breves consideraÇÕes propedÊuticas

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA 7º PROGRAMA DE DOUTORAMENTO ACESSO EQUITATIVO AO DIREITO E À JUSTIÇA A Revelação Jurisprudencial de um Direito Fundamental José Júnior Florentino dos Santos Mendonça LISBOA 2013

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  • FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

    7 PROGRAMA DE DOUTORAMENTO

    ACESSO EQUITATIVO AO DIREITO E JUSTIA

    AA RReevveellaaoo JJuurriisspprruuddeenncciiaall ddee uumm DDiirreeiittoo FFuunnddaammeennttaall

    Jos Jnior Florentino dos Santos Mendona

    LISBOA 2013

  • FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

    7 PROGRAMA DE DOUTORAMENTO

    ACESSO EQUITATIVO AO DIREITO E JUSTIA

    AA RReevveellaaoo JJuurriisspprruuddeenncciiaall ddee uumm DDiirreeiittoo FFuunnddaammeennttaall

    Dissertao apresentada no mbito do 7 Programa de

    Doutoramento da Faculdade de Direito da Universidade

    Nova de Lisboa como requisito para obteno do grau de

    Doutor em Direito.

    rea de concentrao: Direito Pblico.

    Orientador: Professor Doutor Nuno Piarra

    LISBOA 2013

  • ACESSO EQUITATIVO AO DIREITO E JUSTIA

    AA RReevveellaaoo JJuurriisspprruuddeenncciiaall ddee uumm DDiirreeiittoo FFuunnddaammeennttaall

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus cujo amor inabalvel, desprovido de fronteiras e confisses,

    permitiu que eu me tornasse o que resolvi ser e no o que o destino pretendia me

    oferecer.

    Agradeo aos meus pais e aos meus irmos porque me legaram a capacidade de amar

    e de me sentir indispensvel.

    Agradeo ao eminente Professor Doutor Nuno Piarra, no apenas pela honrosa

    orientao, mas pelo conforto de t-lo como Mestre.

    Agradeo aos diletos Professores do Programa de Doutoramento em Direito da

    Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, pela contribuio oferecida

    segurana das instituies polticas e jurdicas na defesa, tantas vezes penosa, do

    Estado de Direito.

    Agradeo aos Funcionrios da Faculdade de Direito e aos Colegas com quem tive o

    privilgio de conviver e compartilhar experincias.

  • ABREVIATURAS

    AC - Ao Cautelar

    ACO - Ao Cvel Originria

    ADC - Ao Declaratria de Constitucionalidade

    ADI/ADIN Ao Direta de Inconstitucionalidade

    ADO - Ao Direta de Inconstitucionalidade por Omisso

    ADPF Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental

    AgR Agravo Regimental

    AI - Agravo de Instrumento

    AO - Ao Originria

    AOE - Ao Originria Especial

    AR - Ao Rescisria

    ARE Recurso Extraordinrio com Agravo

    CADH - Conveno Americana de Direitos Humanos

    CEDH - Conveno Europeia de Direitos Humanos

    CIDH - Corte Interamericana dos Direitos Humanos

    ED - Embargos de Declarao

    EDv - Embargos de Divergncia

    Ext - Extradio

    HC - Habeas Corpus

    HD - Habeas Data

    Inq - Inqurito

    MI - Mandado de Injuno

    MS - Mandado de Segurana

    OACO - Oposio em Ao Civil Originria

    Pet - Petio

    Rcl - Reclamao

    RE - Recurso Extraordinrio

    RHC - Recurso Ordinrio em Habeas Corpus

    RHD - Recurso Ordinrio em Habeas Data

    RMI - Recurso Ordinrio em Mandado de Injuno

  • RMS - Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana

    RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudncia

    STF - Supremo Tribunal Federal

    STJ - Superior Tribunal de Justia

    TEDH - Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    Consideraes introdutrias.

    1. Na presente dissertao pretende-se abordar o acesso equitativo ao direito e

    justia civil enquanto fenmeno jurdico, revelado, no ocidente, como prerrogativa

    fundamental, cujo contedo e significado so identificados e delimitados no mbito de

    uma prtica processual desenvolvida segundo uma lgica instrumental que no exclui a

    possibilidade da ponderao das interferncias valorativas recprocas entre o mundo dos

    fatos juridicamente relevantes, as estruturas das normas e dos ordenamentos que as

    congregam, e os espaos nos quais incide.

    Ainda que tratado como fundamento normativo do processo de tomada de

    deciso, ou como axioma informativo da regulao jurdica desprovido do carter

    formal das proposies jurdicas, o direito de acesso justia tem a sua moldagem

    condicionada pelos aspectos especficos de cada demanda, e pelas variveis sociais e

    econmicas que atuam em cada contexto de incidncia, limitando e contingenciando,

    inclusive, a atuao dos rgos responsveis pela prestao da tutela jurisdicional.

    2. Pretende-se demonstrar que, a despeito da sua entronizao como norma

    essencial efetividade dos demais direitos, qualificada pelos atributos da

    fundamentalidade e da universalidade, e recepcionada pela maioria das Cartas

    Constitucionais e instrumentos pactcios internacionais e regionais de proteo dos

    direitos do homem da atualidade, a sua concretizao jurisdicional no plano da

    determinao dos direitos e obrigaes de carter civil no uniforme.

    O problema enfrentado de modo a evidenciar como no processo de

    estabilizao dos institutos jurdicos do ocidente, a perspectiva tradicional que enfatiza

    o direito de acesso justia enquanto expresso do direito de ser admitido em um

    tribunal tem suplantado a acepo que o reverencia como direito de acesso a uma ordem

    jurdica justa.

    3. No captulo inaugural, o discurso centrado na demonstrao do acesso ao

    direito e justia civil como fenmeno jurdico relacionado com a estabilizao de uma

    perspectiva organicista da sociedade, na sua conformao de entidade responsvel pela

    concretizao da justia e proteo dos direitos individuais, e com a evoluo dos

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    institutos idealizados para viabilizar aos indivduos o conhecimento dos seus direitos e

    dos mecanismos concebidos para efetiv-los.

    Destaca-se que o direito de acesso justia, na origem, e ao longo da sua

    evoluo, confundiu-se com o direito de recorrer a um tribunal habilitado para solver

    questes de natureza privada, mediante a aplicao das normas. Na Europa foi

    modelado a partir da institucionalizao de mecanismos racionais de composio de

    conflitos, da estabilizao da jurisprudncia como produto da atividade desenvolvida

    por um corpo tcnico especializado em estudar normas jurdicas, e da consolidao de

    um paradigma racional de administrao da justia.

    O modelo liberal de Estado no incorporou mudanas no sentido da

    democratizao do acesso justia, ao contrrio, serviu para estabilizar a perspectiva

    arcaica que o encampava como mera garantia formal de admisso ao aparato

    institucional de tutela dos direitos apenas a quem pudesse suportar as despesas

    decorrentes da movimentao da mquina judicial.

    Patenteia-se que a sagrao do Estado do bem-estar social, conquanto tenha

    confrontado a atividade jurisdicional com catlogos programticos inseridos em normas

    constitucionais, emancipando-a como funo estatal desempenhada por rgos, em tese,

    acessveis a todos e capacitados para assegurarem a distribuio igualitria da justia,

    no produziu transformaes significativas no padro de justia consolidado.

    Os novos direitos e as novas demandas que surgiram na esteira das mutaes

    sociais e econmicas tornaram evidentes a problemtica da inefetividade da prestao

    da tutela jurisdicional civil no mbito nacional, e trouxeram para o espao discursivo da

    atuao judicial questionamentos sobre a instrumentalidade e a eficincia do processo,

    que deflagraram reformas nos sistemas de administrao da justia focadas no

    reaparelhamento e reestruturao dos rgos judiciais, na modificao dos ritos

    processuais, na valorizao das vias no oficiais de composio dos conflitos, e no

    recurso virtualizao dos procedimentos como mecanismos aptos para conferir

    celeridade e eficcia atividade jurisdicional.

    Defende-se que, no domnio do direito internacional, a normatizao jurdica do

    acesso ao direito e justia foi submetida a um processo de consolidao concretizado

    pela sua positivao em declaraes ou proclamaes de princpios inseridas em

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    instrumentos pactcios internacionais, pela qualificao dos enunciados que o

    incorporam como preceitos vinculativos, e pela instituio de sistemas internacionais e

    regionais de controle jurisdicional capacitados para aferirem a efetivao dos direitos no

    mbito nacional e supranacional.

    4. No segundo captulo, a questo da acessibilidade ao direito e justia

    enfrentada com base numa perspectiva terica, o debate centrado nas formas de

    revelao do seu contedo normativo nos sistemas jurdicos do ocidente.

    Afirma-se que o acesso ao direito e justia, embora historicamente limitado em

    todas as suas formas de expresso normativa, nos sistemas democrticos

    contemporneos, mesmo quando no normatizado expressamente, atua como aspirao

    comum, valor essencial que guia e serve de referencial s formas de pensar e de agir,

    invariante axiolgica que determina a essncia da atividade estatal de distribuio da

    justia e mxima que orienta todo ordenamento jurdico e respalda, em abstrato, o

    direito de acesso a uma ordem jurdica justa.

    Posicionado nesse nvel, tambm revelado como princpio jurdico dotado de

    eficcia autnoma e desvinculada de qualquer norma planeada para garantir a sua

    efetividade, que informa e confere consistncia ao sistema jurdico e norteia a prestao

    da tutela jurisdicional dos direitos enquanto atividade desenvolvida com a finalidade de

    pacificar a sociedade.

    Por outro lado, quando evidenciado como espcie normativa, a sua qualificao

    como princpio ou como regra resulta de construo hermenutica desenvolvida a partir

    de conexes axiolgicas no integradas aos contedos normativos, mas sublimadas pelo

    intrprete/aplicador a fim de esbo-lo como enunciado que fixa deveres de otimizao

    passveis de serem aplicados em vrias gradaes conforme as possibilidades

    normativas e fticas, ou estabelece obrigaes absolutas que se sobrepem aos

    comandos inseridos em outras normas.

