breves considerações sobre a propriedade aparente em casos

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XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO ELCIO NACUR REZENDE JOSÉ SEBASTIÃO DE OLIVEIRA OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR

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Page 1: breves considerações sobre a propriedade aparente em casos

XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO

ELCIO NACUR REZENDE

JOSÉ SEBASTIÃO DE OLIVEIRA

OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR

Page 2: breves considerações sobre a propriedade aparente em casos

Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

Diretoria – Conpedi Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UFRN Vice-presidente Sul - Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior - UFRGS Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim - UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Gina Vidal Marcílio Pompeu - UNIFOR Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes - IDP Secretário Executivo -Prof. Dr. Orides Mezzaroba - UFSC Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie

Conselho Fiscal Prof. Dr. José Querino Tavares Neto - UFG /PUC PR Prof. Dr. Roberto Correia da Silva Gomes Caldas - PUC SP Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches - UNINOVE Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva - UFS (suplente) Prof. Dr. Paulo Roberto Lyrio Pimenta - UFBA (suplente)

Representante Discente - Mestrando Caio Augusto Souza Lara - UFMG (titular)

Secretarias Diretor de Informática - Prof. Dr. Aires José Rover – UFSC Diretor de Relações com a Graduação - Prof. Dr. Alexandre Walmott Borgs – UFU Diretor de Relações Internacionais - Prof. Dr. Antonio Carlos Diniz Murta - FUMEC Diretora de Apoio Institucional - Profa. Dra. Clerilei Aparecida Bier - UDESC Diretor de Educação Jurídica - Prof. Dr. Eid Badr - UEA / ESBAM / OAB-AM Diretoras de Eventos - Profa. Dra. Valesca Raizer Borges Moschen – UFES e Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA Diretor de Apoio Interinstitucional - Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira – UNINOVE

D598

Direito civil contemporâneo [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS;

Coordenadores: Elcio Nacur Rezende, Otávio Luiz Rodrigues Junior, José Sebastião de

Oliveira – Florianópolis: CONPEDI, 2015.

Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-036-7

Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações

Tema: DIREITO, CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA: contribuições para os objetivos de

desenvolvimento do Milênio.

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Direito civil. I.

Encontro Nacional do CONPEDI/UFS (24. : 2015 : Aracaju, SE).

CDU: 34

Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br

Page 3: breves considerações sobre a propriedade aparente em casos

XXIV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - UFS

DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO

Apresentação

O XXIV Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

CONPEDI, ocorrido nos dias 3 a 6 de junho de 2015, em Aracaju, Sergipe, apresentou como

objeto temático central Direito, constituição e cidadania: contribuições para os objetivos de

desenvolvimento do milênio. Este encontro apresentou a peculiaridade de ter, pela primeira

vez, um grupo de trabalho dedicado ao Direito Civil Contemporâneo, que, de acordo com a

ementa oficial, destinava-se ao exame de questões relevantes dessa disciplina jurídica sob o

enfoque da metodologia privatística, suas categorias clássicas e sua milenar tradição, mas

com a necessária aderência aos problemas de uma sociedade hipercomplexa, assimétrica e

com interesses econômicos e sociais contrapostos.

O grupo de trabalho, que ocorreu no dia 5 de junho, no campus da Universidade Federal de

Sergipe, contemplou a apresentação de 29 artigos, de autoria de professores e estudantes de

pós-graduação das mais diversas regiões do país. Os trabalhos transcorreram em absoluta

harmonia por quase sete horas e, certamente, propiciaram a todos bons momentos de

aprendizado em um dos ramos mais antigos da ciência jurídica, que hoje é chamado a

dialogar com o legado imperecível de sua tradição romano-germânica e com os desafios

contemporâneos.

Os artigos reunidos nesta coletânea foram selecionados após o controle de qualidade inerente

à revisão cega por pares, em ordem a se respeitar os padrões da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e também para que esta publicação

seja útil para os diversos programas de pós-graduação aos quais se vinculam seus autores.

Neste livro eletrônico, o leitor encontrará textos atuais e com diferentes enfoques

metodológicos, doutrinários e ideológicos sobre temas de interesse prático e teórico do

Direito Civil Contemporâneo.

Na Teoria Geral do Direito Civil, há diversos artigos sobre os direitos da personalidade, a

lesão e a interpretação do Direito Civil. No Direito das Obrigações e dos Contratos, destacam-

se escritos que dizem respeito à função social do contrato, aos demais princípios contratuais e

sua correlação com as cláusulas exoneratórias de responsabilidade, aos deveres anexos da

boa-fé objetiva, às distinções entre renúncia e remissão, ao contrato de doação modal, bem

assim aos contratos de agência e de representação comercial. A Responsabilidade Civil

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também despertou significativo interesse dos participantes do grupo de trabalho, que

expuseram suas visões sobre os danos morais, as lesões decorrentes de cirurgias plásticas, as

conexões entre a incapacidade e a reparação de danos, a ação direta das vítimas em face das

seguradoras, a função punitiva e o Direito de Danos e a reparação por ruptura de noivado.

No Direito das Coisas, o leitor poderá examinar textos sobre a hipoteca, a propriedade

aparente e o problema da ausência de procedimento especial sobre a usucapião judicial no

novo Código de Processo Civil. No Direito de Família e no Direito das Sucessões, houve um

significativo número de artigos, que se ocuparam dos mais variados temas, ao exemplo das

famílias mosaico, da Lei de Alienação Parental, das modalidades de filiação e de seu

tratamento jurídico contemporâneo, do núcleo familiar poliafetivo, do testamento vital e do

planejamento sucessório.

Essa pátina com cores tão diversas, a servir de metáfora para as diferentes concepções

jurídicas emanadas neste livro, foi causa de alegria para os coordenadores, que puderam

observar que no Brasil não há predileção por qualquer parte do Direito Civil, muito menos se

revelaram preconceitos injustificáveis diante das novas relações humanas. Em suma, os

temas abordados abrangeram os diferentes livros do Código de 2002, conservando-se os

autores atentos à dinamicidade das relações sociais contemporâneas.

Todos os trabalhos apresentados e que hoje se oferecem à crítica da comunidade jurídica

refletiram o pensamento de seus autores, sem que os coordenadores desta obra estejam, em

maior ou menor grau, a eles vinculados. Trata-se do exercício puro e simples da liberdade e

do pluralismo, dois valores centrais de qualquer ambiente universitário legítimo, que se

conformam aos valores constitucionais que lhe dão suporte.

Ao se concluir esta apresentação de um livro sobre o Direito Civil Contemporâneo, não se

pode deixar de lembrar o que a palavra contemporâneo significa. Para tanto, recorre-se a

Giorgio Agamben, tão bem parafraseado por José Antônio Peres Gediel e Rodrigo Xavier

Leonardo, quando disse que contemporâneo é algo que pertence verdadeiramente ao seu

tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este,

nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente

por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do

que os outros, de perceber e aprender o seu tempo. De tal sorte que, o contemporâneo

inevitavelmente será marcado pelo desassossego, que muitas vezes adverte e atenta a

fragilidade daquilo que está posto como o estado da arte, malgrado não o ser. (GEDIEL, José

Antonio Peres; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Editorial. Revista de Direito Civil

Contemporâneo, v.2., p.17-19, jan-mar.2015. p. 17).

Page 5: breves considerações sobre a propriedade aparente em casos

Essa contemporaneidade que se faz necessária no estudo do Direito Civil, sem fechar as

portas a um passado rico de experiências e de construções admiráveis, tão bem refletidas no

elogio de Franz Wieacker aos pandectistas, sobre os quais afirmou serem suas ideias a base

sobre a qual repousam as melhores estruturas do Direito Privado atual (WIEACKER, Franz.

Privatrechtsgeschichte der Neuzeit. 2., neubearb. Aufl. von 1967. Göttingen : Vandenhoeck

und Ruprecht, 1996, §23.) . Mas, sem que sejam os civilistas transformados em estátua de

sal, como a mulher de Ló, por só buscarem nas brumas dos tempos idos as soluções que não

mais se prestam a um dia colorido por luzes tão diferentes.

Dessa forma, apresentam os coordenadores, orgulhosamente, esta obra cujo conteúdo

certamente enriquecerá a cultura jurídica de todos e, em especial, aqueles que cultuam o

Direito Civil Contemporâneo.

Prof. Dr. Elcio Nacur Rezende Professor e Coordenador do Programa de Pós-graduação em

Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara. Mestre e Doutor em Direito.

Prof. Dr. Otávio Luiz Rodrigues Junior Professor Doutor de Direito Civil da Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco). Pós-Doutor em Direito

Constitucional Universidade de Lisboa, a Clássica. Pesquisador visitante, em estágio pós-

doutoral, no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht

(Hamburgo, Alemanha), com bolsa de Max-Planck-Gesellschaft.

