acaso, aparelho e jogo - breves consideraÇÕes conceituais aplicadas ao campo da arte computacional

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    ACASO, APARELHO E JOGO: BREVES CONSIDERAES CONCEITUAISAPLICADAS AO CAMPO DA ARTE COMPUTACIONAL

    Fabrizio Augusto Poltronieri, Centro Universitrio SENAC

    RESUMO: Os objetivos deste texto so: 1. analisar o conceito de acaso teoricamente; 2.apresentar algumas imagens produzidas computacionalmente a partir de um conjunto dealgoritmos que se valem do acaso; 3. introduzir, de maneira breve, a produo do coletivode arte [+zero] (www.maiszero.org), composto por quatro artistas e pesquisadores

    brasileiros que produzem arte computacional a partir de situaes indeterminadas baseadasno conceito filosfico de jogo. Para o cumprimento destas tarefas, parto de conceitosprovenientes do grego Aristteles (384 a.C322 a.C.) e do norte americano Charles SandersPeirce (18391914), filsofos que desenvolveram interessantes e profundas reflexes sobreo tema principal deste escrito. A seguir apresento as Teogonias Visuais, imagensderivadas do acaso, e o contexto ldico em que elas so produzidas.

    Palavras-chave: Acaso, Aparelho, Jogo, Arte, Esttica.

    ABSTRACT: The aims of this text are: 1. to analyse the concept of chance in a theoretical

    manner; 2. to present some images produced computationally from a set of algorithms that

    rely on chance; 3. to introduce, briefly, the production of the art group [+zero](www.maiszero.org), composed of four Brazilian artists and researchers who createcomputer art from indeterminate situations based on the philosophical concept of play. Tofulfil these tasks, I begin with concepts derived from the Greek Aristotle (384 BC322 BC)

    and the North American Charles Sanders Peirce (18391914), philosophers who havedeveloped interesting and profound reflections on the main theme of this writing. Following

    that I present the Visual Theogonies, images derived from chance, and the playful contextin which they are produced.

    KEY WORDS: Chance, Apparatus, Play, Art, Aesthetics.

    Como ponto de partida necessrio observar que o acaso um conceito

    ontologicamente imprescindvel, que est na raiz da existncia csmica e que

    biologicamente e cognitivamente essencial ao homem, embora muitas vezes ainda

    seja visto como uma ideia difcil de ser abordada e definida objetivamente, por no

    ser, ou pouco ser, apreensvel pelo conjunto de disciplinas que constituem a base de

    nossa moderna compreenso ocidental a qual chamamos de cincia.

    Aristteles j havia identificado o ser acidental, cujas caractersticas so passveis

    de correlao com o acaso. Para o filsofo grego o ser acidental caracteriza-se por

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    ser fortuito ou casual: o que pode no ser, ou ainda o que no sempre nem na

    maioria das vezes. Por exemplo, no absolutamente necessrio que um homem

    seja plido ou nervoso. Que este homem apresente tais qualidades acidental,

    fortuito e casual, j que elas poderiam, indiferentemente, estar presentes neste

    homem ou no. Porm necessrio que o homem tenha qualidades. Aristteles

    exemplifica dizendo que nem sempre nem na maioria das vezes o homem branco

    msico; mas, posto que s vezes ocorre, ento ser por acidente. Se no fosse

    assim, tudo seria necessariamente (Met., E2, 1027a, 5-15).

    Nenhuma cincia se ocupa do ser acidental: Nem a cincia prtica, nem a cincia

    potica e nem a cincia terica1. Na concepo aristotlica, o acidente tem

    caractersticas de imprevisibilidade e indeterminao, pois no h como determinar

    o que o provocou ou quais foram as suas causas, segundo a seguinte observao:

    De fato, quem faz uma casa no faz tambm tudo o que, acidentalmente, acasa vir a ter. Com efeito, os acidentes so infinitos; nada impede que acasa, uma vez construda, a uns parea agradvel, a outros incmoda, aoutros til, e que seja diferente de todas as outras coisas. Ora, a arte deconstruir casas no produz nenhum desses acidentes. Do mesmo modo,tambm o gemetra no se ocupa dos acidentes das figuras: no se ocupa,por exemplo, da questo de se so diferentes o tringulo e o tringulo cujos

    ngulos so iguais a dois ngulos retos. E natural que assim seja porqueo acidente quase se reduz a puro nome (Met., E2, 1026b, 5-10).