    Demonstra-se que, independente da categoria normativa na qual seja

    posicionado, em sendo incorporado a um catlogo de direitos humanos, se materializa

    como garantia da efetivao dos demais direitos consagrados e prerrogativa de todos os

    indivduos, ou de determinadas categorias de indivduos, cuja tutela, de regra, pode ser

    demandada em qualquer tempo ou lugar.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    No ocidente, ingressa nas ordens jurdicas nacionais com a natureza de garantia

    e princpio processual atrelado ideia de processo equitativo enquanto instrumento

    capaz de produzir decises rpidas e eficientes, cuja realizao atada ao esforo oficial

    para executar prestaes positivas com o objetivo de responder, de forma satisfatria e

    em tempo razovel, s postulaes formuladas perante os rgos responsveis pela

    prestao da tutela jurisdicional.

    Revela-se que a sua entronizao como direito dotado de fundamentalidade, para

    a jurisprudncia dominante, no o qualifica como direito absoluto, nem constitui fator

    capaz de desobstruir as barreiras que bloqueiam o acesso justia.

    5. No terceiro captulo, o acesso ao direito e justia tratado como problema

    terico no mbito da administrao da Justia relacionado com o processo de

    interpretao/aplicao normativa realizado pelos rgos jurisdicionais.

    Sustenta-se que a fixao da moldura, contedo e significado do direito de

    acesso justia tem se firmado como funo atrelada ao exerccio da atividade

    jurisdicional, em virtude do que, aos Tribunais nacionais incumbe, quando confrontados

    com situaes litigiosas, estabelecerem quais os sentidos e as extenses dos comandos

    normativos aplicveis, funo que, no plano internacional e comunitrio, confiada s

    Cortes Supranacionais, institudas como rgos responsveis pela interpretao e

    aplicao dos tratados e demais diplomas internacionais e comunitrios, e pela

    delimitao do teor dos direitos neles consagrados, em consonncia com as pautas

    polticas respaldadas nos textos pactcios.

    O texto que o positiva constitui mero ponto de partida, ou dado de entrada, no

    processo de concretizao desenvolvido pelo intrprete/aplicador, no qual, mediante o

    exame do contedo positivado, manejando tcnicas hermenuticas e outras estratgias

    aplicveis sem vinculao direta com a situao ftica, fornece ao enunciado um

    contorno normativo passvel de aplicao.

    Moldado nesses termos, para alm de no se aperfeioar imune s mudanas das

    concepes jurdicas e s contingncias resultantes das tenses entre os rgos de poder

    e as normas legalmente positivadas, afetado pelos influxos resultantes da atuao das

    instncias no oficiais que funcionam como espaos no institucionalizados de

    revalidao do direito e de distribuio da justia.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    Demonstra-se que as construes jurisprudenciais que delimitam o sentido e o

    contedo do direito de acesso justia no mbito do Tribunal Constitucional Portugus,

    da Corte Constitucional Brasileira, do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da

    Corte Interamericana dos Direitos Humanos, lhe atribuem carter relativo legitimando

    os obstculos ao seu exerccio.

    6. Nos captulos quarto, quinto e sexto, o fenmeno do acesso ao direito e

    justia trabalhado como problema prtico no processo de estabilizao do Estado

    nacional contemporneo.

    Destaca-se que, a despeito de revelar-se, no ocidente, como direito dotado de

    fundamentalidade relacionado com a consagrao de uma filosofia fundada na

    consecuo da igualdade e na promessa de assegurar a cada cidado o pleno

    conhecimento dos seus direitos e a efetiva concretizao das vantagens deles

    resultantes, o acesso justia limitado pelas condicionantes sociais, jurdicas, polticas

    e econmicas que operam nos ordenamentos onde normatizado.

    No cenrio supranacional, a sua efetividade tem a ver com o status jurdico

    conferido s normas internacionais e regionais no plano interno dos Estados, com a

    possibilidade de responsabiliz-los e impor-lhes sanes pelo descumprimento de

    obrigaes assumidas perante a comunidade internacional, e com a disponibilizao de

    vias de acesso individual aos rgos competentes para prestarem, no mbito externo, a

    tutela jurisdicional dos direitos.

    Frisa-se, contudo, que, tambm no plano externo, a concretizao do acesso ao

    direito e justia limitada em razo da margem de discricionariedade permitida aos

    Estados para elegerem os meios para o cumprimento das obrigaes assumidas no plano

    internacional, e da sua qualificao como direito no absoluto, ainda que consagrado

    como prerrogativa fundamental que congregue os direitos informao, proteo

    jurdica e tutela jurisdicional individual e socialmente eficaz.

    O direito de acesso justia contextualizado como garantia de um processo

    equitativo, qualificado como instrumento tcnico de aplicao do direito e principal via

    de conduo ordem jurdica justa pela atuao criadora do intrprete/aplicador das

    normas.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    Informado por essa premissa, o discurso direcionado identificao dos

    fatores que tm sido apontados como obstculos acessibilidade ao direito e justia

    nas ordens jurdicas domsticas do ocidente, e das medidas concebidas com o objetivo

    de super-los.

    7. Nos captulos stimo e oitavo a abordagem focada no acesso ao direito e

    justia supranacional como alternativa ineficincia dos mecanismos nacionais de

    tutela dos direitos e instncia competente para viabilizar a reparao ou compensao

    dos danos dela resultantes.

    Ressalta-se que a Conveno Europeia dos Direitos Humanos e a Conveno

    Americana dos Direitos Humanos contemplam o direito de acesso aos tribunais como

    prerrogativa que se concretiza por intermdio de um processo equitativo, da garantia do

    contraditrio, da publicidade, da imparcialidade e independncia, da proteo jurdica

    eficiente, da durao razovel do processo e do duplo grau de jurisdio.

    Conquanto revelado como direito de provocar a tutela jurisdicional de uma Corte

    Supranacional, segundo os padres de justia chancelados nas normas de direito

    internacional ou comunitrio, no incorpora natureza absoluta e o seu exerccio tambm

    submetido a limitaes.

    8. O texto no viabiliza concluses fechadas e no deve ser interpretado como

    produto final de reflexes tericas. Ao contrrio, sua finalidade esboar novas

    perspectivas e meditaes sobre a problemtica da acessibilidade ao direito e justia,

    de modo a permitir a concluso de que a sua concretizao simblica num mundo

    onde a supercomplexidade socioeconmica diuturnamente confrontada com a

    ausncia de autonomia operacional dos sistemas jurdicos, e a forte contradio entre

    direito e realidade constantemente reatualizada para justificar a falta de uniformidade

    das concepes que operam no processo de interpretao/aplicao das normas.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    1. Acesso ao direito e justia civil como fenmeno sociojurdico em contnua

    construo..

    1. Enquanto discurso cientfico, o debate sobre o acesso ao direito e justia, na

    sua conformao de acesso tutela estatal dos direitos e ordem jurdica justa, debutou

    no mbito doutrinrio e jurisprudencial juntamente com o movimento de descoberta e

    revelao dos direitos fundamentais, incorporando o exame de como ao longo da

    evoluo dos institutos jurdicos viabilizou-se o acesso dos indivduos ao conhecimento

    do contedo desses direitos e dos instrumentos idealizados para efetiv-los, e de como

    tal aparato foi colocado disposio dos seus destinatrios para possibilitar a

    composio dos conflitos e a satisfao da ideia de justia que os norteia1.

    1.1. Nos primrdios das sociedades.

    2. Na antiguidade, o carter religioso das fontes do direito e dos instrumentos de

    composio dos litgios impedia o tratamento do acesso ao direito e da tutela

    jurisdicional na forma como concebidos na atualidade.

    Nas origens dos agrupamentos societrios, o direito no era do conhecimento

    pblico, no se falava no direito de ao como via de acesso a rgos habilitados a

    julgarem os litgios conforme um sistema de normas, nem existiam instituies

    democrticas postas disposio dos indivduos para a composio dos seus conflitos.

    Incumbia aos Sacerdotes, e numa fase mais aperfeioada, aos Conselhos de Ancios das

    comunidades, decidirem os litgios com base em suas prprias convices.

    A justia confundia-se com a sentena proferida pelos sacerdotes ou chefes, e o

    acesso aos mecanismos de composio das contendas era vinculado, de rega,

    1Para uma anlise mais desenvolvida sobre a evoluo histria das instituies judicirias, ver:

    ARAGO, Selma Regina. Do mundo antigo no Brasil de todos. Rio de Janeiro: Forense, 2001;

    BONAVIDES, Paulo. Do pas constitucional ao pas neocolonial: a derrubada da Constituio e a

    recolonizao pelo golpe de estado institucional. So Paulo: Malheiros, 2004; GILISSEN, J. Introduo

    histrica ao direito. Trad. Antnio Manuel Hespanha e Manuel Macasta Malheiros. Lisboa: Fundao

    Calouste Gulbenkian, 1995; HESPANHA, Antnio Manoel. Panorama histrico da cultura jurdica

    europeia. Lisboa: Publicao Europa-Amrica, 1997; LIMA, J. B. de S. As mais antigas normas de

    direito. Rio de Janeiro: Forense, 1983; CINTRA, G. de Ulhoa. Histria da organizao judiciria e do

    processo civil: da antiguidade poca moderna. V. 1. Rio de Janeiro/So Paulo: Ed. Jurdica e

    Universitria, 1970.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    acessibilidade religio predominante e ao fato de o interessado no pertencer

    categoria dos escravos ou estrangeiros2.

    A despeito do carter preponderantemente privado das vias de soluo dos

    conflitos, do exame de alguns textos normativos da antiguidade possvel destacar

    disposies que revelam a tentativa de sistematizao de frmulas de acessibilidade ao

    direito e a rgos idealizados para administrao da justia civil, de modo a evidenciar

    certa preocupao com a estruturao de meios capazes de facilitar o acesso dos

    indivduos a mecanismos e rituais de composio de litgios e tutela dos seus direitos.

    3. O Cdigo de Hamurabi, considerado uma das primeiras compilaes

    orgnicas de textos e decises normativas orientadas para a disciplina das condutas e

    relacionamentos sociais, j congregava um sistema rudimentar de administrao da

    justia integrado por mecanismos de composio das contendas resultantes de eventuais

    violaes de interesses privados, efetivados por uma estrutura judiciria, em tese

    emancipada, encabeada pelo Rei, que assumia o papel de juiz supremo eleito pelas

    divindades para glorificar o direito e impedir a opresso dos mais fragilizados, cujas

    decises suplantavam as proferidas pelos ancios e autoridades eclesisticas3.