Prof. Dr. José Sebastião de Oliveira - Coordenador do Programa de Pós-graduação em

Ciências Jurídicas do Centro Universitário Cesumar (UNICESUMAR). Doutor em Direito

pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e pós-doutor em Direito pela

Universidade de Lisboa (2013).Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de

Londrina (1984),

Page 6: breves considerações sobre a propriedade aparente em casos

A TEORIA DA APARÊNCIA NO DIREITO DE PROPRIEDADE: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPRIEDADE APARENTE EM CASOS DE

VENDA E AQUISIÇÃO A NON DOMINO.

THE APPEARANCE THEORY IN PROPERTY RIGHTS: BRIEF OBSERVATIONS ON THE APPARENT PROPERTY FOR SALE CASE AND PURCHASE A NON

DOMINO.

Mateus Bicalho de Melo Chavinho

Resumo

A teoria da aparência é um importante instituto doutrinário e originado de juristas e

estudiosos alemães, italianos e franceses, com a finalidade de proteger a boa-fé e a confiança

das pessoas nas relações jurídicas privadas que se formam constantemente na sociedade. A

sua aplicação, nos dias atuais, ocorre nos diversos ramos do Direito, dentre os quais, nos

direitos reais, como exemplificado pelo instituto da propriedade aparente, que compõe o

quadro pluralista da propriedade moderna como categoria jurídica autônoma. O problema

enfrentado versa sobre a aplicação da teoria da aparência no direito brasileiro de propriedade,

especificamente em casos envolvendo a propriedade aparente nas vendas e aquisições a non

domino. O método utilizado consistiu em pesquisa bibliográfica sobre o tema e estudo de

casos judiciais específicos.

Palavras-chave: Teoria da aparência, Propriedade aparente, Venda e aquisição a non domino.

Abstract/Resumen/Résumé

The appearance theory is an important doctrinal and originated Institute of jurists and

scholars German, Italian and French, in order to protect the good faith and the trust of people

in private legal relations that are constantly forming in society. Its application, nowadays,

occurs in many areas of law, among them, the real rights, as exemplified by the Institute of

apparent property, which makes up the pluralistic context of modern property as an

autonomous legal category. The problem faced concerns the application of the appearance

theory in the Brazilian property rights, specifically in cases involving the apparent property

sales and purchases from non domino. The method used consisted of literature on the subject

and study of specific court cases.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Appearance theory, Apparent property, Sale and purchase a non domino

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1 Introdução: do modelo singular ao pluralista do conceito de propriedade

Ao se buscar, atualmente, uma definição de propriedade no dicionário, percebe-se que

não há apenas um significado para a palavra classificada como substantiva feminina, podendo

significar uma pertença ou direito legal de possuir ou mesmo uma qualidade inerente aos seres,

caso se esteja diante de uma noção química.

No âmbito jurídico, o conceito de propriedade também não se manteve estático no

tempo e no espaço. Ao analisar a sua evolução, percebe-se que o seu significado variou de acordo

com a cultura e classe dominante nas sociedades, partindo, em alguns momentos, de uma ideia ou

valor singular até alcançar o seu atual valor pluralista no contexto do Estado Democrático de

Direito.

Nos primórdios e antes da ideia de civilização, a satisfação das necessidades do homem

era feita pela apropriação de bens que se encontravam disponíveis a ele, seja para que fosse por

ele utilizado de forma imediata ou mesmo para o seu grupo. Isso reflete, desde então, embora de

forma rudimentar, uma noção de função social das propriedades antigas.

Posteriormente, em uma época civilizada, concebia-se a propriedade como o direito de

usar, fruir e dispor, sendo que, na época, havia uma valoração mística sobre tal tema e a

propriedade somente podia ser adquirida por cidadãos romanos e em solo romano, como forma

de proteção aos antepassados mortos e que eram enterrados naquela terra. (FIUZA, 2012).

Na época feudal, por sua vez, a propriedade pertencia aos denominados “senhores

feudais”, cabendo a estes conceder aos seus vassalos porções de terras, para que fossem

exploradas, através do trabalho árduo dos trabalhadores, que não possuíam qualquer poder ou

direito sobre as terras, na medida em que apenas recebiam pagamento ou comida como uma

forma de salário pelo labor exercido.

Com o nascimento, posterior, da classe burguesa, não se tornava mais interessante que a

propriedade estivesse apenas nas mãos do Estado ou de alguns poucos beneficiados, o que

inspirou movimentos iluministas, com ideologia liberal e individualista, de modo a que se

fortalecesse o conceito de propriedade privada e individual como forma de incremento do próprio

regime capitalista que se fortalecia ao lado do instituto do contrato.

E foi nesse contexto, resultante das grandes revoluções que marcaram o período, dentre

as quais a Revolução Francesa de 1789, inspirada nos ideais de liberdade, igualdade e

fraternidade, que, a partir do Código Civil Francês de 1804, foi restabelecido o modelo baseado

na unicidade do domínio refletindo uma propriedade dotada das sólidas características do

absolutismo, perpetuidade e exclusividade dos direitos do proprietário sobre a coisa, marcando 202

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uma era que dava grande importância ao patrimônio do proprietário em detrimento ao terceiro,

que não era dotado dos poderes concebidos àquele.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias muito bem caracterizaram tal momento

no contexto evolutivo-histórico da propriedade, in verbis: Defere-se ao homem razão e liberdade, sendo concebida uma sociedade composta por indivíduos isolados, portadores de direitos subjetivos invioláveis pelo Estado. Todos poderiam perseguir seus interesses e realizar seus ideais em um espaço de liberdade e igualdade formal, na qual os sujeitos abstratos não mais seriam qualificados por privilégios ou títulos nobiliárquicos, a par de suas diferenças sociais. Valoriza-se a autonomia privada, pois o acesso à terra independe da coerção de um senhor, ligando-se agora à vontade individual. A propriedade será alcançada segundo a capacidade e esforço de cada um e, na forma da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, terá a garantia da exclusividade dos poderes de seu titular, como asilo inviolável e sagrado do indivíduo. (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 259).

No Direito Brasileiro, o Código Civil de 1916, de cunho eminentemente patrimonialista,

sofreu grande influência da fase liberal, conferindo uma grande importância e proteção ao

proprietário, que podia livremente usar, gozar e dispor de seus bens, além de reavê-los de quem

injustamente os possuísse1, sem grande preocupação legislativa sobre terceiros ou mesmo a

respeito de outras possíveis formas de propriedade, que não fossem aquelas corpóreas e baseadas

em bens imóveis ou móveis, fazendo com que o valor fundamental, na ocasião, fosse o indivíduo,

como bem mencionado por Gustavo Tepedino (2004, p. 2).

Somente após a Primeira Grande Guerra Mundial, iniciou-se uma fase de críticas ao

poderio codificado da propriedade, de modo a se valorizar e conceber novas formas de

propriedade fora do Código Civil de 1916, o que ocorreu, no Direito Brasileiro, com o Código de

Águas e de Minas, em 1934 e o Código da Propriedade Industrial, em 1935, dentre outros

diplomas legais, caracterizando, assim, uma fase de microssistematização do sistema jurídico

nacional em contraposição ao antigo estatuto único e monopolizador das relações jurídicas que

eram assumidas pelo Código Civil de 1916 e que marcavam um período codificado do direito

privado.

Desde então, como bem mencionado por Francisco Landim (2001, p. 24), “a

propriedade evoluiu em várias direções, ora alargando o seu objeto, para recair sobre os bens

incorpóreos; ora inserindo-se no processo produtivo, para dar origem à empresa moderna, como

forma de exercício da propriedade; e ora acentuando a sua função social, para, em razão disso,

retirar do proprietário a condição de utilizar a coisa sem atenção aos interesses sociais”.

1 Art. 524: A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua. (BRASIL, 1916). 2 Art. 892. “A favor daquele que adquire, por negócio jurídico, um direito sobre um prédio, ou um direito sobre um tal direito, considera-se o conteúdo do Livro de Imóveis como exato, a não ser que uma contradição, contra a exatidão, esteja inscrita, ou que a inexatidão seja conhecida do adquirente” (ALEMANHA, 1896) 3 “A Codificação é um movimento jurídico aparecido no Ocidente, no século XIX, em função do qual os direitos ocidentais, quanto à forma, se dividem em: a) direito continental, ou direito codificado, que compreende o grupo francês, tendo por ponto de partida o Código de Napoleão (Code Civil des Français), e o grupo alemão; b) sistema

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Logo ficou concebida a visão pluralista da propriedade moderna, o que, inclusive, levou

Orlando Gomes (1991, p. 42) à afirmação de que: “não há mais propriedade. Há propriedades –

propriedade agrária, propriedade urbana, propriedade das águas, propriedade das minas,

propriedade das florestas, propriedade horizontal, propriedade intelectual, propriedade

compromissada, e assim por diante.”

Por sua vez, a Constituição da República de 1988 refletiu e abraçou a referida visão, ao

não limitar a garantia do direito da propriedade somente aos bens corpóreos, dispondo, ao

contrário, de uma forma ampla e aberta, em seu art. 5º, XXII que “é garantido o direito de

propriedade” (BRASIL, 1988), embora tenha determinado, no inciso seguinte, que deverá tal

direito sempre atender a sua função social, em contraposição ao caráter individualista que

caracterizava o contexto do Código Civil de 1916.

