brincar à cultura abril 2015 rui matoso

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Brincar à cultura !? Rui Matoso [email protected] 10 Abril 2015 Uma coisa é haver política cultural municipal, outra é fingir que se tem e andar a brincar à cultura. Apesar das aparências, não vou entrar na polémica relativa à colecção de brinquedos adquirida pela Câmara Municipal, nem sequer divagar sobre o custo total que é substancialmente superior aos 120 mil euros. O que é evidente e denominador comum aos mandatos do Dr. Carlos Miguel, aclamado como grande amante das artes e da cultura desde a sua primeira eleição em 2005, é a continuada falta de uma visão estratégia de desenvolvimento cultural para Torres Vedras. Mas era isso que se esperava? O bom senso diria que não, que um autarca é mandatado para o exercício da política e da administração do bem comum, o que exige saberes especializados e racionalidade na acção política. O Museu Leonel Trindade continua numa indefinição inqualificável, quando foi prometido que em 2007 seria requalificado e ampliado. Entretanto perdeu a sua identidade e notoriedade associada à arqueologia e ao espólio de Leonel Trindade, hoje significa muito pouco na vida da comunidade e representa um atentado à memoria e história cultural. O Teatro-Cine, apesar de alguma oferta consistente ao longo dos últimos sete anos (desde 2008 –João Garcia Miguel), designadamente da Temporada Darcos, não tem ainda uma programação no sentido forte da palavra- é mais um catálogo, digamos assim-, porque carece de articulação sistemática com o território concreto, com as necessidades, aspirações e desejos dos diversos grupos sociais. É isso que se exige dum teatro municipal no contexto das cidades portuguesas, que seja um dínamo da vida social e cultural, que articule o espaço e o tempo glocal (global + local), que efectivamente proponha e provoque sentidos, conhecimentos e problemáticas. Não pode por isso ter as portas encerradas durante a semana, um teatro tem de ser uma casa da cultura viva, tem de ser proactivo, tem de insuflar energia cultural e criativa na cidade. Mas para tal é preciso trabalho de coordenação regular, sistemático e inclusivo; o que implica necessariamente uma equipa de colaboradores entusiasmados, mas que lamentavelmente parece já não existir. Ora, sendo a tutela do teatro pertença da CMTV, não se percebe como se deixa outro equipamento cultural fulcral na vida actual das cidades, chegar a um limiar perigoso de desagregação e retrocesso. É que a somar ao Museu, representaria uma débil qualidade de serviço

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Brincar à Cultura

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Page 1: Brincar à Cultura Abril 2015 Rui Matoso

Brincar à cultura !?

Rui [email protected]

10 Abril 2015

Uma coisa é haver política cultural municipal, outra é fingir que se tem e andar a brincar à

cultura. Apesar das aparências, não vou entrar na polémica relativa à colecção de brinquedos

adquirida pela Câmara Municipal, nem sequer divagar sobre o custo total que é substancialmente

superior aos 120 mil euros.

O que é evidente e denominador comum aos mandatos do Dr. Carlos Miguel, aclamado

como grande amante das artes e da cultura desde a sua primeira eleição em 2005, é a continuada

falta de uma visão estratégia de desenvolvimento cultural para Torres Vedras. Mas era isso que se

esperava? O bom senso diria que não, que um autarca é mandatado para o exercício da política e da

administração do bem comum, o que exige saberes especializados e racionalidade na acção política.

O Museu Leonel Trindade continua numa indefinição inqualificável, quando foi prometido

que em 2007 seria requalificado e ampliado. Entretanto perdeu a sua identidade e notoriedade

associada à arqueologia e ao espólio de Leonel Trindade, hoje significa muito pouco na vida da

comunidade e representa um atentado à memoria e história cultural.