    Embora no tenha recepcionado, especificamente, o acesso ao direito e justia

    como norma, o Cdigo incorporava, de forma genrica, o direito informao4 e a

    garantia de proteo ao hipossuficiente como obrigao natural do Rei5, e atribua ao

    2 No perodo mais remoto das civilizaes, o direito materializava-se como emanao de um poder

    divino. O recurso exaltao do sentimento religioso para justificar a regulamentao das condutas

    conduzia ao convencimento de que as regras jurdicas eram mandamentos dos deuses. (Cf.: MATOS

    PEIXOTO, Jos Carlos. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Haddad, 1955). 3 Almicare CARLETTI destaca que a sociedade babilnica do tempo em que foi promulgada a lei

    constitua um Estado feudal e estava dividida em trs classes, a dos homens livres que detinham a posse

    plena de todos os direitos civis e polticos (amelu), integrada por funcionrios, escribas, sacerdotes,

    profissionais independentes, comerciantes, camponeses e grande parte dos soldados; a classe intermdia a

    qual pertenciam os pequenos arrendatrios, os soldados simples, os pastores e os escravos libertos; e a

    classe dos escravos, cuja sorte dependia de seus senhores, embora Hamurabi houvesse promulgado uma

    lei para defesa de seus direitos, inclusive, limitando o tempo de servio para aqueles que, por dvida,

    trabalhavam em estado de escravido. (In: Brocardos Jurdicos. So Paulo: LEUD, v. 3, 1986). 4 Col. XLVIII, 10: O aflito, o agitado por uma preocupao, deve andar diante da minha imagem de rei

    da justia, ler a minha inscrio, entender minhas preciosas palavras e a minha inscrio esclarecer-lhe-

    seu negcio; ele ver seu direito; seu corao se tornar alegre (Traduo livre). 5 Col. XLVII, 60: Eu levantei sua cabea em Babilnia, cidade de Anum e de Bel, a fim de que o forte

    no oprima o fraco, para proteger os rfos e as vivas, para declarar o direito da ptria, para decidir

    controvrsias, para lavrar as culpas eu escrevi as minhas preciosas palavras em Saggil, sobre o meu

    monumento de pedra junto minha imagem de rei da justia (Traduo Livre).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    juiz profissional o dever de agir com imparcialidade6, assegurar a observncia das

    garantias processuais e conferir interpretao do direito um sentido que privilegiasse o

    elemento poltico laico no qual as normas civis prevalecessem sobre as penais.

    4. Outro diploma da antiguidade que merece referncia o Cdigo de Gortina.

    Definido como conjunto de ditos de carter normativo revelador do alto nvel de

    aprimoramento das concepes helnicas, embora incompleto e desordenado,

    incorporou peculiaridades que o colocaram frente do prprio sistema de normas que

    vigorou no perodo ureo de Atenas7.

    No sistema ateniense, apesar de o acesso a direitos subjetivos ter sido restrito aos

    cidados que integrassem a polis, categoria na qual eram posicionados os homens

    maiores, livres e habilitados a manejar as armas para a defesa dos interesses comuns, a

    Codificao de Gortina reconhecia a mulher como titular de direitos patrimoniais que

    lhe conferiam poder para manifestar vontade capaz de produzir efeitos jurdicos,

    inclusive, no que tange ao consentimento para convolar npcias.

    Ainda segundo as suas normas, o poder judicial era exercido pela alta autoridade

    poltica (o cosmo) ou por juzes por ele nomeados, mas assegurava-se s partes a

    prerrogativa de remeter a lide a um rbitro. Os no cidados, mesmo quando ligados a

    polis por laos de sangue, s dispunham do direito de produzir defesa indireta, sem,

    contudo, terem capacidade para titularizarem direitos subjetivos como o direito de agir.

    5. tambm possvel destacar do Cdigo de Manu alguns regramentos que

    revelam a preocupao com as vias de acessibilidade ao direito e justia. Concebido

    como criao divina, esse Diploma figura entre os mais profcuos ordenamentos da

    antiguidade por incorporar normas de direito substancial, processual e de organizao

    judiciria de alta complexidade.

    Conforme disciplina nele estabelecida, a justia era administrada em nome do

    Rei pelos Brmanes por ele designados (Livros VIII e IX), aos quais incumbia no

    exerccio do poder jurisdicional, para alcanar a verdade, considerar atentamente o

    6 Col. VI, 5. Se um juiz julgou uma causa, deu uma sentena e mandou exarar um documento selado e

    depois alterou o seu julgamento: comprovaro contra esse juiz a alterao do julgamento feito e ele

    pagar at doze vezes a quantia que estava em questo nesse processo; alm disso, f-lo-o levantar-se de

    seu trono de juiz na assembleia e no tornar a sentar-se com os juzes em um processo (Traduo livre). 7 Como adverte John GILISSEN: no h propriamente que falar de direito grego, mas de uma multido

    de direitos gregos, porque, com exceo do curto perodo de Alexandre, o Grande, no houve nunca

    unidade poltica e jurdica na Grcia Antiga (In: Introduo histrica ao direito. Traduo de Antonio

    Manuel Espanha e Manuel Macasta Malheiros. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1995, p. 73).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

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    objeto da controvrsia, as condies pessoais dos litigantes e testemunhas, as

    particularidades do lugar, do modo e do tempo em que os fatos ocorreram, e seguir

    rigorosamente as regras processuais.

    Apesar da ausncia de tratamento especfico quanto titularidade do direito de

    agir, o Cdigo incorporava expressa previso do prazo prescricional de dez anos para o

    seu exerccio (Dstico 147), e ressalvava a imprescritibilidade dos direitos sobre bens do

    rei, dos menores e dos telogos.

    66.. A revelao dessas formas de regulao da acessibilidade ao direito e

    justia, no autoriza chancel-las como resultado de uma construo doutrinria

    especializada. Estgio que somente foi alcanado com a estabilizao do pensamento

    helnico focado no cidado enquanto destinatrio privilegiado no debate sobre o direito

    e a justia.

    Nas cidades-estados gregas conheceu-se ao tempo da democracia direta uma

    atividade judicante desenvolvida pelos prprios cidados reunidos em assembleias,

    restando aos magistrados atribuies meramente executivas voltadas para a imposio

    do cumprimento das decises adotadas.

    O acesso justia era amplo e quase irrestrito aos cidados, classe que

    representava uma parcela pequena da populao. Data desse perodo o primeiro

    movimento de prestao de assistncia jurdica aos pobres que se tem conhecimento,

    aperfeioado mediante a nomeao anual de dez advogados para patrocinarem queles

    considerados carentes8.

    Embora no seja possvel atribuir aos gregos a criao dos conceitos e princpios

    que informam o direito desde tempos imemoriais, deve-se civilizao helnica a

    tomada de posio crtica sobre as fontes do direito a partir da especulao filosfica9

    que o libertou do envolvimento com o culto aos profetas e da pregao mstica dos

    sacerdotes.

    Foram eles os precursores das reflexes sobre a essncia do Direito enquanto

    ordem tica, e os responsveis pelo tratamento das normas como ordens que obrigam o

    homem a um agir justo.

    8 PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos Fundamentais e Acesso Justia na Constituio. So Paulo: LTr,

    2008. 9 Na Grcia, desde cedo, a organizao social e o direito foram posicionados como objeto de discusso

    (Cf.: VERNAN, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    17

    Hesodo introduziu o termo nomos para expressar a ideia de uma ordem

    universal seccionada em ordem dos irracionais e ordem dos racionais, na qual inseriu o

    homem como ser investido na obrigao de no praticar atos violentos e no dever de

    pautar a sua conduta no Direito. Para ele, o cidado, ao levar para um juiz o

    conhecimento dos seus litgios postulando a tutela de um interesse legtimo,

    demonstrava ter conscincia dos seus direitos e estar capacitado para discernir e se

    impor diante de uma ao antijurdica. O poder que o habilitava a guiar seu

    comportamento conforme a justia concretizava-se como expresso do que denominava

    Dike.

    Pitgoras explicou a justia a partir da teoria da harmonia e do equilbrio

    universal concebendo-a como relao aritmtica de igualdade entre dois termos, de

    modo a que toda injustia merecesse imediata reparao. Herclito professou que o

    Direito devia ser investigado, explanado e interpretado por intermdio de um processo

    dinmico que servisse para evidenciar o direito natural como fundamento do direito

    positivo, e para justificar as variaes do ordenamento posto e o lado movedio dos

    costumes e das instituies10

    .

    7. Com os sofistas consolidou-se a valorizao da retrica enquanto frmula de

    exposio das crticas sobre as injustias e desigualdades entre os cidados, de

    insurgncia contra as coisas da religio e de descrena nos valores e na origem divina

    das leis.

    O discurso a propsito do direito natural alicerado no conceito de justia

    conforme a natureza possibilitou o debate centrado nas questes do esprito humano e

    dos problemas ticos e sociais, alm de tornar evidente que o princpio democrtico

    fundado na ideia de vontade da maioria, reformula e revoga, com base em meras

    convenincias, as normas que o costume, a religio e a tradio visualizam como fruto

    do tempo.

    Protgoras, Grgias e Trasmaco posicionaram o homem como medida de todas

    as coisas vinculando a ordem cognoscitiva ao relativismo das sensaes e opinies

    10

    Fbio K. COMPARATO sustenta que nesse perodo coexistiram, sem qualquer interao, cinco dos

    maiores filsofos de todos os tempos: Zaratustra na Prsia, Buda na ndia, Confcio na China, Pitgoras

    na Grcia e o Dutero-Isaias em Israel, todos defensores de vises do mundo no submissas s

    explicaes mitolgicas da vida, que serviram de ponto de partida histrico para a concepo do homem

    enquanto ser dotado de igualdade essencial (In: A afirmao histrica dos direitos humanos. So Paulo:

    Saraiva, 1999).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    18

    pessoais. Para eles, as leis, escritas ou no, expressavam sempre o ethos social e poltico

    dominante, absorviam as tradies, os usos, os costumes e o arbtrio dos governantes, e

    incorporavam a vontade da maioria ocasional dos integrantes da sociedade.

    O debate proposto por Scrates focalizou a crise do Direito e do Estado na busca

    da substncia conceitual dos predicados do justo, do bem e do bom a partir da afirmao

    da superioridade da polis, cujas decises deveriam ser cumpridas, ainda que injustas,

    para que a desobedincia no servisse de pretexto violao das leis boas e justas, e de

    ameaa certeza no Direito enquanto alicerce da sociedade poltica.

    A perspectiva organicista de Estado, apadrinhada por Aristteles11

    , que serviu

    para identificar entre as funes estatais a proteo dos direitos individuais, foi

    transmitida, em termos, ao Imprio Romano12

    .