E é exatamente dentro desse contexto pluralista do conceito de propriedade que já não

mais se pode conceber um caráter absoluto e fechado da propriedade, mas sim uma visão

dinâmica e aberta, de modo a que o sistema jurídico, como um todo, possa absorver e

regulamentar as novas figuras jurídicas da propriedade no mundo moderno, dentre as quais a

propriedade aparente, que já existia, todavia, no Código Civil Alemão2, desde o início do século

XX.

Com o presente trabalho, será analisado o instituto da teoria da aparência na ordem

jurídica brasileira, com breves apontamentos sobre a sua origem, elementos e fundamentos, com

a finalidade de demonstrar a sua aplicação aos direitos reais, notadamente em relação ao instituto

da denominada propriedade aparente, que compõe o quadro pluralista da propriedade moderna

como categoria jurídica autônoma. Ao final, serão analisados problemas envolvendo o instituto

da propriedade aparente em casos de venda e aquisição a non domino, visando contribuir para o

enriquecimento do tema, que vem se tornando relevante em nível acadêmico e prático.

2 Noções e reconhecimento da teoria da aparência na ordem jurídica

A origem do Direito Brasileiro deriva das raízes romano-germânicas, que, por sua vez,

adotava a preponderância do Direito escrito na base romanística legal e ensejou, posteriormente,

o movimento da codificação3, observada ao longo do século XIX.

2 Art. 892. “A favor daquele que adquire, por negócio jurídico, um direito sobre um prédio, ou um direito sobre um tal direito, considera-se o conteúdo do Livro de Imóveis como exato, a não ser que uma contradição, contra a exatidão, esteja inscrita, ou que a inexatidão seja conhecida do adquirente” (ALEMANHA, 1896) 3 “A Codificação é um movimento jurídico aparecido no Ocidente, no século XIX, em função do qual os direitos ocidentais, quanto à forma, se dividem em: a) direito continental, ou direito codificado, que compreende o grupo

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A atividade legislativa, através do fenômeno da nomogênese, elege determinado fato

natural ou ato humano que, por sua repercussão social, deva ser regulamentado pelo Direito,

levando à elaboração das normas jurídicas, que ocorrerá com o fenômeno da judicialização.

Em tal função limitadora e disciplinadora há valores que sempre irão sustentar regras

jurídicas, dentre as quais pode-se mencionar a própria boa fé e a confiança necessárias para o

bom desenvolvimento de todas relações sociais existentes.

Aludidas valias, todavia, embora sejam fundamentos de qualquer sistema que se

comprometa a organizar uma sociedade, não se encontram refletidas expressamente em todas as

regras vigentes no ordenamento jurídico, o que não pode significar que não sejam convalidadas

pelo Direito, tendo em vista que, mesmo sendo considerado como norma de conduta obrigatória,

sistema de conhecimentos jurídicos, faculdade ou decisão exarada pelo poder jurisdicional

competente, observando-se sempre o seu significado polissêmico, deve o Direito atender às

exigências da equidade e dos reclamos comuns.

Como mencionado por Chavinho (2014, p. 11), existem situações fáticas que não

correspondem à mesma situação jurídica, embora possam se revestir como tal, o que leva ao

aparente conflito entre a enganosa visualização da exterioridade e a legítima correspondência

real, ou seja, um vislumbrado antagonismo entre a expectativa de direito de um terceiro de boa-fé

e a própria legitimidade do titular do direito.

A aparente contradição é objeto de crescente preocupação para os estudiosos do Direito,

passando a ser rotulada como “teoria da aparência” a invocação levada a efeito pelos juristas para

aclamar a solução conferida aos conflitos que derivam dos seus fatos ensejadores.

A denominada “teoria da aparência”, apesar de não contar com estudos doutrinários

mais profundos, tem sido fonte de diversos absurdos perpetrados pelos julgadores em demandas

judiciais, bem como fruto de acirradas polêmicas entre os juristas.

Todavia, dúvidas não existem de que a legislação pátria reproduziu em seu corpo4

diversas hipóteses de aplicação da teoria geral da aparência, a despeito de ser assente na doutrina

o fato de que se furtou o próprio legislador de capitular os diversos casos em que o princípio

poderia ser aclamado.

De qualquer forma, nos casos não tratados expressamente pelo ordenamento jurídico,

mas que demandem proteção a terceiros de boa-fé que se relacionem, por erro invencível, com

aparentes titulares, deve o Direito proteger a situação evidenciada, sob a proteção do erigido

princípio geral da aparência, abalizador dos valores estruturadores da equidade e da confiança

entre os indivíduos, ainda que a salvaguarda levada a efeito se posicione contra o direito do francês, tendo por ponto de partida o Código de Napoleão (Code Civil des Français), e o grupo alemão; b) sistema do Common Law ou do grupo anglo-americano.” (GUSMÃO, 1978) 4 O Código Civil Brasileiro traz inúmeras referências ao princípio em voga, como se pode verificar nos casos de posse considerada como aparência da propriedade (art. 1.211), o casamento putativo (arts. 1542, 1545 e 1547), o herdeiro aparente (art. 1.817), dentre outros.(BRASIL, 2002).

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verdadeiro e legitimado titular, mas, sempre, observados os requisitos próprios para a aplicação

do princípio.

Assim, mesmo que a teoria da aparência ainda esteja em fase de desenvolvimento, e

embora seja reconhecida pela doutrina e jurisprudência pátrias, inclusive sendo objeto de ricos

trabalhos acadêmicos5, ainda carece o instituto de mais esclarecimentos e aprofundamentos, de

modo que seja reconhecida a sua legitimidade e eficácia, enquanto princípio jurídico ou aplicação

analógica, sempre tendo em vista os pilares da própria estrutura do Direito, amparada nos valores

da boa-fé e equidade, como ideais de justiça (Chavinho, 2014, p. 14).

3 Origem histórica e evolução da aparência

O jurista Orlando Gomes (1967) já mencionava que ainda não foi formulada uma teoria6

acerca dos princípios fundamentais da ciência do Direito, que abarque toda a estrutura da

aparência de direito, o que parece ser ocasionado, segundo o doutrinador, pela diversidade dos

sistemas legislativos que pretendem inferi-la.

Há, todavia, como mencionado por Chavinho (2014, p. 15), três correntes que tentaram

sistematizá-la, quais sejam, a alemã, a francesa e a italiana.

A seguir, serão abordadas, sucintamente, algumas características que o instituto mereceu

em cada uma das escolas7 mencionadas, levando em consideração o tema da propriedade

aparente.

3.1 A Escola Alemã

A corrente alemã tratou a teoria da aparência como um princípio geral da publicidade.

Encontram-se, na doutrina alemã, duas regras básicas em termos de aparência: a

primeira preceitua que a declaração negocial é eficaz, ainda que não corresponda à vontade da

pessoa, se o destinatário daquela não sabia ou não tinha como saber que a declaração não era 5 Convém ressaltar a obra produzida pelo eminente jurista Fabio Maria de Mattia, Aparência de Representação, São Paulo, 1984. 6 “Teoria (theoria), s.f. Conhecimento especulativo, puramente racional; conjunto de princípios fundamentais de uma arte ou ciência; doutrina ou sistema acerca desses princípios; opiniões sistematizadas; hipótese; noções gerais; utopia; (Mat.) qualquer proposição que, para ser admitida, precisa de demonstração; - dos números (Mat.): (V. Aritmética superior); - dos quanta (Fís.) : teoria do físico alemão Planck (nascido em 1858), segundo a qual grandezas até agora consideradas contínuas, por ex., a luz, o tempo, devem ser encaradas como divididas em quantidades elementares.” In: HOLLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro : Sedegra, 1973. 7 O sentido da palavra polissêmica é utilizado como o conjunto de adeptos de um mestre.

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verdadeira. A segunda consiste em um ato de disposição de quem não é titular do direito de que

dispõe, e tal ato será eficaz se resulta de indícios de “publicidade”, salvo se o terceiro conhecia ou

devia conhecer a realidade da situação. Nesse caso, salienta o jurista, seria o registro que daria a

“aparência” de titularidade do bem.

Sobre o tema, veja-se a opinião do jurista Ricardo Luis Lorenzetti, in verbis: Em el derecho alemán se utilizan dos reglas: La primera senala que uma declaración negocial es eficaz aunque no se corresponda com la voluntad de la persona, si el destinatario de aquélla no há sabido o podido saber que la declaración no correspondia a la voluntad. La segunda consiste em que um acto de disposición de quien no es titular Del derecho de que se dispone, es eficaz si el enajenante resulta titular em virtud de indícios de “publicidad”, salvo que conociera o debiera conocer, la realidad de la situación. Em este caso, es la inscripción registral la que da la “apariencia” de titularidad del bien.” In “La oferta como apariencia y la aceptación basada em la confianza (Revista de Direito do Consumidor, n. 35, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, [s.d.]