    O ser acidental se forma por si mesmo, no tendo algo externo que diga como ele

    deve ser ou agir. A sua causa final2 o que constitui o fim ou o propsito das coisas

    e das aes indeterminada, estando em constante construo. Trata-se de algo

    cuja necessidade no pode ser estabelecida, pois das coisas que se produzem por

    acidente tambm a causa acidental (Met., E2, 1027a, 5).

    Como, ento, conhecer o que no apresenta um padro de comportamentodefinido? Sobre a impossibilidade de uma cincia que d conta do acidental,

    Aristteles chega concluso de que toda a cincia refere-se ao que ocorre a partir

    de padres esperados. Se no fosse assim, o filsofo pergunta, como seria possvel

    aprender ou ensinar os outros? Fica constatado que os objetos da cincia devem ter

    um comportamento predizvel, enquanto que com relao ao acidente e as suas

    causas no existe nenhuma cincia:

    De fato, o que objeto de cincia deve existir sempre ou na maioria dasvezes: por exemplo, que o hidromel na maioria das vezes benfico aquem tem febre; e no ser possvel enumerar os casos em que isso no

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    ocorre dizendo, por exemplo, na lua nova, porque isso tambm ocorresempre ou na maioria das vezes, enquanto o acidente est fora do sempree da maioria das vezes. Fica, portanto, dito o que o acidente e a causapela qual existe, e que dele no existe nenhuma cincia (Met., E2, 1027a,20-25).

    Charles Sanders Peirce lembra que uma observao comum que a cincia

    comea a ser exata quando recebe um tratamento quantitativo3 (EP 1, p. 142), por

    ser a cincia uma rede que busca capturar o que geral, deixando escapar o que

    pequeno ou diferente. Por estas razes o acaso no objeto da cincia. No campo

    dos fazeres humanos dos produtos do acaso trata a arte, por excelncia, pois esta,

    em ltima anlise, tambm algo que no necessita de mais nenhum outro

    fenmeno para existir, sendo completamente livre. O que nico no pode ser

    redutvel razo, da qual a cincia representante. O objeto do pensamento

    racional deve ser o que generalizvel e que apresenta um padro de

    comportamento definido.

    Estipulo ento a arte, o acaso e o ser acidental como correlatos, como formas

    anteriores generalizao racional. O tempo da arte , entre outras coisas, um

    tempo de magia, tempo circular e vago marcado por um eterno retorno que procura

    capturar detalhes singulares. Nesta modalidade temporal as relaes significativasso construdas sem a necessidade da existncia de nenhum tipo de

    constrangimento, de causa e de efeito. O carter mgico, independente, da arte

    essencial para o entendimento de suas mensagens livres e para a construo de

    seus mtodos.

    O acaso tambm tem como caracterstica no estar sob o julgo de nenhum tipo de

    lei, sendo um universo de puras possibilidades qualitativas, altamente

    indeterminadas e livres de quaisquer regras ou leis que determinem suas

    ocorrncias. Sendo o acaso ontologicamente real, ou seja, independente do que

    possa ser pensado a respeito dele, ele um conjunto de possibilidades que podem

    se transformar em fatos a qualquer instante, caracterizando-se pela indefinio,

    heterogeneidade e multiplicidade. De fato, onde existe frescor, espontaneidade,

    indeterminao e possibilidades em aberto encontra-se o acaso. Este no algo

    especfico, ganhando especificidade ao ser recortado em algo individual, quando h

    o choque de duas ou mais de suas possibilidades infinitas. Por este motivo o acasos pode ser considerado geral se for no sentido de ser uma generalidade potencial.

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    Peirce, em seu conjunto filosfico, delimitou um campo de estudos para o que

    aparente, relacionando-o ao que percebemos, ao modo como os fenmenos se

    mostram mente humana, denominando-o como fenomenologia. A fenomenologia

    peirceana tem uma ligao direta com o acaso, j que o filsofo elaborou a

    concepo de acaso como um princpio responsvel pela variedade constatada na

    natureza e inventariada fenomenologicamente.