    8. No sistema romano a ideia de direito s fazia sentido se relacionada a uma

    pessoa. Para que o homem fosse considerado sujeito de direitos devia ser livre, status

    exclusivo dos titulares do direito de ao. O jus gentium no reconhecia direito aos

    11

    Na perspectiva de Paulo Cezar Pinheiro CARNEIRO, foi Aristteles o formulador do que hoje

    entendemos por teoria da justia. Influenciado pelo pensamento pitagrico no que se refere aos pesos, s

    medidas de igualdade e proporcionalidade, situou a questo da proporcionalidade no do ponto de vista

    estritamente aritmtico, matemtico, mas da igualdade de razes. Foi Aristteles quem primeiro falou

    sobre a possibilidade de o juiz adaptar a lei situao concreta. A rgua de Lesbos, que, por ser de

    chumbo, possua flexibilidade suficiente para se adaptar forma de pedra, foi a imagem precisa de

    equidade. Assim o juiz tambm deveria proceder relativamente aos casos levados ao seu conhecimento,

    adaptando a lei (In: Acesso Justia: Juizados Especiais Cveis e Ao Civil Pblica. Uma nova

    sistematizao da Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.7). Sobre o assunto ver

    tambm: NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996. Para uma anlise histrica

    da filosofia do direito, conferir: KAUFMANN, Arthur. A problemtica da filosofia do direito ao longo da

    histria. In: HASSEMER, W. e KAUFMANN, A. Introduo Filosofia do Direito e Teoria do

    Direito Contemporneas. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. 12

    A histria do direito romano pode ser desenvolvida sob duas perspectivas, uma abrangente,

    encampando o conjunto das normas, chamada histria externa ou historia jris, outra enfocando seus

    institutos, denominada histria interna ou antiquitatis juris. A principal fonte de estudo do direito romano

    privado o Corpus juris civilis composto pela coleo de instituies imperiais, a que se chamou Cdigo

    Justiniano, publicado em 529; pelo conjunto de obras dos jurisconsultos, publicada em 533 sob o nome de

    Digesta S. Pandectae; e as Institutiones (Instituta, Elementa, Isagoge) que eram divididas em quatro

    livros subdivididos em ttulos: o Digesta (Pandecta ou Codex Enucleati Juris) composto por cinquenta

    livros divididos segundo a matria; e o Codex ou Cdigo Justinianeu integrado por doze livros

    subdivididos em constituies arranjadas cronologicamente que tratavam tanto do direito privado como

    do direito pblico e eclesistico. (Sobre o tema: SILVA, Lus Antnio Vieira da. Histria Interna do

    Direito Romano Privado at Justiniano. Braslia: Senado Federal, 2008; BRETONE, Mario. Histria do

    Direito Romano. Traduo de Isabel Teresa Santos e Hossein Seddighzadeh Shooja. Lisboa: Estampa,

    1990; ARAJO, Fernando. Actualidades dos Estudos Romansticos. In: Estudos de Direito Romano.

    Lisboa: AAFDL, v. 1, pp. 13-80, 1991; BARBAS-HOMEM, Pedro. Ius e Lex. In: Estudos de Direito

    Romano. Lisboa: AAFDL, v. 1, pp. 217-274, 1991; BANNOND, Isabel. Do Ius Civile. In: Estudos de

    Direito Romano. Lisboa: AAFDL, v. 1, pp. 275-364, 1991; KASER, Max. Roman Private Law. A

    translation by Rolf Dannenbring. London: Butterworths, 1968; ALVES, Jos Carlos Moreira. Direito

    Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1999; e, SILVA, Ovdio Arajo Baptista da. Jurisdio e Execuo na

    Tradio Romano-Cannica. Rio de Janeiro: Forense, 2007).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    19

    escravos e peregrinos, a liberdade era considerada a primeira condio em direito, quem

    no a possua no podia ter status algum. Por consubstanciar emanao do direito

    natural, para produzir efeitos jurdicos devia ser reconhecida pelo Estado.

    Para titularizar direitos, o homem, alm de ser livre, devia gozar do status de

    cidado adquirido por nascimento, concesso ou manumisso. Da civitas romana

    resultavam direitos polticos e civis, a princpio, todo no civil era incapaz de direitos,

    mas permitia-se, excepcionalmente, que alguns, quando livres, fossem capazes de

    direitos em geral, desde que mantida a distino entre o jus civile, prprio do jus civium

    romanorum, e o jus gentium deferido aos no civis.

    O acesso justia confundia-se com a possibilidade de manejar o direito de

    ao, que podia ter por objeto no s questes de natureza patrimonial, mas postulaes

    em defesa da liberdade do acionante13

    . O direito de estar perante um tribunal ou de ter a

    causa processada perante um juiz era limitado e, de regra, restringia-se a questes

    fundadas no direito privado14

    .

    Para os romanos, a percepo do significado da actio era vinculada ao conceito

    de jus (direito subjetivo) porque representava apenas o meio de exercitar os direitos15

    .

    No existia um conceito especfico de ao, havia, em verdade, um sistema de aes

    tpicas no qual o exerccio de cada uma correspondia pretenso de determinado

    direito.

    O sistema processual civil romano comportou trs fases procedimentais com

    intervalos de coexistncia comum, o perodo das legis actiones (aes da lei), utilizado

    13

    No direito romano a actio e os interdicta figuravam como institutos bsicos de proteo e defesa dos

    direitos capazes de serem invocados perante os magistrados, no entanto, para a doutrina mais tradicional,

    somente o processo da actio, que se desenvolvia atravs do procedimento do ordo judiciorum

    privatorum, possua natureza jurisdicional (BAPTISTA, Ovdio Arajo da Silva. Jurisdio e Execuo

    na Tradio Romano-Cannica. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 17). 14

    O cidado que titularizava direitos e deveres em razo do seu status, inclusive no que respeita ao acesso

    a um julgamento oficial, devia comparecer perante o magistrado (Pretor) competente para formular a

    regra a ser aplicada na composio do conflito e indicar o rbitro para julgar a lide. Numa fase mais

    avanada o Pretor assume as funes do rbitro e passa a exercer o poder estatal de aplicar o direito e

    submeter os cidados s suas decises. 15

    Etimologicamente, o vocbulo actio, substantivo latino, derivou do adjetivo participial actus, que se

    originou do verbo agere, indicativo, primordialmente, de uma ideia de movimento, compreendia desde

    atos fsicos como empurrar, conduzir ou caar (animais), e atos propriamente intelectuais, como o

    exerccio da fala pelos atores teatrais ou pelos oradores, estes, principalmente, demandando ou

    defendendo teses. Decorreu dessa ltima concepo a vinculao do termo actio no mundo jurdico

    utilizao de expresses solenes seguidas de gestos e rituais perante o Juiz, bem como ao uso da coao

    fsica contra o adversrio, tanto no perodo primitivo da justia privada, como no estgio imediatamente

    posterior, quando era permitida a conduo forada do devedor perante um rgo julgador, significao

    da qual resultou a construo do termo auctor para qualificar aquele que leva o outro interessado a Juzo.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    20

    desde a poca pr-clssica ou antiga, iniciada com a fundao de Roma (cerca de 750

    a.C.) at o advento da Lex Abulia (por volta de 149 a 126 a.C.); a fase das per formulas

    (conhecido como perodo formulrio ou das frmulas) que vigorou na idade clssica e

    teve termo, justamente, no reinado de Diocleciano em 305 d.C.; e o perodo da cognitio

    extraordinria (era da cognio extraordinria ou fora do processo ordinrio) que

    vigorou no ps-clssico ou tempo romano-helnico e finalizou com o reinado de

    Justiniano (entre 527 a 565 d.C.) 16

    .

    16

    Segundo Gaio, as legis actiones eram cinco, trs declaratrias e duas executivas (Insts. 4, 11/29), todas

    consideradas perptuas por no terem prazo para seu exerccio. As aes declaratrias se subdividiam em

    actio sacramento (ao por aposta sagrada/sob juramento), actio per judicis postulationem (para o pedido

    de um Juiz/um rbitro), e actio per condictionem (ao para fins de fixar um dia para comparecimento em

    Juzo). A actio sacramento era uma ao abstrata, utilizada quando a lei exigia para o caso ao especial,

    e nas situaes em que no havia necessidade de esclarecer o fundamento da causa. Ao optarem por esta

    via, as partes prometiam, mediante juramento, pagar ao tesouro pblico uma soma em dinheiro (entre 50 e

    500 asses), exigida de quem perdesse a ao. Podia materializar-se como ao real (in rem), quando tinha

    por objeto uma coisa ou uma pessoa alieni juris (um escravo ou um filius familias), tratando-se de coisa

    mvel era necessrio transport-la presena do Magistrado, em sendo coisa imvel bastava apresentar

    mero fragmento do bem. Reivindicante e reivindicado tocavam com uma varinha (festuca, vindicta) na

    coisa (ou na pessoa alieni juris), afirmando a sua propriedade, o Magistrado mandava-lhes deix-la livre,

    e cada parte prometia solenemente pagar o sacramentum, se vencida. Por disposio da Lei Pinria (do

    incio da Repblica), no prazo de trinta dias as partes deviam comparecer perante o Magistrado, o qual

    deferia a posse provisria a quem j detivesse o bem, se fornecesse fiador (praedes), sob pena de ser

    deferida outra parte, contudo, se o ru confessasse sua culpa, o prprio Magistrado adjudicava o bem ao

    autor, caso contrrio, analisava as circunstncias e fixava o objeto do litgio (litis contestatio) e escolhia o

    judex, a cuja presena as partes tinham de comparecer dentro de trs dias, a fim de que decidisse com

    base nas provas produzidas. O litgio era decidido indiretamente, o vencido perdia a quantia que

    depositara em favor do errio pblico, enquanto o vencedor retomava a propriedade do bem reivindicado.

    A actio sacramento in personam (pessoal) visava cobrana de dvidas em dinheiro e tinha um

    procedimento semelhante ao aplicado na ao real, nela, uma parte afirmava ser titular de um crdito e a

    outra negava o dbito que lhe havia sido imputado, uma vez que a confisso da dvida autorizava ao

    Magistrado permitir a apreenso corporal do devedor, a menos que pagasse. A actio per judicis

    postulationem consistia em ao concreta e especial na qual o autor devia apresentar o fundamento de sua

    pretenso de acordo com as hipteses previstas em lei, a este grupo pertenciam as aes de diviso de

    herana (actio familiae erciscundae) ou de bens comuns (actio communi dividendo) e a ao de cobrana

    de crdito decorrente de uma promessa, em cujo rito no se infligia sano ao vencido no processo, o

    judex era indicado pelo Magistrado desde logo, dispensando as partes de retornarem dentro de trinta dias.