Todavia, conforme enfatizado por De Mattia (1984, p. 7), parece ter sido com a

“Gewere”, um instituto do Direito Alemão muito similar à “Possessio” romana, que a aparência

foi corporificada no sistema jurídico germânico, sendo certo que quem detivesse aquela seria

considerado dono da coisa, mesmo que fosse apenas um senhorio de fato sobre o bem, caso

alienasse a outrem.

Assim, a proteção ao terceiro de boa-fé que mantinha relações com um proprietário

aparente da coisa, ainda que em contraposição ao verdadeiro titular do direito era assegurada pelo

Direito Alemão8, sob as máximas “trau, schau, wen” e “hand wahre hand”, no sentido de que

quem confiasse alguma coisa a outrem, deveria se certificar bem sobre a pessoa confiada, sob

pena de responder perante terceiros pelos atos praticados em traição à confiança depositada.

3.2 A Escola Francesa

De Matia (1984, p. 6) enfatiza que a teoria da aparência teria surgido de um texto de

direito romano sobre matéria testamentária, o que inspirou os mais diversos casos surgidos

posteriormente, sobremaneira na doutrina francesa que liga a teoria ao adágio9 do “Error

Communis Facit Jus”10.

8 Orlando Gomes (1967, p. 117), salienta que o Direito Alemão fornece um amplo campo de aplicação para a teoria da aparência, tendo em vista que o terceiro se encontra legitimado pela confiança que lhe inspira o título. Veja-se: “Admite a eficácia do ato entre terceiro e quem não é o verdadeiro titular do direito sempre que este, investido em um título formal, suscita naquele a convicção de que é o verdadeiro titular do direito. O pressuposto da proteção do terceiro reside, pois, na confiança que lhe inspira o título, formal ou não. Segundo essa teoria, larguíssimo seria o campo de aplicação da aparência, pois instrumentos particulares, documentos privados e até a posse se consideram títulos de investiduras que podem gerar o fenômeno.” 9 Henri Mazeaud promoveu excelente trabalho sobre o tema, na obra: “La maxime Error Communis Facit Jus, in “Revue Trimestrielle de Droit Civil”, tomo 23 (ano de 1924), págs. 929/segs. 10 “O erro comum faz o Direito”

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Encontra-se, porém, na época do “Corpus Iuris Civilis” uma famosa ocorrência ligada à

teoria da aparência. Trata-se do episódio conhecido como Lex Barbarius, mencionado por

Ulpiano no libro 8 ad Sabinum, texto reproduzido no Digesto I, 14, 3, pelo qual o escravo

Barbarius Philippus teria se passado por homem livre, tendo exercido, por muito tempo, o cargo

de pretor, que jamais poderia lhe caber. Posteriormente, o fato foi descoberto e houve sérios

questionamentos sobre os atos praticados pelo escravo, então pretor, naquele período. Foi

reconhecido que deveria prevalecer a validade dos atos praticados, em benefício dos terceiros de

boa-fé, por ter sido mais condizente com o espírito humanitário. O nome do escravo foi, então,

perpetrado na história do Direito.

A verdadeira aparência de direito, entretanto, como enfatizado por D`Amelio, citado por

Orlando Gomes (1967, p. 118), não corresponde à teoria francesa do erro comum, tendo em vista

que nesta não apresenta qualquer relevância o comportamento do terceiro que incidiu em erro11,

bastando a convicção geral de que o estado de fato vivenciado corresponda a uma situação de

direito. Certo é que, na aparência de direito, leva-se em conta o comportamento do terceiro, haja

vista que, caso tivesse conhecimento que a situação de fato não tinha qualquer amparo no direito,

não se poderia beneficiar do princípio em comento.

A máxima12 “Error Communis Facit Jus” não foi extinta no Direito antigo, já que

passou por todo o direito canônico, após sua sobrevivência na Idade Média e encontra aplicação

na doutrina francesa, inclusive nos dias atuais.

O jurista Mazeaud (1924), em análise ao instituto no direito francês, observou que a

aplicação inicial da teoria da aparência se referiu a uma norma de ordem pública, que formava

um movimento que defendia a necessidade de ser sacrificado o interesse individual em favor do

interesse social. A boa-fé coletiva deveria ser preponderante sobre o direito particular (titular do

direito, em que foi observado o erro comum). Daí porque o erro comum, ou seja, aquele em que a

massa incorreria, em qualquer circunstância, deveria ser prestigiado pelo Direito, ao ponto de ser

afastada uma situação de direito, em benefício de uma situação de fato aparente, sempre visando

o bem coletivo.

Porém, o adágio do “Error Communis Facit Jus” foi, posteriormente, substituído pelo

vício do ato ou negócio jurídico, como observado por Hélio Borgui (1999, p. 25). De qualquer

11 No Direito Pátrio, o erro é um dos vícios do consentimento, ao lado do dolo, coação e violência. É regulamentado nos arts. 86 a 91 do Código Civil e divide-se em substancial e acidental, de fato ou de direito. De qualquer forma, o erro deve ser de tal força e de tal relevo que, sem ele, o ato não se realizaria. 12 Sobre o valor dos adágios, lembra o jurista Miguel Reale (1978) que continuam a fazer parte do mundo jurídico, a despeito de críticas que recebem. Senão, veja-se: “Até pouco tempo, as parêmias e brocardos jurídicos eram olhados com soberano desprezo pelos filósofos e teóricos do Direito, que os apontavam como reminiscências de processos rotineiros, a embaraçar a tarefa da Ciência Jurídica. Assumia-se, desse modo, atitude diametralmente oposta à de passiva aplicação dos antigos adágios, como se fossem princípios gerais comprovados pela experiência dos séculos. A verdade é que, apesar das críticas e condenações veementes, os brocardos jurídicos continuaram a correr o foro, invocados em arrestos e obras eruditas, de preferência em sua originária e sucinta veste latina, o que demonstra que algo há neles de válido, a merecer estudo desprevinido.”

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forma, no sistema jurídico francês sempre foram prestigidados os brocardos “Nemo Plus Juris ad

Alium Transferre Potest Quam Ipse Habet” ou “Nemo Dat Quod Non Habet”, ambos oriundos do

direito romano, que fornecem proteção ao verdadeiro titular, tendo em vista que ninguém pode

transferir um direito que não é seu.

Assim, em casos como o de proprietário aparente, em que há a venda de um bem a um

terceiro de boa-fé, surge a questão sobre a parte que deve ser amparada pelo Direito: o adquirente

de boa-fé, invocando a máxima do “Error Communis Facit Jus” ou o titular verdadeiro,

socorrendo-se do brocardo “Nemo Plus Júris ad Alium Transferre Potest Quam Ipse Habet”? A

tendência do Direito francês é de ampliar, cada vez mais, aquele princípio jurídico, de modo a

proteger o terceiro de boa-fé, principalmente no Direito Empresarial, onde o campo de aplicação

da teoria é mais vasto.

Porém, como será tratado neste artigo, no campo da propriedade imóvel, há diferenças

entre a aparência de existência e de titularidade de direito, que levam ao tratamento diverso entre

uma venda a non domino e uma aquisição a non domino, o que não deve ser desprezado pela

doutrina, sobremaneira considerando a proteção à boa-fé e confiança nas relações jurídicas.

3.3 A Escola Italiana

Na doutrina italiana, a teoria da aparência merece aplicação, desde que seja

caracterizada, no caso concreto, a boa-fé do terceiro.

Veja-se, a propósito, o entendimento de Hélio Borgui, in verbis: Assim, para a doutrina italiana, por exemplo, a transferência da pretensão à propriedade por quem não tem o direito de fazê-lo só leva à aquisição por quem está de boa-fé, quando houver por parte daquele ao menos a posse mediata da coisa a ser entregue, tendo sempre, pois, em função do direito positivo, certo poder de fato, ainda que esmaecido, de forma que na relação causal entre o pretendente e o possuidor haja se constituído um embasamento objetivo para a aplicação da teoria da aparência. Nos casos, porém, em que o cedente não se tornou possuidor mediato, o adquirente só se torna proprietário quando sobrevém a obtenção da posse, ou seja, através de circunstâncias que, de sua parte, justificariam objetivamente a aparência de direito, já que a circunstância de não só lhe ter sido cedida a pretensão à propriedade, mas também de o terceiro possuidor em consequência disso ter restituído (voluntária ou compulsoriamente) a coisa, confere à aparência de direitos uma suficiente base objetiva em favor do cessionário.” (BORGUI, 1999, p. 31).

Fabrizio Forte (1972) entende que há dois campos de aplicação para a aparência de

direito: quando uma situação jurídica manifesta-se diversa da real, ocasionando nos terceiros de

boa-fé a suposição de certeza do negócio que está sendo realizado e acaba sendo induzido pelo 209

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ato aparente, e quando um terceiro contrai a obrigação e razoavelmente pode acreditar na

veracidade da situação, que é irreal, e, logo, totalmente diversa da realidade jurídica.