    A importncia da fenomenologia no panorama terico que Peirce criou surge do fato

    de que esta trata das categorias mais universais da experincia, sendo uma quasi-

    cincia que tem por funo fornecer os fundamentos com que trabalharo o restante

    das disciplinas filosficas. O que Peirce chama de categorias so conceitos

    abstratos e ao mesmo tempo elementares no sentido de serem uma composio

    primria que rene em formas lgicas a diversidade do mundo e universais, isto ,

    vlidos para toda a experincia:

    Fenomenologia o ramo da cincia que foi tratado na Phnomenologie desGeistes de Hegel (um trabalho demasiado impreciso para ser recomendadopara algum que no seja um estudioso experiente, embora este talvez sejao estudo mais profundo j escrito), no qual o autor procura compreenderquais so os elementos, ou se voc desejar, os tipos de elementos, que

    esto invariavelmente presentes em tudo o que se apresenta, em qualquersentido, mente. De acordo com o presente escritor, estas categoriasuniversais so trs. Desde que as trs so invariavelmente presentes,conceituar de maneira isolada cada uma das categorias, de modo distintodas outras, impossvel; de fato, qualquer tentativa de estabelecer umaclara distino delas um trabalho que requer uma longa meditao. Elaspodem ser denominadas Primeiridade, Secundidade e Terceiridade4 (EP 2,p. 267).

    De uma maneira sucinta, as categorias que Peirce descreve nesta passagem so:

    A potencialidade, denominada Primeiridade, presente naquilo que livre,

    novo, espontneo e casual.

    A existncia, ou fatualidade, denominada por Peirce Secundidade,

    caracterstica do esforo, da resistncia, da ao e reao, da alteridade, da

    negao e da existncia.

    Por fim, a generalidade, denominada por Peirce Terceiridade, caracterstica

    do pensamento contnuo e da lei.

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    Diante destas breves colocaes acerca da natureza geral da fenomenologia,

    possvel perceber que Peirce dedicou completamente uma categoria ao estudo do

    que est relacionado potencialmente ao acaso, sendo esta a base para a existncia

    das outras categorias. No por outro motivo, o filsofo denominou esta categoria de

    Primeiridade, qual o acaso se subsume em sua configurao ontolgica. A

    Primeiridade um estado onde os sentidos apresentam-se sem nitidez, por no

    haver nada externo que os tensione ou coloque prova sua unidade:

    Como um exemplo de Primeiridade, olhe para algo vermelho. Talvermelhido positivamente o que . As condies em que olhamos paratal vermelho afetam nossa conscincia a respeito; mas a vermelhido no relativa a nada; absoluta, ou positiva. Se algum imaginar ou se lembrar

    da cor vermelha, sua lembrana pode ser tanto de um vermelho vivo oumais apagado; mas isto no afeta, em ltima instncia, a qualidade devermelhido, que pode ser brilhante ou opaca, em qualquer caso. Avivacidade corresponde ao grau de nossa conscincia a respeito dovermelho, a reao da cor sobre ns. A qualidade em si mesma no maisbrilhante ou opaca. No podemos ter conscincia de como ela em simesma, pois ela , em si mesma, uma mera possibilidade ().Possibilidade, o modo de ser da Primeiridade, o embrio do ser5 (EP 2,pp. 268-269).

    O acaso como princpio no tem um atributo de causa, no integra nenhum universal

    e no pertence a nenhum tipo de classe. Todo tipo de individualidade surge do

    acaso por ser algo que resiste a generalizao e busca manter qualidades que no

    so reprodutveis na forma de repetio ou semelhana. uma distribuio fortuita

    de qualidades como a obtida em qualquer experimento equiprovvel, como em um

    jogo de dados, por exemplo. Neste tipo de jogo no h razo racional para apostar

    em um resultado mais do que em outro.

    Portanto o acaso, como propriedade de uma distribuio, necessita de algo a ser

    distribudo. Este um ponto central para a compreenso das relaes entre o acasoe as estruturas computacionais que, embora partam de um cdigo de programao,

    no trazem todos os resultados que os programas podem gerar necessariamente

    prontos.