    A ltima ao declaratria, a per condictionem, foi instituda pela Lei Slia (250 d.C.) para a cobrana de

    crdito em dinheiro (certa pecnia), e com as alteraes determinadas na Lei Calprnia passou a servir

    para a cobrana qualquer outra dvida (de omni re certa), podendo, inclusive, ser manejada,

    alternativamente, para questes passveis de serem demandadas por intermdio das outras duas

    modalidades de aes, em razo da adequao procedimental e da possibilidade de revelar-se como via

    mais favorvel ao litigante vencedor, uma vez que o montante em dinheiro prometido em juramento

    revertia em seu benefcio, e no em prol do fisco. Tratava-se de ao abstrata devido desnecessidade de

    indicao do fundamento da cobrana, em que o prazo de trinta dias era ditado pelo credor, perante o

    Magistrado, para que o devedor que negasse a dvida comparecesse diante do Juiz (da o nome dado ao

    procedimento, o termo condictio tinha o significado de designao de um dia para determinado fim).

    Embora irrecorrveis, as sentenas proferidas nas aes declaratrias, em virtude do fato de o judex no

    deter o imperium, eram executadas mediante o manejo de aes executrias, a manus injectio (apreenso

    pela mo/apreenso corporal), e a pignoris capio (a tomada de penhor). A manus injectio, pretensamente

    a mais antiga das aes da lei, constitua ao executiva por excelncia e destinava-se cobrana de

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    21

    Nas duas primeiras fases predominou o sistema da ordo judiciorum privatorum

    (da ordem dos processos privados), o processo se desenvolvia em dois momentos, um

    (in jure) perante o Tribunal ou Magistrado, rgo estatal que decidia e estabelecia qual

    o direito aplicvel espcie, e outra (apud judiciem) diante de um Juiz ou rbitro

    escolhido entre cidados ilustres relacionados no album judicum (lista dos Juzes: Insts.

    4,46), que no detinha poder coercitivo (imperium), e ao qual incumbia,

    exclusivamente, julgar com base nas provas produzidas e dentro dos limites traados

    previamente pelo Magistrado.

    Nessa poca tambm existiam os recuperatores que decidiam as questes

    suscitadas e instauradas entre estrangeiros ou entre estes e os romanos, relativas s

    mtuas restituies das presas de guerra.

    A principal causa da decadncia das legis actiones foi o seu rigorismo

    exacerbado. A mera utilizao ou omisso indevida de uma palavra no seu curso

    implicava na improcedncia do pedido.

    No perodo formulrio que o sucedeu, manteve-se a instaurao do processo

    como ato de iniciativa do autor, a quem incumbia informar previamente ao requerido a

    quantia certa, exigia a prvia liquidao da eventual importncia incerta ou da obrigao de dar ou fazer,

    e conservava as caractersticas da autodefesa antiga (ao tempo da Lei das XII Tbuas, o devedor confesso

    ou condenado por sentena tinha de solver a dvida dentro de trinta dias, sob pena de ser agarrado pelo

    pescoo pelo credor e conduzido at ao Magistrado que pronunciava a frmula solene: tibi manum injicio

    (eu imponho a mo sobre ti), quando ento, o devedor devia pagar a dvida, ou apresentar um garante

    (vindex) capaz de contestar a legitimidade da sentena. Na hiptese de ser vencido lhe era imposta a

    obrigao de pagar em dobro o valor do dbito, ou sujeitar-se a ser levado acorrentado casa do credor, a

    quem era assegurada a prerrogativa lev-lo trs vezes feira, no perodo de sessenta dias, a fim de

    propiciar a compaixo dos parentes e amigos que se dispusessem a pagar o devido. No adimplida a

    dvida, o devedor podia ser vendido como escravo, alm do Rio Tibre, ou mesmo ser morto, esquartejado

    e as partes do seu corpo rateadas entre os vrios credores). Posteriormente, a Lei Publilia estendeu a

    manus injectio em favor do fiador (sponsor) que no fosse reembolsado pelo devedor dentro de seis

    meses (a Lex Fria de sponsu (sobre o prometido) foi outorgada contra o credor que cobrasse do fiador

    (ou a um deles) quantia a que no tivesse especificamente se obrigado). Com a introduo das manus

    injectiones purae (as apreenses corporais puras), que no admitiam a fico por julgamento, o ru

    passou a poder defender-se pessoalmente e no por terceiro (vindex). Nos ltimos tempos da Repblica, o

    credor no podia mais vender ou matar o devedor, mas, to-s, lev-lo para a prpria casa, onde, com o

    seu trabalho, pagaria o dbito. A segunda ao executria, a pignoris capio, admitida por Gaio como

    pertencente s legis actiones, porque nela eram pronunciadas palavras solenes, cujo teor se desconhece,

    incorporava a peculiaridade de dispensar a presena e a autorizao do Magistrado, bem como o

    comparecimento do devedor, alm de poder tramitar nos dias chamados nefastos, consagrados s festas

    religiosas pags, perodo no qual, normalmente, no se podia proceder jurisdio contenciosa. A ao

    podia ter por objeto a cobrana, pelos militares, de seu soldo e do dinheiro destinado compra e forragem

    de seu cavalo, e podia ser formulada contra quem no pagasse o preo da compra ou do aluguel de um

    animal destinado a um sacrifcio religioso, e em face do contribuinte inadimplente. Embora o credor

    pudesse apossar-se do bem, no podia, contudo, dele se utilizar, mas forar o pagamento da dvida. (Cf.:

    SARAIVA, Vicente. O Conceito de Ao no Direito Romano e Moderno. In: Revista Trimestral de

    Jurisprudncia dos Estados. So Paulo: Vellenich, vol. 61, pp. 61 77, 1997, pp. 62-65).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    22

    frmula da ao que tencionava propor, a fim de obter a sua concordncia em

    comparecer no dia aprazado diante do Magistrado, pagar-lhe multa ou garanti-la

    mediante fiador.

    Admitia-se a representao das partes por um cognitor (constitudo perante o

    Magistrado) ou um procurator (detentor de mandato), cabendo ao autor deduzir em

    juzo a sua pretenso e solicitar a frmula, enquanto ao ru era dado confessar ou

    contestar o pleito lanado pelo postulante com base em fato ou direito extintivo ou

    suspensivo, e opor exceo frmula.

    Ao final, se o Magistrado admitisse a ao e aceitasse a frmula, firmava a litis

    contestatio nos moldes de um contrato no qual as partes assumiam o compromisso de

    concordar com a deciso do litgio nos termos fixados na frmula. Instaurava-se, assim,

    o processo perante um juiz que, aps a produo das provas e a audio dos

    depoimentos dos litigantes, dispunha da faculdade para apreci-las livremente, embora

    ao proferir a sentena estivesse adstrito frmula originariamente fixada.

    9. Com a degradao do sistema de frmulas e a ascenso dos procedimentos

    no sujeitos ordem dos juzos privados (extra ordinem judiciorum privatorum),

    institudos para solucionar questes de natureza administrativa, surgiu o sistema

    processual da extraordinaria cognitio (cognio extraordinria) que findou por provocar

    a total abolio do rito das frmulas em virtude das vantagens que a fuso das instncias

    e a instituio do Magistrado como agente pblico estatal competente para conhecer e

    decidir todas as contendas trouxe para o sistema de composio dos litgios, mormente,

    no que tange celeridade do processo e efetiva aplicao da lei nos julgamentos.

    Na sociedade romana a res publica materializava a fuso poltica da cives num

    espao onde aqueles que eram considerados cidados tinham liberdade de agir e de

    realizar os seus interesses por sua conta e risco, o que tornava desnecessria a definio

    de direitos individuais enquanto garantias contra o Estado, e a atribuio de obrigaes

    e tarefas sociais aos rgos pblicos17

    .

    17

    CHIUSI, Tiziana. A dimenso abrangente do direito privado romano: Observaes sistemtico -

    teorticas sobre uma ordem jurdica que no conhecia Direitos Fundamentais. Traduo de Jorge Cesar

    Ferreira da Silva. In: MONTEIRO, Antnio Pinto, NEUNER, Jrg e SARLET, Ingo (Orgs.). Direitos

    fundamentais e direito privado: Uma perspectiva de direito comparado. Coimbra: Almedina, pp. 11-34,

    2007.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    23

    10. A utilizao de medidas de natureza acautelatria como instrumentos de

    viabilizao da tutela dos direitos e da utilidade prtica do processo tambm mereceu

    destaque no sistema jurdico romano18

    .

    Na Lei das Doze Tbuas j eram previstas como providncias preparatrias para

    o procedimento de execuo forada, poca de natureza privada, o addictus e o

    nexum, a primeira consistia em conferir ao credor a faculdade de manter o devedor em

    crcere privado por ordem do Magistrado, at o prazo mximo de sessenta dias, com o

    fito de for-lo a saldar o dbito, a segunda constitua medida cautelar de natureza

    obrigacional por intermdio da qual o prprio devedor, voluntariamente e com o

    consentimento do credor, se colocava como garantia do pagamento da dvida19

    .

    No Direito Romano outros institutos caracterizavam medidas acautelatrias. No

    perodo clssico, o vas do legis actio sacramento assegurava o comparecimento do ru

    em juzo, o vindex da legis actio manus injectionem tinha caracterstica de garantia

    pessoal de solvabilidade, e a pignoris capio autorizava a apreenso de bens do devedor

    pelo credor.

    Durante o perodo formulrio, tinham carter assecuratrio as cautiones

    incidentais ao processo, como a cautio iudicio sisti ou vadimonium sisti cuja finalidade

    precpua era garantir a presena dos litigantes em juzo; a cautio ampilis non agi ou non

    peti, que tinha o objetivo de impedir o alargamento da demanda por provocao do

    representado, a cautio pro praede litis et vindiciarum manejada para resguardar o direito

    do vitorioso restituio do bem sequestrado; a cautio ratam rem dominum habiturum

    pela qual o procurador acautelava a concordncia do outorgante com os atos praticados;

    e a cautio iudicatum solvi utilizada para garantir, em caso de condenao, a execuo do

    decisum.