Pode-se concuir, após terem sido traçadas brevemente as características da teoria da

aparência nas doutrinas alemã, francesa e italiana, que não há uma uniformidade de tratamento

sobre o instituto, o que contribui para a dificuldade doutrinária em sistematizá-lo e estruturá-lo. 4 Os valores da boa-fé e da confiança nas relações jurídicas

Segundo a definição de Náufel, a boa-fé teria derivado da bona fides dos romanos,

significando “o estado de espírito pelo qual a pessoa tem convicção de que está agindo sob o

amparo da lei, ou sem ofensa a ela.” (NÁUFEL, 1959).

É questão pacífica atualmente que existem duas acepções de boa-fé, uma subjetiva e

uma outra objetiva. Esta última se refere a um modelo ou padrão de comportamento ético na

sociedade, em observância a valores socialmente cristalizados de honestidade, retidão, lisura,

com a finalidade de não ser frustrada a confiança gerada em outra parte na relação jurídica

formada. Por outro lado, a boa-fé subjetiva se refere a um estado psicológico, no qual a pessoa

acredita, legitimamente, que é titular de um direito ou que está agindo conforme o Direito, ainda

que o seja apenas de forma aparente.

De qualquer forma, o ordenamento jurídico pátrio, a exemplo de outros sistemas

estrangeiros, busca sempre a proteção da boa-fé, amparada em um fundamento de justiça, seja

enquanto regra jurídica13 ou como princípio, refletindo nas diversas relações jurídicas que vão se

formando no seio social o seu caráter subjetivo ou objetivo.

O Código Civil Brasileiro de 1916 contabilizava cerca de trinta referências à boa-fé,14

tratando, em sua maioria, da boa-fé subjetiva, como no caso de usucapião, porquanto implicava

somente um estado psicológico do agente, ao contrário da boa-fé objetiva que não recebia

atenção suficiente do legislador.

Por outro lado, a boa-fé objetiva foi prestigiada pelo Código Civil de 2002, embasado

em tendências modernas e inspirado em um crescente movimento de constitucionalização do

Direito Civil, superando uma visão patrimonialista que marcava o antigo Código e trazendo uma

13 Como exemplo, pode-se mencionar a regra constante do art. 180 do Código Civil, que adotou uma importante regra de boa-fé, ao determinar que fica protegido o direito de terceiro que contrate com menor não assistido, que, dolosamente, tenha ocultado a sua idade. No campo dos direitos reais, percebe-se, no art. 1.242 do Código Civil, que, se à boa-fé somarem-se outros elementos peculiares, pode-se adquirir um domínio, através do usucapião. E, ainda, nota-se que a Lei nº 8.078, de 1990, no art. 51, inciso IV, comina de nulidade as cláusulas contratuais que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.” (BRASIL, 1990) 14 Referências expressas se encontram nos arts. 221, 255, 490, 510, 516, 549, 550 e 551, 612, 619, 622, 933, 935, 968, 1072, 1272, 1318, 1321, 1477, 1507. (BRASIL, 1916)

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característica personalista em todo o seu corpo legislativo, em prestígio ao próprio princípio da

dignidade da pessoa humana.

No novo Código, a boa-fé objetiva foi dotada de três funções, in verbis:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão dos contratos, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (BRASIL, 2002)

Sobre o tema, convém colacionar opinião de Sílvio de Salvo Venosa (2003, p. 421): O Código novo, oriundo do Projeto de 1975, em várias disposições busca uma aplicação social do Direito, dentro de um sistema aberto, ao contrário do espírito do Código de 1916, de cunho essencialmente patrimonial e individualista. Sob esse prisma, o princípio da denominada boa-fé objetiva é um elemento dessa manifestação. Nos contratos e nos negócios jurídicos em geral, temos que entender que os declarantes buscam, em princípio, o melhor cumprimento das cláusulas e manifestação a que se comprometem. O que se tem em vista é o correto cumprimento do negócio jurídico ou, melhor, a correção desse negócio. Cumpre que se busque, no caso concreto, um sentido que não seja estranho às exigências específicas das partes no negócio jurídico.

O instituto da boa-fé, em suas duas acepções, apresenta traços próprios que delimitam a

sua função no ordenamento jurídico, ora para suprir consentimentos, ora para sanar atos ou

adquirir e proteger direitos.

A confiança, por sua vez, pode ser conceituada como um segurança íntima de uma

pessoa, em relação a outrem, a uma certa situação ou certo estado.

Lawrence E. Mitchell (1995), ao promover um ensaio sobre a confiança, ensina que a

confiança é uma das instituições mais importantes da sociedade, fazendo com que seja possível a

vida em democracia, e o próprio consumo, com a expectativa de que eles atenderão às finalidades

buscadas e não prejudicarão o consumidor. 15

Como mencionado em Chavinho (2014, p. 33), mesmo que o Direito proporcione

instrumentos para suprir a falta de confiança, é humanamente impossível não reconhecer que o

mundo é formado por relações de fidúcia, e que não poderia se conceber um sistema em que não

existissem, no mínimo, certas parcelas destas relações. Assim, deve existir a confiança em

qualquer relação mercantil, em qualquer investimento feito ou compra de ações em uma

sociedade, mesmo que estejam aludidas situações amparadas por um contrato ou por uma norma

legal. Note-se que, mesmo na celebração do contrato de compra e venda de um imóvel, existe a

15Tradução livre de: “Trust is one of the most important institutions binding our society. Trust in our government makes our popular democracy possible. Trust in our businesses makes it possible for us to purchase and consume products with relative confidence that they will perform their functions adequately and without harming us. Trust in others makes it possible for us to permit our children to be educated in schools and to leave them in the care of others while we work. Trust enables us to give others the power to manage our money and to run our businesses.”

211

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legítima expectativa, baseada na confiança, de que o comprador irá pagar o preço e o vendedor

irá entregar o bem, sem que haja a necessidade de se provocar o Poder Judiciário para fazer

cumprir a avença.

É forçosa, assim, a conclusão de que os valores da boa-fé e da confiança foram

assumidos pelo sistema jurídico brasileiro, baseado em um Estado Democrático de Direito, e

colocados como núcleos basilares das relações jurídicas privadas estabelecidas na sociedade.

5 Fundamentos para a aplicação da aparência de direito.

Ao legislador foi reservado o papel de regulamentar as relações intersubjetivas das

pessoas na vida cotidiana que tenham relevância para o Direito, com a finalidade de assegurar

proteção e segurança e, por conseguinte, manter a boa paz social.

Afigura-se, ainda, utópica a suposição de não ser mais necessária a presença do Direito,

enquanto sistema de regramento de condutas, para salvaguardar os direitos protegidos pelo

ordenamento jurídico, ocasião em que nem mesmo seria necessária a realização de contratos para

formalizar negócios celebrados entre as pessoas, porquantoa a confiança e honestidade já seriam

bastantes para que houvesse o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelas pessoas.

Mas, o sistema ainda não presenciou tal estado de perfeição.

Assim, sendo necessária uma certa quantia, ainda que mínima, de confiança nas relações

entre os indivíduos, nos negócios jurídicos que se realizam constantemente na vida cotidiana,

deve haver uma certa credibilidade, de modo que seja possível a vida em sociedade, dentro de um

padrão médio de honestidade e boa-fé.

Existem, pois, certas situações, como já salientado por Chavinho (2014, p. 45), em que

uma pessoa aparece como titular de direito, quando, na verdade, não é. No caso, são promovidas

manifestações de vontade, que não correspondem à realidade jurídica, mas apenas fática, e, desse

modo, pessoas de boa-fé são levadas a acreditar na realidade do ato falso, não condizente com a

realidade jurídica.

E assim, a aparência de direito surge justamente quando essa pessoa causadora dos

aspectos inerentes à formação da situação de fato, não correspondente à realidade jurídica, realiza

um ato jurídico com um terceiro de boa-fé, que, por sua vez, certamente não realizaria o negócio,

caso tivesse ciência da real situação fática que lhe fora apresentada.

Vicente Ráo (1978, p. 243), ao tratar do fundamento da aparência de direito, bem

apresentou o seu fundamento como a necessidade de a ordem social conferir segurança às 212

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operações jurídicas, amparando-se, ao mesmo tempo, os interesses legítimos dos que

corretamente procedem.

Como bem salientado por Arnaldo Rizzardo (1982), in verbis:

A rapidez e a segurança do comércio, a quantidade de negócios comuns que se impõem diariamente, os compromissos que se avolumam constantemente, o condicionamento da vida a uma dependência de relações contratuais inevitável, entre outros fatores, formam as causas que levam o homem a não dar tanta importância ao conteúdo dos atos que realiza, prendendo-o ao aspecto exterior dos eventos que se apresentam

Nos dias atuais, em que não precisamos mais celebrar negócios jurídicos de modo

presencial e sem que conheçamos a pessoa do outro contratante, faz com que haja uma maior

proteção, por parte do ordenamento jurídico, à boa-fé e à confiança, para que haja o maior

desenvolvimento do comércio e das relações jurídicas em geral.

As necessidades sociais, cada vez mais, exigem que o formalismo na exagerada cautela

em se verificarem aspectos íntimos das partes contratantes não deva ser mais promovido no

mundo, sob pena de causar um enorme empecilho ao comércio e às relações existentes entre as

pessoas.