    Retomando o dilogo do acaso com os processos observados no campo artstico,

    percebe-se que o artista, a rigor, no tem compromisso com objetos reais e pode

    manipular o universo indiscriminadamente. Na referncia a objetos reais est

    presente a concepo peirceana de segundo, expressa pela categoria daSecundidade. Um segundo um fato bruto que necessita de mediao. coisa que

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    reage, vindo dai o conceito de objeto como algo que coloca limites ao livre exerccio

    da vontade individual. O segundo possui caractersticas que independem do querer

    particular individual, no dependendo do que se dele pense e permanecendo no

    afetado pelo que dele se possa pensar:

    Falamos sobre fatos brutos (). Uma porta est levemente entreaberta.Voc tenta abri-la. Algo impede. Voc coloca seu ombro contra ela, eexperimenta uma sensao de esforo e uma sensao de resistncia.Estas sensaes no so duas formas de conscincia; elas so doisaspectos de uma conscincia dupla. inconcebvel que possa existirqualquer esforo sem resistncia, ou qualquer resistncia sem um esforocontrrio. Esta conscincia dupla a Secundidade6 (EP 2, p. 268).

    Enquanto o primeiro o campo da liberdade, onde o livre desejo impera, o segundo

    o campo da ao bruta, do reagente que precisa ser mediado pelo pensamento,

    pela categoria da Terceiridade para se tornar inteligvel. A Secundidade encapsula a

    Primeiridade, colocando no jogo a existncia de puras potncias qualitativas. O

    terceiro o componente mediador. Surge a razo que analisa, baliza e corrige o

    comportamento. Parte-se da qualidade, do desinteresse; passa-se ao dado bruto e

    chega-se a mediao racional:

    A Terceiridade encontrada onde quer que algo traga a experincia da

    Secundidade entre duas coisas. Nestes casos, podemos perceber que opensamento desempenha um papel central. Por pensamento queremosdizer algo como o significado de uma palavra, que pode ser incorporado,isto , que pode governar, este ou aquele, mas que no confinado anenhum existente. O pensamento costumeiramente relacionado com algopresente na conscincia; mas ao contrrio, impossvel estar cnscioacerca do pensamento (). O pensamento se assemelha mais a naturezade um hbito, que determina a talidade do que emerge para a existncia,quando este algo se torna existente (). Em um sentido mais amplo, aTerceiridade consiste na formao de hbitos. Em cada sucesso deeventos que ocorre deve existir algum tipo de regularidade (). Em resumo,onde quer que exista pensamento existe Terceiridade7 (EP 2, p. 269).

    A ordem ou hbito portanto no exclui o acaso, mas o encapsula como parte do

    seu sistema. O acaso, como primeiro, sempre exerce tenso sobre a ordem

    buscando modific-la, em um jogo de esvaziamento e preenchimento constante,

    onde a ordem um preenchimento transitrio de formas:

    possvel a Primeiridade prescindir da Secundidade. Podemos supor umser cuja vida seja um invarivel sentimento de vermelhido. Mas impossvel haver Secundidade sem Primeiridade. Supor duas coisas supor duas unidades; e por mais descolorido ou indefinido que um objetopossa ser, ele algo, e nele existe Primeiridade, ainda que ele no possuanada reconhecvel como uma qualidade. Tudo necessita ter algum elementono-relativo; e isso sua Primeiridade. Da mesma forma possvel

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    prescindir a Secundidade da Terceiridade. Mas a Terceiridade sem aSecundidade seria algo absurdo8 (EP 2, p. 270).

    Mais especificamente no mbito da arte computacional, importante considerar os

    computadores como integrantes de um jogo de trocas simblicas que estabelece-sedentro de um contexto maior, imerso em cultura. Um cdigo de programao parte

    do pressuposto de que existam coisas a serem distribudas. Tomando como partida

    a premissa semitica do falibilismo, ou seja, de que por meio do raciocnio no

    possvel nunca obter certeza, exatido e universalidade absolutas9, h argumentos

    para a considerao de que mesmo a tentativa de programar um computador com

    total exatido traz em si a imperfeio e o espao para o inesperado, mesmo que

    este seja milimtrico.

    Como demonstrao da atuao do acaso aplicada na produo de software ligados

    a arte computacional, apresento algumas Teogonias Visuais (figuras 1, 2, 3 e 4),

    conjunto de softwares desenvolvidos em linguagem C++ para a criao de imagens

    que no possuem ndices externos, ou seja, so frutos da pura manipulao

    matemtica ao acaso de determinado conjunto de dados contido no interior da

    memria do computador. O termo Teogonia tomado emprestado de um poema

    escrito pelo grego Hesodo nos fins do sculo VIII a.C. O poema trata do processo

    de nascimento dos deuses gregos, e por isso o conjunto de software recebe o

    subttulo de imagens do deus computacional, j que neste caso os deuses se

    transmutam na vontade dos algoritmos computacionais regidos pelo acaso.