    Comportavam idntico carter as cautiones com abrangncia extraprocessual,

    dentre as quais se destacavam a cautio ex operis novi nunciatione que tinha a finalidade

    18

    RIBEIRO, Darci Guimares. Aspectos Relevantes da Teoria Geral da Ao Cautelar. Revista

    Trimestral de Jurisprudncia dos Estados. So Paulo: Vellenich, vol. 160, pp. 33 54, 1997, p. 34. 19

    Jos de Moura ROCHA ressalta que em virtude do addictus, ao credor era admitido manter o credor

    por um perodo de sessenta dias em crcere por ordem do juiz. Uma vez extinto o dbito, o devedor

    conservava todos os seus direitos e recuperava a sua liberdade. Na hiptese de no se aperfeioar o

    pagamento, a providncia (cautelar) transformava-se em medida executiva, possibilitando ao credor

    vender o devedor reduzindo-o escravido. O nexum consubstanciava medida cautelar passvel de ser

    ventilada pelo prprio devedor que se oferecia para ser posto em poder do credor. Uma vez extinto o

    dbito por intermdio da prestao de servios a garantia desaparecia. (In: Exegese do Cdigo de

    Processo Civil. Rio de Janeiro: Aide, vol. VIII, 1981, p. 26).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    24

    de impedir que construo edificada por vizinho mudasse o curso normal de gua.

    Materializava-se em duas etapas, uma extrajudicial, na qual o prejudicado notificava o

    ofensor por intermdio de qualquer ato simblico a interromper a obra, outra judicial,

    em que a sua paralisao era imposta pelo pretor.

    A cautio damni infecti tinha natureza similar e comportava apenas uma fase

    judicial. O interessado demandava diretamente ao Pretor a emisso de ordem

    proibitria, mediante a prestao de cauo como garantia. Tambm integravam essas

    providncias, as missiones in possessionem veiculadas para possibilitar a deteno ou a

    imisso na posse de bem dado em garantia.

    Durante a expanso do Imperito Romano as construes jurdicas edificadas

    para justificar e fundamentar a disciplina desses meios de conteno de conflitos

    privados foram transmitidas aos povos e civilizaes conquistadas, sem, contudo, se

    aperfeioarem blindadas contra as influncias dos mecanismos locais de composio

    das contendas.

    1.2. Acessibilidade no perodo do sincretismo medieval.

    11. Durante muito tempo, no ocidente, o direito ao qual os cidados tiveram

    acesso foi o produzido por um sistema jurdico edificado a partir dos influxos do

    ordenamento romano, da atuao da Igreja Crist e da tradio escolstica consolidados

    na Europa.

    Desde cedo, problemas jurdicos e sociais comuns determinaram a estabilizao

    no mbito europeu dos institutos jurdicos recepcionados do direito romano, e dos

    edificados com base nas respostas conferidas s experincias jurdicas locais.

    Os jovens povos europeus, antes dos movimentos invasivos, tinham acesso ao

    direito que se depreendia das tradies, somente com a superposio do domnio

    romano foram expostos a um direito revelado por atos de poder estatal, materializado

    ora como comando imperial irresistvel, de observncia obrigatria, ora como resultado

    de uma cincia especializada e diferenciada.

    As concepes de direito e de justia s quais lhes foi facultado conhecer e

    aceder eram reveladas nas construes jurisprudenciais clssicas e no direito vulgar.

    Esse quadro no resistiu influncia da Igreja Crist Ocidental cuja atuao foi

    determinante para a organizao das atividades pblicas, para o aperfeioamento da

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    25

    jurisdio e das tcnicas processuais e notariais enquanto estruturas concretas de

    viabilizao do acesso ao direito e justia, e para a consolidao de um pensamento

    jurdico uniforme.

    A concorrncia de jurisdies (eclesistica, real territorial, senhorial, feudal)

    conferiu tnica prpria concepo de acesso justia identificando-a com a ideia de

    acesso a uma ordem jurdica plural pela viabilizao de mecanismos capazes de

    proporcionar a tutela dos direitos nas diversas esferas jurdicas, conforme a natureza do

    conflito20

    .

    Influenciadas pelas concepes gregas, em especial, s alusivas ao manejo da

    leitura e da escrita como mecanismos de conhecimento e de acesso legislao,

    administrao e justia, as sociedades Europias, conquanto expostas forja das

    formulaes romanas, sempre foram receptivas ao desenvolvimento da retrica e da

    lgica como instrumentos de compreenso dos direitos.

    Antes dos glosadores pouco se conhecia sobre a dimenso da influncia do

    direito romano na matriz jurdica europeia, foi o trabalho terico por eles desenvolvido

    que identificou os materiais dispersos do Corpus Juris Civilis acolhidos sem obstculos

    na Espanha e no Sul da Frana, onde serviram de base para a construo do direito

    ptrio, e ao Norte chocaram-se com o direito germnico de matriz costumeira, onde

    adquiriram tez cientfica e foram transmitidos para a Inglaterra e Esccia.

    A utilizao das formas de comentrio do trivium herdadas da antiguidade no

    manejo do Corpus Juris Justinianeu, a partir da alta Idade Mdia, foi determinante para

    o seu predomnio na regulao da vida pblica europeia e para a consolidao do debate

    jurdico como discurso racional e tcnico.

    12. Com a quebra do Imprio Romano do Ocidente, as comunidades regionais

    reverenciaram a Igreja como novo paradigma de organizao baseado numa forma

    inovadora de pensar o direito, que o demonstrava, no como comando emitido por um

    senhor absoluto, mas enquanto parmetro normativo fundado nas tradies que obrigava

    e impunha limites tanto aos sditos como ao soberano.

    20

    Antonio Manuel HESPANHA assinala que na sociedade europeia medieval conviviam diversas

    ordens jurdicas o direito comum temporal (basicamente identificvel com o direito romano, embora

    reinterpretado), o direito cannico (direito comum em matrias espirituais) e os direitos prprios (In:

    Panorama histrico da cultura jurdica europeia. Lisboa: Publicao Europa-Amrica, 1997, p.92).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    26

    O direito ao qual os indivduos passaram a ter acesso revelava-se em normas

    jurdicas escritas elaboradas a partir dos resqucios do direito romano imperial e das leis

    brbaras arrimadas em leis romanas, nas compilaes escritas das normas tribais, nos

    capitulares e nas fontes cannicas aplicadas pelos letrados e clrigos.

    A matriz fundamental do direito ocidental, calcada na evoluo jurdica

    europeia, foi construda na sequncia de uma progressiva apropriao do patrimnio

    jurdico romanstico que durante um longo perodo teve como principal canal de

    revelao a prtica jurdica da Igreja informada pela teoria jurdica e poltica de

    Aristteles.

    A romanizao dos germnicos no os impediu de conservar a concepo do

    direito como conjunto normativo determinado pelo modo de vida das comunidades

    pessoais e pelo seu prprio ethos e no pelo resultado de novas relaes econmicas ou

    de poder 21

    , consentnea com a ideia de que o sistema jurdico no constitua

    ordenamento arbitrrio, mas se conformava como tradio de vida inatacvel.

    Na Idade Mdia, o progresso urbano impulsionado pelo desenvolvimento

    comercial imps novos desafios compreenso das disciplinas jurdicas no mbito da

    administrao da justia. O direito romano assumiu o carter de direito natural em

    funo da sua dignidade histrica e autoridade metafsica, e passou a servir de

    fundamento seguro para o debate sobre a tica poltico-social vigente poca22

    .

    13. Nesse perodo, na Inglaterra, a Magna Charta Libertatum resultante do pacto

    celebrado pelo Rei Joo Sem-Terra, os Bispos e Bares, em 15 de junho de 1215,

    conquanto focada na manuteno dos privilgios da nobreza, surge como ponto de

    partida para o reconhecimento de alguns direitos e liberdades civis clssicos, como o

    habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade.

    Alm de incorporar no seu texto clusula que proibia a venda, postergao ou

    denegao de justia, garantia ao homem livre, categoria na qual no se incluam os

    21

    WIEACKER, Franz. Histria do Direito Privado Moderno. Traduo de Antnio Manuel Hespanha.

    Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004, p. 27. 22

    Essa viso, herdada pelos modernos sistemas hermenuticos, participou da construo da ideia de que o

    processo de conhecimento dos institutos jurdicos est centrado em princpios fundamentais

    predeterminados, e a exegese no tem por objetivo revelar a verdade do texto normativo, mas abon-la.

    Perspectiva que acabou por servir de pano de fundo tese de que no Corpus Juris a prpria razo se

    materializa em palavra (ratio scripta), posteriormente suplantada pela verso jusracionalista, que

    professava o direito como ordem cuja autoridade decorre da sua revelao enquanto expresso da

    soberania e da vontade poltica geral da nao. Na dogmtica jurdica medieval as regras no eram

    deduzidas de conceitos ou princpios superiores.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    27

    servos das glebas e eventuais escravos, o direito de no ser privado da vida ou da

    propriedade, salvo em virtude de sentena judicial23

    .

    Considerada uma das precursoras da garantia do devido processo legal e, por

    conseguinte, da concepo de justo processo, a Magna Carta somente recepcionou o

    termo due process of law por volta de 135424

    , quando traduzida do latim para o ingls,

    ao qual a construo jurisprudencial atribuiu um carter fortemente adjetivo, centrado

    no regular acesso aos tribunais (acess to courts) e no julgamento justo (fair trial),

    aferidos a partir do cotejo da imparcialidade do julgador, da disponibilizao de vias de

    acesso gratuitas aos hipossuficientes, da garantia do correto chamamento ao processo,

    do amplo contraditrio, e da publicidade, motivao e fundamentao dos atos

    decisrios25

    .

    Apesar de ter reverenciado princpios essenciais consolidao do acesso

    justia, no pode ser visualizada como precursora de autnticos direitos fundamentais,

    sobretudo, por ter sido pactuada numa poca em que a maioria da populao no tinha

    acesso aos direitos por ela consagrados em virtude das profundas desigualdades sociais

    e econmicas que marcavam o sistema estamental operante26

    .