A presunção de que exista a honestidade e a confiança esperada em cada relação jurídica

deve ser interpretada de modo a que o Direito possa salvaguardar a legítima expectativa do

terceiro de boa-fé, o seu direito deve ser reconhecido, porquanto ele, terceiro, encontra-se em um

sistema que prestigia a equidade e a boa-fé nas relações.

Assim, como bem concluído por Orlando Gomes (1967, p. 95), há três razões principais

para as quais se dee aplicar a teoria da aparência: “1) para não criar surpresas à boa-fé nas

transações do comércio jurídico; 2) para não obrigar os terceiros a uma verificação preventiva da

realidade do que evidencia a aparência; 3) para não tornar mais lenta, fatigante e custosa a

atividade jurídica.”

Todavia, como será adiante visto, no contexto do direito imobiliário brasileiro, há

situações, ainda que envolvam aparentes titulares de um direito de propriedade, que não ensejarão

a aplicação do princípio da aparência em benefício do terceiro, ainda que esteja de boa-fé, como

no caso de uma venda a non domino, que se apoia em duas máximas, quais sejam, “nemo dat

quod non habet, nemo ad alium transfere potest qum ipse habet”, ou seja, ninguém pode

transferir direito que não seja seu ou mais direito do que tenha e “nemo legem ignorare censetur”,

ou seja, ninguém pode transgredir um norma alegando o seu desconhecimento.

6 Elementos e efeitos da teoria da aparência

213

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Segundo o Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, o significado da palavra aparência

é: “aquilo que se mostra à primeira vista; aspecto; exterioridade; aquilo que parece e não é

realidade; mostra enganosa, fingimento; disfarce.” A aparência substitui a realidade em favor de

quem agiu com boa-fé. Na situação aparente, há uma relação real para esse terceiro, mas, que na

verdade, não encontra veracidade jurídica.

A aparência de direito pode ser conceituada como “uma situação de fato que manifesta

como verdadeira uma situação jurídica não verdadeira, e que, por causa do erro escusável de

quem, de boa-fé, tomou o fenômeno real como manifestação de uma situação jurídica verdadeira,

cria um direito subjetivo novo, mesmo à custa da própria realidade.” (Malheiros, 1978, p. 46).

Assim, com base em tal definição, haveria um aspecto interior, que revela uma realidade

interior e imaginada pelo agente e, por outro lado, uma manifestação exterior daquela realidade, a

qual, poderá ser falsa (não titular do direito) ou verdadeira (titular do direito).

Mas, como mencionado por Chavinho (2014, p. 65), para que haja a aplicação do

princípio da aparência de direito, ou seja, para que haja amparo e proteção da realidade interior

do terceiro que agiu de boa-fé, deve haver um critério objetivo para sua aplicação, mesmo não

havendo, ainda, uma cláusula geral que atenda a todos os casos de aparência de direito, em razão

da variedade e multiplicidade de causas fáticas que envolvem situações de contradição entre a

aparência e a realidade.

De qualquer forma, inegável é que devem ser buscados e delineados os elementos ou

requisitos nas situações aparentes e contrárias à essência do ato ou fato, para que haja a

verdadeira proteção ao terceiro de boa-fé, em prestígio à confiança e segurança jurídica, na

medida em que poderá haver sacrifício de direito do verdadeiro titular.

Os elementos objetivos da teoria da aparência dos atos jurídicos são elencados por

Vicente Ráo (1978, p. 243), como sendo: “a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais

que manifestamente a apresentem como se fora uma segura situação de direito; b) situação de

fato que assim possa ser considerada segundo a ordem legal e normal das coisas; c) que, nas

mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fora titular legítimo, ou o direito

como se realmente existisse”.

E, por sua vez, ainda segundo o jurista, os elementos subjetivos seriam: “a) a incidência

em erro de quem, de boa fé, a mencionada situação de fato como situação de direito considera; b)

a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu.” (RÁO,

1978, p. 243).

Logo, nota-se que não é apenas o fato de estar o terceiro de boa-fé que enseja a

aplicação da teoria da aparência, nem mesmo a existência pura e simples de uma situação

aparente, enganadora da realidade jurídica, mas, sim, todos os elementos considerados e

verificados caso a caso. 214

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Porém, como também salientado pelo jurista Ráo (1978), a aparência de direito não deve

ser confundida com uma simples proteção da boa-fé, nem ser tomada como uma das hipóteses de

erro escusável. O princípio, como visto, possui elementos próprios, os quais ainda se encontram

em evolução doutrinária, razão pela qual não podem ser considerados como suficientes para a

delimitação do instituto.

No que se refere aos efeitos jurídicos advindos da aplicação da teoria da aparência são

relevantes os seguintes questionamentos: “O que ocorrerá com o verdadeiro titular do direito?

Haverá a possibilidade de ressarcir-se dos prejuízos sofridos, caso esteja de boa-fé?

A resposta a tais questõs serão adiante tratadas e irão possibilitar o estudo de outros

meios de proteção ao verdadeiro titular de direito, que esteja agindo de boa-fé, sobremaneira em

situações envolvendo a propriedade aparente, que é o foco principal do presente artigo.

De qualquer forma, é inegável que, em uma situação aparente, a vontade de quem erra,

de boa-fé, prevalece sobre o direito do verdadeiro titular, como se houvesse efetivamente a

realidade jurídica e não apenas a aparência. Logo, em regra, a aparência de direito produz os

mesmos efeitos da realidade jurídica.

Quanto ao verdadeiro titular, Ráo (1978, p. 244) menciona que ele possui os meios

legais para que ninguém perturbe o seu direito, não estando legitimado para tanto, e, assim, os

efeitos da aparência de direito somente seriam utilizados se, em tempo hábil, não foi operada a

via legal cabível pelo titular verdadeiro de direito, em respeito à situação de quem de boa-fé

negociou à vista da aparência de direito.

Assim, caso haja a aplicação da teoria da aparência e seja protegido o interesse do

terceiro que agiu de boa-fé e fielmente acreditou na realidade de uma situação que era meramente

aparente e falsa, poderá o verdadeiro titular, que teve o seu direito sacrificado, valer-se de todos

os meios legais para reclamar perdas e danos, se for o caso, daquele que lhe causou a lesão e se

apresentou como titular aparente, com base na própria regra geral da responsabilidade civil.

7 A propriedade aparente

Feitos breves apontamentos sobre a origem, fundamentos e elementos da teoria da

aparência, é inegável que ela também se aplica ao direito de propriedade.

Francisco Paes Landim Filho16 (2001, p. 423) menciona que não há como negar que a

propriedade aparente seja instituto jurídico que compõe o quadro pluralista da propriedade

16 “assim o exige o princípio da confiança que, derivado diretamente da regra geral do Estado de Direito, bifurca-se, na sua vocação protetiva, em duas vertentes, uma delas voltada para a proteção do tráfico jurídico, e a outra, ainda

215

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moderna como categoria jurídica autônoma, em razão da aparência da propriedade e necessidade

de salvaguarda de terceiros de boa-fé e a própria confiança nas relações jurídicas.

Ainda consoante o jurista, o domínio, como todo direito real, pode encontrar-se em

diferentes situações ou estados como a propriedade resolúvel, a propriedade aparente, que são,

por causa disso, figuras jurídicas com fisionomia particular no campo do direito das coisas.

E, então, segundo os diversos estados de propriedade, o jurista classifica o domínio “em

permanente, ou de duração ilimitada, e em domínio contingente, caracterizado por circunstâncias

que não se ligam, para sempre, ao direito de propriedade, como a condição, ou o termo, e a

própria aparência, constituindo-se em modalidades deste último gênero a propriedade resolúvel e

a propriedade aparente” (2002, p. 256).

No domínio permanente, ou de duração ilimitada, o direito de propriedade tem as

caraterísticas que lhe são peculiares e conhecidas, como o exclusivismo, o absolutismo e a

perpetuidade. Já no domínio contingente, a tais caracteres duradouros, são agregados outros,

denominados de elementos circunstanciais, que causam modificações no direito de propriedade e

das quais resultam situações novas de domínio, ressaltando, daí, o alcance provisório de tais

modalidades especiais de domínio.

E, assim, surgiria a propriedade aparente, espécie de domínio contingente, como um

direito real, que se liga ao titular inscrito no registro imobiliário, por uma aparência de

titularidade de domínio, ou, em outras palavras, como conceituada por Landim Filho (2001, p.

258) “é uma modalidade especial de domínio, com existência real no mundo jurídico, preso à

titularidade aparente de um non dominus, qualificado, na posição de proprietário da coisa, por

uma aparência de titularidade do direito de propriedade”, não obstante possa tal

contingencialidade desaparecer a qualquer momento, devolvendo a propriedade à categoria de

domínio permanente, ou de duração ilimitada.

É o caso de uma venda a non dominus realizada pelo não titular que aparentava o ser,

por meio de uma escritura falsa levada a registro no órgão cartorário respectivo, por exemplo.