O Teatro-Cine, apesar de alguma oferta consistente ao longo dos últimos sete anos (desde

2008 –João Garcia Miguel), designadamente da Temporada Darcos, não tem ainda uma

programação no sentido forte da palavra- é mais um catálogo, digamos assim-, porque carece de

articulação sistemática com o território concreto, com as necessidades, aspirações e desejos dos

diversos grupos sociais. É isso que se exige dum teatro municipal no contexto das cidades

portuguesas, que seja um dínamo da vida social e cultural, que articule o espaço e o tempo glocal

(global + local), que efectivamente proponha e provoque sentidos, conhecimentos e problemáticas.

Não pode por isso ter as portas encerradas durante a semana, um teatro tem de ser uma casa da

cultura viva, tem de ser proactivo, tem de insuflar energia cultural e criativa na cidade. Mas para tal

é preciso trabalho de coordenação regular, sistemático e inclusivo; o que implica necessariamente

uma equipa de colaboradores entusiasmados, mas que lamentavelmente parece já não existir.

Ora, sendo a tutela do teatro pertença da CMTV, não se percebe como se deixa outro

equipamento cultural fulcral na vida actual das cidades, chegar a um limiar perigoso de

desagregação e retrocesso. É que a somar ao Museu, representaria uma débil qualidade de serviço

Page 2: Brincar à Cultura Abril 2015 Rui Matoso

público, não adequado portanto às necessidades e expectativas de uma cidade que pretende

oferecer “boa qualidade de vida”, cidade inteligente e de boas práticas. A vitalidade cultural

(sustentada) é hoje um factor crucial na aferição dos padrões de qualidade de vida urbana, e não

nos estamos a referir apenas ao binómio oferta-consumo cultural, obviamente. Mas antes aos

aspectos fundamentais do direito à criação, fruição e participação na vida cultural de todos os

cidadãos .

A vitalidade cultural genuína, independente e diversificada promovida por agentes informais

(indivíduos, grupos, etc.) diminuiu drasticamente nas últimas décadas, e esse é obviamente um dos

principais indicadores das políticas e das dinâmicas culturais urbanas. Aliás, toda a gente lamenta a

falta de participação dos cidadãos nos assuntos da vida pública, como um grave problema

colectivo, pois o maior bem comum que a cidade pode gerar é uma esfera pública inclusiva,

dialogante e activa. A resiliência das comunidades depende desse capital social e simbólico,

nomeadamente em tempos de crises complexas e globais.

Mas que mecanismos e medidas de política cultural se criaram para lidar com este problema

em concreto? Vejamos o seguinte caso, um jovem que pretenda iniciar uma actividade ou projecto

cultural, vai ao website da CMTV e não encontra nenhuma informação, nenhum programa,

nenhuma medida, regulamento ou formulário de apoio a iniciativas culturais. Isto não é normal, mas

acontece. Porquê? Porque a CMTV não está efectivamente preocupada em promover e incentivar os

direitos culturais dos jovens, nem com outras inúmeras questões relacionadas com a democracia

cultural (a participação criativa individual ou coletiva dos cidadãos), que é a razão máxima de haver

políticas culturais, a par da preservação dos patrimónios. Porque se realmente estivesse

preocupada, teria de ter outra postura que consiste em facilitar e favorecer as condições necessárias

à existência da maior participação possível – em intensidade e diversidade.

A CMTV prefere olhar para a cultura como uma mercadoria a ser administrada ao sabor de

inclinações pessoais. Em vez de a ver como um bem público (e comum) gerido estrategicamente, de

modo sustentável e durável, que se regenere, mantenha e floresça.

Há quem diga que vivemos tempos de decadência análogos ao do colapso do Império

Romano, e que talvez seja por esse motivo que surjam tantos devaneios ensimesmados e tão pouca

política útil ao sector cultural. Há devaneios em forma de museus disto e daquilo, centros

interpretativos assim e assado, um parque temático “A Vida na Terra” em cima duma lixeira, etc,etc,

mas.... e o Castro Zambujal nunca mais? Talvez esteja na altura de trocar ideias sobre a política

cultural no município...