    14. Com os glosadores, os mecanismos de composio dos conflitos de

    interesses se aperfeioaram e o recurso fora ou a meios costumeiros irracionais cedeu

    23

    Art. 39. Nenhum homem livre ser capturado ou aprisionado, ou desapropriado dos seus bens, ou

    declarado fora da lei, ou exilado, ou de algum modo lesado, nem ns iremos contra ele, nem enviaremos

    ningum contra ele, exceto pelo julgamento legtimo dos seus pares ou pela lei do pas (Traduo livre). 24

    O direito ao devido processo legal foi consolidado no Direito Ingls na Bill of Rigths (1688) e no Act of

    Settlement (1700), mas o delineamento do seu contedo deve-se, sobretudo, atividade jurisprudencial. 25

    O modelo idealizado nos Estados Unidos, apesar de lastreado numa ordem constitucional escrita

    concebida como paradigma para todo o sistema jurdico, no se afastou da matriz jurisprudencial. A

    clusula do due process of law consagrada na Quinta Emenda, embora inicialmente referida aos direitos

    vida, liberdade e propriedade, foi ampliada de modo a incidir no processo civil como expresso do

    direito ao correto procedimento, e a servir de respaldo para a defesa da intangibilidade de direitos

    considerados fundamentais. Impregnada por dois sentidos, um formal e outro material, a clusula do

    devido processo legal incorporou a garantia do acesso ao direito e justia como expresso tanto das

    garantias processuais (procedural due process), como das prerrogativas incorporadas ao direito material

    (substantive due process). 26

    Para Ingo Wolfgang SARLET, mesmo com a afirmao do Parlamento frente Coroa, de forma a

    privilegiar a liberdade individual pela via da reduo dos poderes reais, precipitado falar-se em sagrao

    dos direitos fundamentais na moldura fixada pela Magna Carta. Quando muito, possvel identificar-se

    um processo de fundamentalizao, sem constitucionalizao dos direitos e liberdades, caracterizado pela

    instabilidade e falta de supremacia, que no vinculava o Parlamento. Somente com o advento das

    declaraes de direitos do povo da Virginia (1776) e da Frana (1789) observa-se uma concreta transio

    dos direitos e liberdades para os direitos fundamentais constitucionais com a nota de supremacia

    normativa e a garantia da sua justiciabilidade pela via do controle de constitucionalidade. (In: A Eficcia

    dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    28

    espao discusso racional sobre as circunstncias jurdicas nas quais as questes

    fticas eram baseadas.

    A vida pblica europeia foi legalizada e jurisdicionalizada provocando a

    institucionalizao de mecanismos racionais de composio de conflitos, a estabilizao

    da jurisprudncia como produto da atividade desenvolvida por um corpo tcnico

    especializado em estudar normas jurdicas e fator de organizao racional da vida

    social, e a consolidao do modelo racional de administrao da justia, paradigma que

    foi transmitido para os demais continentes com o movimento expansionista.

    Esse processo de legalizao e jurisdicionalizao das formas de expresso e

    tutela das relaes privadas foi influenciado, no medievo, pela ordem jurdica cannica,

    especialmente, no ritual de construo conceitual do contedo dos princpios jurdicos e

    na metodologia jurdica27

    .

    Os influxos da canonstica no direito secular foram bem mais marcantes no

    espao onde se permitia aos rgos eclesisticos o exerccio de competncias comuns

    com ampla liberdade para aplicar princpios cannicos s formas de composio dos

    conflitos.

    As relaes privadas e os mecanismos de resoluo dos litgios seculares

    incorporaram, por essa via, elementos da teologia moral, como a possibilidade de

    utilizar critrios axiolgicos objetivos e subjetivos na apreciao do cumprimento dos

    deveres jurdicos, de promover a avaliao tica da eficcia jurdica das manifestaes

    de vontade, de investigar a verdade material dos fatos por vias racionais expurgando as

    tradicionais ordlias do direito germnico, e de equalizar os estatutos jurdicos pela

    superao das formas discriminatrias de tutela, notadamente, no tocante situao da

    mulher no mbito matrimonial.

    15. Ocupados com a direo e o domnio tcnico da vida jurdica da poca, os

    juristas do medievo transpuseram para a prtica do direito as suas experincias e

    mtodos. Na fase de transio para o perodo moderno verificou-se um forte movimento

    27

    A importncia do pensamento europeu na formao dos modelos jurdicos hodiernos no pode ser

    contestada. Como bem pondera Jos Elias Dubard de Moura ROCHA, o reconhecimento da plasticidade

    histrica de tudo o que humano importa no re-conhecimento de uma contextualizao particularizada

    como experincia significativa num horizonte jurdico moderno de tradio ocidental euro-centrista

    (Acesso Justia: suas posies epistemolgicas. In: GOMES NETO. Jos Mrio Wanderley (Coord.).

    Dimenses do Acesso Justia. Salvador: Juspodivm, Coleo Temas de Processo Civil, pp. 97-109,

    2008, p.104).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    29

    de reforma humanista na jurisprudncia, o qual acarretou a quebra da tradio

    autoritria e prtica do processo de interpretao e aplicao do direito, e contribuiu

    para a remodelagem da cincia jurdica como tcnica formal de anlise lgica da

    realidade, alicerada na argumentao e discusso racionais.

    Posicionado como pea indispensvel para a funcionalidade dos mecanismos de

    administrao da justia e para a justificao ideolgica e jurdica das reivindicaes de

    soberania dos Prncipes, o jurista participou ativamente da construo do Estado

    Moderno.

    Enquanto detentor do domnio das operaes lgicas atravs das quais puderam

    ser organizadas em teses suscetveis de serem racionalmente compreendidas as

    complexas realidades do trabalho poltico da poca, s ele podia construir um direito

    geral, liberto assim das particularidades locais e corporativas, e objectivo, porque

    baseado em dedues logicamente comprovveis28

    , essencial criao de um aparato

    administrativo racional teoricamente imune aos interesses e convenincias pessoais.

    A concepo germnica de organizao dos tribunais e de controle da

    magistratura assumiu carter mais popular e acessvel, de modo a garantir, na repartio

    das tarefas jurisdicionais entre o juiz, que detinha a soberania para conduzir o processo,

    e os jurados, que proferiam a sentena, a participao dos cidados na formulao do

    direito como mecanismo de bloqueio ao arbtrio senhorial.

    Esse modelo diferia do formato franco e saxo onde a ascendncia da nobreza

    sobre os integrantes das carreiras jurdicas posicionava o juiz como mero funcionrio do

    Monarca. Na antiga tradio alem o direito objetivo era revelado na prtica jurdica e

    incorporava os direitos populares que durante muito tempo foi o nico direito ao qual

    teve acesso grande parte da populao.

    28

    WIEACKER, Franz. Histria do Direito Privado Moderno. Traduo de Antonio Manuel Hespanha.

    Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004, p. 94. Ainda sobre a estruturao histrica do direito

    ocidental, conferir: SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praa: Ensaio sobre o lado privado e o lado

    pblico da vida social e histrica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986; DAVID, Ren. Os grandes

    sistemas de direito contemporneo. Trad. Hermnio A. Carvalho. So Paulo: Martins Fontes, 1998;

    BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: Para uma teoria geral da poltica. Trad. Marco

    Aurlio Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2003; CAVALCANTI, Francisco Ivo Dantas. As

    Denominadas Famlias de Direito. In: SALDANHA, Nelson Nogueira e REIS, Palhares Moreira

    (Coords.). Estudos Jurdicos, Polticos e Sociais Homenagem a Glucio Veiga. Curitiba: Juru Editora,

    2000; BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992; SANTOS, Boaventura

    Sousa. Do Ps-Moderno ao Ps-Colonial e para alm Um e Outro. In: VIII Congresso Luso-Afro-

    Brasileiro de Cincias Sociais. Coimbra: 2001. Disponvel em http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-

    moderno_ao_pos-colonial.pdf. Acesso em: 21 de agosto de 2006; e, RAO, Vicente. O direito e a vida dos

    direitos. So Paulo: Revisa dos Tribunais, 1983.

    http://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_pos-colonial.pdfhttp://www.ces.uc.pt/misc/Do_pos-moderno_ao_pos-colonial.pdf

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    30

    16. Data desse perodo a formao da matriz jurdica Lusitana. Quando da sua

    fundao, Portugal j possua um direito comum de natureza costumeira construdo sob

    a influncia romano-crist (o Reino de Portugal no pertencia ao Sacrum Imperium).

    No perodo de domnio Visigtico na Pennsula Ibrica, o Breviarium

    Alaricianum ou Aniani foi imposto aos povos que a habitavam como cdigo normativo,

    sendo substitudo em 652 pelo Fuero Jusgo (Forum Judicium, em latim) 29

    , que

    prevaleceu at 1250, quando a reforma da legislao patrocinada por Fernando III

    resultou no Cdigo das Sete Partidas.

    Os territrios Portugueses subjugados ao Reino de Leo, quando tomado aos

    Mouros, foram submetidos ao Fuero Jusgo, mandado observar em Portugal pelo

    Conclio de Coyana. Mesmo depois de estabelecida a monarquia, com a separao do

    Reino de Leo, Portugal continuou a observar a Legislao Visigtica com as alteraes

    resultantes do Fuero Real, da Lei del Estilo e do Fuero de Leon.

    A despeito da resistncia oposta pelo Clero ao Cdigo das Sete Partidas, que

    referendava a adoo do direito romano do Corpus Juris com forte penetrao na

    jurisprudncia e doutrina, o seu texto influenciou a elaborao do Cdigo Affonsino,

    publicado entre os anos de 1446 e 1447, cujo teor restringia a Legislao Feudal e

    Consuetudinria e posicionava, no mesmo nvel, a legislao do Corpus Juris e as

    normas de Direito Cannico.

    Enaltecido com a descoberta das ndias e da Amrica, o Rei D. Manoel ordenou

    a compilao de novo Cdigo, cujo teor, publicado em 1521, seguiu a mesma

    sistemtica adotada no Cdigo Afonsino, no que foi seguido pelo seu sucessor Philippe

    III de Espanha, e II de Portugal, que mandou organizar outro Cdigo, finalizado e

    publicado em 1603, cujo contedo seguiu o mesmo mtodo de sistematizao adotado

    pelo Cdigo Manuelino, mantendo a disciplina do processo civil e das pessoas e coisas

    no terceiro e quarto Livros, respectivamente, com base no material recepcionado do

    29

    Cndido Mendes de ALMEIDA leciona que a par do Fuero Jusgo, e do Direito consuetudinrio,

    existia o Direito Cannico, que se infiltrava, e juxtapunha a Legislao Civil, em vista da organizao

    peculiar dos estados organisados depois da dissoluo do Imperio Romano (...). Como se achavo no

    Estado entrelaados e unidos o Civil e o Ecclesiastico, as decises dos Concilios Provinciaes Hespanhes,

    mxime os de Toledo, ero observadas como se fossem promulgadas pelos dous Poderes: nenhuma

    separao definida havia, seno a que resultava das funes peculiares que exercio o Clero, e o Rey (In:

    Codigo Philippino ou Ordenaes e Lei do Reino de Portugal Recopiladas por Mandado DEl Rey D.