    A Teogonia de Hesodo um poema que representa uma fase do pensamento

    Grego em que no haviam relaes de causa e efeito, onde os deuses existiam por

    si e para si e o tempo no era contado cronologicamente. Ou seja, um perodo de

    relaes puramente mgicas, onde um fato no explicava outro, mas dava margem

    a interpretaes mltiplas e abertas. A presena de paradoxos para estes Gregos

    tambm no constitua um problema, pelo contrrio: Era o modo de pensar e de agir

    mais sublime que poderia existir. Este programa cultural que conduzia o modo de

    vida Grego da poca no estava balizado por nenhuma cincia, apenas pela crena

    em algo que apresentava-se por si mesmo, assim como so os produtos do acaso.

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    Figura 1 Pena 1, 2012, Teogonia Visual.

    Os cdigos de programao desenvolvidos para a criao desta srie de imagens

    so eles prprios uma representao das prprias Teogonias Visuais, ou ainda, asTeogonias Visuais so a representao de algumas das possibilidades elencadas

    nos cdigos. No trata-se de um simples espelho, mas sim de uma operao mais

    complexa, j que os cdigos do forma as imagens, pois estas so criadas a partir

    das escrituras computacionais. Assim, olhar e compreender os cdigos de

    programao envolvidos j contemplar, em parte, as imagens. Estas so formadas

    a partir do choque das possibilidades infinitas do acaso com a realidade do algoritmo

    de programao.

    As Teogonias Visuais so parte de um conjunto maior de jogos desenvolvidos pelo

    coletivo de arte [+zero]10, grupo que existe desde 2007 e formado por mim, Nicolau

    Centola, German Alfonso Nunez e Jonattas Marcel Poltronieri. O objetivo do coletivo

    criar formas transitrias ao acaso com o uso de computadores. Estas formas

    transitrias, denominadas como jogos, podem ser imagens impressas, performances,

    sons, projees, robs ou instalaes. O termo jogo utilizado em recusa ao uso do

    termo industrial trabalho, pois o coletivo no trabalha, simplesmente joga com o

    acaso: Jogos absolutamente despreocupados, apesar de todas as teorias envolvidas,

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    e que so compostos por algumas regras bsicas em nmero reduzido. Estar de

    acordo com tais regras jogar os jogos propostos e, neste jogar, h um sentimento

    de seriedade sagrada, pois jogar um jogo se submeter as suas regras.

    Figura 2 Khrites 1, 2012, Teogonia Visual.

    O conceito filosfico de jogo, como desenvolvido pelos alemes Friedrich Schiller

    (17591805) e Hans-Georg Gadamer (19002002) alinha-se tambm com o que foi

    dito sobre o acaso. Para eles, o jogo uma entidade independente, no estando

    condicionado por quem o joga e muito menos sendo determinado pelo jogador. O

    carter autnomo do jogo dispensa a presena de um outro sujeito para existir. Os

    jogadores apenas asseguram a representao da instncia maior que o jogo em si.

    um movimento por si mesmo, independente de quem o executa ou o observa.

    Alinhado com este esprito, os jogos do [+zero] no pretendem resolver um

    problema Y ou trabalhar com uma questo X, mas apenas explorar as

    caractersticas que permitem jogar com o acaso encontradas nos aparelhos

    contemporneos. Os aparelhos no so mquinas ou ferramentas, mas sim uma

    novo estgio na histria da cultura. De acordo com Flusser:

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    Instrumentos tem a inteno de arrancar objetos da natureza paraaproxim-los do homem. Ao faz-lo, modificam a forma de tais objetos. Esteproduzir e informar se chama trabalho. O resultado se chama obra ().Instrumentos so prolongamentos de rgos do corpo: dentes, dedos,braos, mos prolongados. Por serem prolongamentos, alcanam mais

    longe e fundo a natureza, so mais poderosos e eficientes (). Graas revoluo industrial, passam a recorrer a teorias cientficas no curso da suasimulao de rgos. Passam a ser tcnicos. Tornam-se, destarte, aindamais poderosos, mas tambm maiores e mais caros, produzindo obras maisbaratas e mais numerosas. Passam a chamar-se mquinas (2002, pp. 20-21).

