadares e municípios vizinhos.

Conclui-se, diante do exposto, que há necessidade e urgência das escolas buscarem uma maior integração com a família dos migrantes, para melhor atendimento às necessidades dos alunos atingidos por este fenômeno sócio-cultural e econômico. Pode-se afirmar que não há projetos com este objetivo, tal como acontece na escola em observação e em outras escolas em que o mesmo problema se apresenta.

Se um objetivo da escola além de trabalhar os aspectos pedagógicos, é também uma intervenção com vistas ao desenvolvimento integral dos alunos, assistindo sua família e a comunidade na qual estão inseridos, é recomendável que os órgãos gestores e colegiados reflitam sobre a questão com a finalidade de se propor e encaminhar alternativas pedagógicas e sociais apropriadas e cidadãs.

Do mesmo modo, se é meta da escola que os alunos aprendam e vivenciem posturas consideradas apropriadas ao processo de ensino-aprendizagem, entre elas, cooperação, respeito aos colegas e professores, participação nas aulas no decorrer do ano letivo, deverá criar condições para que os alunos valorizem e interiorizem tais valores.

Para isso, o corpo docente necessita buscar soluções adequadas que atendam as necessidades dos alunos, tais como a capacidade de concentração, aproveitamento das aulas superação das dificuldades de aprendizagem e desinteresse, levando-os a buscar motivações que venham compensar carências vivenciadas por eles provavelmente pela ausência do pai e/ou mãe que saíram do país em busca de melhores condições de vida.

De todo modo é necessário que também a escola, como instituição social busque acolher os alunos filhos de migrantes e sua família e junto escola, alunos, família e comunidade tentem amenizar os conflitos vividos pelos alunos. Acredita-se ser a escola um espaço onde crianças e jovens vão receber princípios de cidadania. Se a escola não conseguir inspirar confiança, se a criança e o jovem não sentirem que podem contar com ela, não terão outro espaço de socialização.

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