    Philippe I. Livro Primeiro, 1 Tomo, Edio Fac-similar da 14 edio, de 1870. Braslia Edies do

    Senado Federal, 2004, p. XV).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    31

    direito consuetudinrio germnico e do direito romano tardio (Compilaes de

    Justiniano) 30

    .

    Conquanto no tenham incorporado enunciados especficos que disciplinassem

    ou garantissem o acesso ao direito e justia, os Terceiros Livros das Ordenaes

    congregavam conjuntos de normas que reverenciaram a viabilizao de procedimentos

    capazes de produzirem decises aptas a atenderem aos anseios de justia em voga.

    A preocupao com a excessiva durao dos procedimentos e com o manejo

    abusivo das vias recursais possibilitou a incluso, nas Ordenaes Afonsinas, de

    restries ao acesso ao duplo grau de jurisdio e a revelao do princpio da

    instrumentalidade das formas como fundamento para a desconsiderao de vcios

    formais, em prol da rpida e justa soluo dos litgios, regramento que foi reproduzido e

    pouco alterado nas Ordenaes Manuelinas.

    As Ordenaes Filipinas, idealizadas como produto da necessidade de

    adequao das leis realidade, inclusive no que dizia respeito atribuio de maior

    celeridade ao processo, alm de recepcionarem as trs frmulas procedimentais ainda

    conhecidas e utilizadas em nossos dias (ordinrio, sumrio e sumarssimo), mantiveram

    a garantia do contraditrio, da imparcialidade do julgador e da iniciativa probatria do

    juiz31

    .

    As Ordenaes Filipinas vigoraram por quase trs sculos e, embora

    reconhecessem, de certa forma, o direito dos mais necessitados de serem patrocinados

    por advogados, como mecanismo de equalizao das oportunidades das partes na

    realidade processual, bloquearam, em Portugal e no Brasil, a evoluo do significado do

    acesso justia na forma como visualizada no resto da Europa, onde o culto liberdade

    se contrapunha ao absolutismo e fervilhavam discusses filosficas que conduziram s

    primeiras noes de democracia e ao perodo das revolues32

    .

    30

    At o sculo XV, o processo civil portugus era calcado na oralidade, somente por influncia do direito

    cannico adotou-se o modelo que privilegiava a escrita, a adoo de frmulas e a interveno de

    advogados. 31

    Em todas as Ordenaes do Reino, o processo conservou-se como instrumento escrito e formal a

    servio das partes, no qual predominava a passividade do magistrado e o alheamento quanto aos reflexos

    sociais da prestao da tutela jurisdicional. 32

    Para um exame mais aprofundado ver: ALMEIDA, Cndido Mendes de. Cdigo Philippino ou

    Ordenaes e Leis do Reino de Portugal Recopiladas por Mandado Del-Rey D. Philippe I Introduo e

    Comentrios. 1, 2, 3 e 4 Tomos. Braslia: Senado Federal, 2004.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    32

    17. No Brasil, o sistema judicial imposto no incio do perodo colonial pela

    administrao portuguesa perdurou durante longo perodo. As Ordenaes, ao

    partilharem e delimitarem as atribuies dos funcionrios, no tomaram como

    parmetro a natureza da atividade desenvolvida. Era comum a acumulao de poderes

    administrativos, judiciais e de polcia nas mos de autoridades, que no se importavam

    em manipul-los em prol de seus prprios interesses. Prevalecia a impunidade, a

    inobservncia da legislao, a corrupo e o trfico de influncia33

    .

    A designao de um Ouvidor-Geral com a instalao do Governo-Geral em 1549

    marcou a primeira tentativa de estruturao da justia rgia na Colnia. A administrao

    da justia real era delegada a cada donatrio, cuja jurisdio cvel e criminal era

    definida nos forais e cartas de doao, sendo-lhes facultado nomear ouvidores.

    O Ouvidor-Geral, alm de desempenhar funes administrativas, examinava, em

    grau de recurso, as decises proferidas pelos Ouvidores das Comarcas residentes nas

    Capitanias, os quais detinham competncia para solucionar as discusses jurdicas nas

    aldeias, controlar o povoamento e despovoamento de localidades, a realizao de obras

    pblicas, a criao de vilas e a construo de igrejas, e supervisionar a arrecadao

    tributria.

    A ampliao da Colnia exigiu da Coroa a reestruturao da aparelhagem

    judicial, o que resultou na criao de cargos de Juzes (Ordinrios e de Fora) 34

    competentes para o exerccio de funes policiais e jurisdicionais, sob a direo do

    Ouvidor da Comarca e inspeo do Corregedor.

    33

    Sobre a formao da cultura jurdica brasileira, ver: SALDANHA, Nelson Nogueira. As constantes

    axiolgicas da cultura e da experincia jurdica brasileira. In: Revista Idia Nova rgo de Divulgao

    Cientfico-Literrio dos Estudantes do Programa de Ps-Graduao em Direito (Mestrado e Doutorado)

    da UFPE. Recife: Editora Nossa Livraria, n 4, p. 71-80, Jan./Dez., 1998. 34

    O Juiz Ordinrio era eleito dentre trs homens bons, mediante confirmao do Ouvidor,

    desempenhava funes judiciais e administrativas, geralmente acumulava a funo de juiz de rfo

    apartado. Conforme disciplina das Ordenaes Manuelinas e Filipinas, deveria existir um juiz de rfo

    em cada vilarejo onde morassem mais de quatrocentos vizinhos, o qual tinha obrigao de saber a

    quantidade de rfos existentes em sua comarca, arrolar e inventariar seus bens, autorizar casamento e

    providenciar-lhes tutor. O Juiz de Fora era bacharel letrado enviado pelo reino para administrar a justia

    em nome do rei, competia-lhe visitar as comarcas e dar assistncia aos juzes ordinrios que lhe cediam

    jurisdio, incumbia-lhes, ainda, exercer a presidncia da cmara municipal e desempenhar algumas

    atividades administrativas (SEGURADO, Milton Duarte. O Direito no Brasil. So Paulo: Universidade

    de So Paulo, 1973, p. 111).

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    33

    Em 1605 foi instalado na Bahia o primeiro Tribunal de Relao35

    subordinado

    Casa de Suplicao, com sede em Portugal, altura em que os juzes (Ordinrios, de Fora

    e de Vintena36

    ), o Ouvidor e o Corregedor passaram a ocupar o mesmo patamar

    hierrquico e a se submeter sua autoridade.

    Ao lado das atividades jurisdicionais, os Tribunais de Relao desempenhavam

    funes administrativas de consultoria a governadores e vice-reis, decidiam sobre os

    limites entre as capitanias, executavam sindicncias policiais em navios, alm de outras

    intervenes de carter poltico e administrativo.

    Nos municpios, a administrao da justia era dominada pelo senhoriato rural.

    Com o tempo, os juzes ordinrios eletivos foram substitudos pelos juzes de fora, de

    nomeao rgia. A despeito do poder que lhes era conferido, os rgos judiciais tinham

    atuao restrita, sobretudo, porque, a justia, por revelar-se formal, letrada e

    dispendiosa, era quase inacessvel populao, majoritariamente constituda por

    analfabetos e pobres que no entendiam o direito escrito nem tinham condies

    financeiras para arcar com as despesas de um processo.

    A Justia Real tambm tinha pouca penetrao nos grandes latifndios, onde

    imperava a justia privada e a jurisdio oficial era intimidada pela atuao do Capito-

    mor, bem como nas comunidades indgenas e quilombolas que instituam seus prprios

    costumes jurdicos.

    Ao trmino do perodo colonial, o Brasil possua seus juzes e tribunais de

    segunda instncia (Relaes da Bahia e do Rio de Janeiro) prprios37

    , subordinados em

    35

    Somente em 1751 que viria a ser instalado o segundo Tribunal de Relao, mas no Rio de Janeiro. A

    distncia entre as provncias e os Tribunais de Relao dificultava a interposio de recursos, problema

    que ensejou, no perodo do Vice-Reinado, a criao de Juntas de Justia que adotavam uma forma

    processual sumria. A Junta do Par foi a primeira a ser instituda, em 1758, era presidida pelo

    Governador da Provncia e composta pelo Ouvidor, o Intendente, um Juiz de Fora e trs Vereadores. 36

    O juiz de vintena, ou juiz vintenrio, recebia esta denominao por atuar apenas em aldeias ou vilarejos

    onde viviam mais de vinte famlias, tinha poderes decisrios limitados alada entre cem e quatrocentos

    ris, seus pronunciamentos eram verbais e no eram passveis de apelo ou agravo, no tinham

    competncia criminal, contudo, podiam ordenar a priso em flagrante delito, ou mediante mandado ou

    querela, mas lhe incumbia apresentar o detido ao juiz competente. 37

    Participavam tambm da administrao da justia os Vereadores, que geriam as vilas e auxiliavam o

    Juiz Ordinrio no julgamento das demandas que envolviam furtos de pequenos valores e injrias, e na

    elaborao das leis; os Procuradores de Justia e os Promotores, os primeiros cuidavam da integridade da

    justia civil, e os segundos detinham a atribuio de acusar os criminosos em nome do Rei e da

    sociedade, e de defender o interesse geral; e os Alcaides ou Prefeitos de Provncia que possuam

    jurisdio civil e militar.

  • Acesso Equitativo ao Direito e Justia: A revelao jurisprudencial de um direito fundamental.

    34

    grau de recurso Casa de Suplicao, ao Desembargo do Pao e Mesa da Conscincia

    e Ordens instaladas em Portugal38

    .

    1.3. Acessibilidade no Mundo dos Modernos

    18. No mbito europeu, a edificao de estruturas facilitadoras do acesso ao

    direito e justia se aperfeioou diretamente relacionada com o processo de recepo

    pelos sistemas jurdicos de institutos normativos de matiz romana, e de modelos

    inovadores de aplicao do direito39

    .

    Com a evoluo das relaes sociais e polticas que alvoreceram no perodo que

    se convencionou chamar de Idade Moderna, o processo de transformao normativa e

    jurisdicional destacou-se como expresso da influncia das muda