    Figura 3 Plemos 1, 2012, Teogonia Visual.

    As mquinas, historicamente, condicionam o homem ao trabalho, por organizarem o

    espao para que este funcione ao redor delas, como em uma linha de produo,

    onde os operrios esto todos posicionados em funo das mquinas:

    Quando os instrumentos viraram mquinas, sua relao com o homem seinverteu. Antes da revoluo industrial, os instrumentos cercavam oshomens; depois, as mquinas eram por ele cercadas. Antes, o homem era aconstante da relao, e o instrumento era a varivel; depois, a mquinapassou a ser relativamente constante. Antes os instrumentos funcionavamem funo do homem; depois grande parte da humanidade passou afuncionar em funo das mquinas (Flusser, 2002, p. 21).

    J os aparelhos so extenses do corpo humano, estando ao redor do corpo, e no

    reorganizando o corpo para que este funcione em funo deles. As mquinas

    trabalham, os aparelhos permitem o jogo:

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    A categoria fundamental do terreno industrial (e tambm do pr-industrial) o trabalho. Instrumentos trabalham. Arrancam objetos da natureza e osinformam. Aparelhos no trabalham. Sua inteno no a de modificar omundo. Visam a modificar a vida dos homens. De maneira que osaparelhos no so instrumentos no sentido tradicional do termo (Flusser,

    2002, pp. 22).

    Figura 4 Mnemosyne 1, 2012, Teogonia Visual.

    O homem que utiliza aparelhos se emancipou do trabalho para poder escolher e

    decidir, sendo o jogo puro fazer intelectual. Vive-se, cada vez com mais intensidade,

    uma realidade cultural baseada em aparelhos.

    Desta maneira, o jogo bsico da arte computacional proposto pelo [+zero]

    marcado por uma tenso primordial entre o que est j programado ideologicamente

    no cerne do aparelho computacional e na desordem a ser introduzida pela

    perspectiva da prxis artstica baseada no acaso, que permeia a construo de

    sentido neste jogar.

    1 Para Aristteles, as cincias dividem-se em cincias prticas, cincias poiticas e cincias teorticas, sendoque as cincias prticas e as poiticas referem-se s aes: as primeiras, precisamente, s aes que tem oseu incio e o seu fim no prprio sujeito que age (por exemplo as aes morais); as segundas referem-se, aocontrrio, s aes que produzem algo fora do sujeito (por exemplo todas as aes conexas com as vrias artes).Tanto nas cincias prticas como nas poiticas existe, portanto, um princpio do movimento, que deve estar no

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    sujeito agente, que age e produz em virtude desse princpio (Reale, 2002, p. 305). J nas cincias teorticas,como a fsica, o princpio de movimento est no objeto, e no no prprio sujeito, como nas prticas epoiticas.

    2 Aristteles afirmou que o papel da primeira filosofia, que ficou conhecida como Metafsica, pesquisar ascausas primeiras, tendo estabelecido as seguintes quatro causas: a causa formal, a causa material, a causa

    eficiente e a causa final. Elas distinguem-se da seguinte maneira: A causa formal a forma ou essncia dascoisas: a alma para os viventes, determinadas relaes para as diversas figuras geomtricas (para o crculo, porexemplo, o fato de ser o lugar equidistante de um ponto chamado centro), a estrutura particular para osdiferentes objetos de arte, e assim por diante. A causa material aquilo de que feita uma coisa: por exemplo,a matria dos animais so a carne e os ossos, a matria da esfera de bronze o bronze, da taa de ouro oouro, da esttua de madeira a madeira, da casa so os tijolos e o cimento, e assim por diante. A causaeficiente ou motora aquilo de que provm a mudana e o movimento das coisas: o pai a causa eficiente dofilho, a vontade causa eficiente de vrias aes do homem, o golpe que dou nesta bola causa eficiente deseu movimento, e assim por diante. A causa final constitui o fim ou o propsito das coisas e das aes; ela indicaaquilo em vista de que ou em funo do que cada coisa ou advm ou se faz; e isso, diz Aristteles, o bem decada coisa (Reale, 2005, p. 54).

    3 It is a common observation that a science first begins to be exact when it is quantitatively treated. Todas astradues foram realizadas livremente.