Nesse caso, se não for promovida a retificação de registro pelo verdadeiro dono ou mesmo o

ajuizamento de uma demanda anulatória do título, a tempo e modo, poderá o adquirente

consolidar a propriedade em seu domínio, por meio de usucapião, fazendo com que a propriedade

aparente, assim, perca tal elemento contingencial com o tempo.

Ademais, na mesma hipótese, caso tivesse sido alienado, pelo non dominus, a título

oneroso a um adquirente de boa-fé, que confiou na veracidade da inscrição no órgão cartorário,

deve-se prestigiar o instituto da aparência de direito em homenagem à própria boa-fé e confiança

dentro do comércio honesto, para a tutela do terceiro adquirente de boa-fé. Esta última direção se desdobra no princípio da aparência jurídica e, na primeira delas, no princípio da proteção do comércio, que se constituem nas duas razões invocadas para justificar, numa aquisição a non domino, a perda da propriedade pelo verdadeiro dono do imóvel, em favor do terceiro adquirente de boa-fé.”

216

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das relações jurídicas, como mencionado em tópicos anteriores, inclusive em detrimento e

prejuízo do verdadeiro titular do domínio, ao qual restará, pois, somente uma demanda de

natureza obrigacional para se beneficiar da indenização pelas perdas e danos que tiver sofrido.

Necessário se faz, porém, diferenciar situações diversas envolvendo aparência de direito

e de titularidade no campo imobiliário, de modo a verificar em quais casos deverá ser

resguardado o direito do terceiro de boa-fé que negociar com o titular aparente na venda a non

domino e em quais casos o referido direito deverá ser sacrificado em detrimento do direito do

verdadeiro titular do domínio.

7.1 A venda a non domino

Na doutrina civil, é possível diferenciar, no mundo jurídico, os planos de existência, de

validade e de eficácia do negócio jurídico.

No plano de existência, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 346), não se indaga

da invalidade ou eficácia, importando apenas a realidade da existência. Tal ocorre quando este

sofre a incidência da norma jurídica, desde que presentes todos os seus elementos estruturais. Se

faltar, no suporte fático, um desses elementos, quais sejam, a declaração de vontade; o sujeito; o

objeto e a forma, o fato não ingresso no mundo jurídico é inexistente.

O ato existente deve passar pela triagem quanto à sua regularidade para ingressar no

plano de validade, quando então se verificará se está perfeito ou se está eivado de algum vício ou

defeito inviabilizante. Logo, o preenchimento dos requisitos, como capacidade do agente, licitude

do objeto ou forma prevista em lei, é indispensável para o reconhecimento da validade. Mas,

mesmo a invalidade pressupõe como essencial a existência do fato jurídico. Este pode existir e

não ser válido. E, finalmente, pode também o negócio existir, ser válido e não ter eficácia, se não

tiver o implemento de uma condição, por exemplo.

O Código Civil de 2002 adotou a tricotomia existência- validade-eficácia. Na verdade,

não há necessidade de mencionar os requisitos de existência, pois esse conceito se encontra na

base do sistema dos fatos jurídicos.

Assim, o art. 104 dispõe apenas sobre os requisitos de validade do negócio jurídico

(agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei). Não há no Código qualquer

dispositivo que se refira aos elementos de existência do negócio; mas, sendo a validade um

problema de qualificação e os requisitos “as qualidades que os elementos devem ter”, parece

natural que o art. 104, ao prescrever os requisitos, suponha a necessidade de existência da 217

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declaração de vontade, do sujeito, do objeto e da forma, ainda que verbal ou manifestada

mediante o silêncio, em todo negócio jurídico.

Nesse contexto, é inegável concluir que a venda a non domino se refere a um negócio

jurídico inexistente em face do verdadeiro proprietário, que não deu o seu conhecimento e

desconhece aquele negócio no qual o alienante não era o verdadeiro titular do direito.

Nesse caso, como bem ressaltado por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias

(2012, p. 533), excetuando-se a possibilidade de usucapião, os sucessivos adquirentes de boa-fé

não serão tutelados pelo direito em razão do vício originário, consistente na inexistência da

declaração de vontade do real proprietário, motivo pelo qual este conservará todo o direito

advindo do seu domínio, podendo, inclusive, reivindicar o imóvel eventualmente adquirido nestas

condições.

Em julgamento de caso envolvendo uma venda de imóvel a non domino, o Tribunal de

Justiça do Estado de Minas Gerais também refletiu o mesmo entendimento de que não há de se

falar em nulidade ou ineficácia do negócio jurídico, nesse caso, mas sim de inexistência. Veja-se:

DIREITO CIVIL - AÇÃO REIVINDICATÓRIA - AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE - NECESSIDADE DE TRANSCRIÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA NO REGISTRO DE IMÓVEIS - COMPRA E VENDA DE IMÓVEL FEITA POR INSTRUMENTO PARTICULAR - EFEITOS MERAMENTE OBRIGACIONAIS - POSSE INJUSTA - CONCEITO DO ART. 489 DO CC/1916 - CONEXÃO COM O CONCEITO DO ART. 524 DO MESMO DIPLOMA - INEXISTÊNCIA - VENDA A NON DOMINO - NEGÓCIO INEXISTENTE EM RELAÇÃO AO VERDADEIRO PROPRIETÁRIO - DEFESA DO RÉU NA AÇÃO REVOCATÓRIA. I - O sistema jurídico brasileiro adota a transcrição do instrumento público no Registro como o modo válido para a aquisição da propriedade imóvel. II - A compra e venda de imóvel, feita por instrumento particular, não gera efeitos, senão, obrigacionais. III - O conceito de posse injusta, disposto no art. 489 do CC/1916 não guarda relação com advérbio "injustamente", contido no caput do art. 524 do mesmo Código. IV - Com exceção da posse ad usucapionem, somente aquela que se exerce em razão de título apto a transferir a propriedade pode obstar a reivindicação. V - Aqueles que têm a posse de bem imóvel em razão de promessa de compra e venda realizada por meio de instrumento particular na qual figura como promitente quem não era dono, não podem opô-la ao verus domino, posto que, em relação a este, o referido negócio é inexistente. VI - A defesa do réu na ação reivindicatória há de consistir na comprovação de que o bem reivindicado lhe pertence, demonstrando, assim, que a pretensão do reivindicante é infundada. (MNAS GERAIS, 2005).

Percebe-se, nesse caso, que impera a máxima nemo plus iuris, agasalhado pela primeira

parte do art. 1.268 do Código Civil, segundo o qual: “Feita por quem não seja proprietário, a

tradição17 não aliena a propriedade (...)” (BRASIL, 2002)

E ressalva, também, o parágrafo 2º, a aplicação do mesmo brocardo jurídico, sempre que

a tradição tiver por título um negócio jurídico nulo, como no caso de a compra e venda se referir

17 Segundo Arruda Alvim (1983, p. 197), o termo “tradição”, embora se refira ao modo de transferência do domínio de bens móveis, também se refere à transcrição quanto aos bens imóveis.

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a um negócio jurídico existente, mas contendo um objeto ilícito, como uma substância

entorpecente, por exemplo.

De qualquer forma, nos dois casos, a solução será a mesma, ou seja, mesmo se o

adquirente estiver de boa-fé, poderá o verdadeiro titular reivindicar a sua propriedade de quem

quer que se encontre em poder do bem, motivo pelo qual haverá uma certa semelhança, no que se

refere aos efeitos da venda, quer se trate de um negócio jurídico inexistente ou nulo.

A venda a non domino que se funda em um negócio jurídico inexistente é desconforme a

verdadeira realidade de existência do direito. Como bem definido por Francisco Paes Landim

Filho (2001, p. 244), há, neste caso, uma aparência de existência do direito. O comprador de boa-

fé, em uma venda a non domino contendo, por exemplo, uma escritura de compra e venda falsa,

acredita na aparência da falsa existência da propriedade em nome do vendedor, ainda que esta

seja apenas imaginária, posto que inexistente juridicamente.

Todavia, bastaria que se realizasse uma investigação junto ao órgão cartorário, para que

verificasse que não havia registro de propriedade em nome do vendedor que se apresentou como

o verdadeiro titular do imóvel, motivo pelo qual, além da inexistência do negócio, não se poderia

invocar, nesse caso, a teoria da aparência, em razão de erro inescusável por parte do comprador,

que certamente não seria ou não deveria ser cometido por outras pessoas em situação similar.

7.2 A aquisição a non domino

A aquisição a non domino, por outro lado, reflete a verdadeira propriedade aparente. É

que, nesta forma de aquisição, existirá uma aparência na titularidade do direito e não do próprio

direito, como no caso da venda a non domino.

A aquisição a non domino, ao contrário da venda a non domino, é feita pelo terceiro

adquirente de boa-fé ao titular aparente da propriedade, que não se funda em qualquer negócio

jurídico inexistente ou nulo. Há, assim, uma verdadeira transmissão na titularidade do direito real

da propriedade, dotada de todas as suas características de ser absoluta, exclusiva, perpétua, e

ainda protegida pelo direito de sequela.

O adquirente de boa-fé, no caso, então, confiou na aparência da titularidade do direito e

não na aparência do direito em si e, em razão da confiança e segurança do negócio jurídico

existente, válido e eficaz, tornou-se verdadeiro titular do domínio, motivo pelo qual será tutelado

pelo ordenamento jurídico, em razão do próprio princípio da aparência, ainda que,

posteriormente, seja desconstituída a titularidade do antigo proprietário aparente.

É o caso já conhecido envolvendo a aquisição de bem alienado, de forma onerosa, pelo

herdeiro aparente, o qual é definido por Mário Moacyr Porto (1966, p. 132) da seguinte forma: “é 219

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o que, não sendo titular dos direitos sucessórios, é tido, entretanto, como legítimo proprietário da

herança, em consequência de erro invencível e comum”.

Segundo o Código Civil, no parágrafo único do art. 1.827: “são eficazes as alienações

feitas a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé”. (BRASIL, 2002).

Assim, por exemplo, se um ascendente se portar e se apresentar perante um terceiro

interessado como o único herdeiro de um imóvel deixado pelo de cujus, sendo desconhecidos

quaisquer outros herdeiros, deve-se considerar, além da boa-fé do comprador, a própria confiança

e aparência na situação jurídica existente, quando da realização do negócio de compra e venda.

Suponha-se, todavia, que, nessa mesma situação, posteriormente, em uma demanda de

investigação de paternidade cumulada com petição de herança, descubra-se que o então falecido

tinha um filho, com preferência em relação ao ascendente na ordem de vocação hereditária, nos

termos do art. 1.829 do Código Civil.

Nesse caso, em que pese o reconhecimento da sua titularidade em relação ao direito de

propriedade sobre o imóvel herdado, o próprio legislador protegeu, em respeito aos valores da

aparência, boa-fé e confiança que devem sempre serem observados nas relações jurídicas,

mediante ressalva, no parágrafo único do art. 1.829, a eficácia da anterior alienação feita, a título

oneroso, pelo herdeiro que, até então, aparentava ser o único titular do direito de propriedade em

questão, ao comprador, que figurou como terceiro de boa-fé no caso em questão.

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais também, em análise a caso similar ao

trazido exemplificativamente acima, determinou a aplicação do dispositivo acima referido,

prestigiando a aparência refletida no negócio jurídico de compra e venda imobiliária realizado

por herdeiro aparente em contrariedade ao direito do próprio verdadeiro titular do direito. Veja-

se:

APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS DE TERCEIRO - ALIENAÇÃO FEITA, A TÍTULO ONEROSO, POR HERDEIRO APARENTE A TERCEIRO DE BOA-FÉ - EFICÁCIA DO NEGÓCIO JURÍDICO FACE AO HERDEIRO PRETERIDO - APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ART. 1.600 DO CC/1916 - ORIENTAÇÃO CONSAGRADA NO ART. 1.827 DO CC/2002 - RECURSO DESPROVIDO. São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé. (MINAS GERAIS, 2011).

Situação diversa, mas que também envolve o reconhecimento da teoria da aparência no

campo sucessório do direito imobiliário, envolve as vendas também onerosas de bens hereditários

a terceiros de boa-fé pelo herdeiro aparente que, posteriormente, é excluído da sucessão por

sentença declaratória em processo judicial, nos casos do art. 1.814 do Código Civil.

Nesse caso, o herdeiro que se apresentou como vendedor de um bem deixado pelo

falecido era, até ser excluído da sucessão, realmente o titular do direito real a ser transferido, de

forma onerosa, através do respectivo negócio jurídico de compra e venda. O comprador, que 220

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figurou como terceiro, por ter agido com toda a diligência que lhe era esperada, promoveu

consulta nos órgãos cartorários, certificando-se a respeito da existência, validade e eficácia do

negócio jurídico, motivo pelo qual realmente acreditou na aparência real da situação de que

estava contratando com o verdadeiro proprietário do bem herdado.

Todavia, em posterior demanda de exclusão do herdeiro, seja porque foi descoberta uma

acusação caluniosa dele contra o autor da herança ou mesmo porque foi descoberta eventual

participação sua no crime que levou à morte do mesmo autor da herança, foi declarada

judicialmente sua exclusão.

Nessa situação, mais uma vez, o legislador preferiu amparar o princípio da aparência,

prestigiando o direito do terceiro de boa-fé que adquiriu, de forma onerosa, o bem herdado do

herdeiro aparente antes da sua exclusão da sucessão mesmo em prejuízo de eventuais outros

herdeiros que teriam o direito sobre o mesmo bem após o reconhecimento judicial de tal

exclusão.

A tais outros herdeiros restará, tão somente, demandar o herdeiro excluído da sucessão

por eventuais perdas e danos, no campo do direito obrigacional, não podendo, todavia, valerem-

se das características advindas do direito real de propriedade para reivindicar o bem que já havia

sido alienado, consoante o dispositivo do art. 1817 do Código Civil.

8 Conclusão

O conceito de propriedade, no âmbito jurídico, não se manteve estático no tempo e no

espaço, tendo o seu significado variado segundo a cultura e classe dominante nas sociedades até

atingir o seu atual valor pluralista no atual contexto do Estado Democrático de Direito.

A propriedade, inserida na nova visão valorativa pluralista, não pode ser concebida de

forma absoluta e fechada, mas sim através de uma visão dinâmica e aberta, para que o próprio

sistema jurídico-normativo possa amparar as novas figuras jurídicas da propriedade que passam a

ser concebidas na sociedade moderna, em razão da própria multiplicidade de novas relações

jurídicas que passam a ser realizadas e formadas dia a dia, dentre as quais a propriedade aparente,

oriunda de reflexos da própria teoria da aparência no direito imobiliário brasileiro.

A teoria da aparência ou aparência de direito, da qual se originou a propriedade

aparente, apresenta-se como um importante instituto descoberto pela doutrina e baseado em

valores amparados pela boa-fé e confiança, para a proteção dos negócios jurídicos que sejam

implementados.

A própria concepção da teoria da aparência como um verdadeiro princípio a ser

protegido pelo sistema jurídico ressalta a importância do tema, sobremaneira em relação ao 221

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campo dos direitos reais, o que, todavia, por envolver relações jurídicas, em que é afetado o

direito do verdadeiro titular, demanda que o jurista sempre aja com cautela, quando deparar-se

com uma situação de aparência de direito, devendo analisar, no caso concreto, todos os elementos

e características do instituto.

Nada obstante a riqueza das obras já produzidas sobre o tema da aparência, o

crescimento dos negócios, bem como a variedade das relações sociais demonstram a carência de

estudos mais aprofundados sobre a teoria, fazendo com que haja uma grande variedade de

opiniões doutrinárias e jurisprudenciais sobre o assunto.

De qualquer forma, a propriedade aparente é um instituto jurídico que compõe o quadro

pluralista da propriedade moderna como categoria jurídica autônoma, em razão da aparência da

propriedade e necessidade de salvaguarda de terceiros de boa-fé e a própria confiança nas

relações jurídicas, embora seja ela dotada de um elemento específico contingente, qual seja, a

aparência de titularidade do direito.

Todavia, mesmo em casos envolvendo uma aparência de direito ou de titularidade do

mesmo direito, devem ser diferenciadas as situações em que deverá ser resguardado o direito do

terceiro de boa-fé que negociar com o titular aparente na venda a non domino e em quais casos o

referido direito deverá ser sacrificado em detrimento do direito do verdadeiro titular do domínio

na denominada aquisição a non domino.

A proteção ao terceiro de boa-fé que se envolve em aquisições a non domino restou

embasada em regras legais mantidas e inseridas no corpo do Código Civil de 2002, como se nota

em situações envolvendo a compra e venda de um herdeiro aparente, que foi objeto do presente

trabalho e de outros18 casos não mencionados, além da proteção advinda do instituto do

usucapião, através de suas modalidades legais.

Dentro de tal contexto, a eventual colisão de interesses envolvendo o direito do

proprietário e o terceiro envolvido numa situação aparente de aquisição a non domino, sempre

deverá ser enfrentada e analisada, caso a caso, os elementos e características da propriedade

aparente, como realidade jurídica, de modo a possibilitar a valoração de interesses maiores, e,

com isso, garantir a paz nas relações sociais e a própria boa-fé.

REFERÊNCIAS

18 Outras hipóteses envolvendo a aparência de direito no campo imobiliário mencionadas por NELSON ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES DE FARIA (2012, p. 535) São Os Casos De Pagamento Indevido (art. 879, CC) em que o solvens entrega um bem imóvel ao accipiens, que aliena onerosamente a um terceiro de boa-fé, o qual é protegido pela aparência do direito adquirido, mesmo se provado que o pagamento se deu em razão de erro; e ainda a fraude contra credores, preceituada no art. 161 do Código Civil, pelo qual a ação pauliana somente poderá ser ajuizada pelo credor contra o devedor insolvente e a pessoa com quem ele celebrou o negócio jurídico fraudulento, sem que possa alcançar o subadquirente de boa-fé, também em homenagem à aparência do direito oriunda da relação jurídica em questão.

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