    4 Phenomenology is that branch of science which is treated in Hegels Phnomenologie des Geistes (a work fartoo inaccurate to be recommended to any but mature scholars, though perhaps the most profound ever written) inwhich the author seeks to make out what are the elements, or, if you please, the kinds of elements, that areinvariably present in whatever is, in any sense, in mind. According to the present writer, these universalcategories are three. Since all three are invariably present, a pure idea of any one, absolutely distinct from theothers, is impossible; indeed, anything like a satisfactorily clear discrimination of them is a work of long and activemeditation. They may be termed Firstness, Secondness, and Thirdness.

    5 For an example of Firstness, look at anything red. That redness is positively what it is. Contrast may heightenour consciousness of it; but the redness is not relative to anything; it is absolute, or positive. If one imagines or

    remembers red, his imagination will be either vivid or dim; but that will not, in the least, affect the quality of theredness, which may be brilliant or dull, in either case. The vividness is the degree of our consciousness of it, itsreaction on us. The quality in itself has no vividness or dimness. In itself then, it cannot be consciousness. It is, initself, a mere possibility (). Possibility, the mode of being of Firstness, is the embryo of being.

    6 We talk of hard facts (). A door is slightly ajar. You try to open it. Something prevents. You put your shoulderagainst it, and experience a sense of effort and a sense of resistance. These are not two forms of consciousness;they are two aspects of one two-sided consciousness. It is inconceivable that there should be any effort withoutresistance, or any resistance without a contrary effort. This double-sided consciousness is Secondness .

    7 Thirdness is found wherever one thing brings about Secondness between two things. In all such cases, it willbe found that Thought plays a part. By thought is meant something like the meaning of a word, which may beembodied in, that is, may govern, this or that, but is not confined to any existent. Thought is often supposed tobe something in consciousness; but on the contrary, it is impossible ever actually to be directly conscious ofthought (). Thought is rather of the nature of a habit, which determines the suchness of that may come intoexistence, when it does come into existence (). In a still fuller sense, Thirdness consists in the formation of ahabit. In any succession of events that have occurred there must be some kind of regularity (). In short,wherever there is thought there is Thirdness.

    8 It is possible to prescind Firstness from Secondness. We can suppose a being whose life consists in oneunvarying feeling of redness. But it is impossible to prescind Secondness from Firstness. For to suppose twothings is to suppose two units; and however colorless and indefinite an object may be, it is something, and thereinFirstness, even if it has nothing recognizable as a quality. Everything must have some non-relative element; andthis is its Firstness. So likewise it is possible to prescind Secondness from Thirdness. But Thirdness withoutSecondness would be absurd.

    9 O falibilismo a doutrina peirceana que trata da falibilidade do conhecimento. Ningum nunca poder afirmarcom total certeza ter alcanado a verdade, pois novas evidncias ou informaes podem surgir e reverberaratravs do sistema de crenas vigente, podendo afetar at mesmo as crenas mais enraizadas.

    10 http://www.maiszero.org/

  • 7/29/2019 ACASO, APARELHO E JOGO - BREVES CONSIDERAES CONCEITUAIS APLICADAS AO CAMPO DA ARTE COMPUTACIO

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    Referncias

    ARISTTELES (2005). Metafsica. So Paulo: Edies Loyola. [Citado como Met. seguidodo livro].FLUSSER, Vilm (2002). Filosofia da caixa preta: Ensaios para uma futura filosofia dafotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumar.PEIRCE, Charles Sanders (1992). Essential Peirce. Nathan Houser et al. (eds.). 2 v.Bloomington: Indiana University Press. [Citado como EP seguido do volume e nmero dapgina].REALE, Giovanni (2005). Metafsica Ensaio introdutrio. So Paulo: Edies Loyola.REALE, Giovanni (2002). Metafsica Sumrio e Comentrios. So Paulo: Edies Loyola.

    Fabrizio Augusto PoltronieriPesquiso sobre esttica computacional e desenvolvo atividades artsticas junto ao grupo

    [+zero], que ajudei a fundar. Completei meu doutorado sobre arte computacional na PsGraduao em Comunicao e Semitica da PUC-SP. Atualmente desenvolvo umapesquisa sobre o incio da arte computacional na Europa como Ps-Doutorando no RoyalCollege of Art, em Londres. Meu email [email protected]