brecht eu misturo com caetano

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    Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. , p. -, dez.

    Brecht eu misturo com Caetano

    citao, mercado e forma musical

    Nicholas Brown1

    Resumo

    Este ensaio demostra que h uma afinidade metodolgica profundaentre a prtica musical de Caetano Veloso a partir de 1969 e a dos

    esforos colaborativos de Bertolt Brecht e Kurt Weill de 1928 a 1930.Sem dvida, muito h que as separe, do ponto de vista ideolgico,histrico, e esttico. Porm as diferenas histricas so postas emrelevo pela identidade metodolgica; as diferenas ideolgicasassumem novas valncias sua luz; e as diferenas estticas definemas possibilidades e os limites do sentido musical em nosso prpriotempo.

    Palavras-chaveBertolt Brecht, Kurt Weill, Caetano Veloso, mercadoria, forma musical.

    Recebido em 17 de dezembro de 2013

    Aprovado em 30 de maio de 2014

    BROWN, Nicholas. Brecht eu misturo com Caetano: citao, mercado e forma musical. Revista do

    Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 59, p. 149-190, dez. 2014.

    DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i59p149-190

    Universidade de Illinois (UIC, Chicago, Illinois, EUA).

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    Bertolt Brecht, Kurt Weill and

    Caetano Veloso

    Citation, Market and Musical Form

    Nicholas Brown

    Abstract

    This essay asserts a profound methodological affinity betweenCaetano Velosos musical practice since 1969 and that of Bertolt Brechtand Kurt Weills collaborative efforts from 1928 to 1930. No doubt a

    great deal ideological, historical, and aesthetic separates them aswell. The historical differences are, however, brought into relief bytheir methodological identity; the ideological differences assume newvalences in its light; and the aesthetic differences define the possibi-lities and limits of musical meaning in our own time.

    Keywords

    Bertolt Brecht, Kurt Weill, Caetano Veloso, commodity, musical form

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    rnold Schnberg uma vez props umsimples critrio: se arte, no para todos; e se para todos, no arte.2A colocao evidentemente elitista, mas no evidentemente falsa. Noh nenhuma razo para que ela seja verdadeira em todos os momentos:de fato, arte para todos pode ser um corolrio indispensvel de qual-quer impulso que seja genuinamente revolucionrio. Mas em sociedadesde mercado como a nossa em sociedades nas quais um objeto cultural

    pode ser para todos, quando passa pelo mercado, ou seja, ao se tornaruma mercadoria, e, assim, ao ser uma mercadoria desde a sua concepo ,

    no totalmente certo que uma mercadoria artstica possa ser, ao mesmo

    tempo, uma obra de arte.Marx entendia que as mercadorias, apesar dequase universais, constituem uma classe distinta de objetos cujas finali-dades se encontram fora de si mesmos: qualquer contedo material queuma mercadoria possa aparentar ter (o contedo concreto de um marteloparecer ser, por exemplo, a capacidade de martelar), o seu contedo

    essencial, em uma sociedade de mercado, o ato da troca para o qual produzido3. Um martelo certamente significa martelar para o seucomprador ou talvez signifique um bom presente de aniversrio, um

    SCHNBERG, Arnold. Neue Musik, veraltete Musik, Stil und Gedanke. In: Stil undGedanke: Aufstze zur Musik.Frankfurt am Main: Fischer, , p. .

    A lgica , com certeza, melhor desenvolvida no segundo captulo do primeirovolume do Capital de Marx. Para um melhor entendimento da lgica aplicadaa obras de arte, ver BROWN, Nicholas. The Work of Art in the Aage of its RealSubsumption Under Capital. Nonsite. Disponvel em: . Uma versoem portugus sair em uma futura edio do Centro de Estudos Marxistas(CEMARX).

    A

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    bom e pesado peso de papel, uma arma ou uma excelente obra dedesign industrial , mas no para o seu vendedor, para quem no signi-fica nada alm de dinheiro. Mas o conceito de obra de arte est ligado,igualmente em suas acepes cotidianas e esotricas, a um conjuntode regras fundamentais que lhe so internas; ou seja, simplesmente,

    produo de um significado alm do fato externo da permutabili-dade que no depende da atitude de um comprador. Uma maneira de seentender o modernismo, em qualquer perodo, atravs do imperativo,ao mesmo tempo idolgico e real, de evitar a determinao do mercado:mas somente ao custo de se abandonar o imperativo de ser para todos.Entendida como normativa, ento, a mxima de Schnberg incorpora aarrogncia insuportvel do modernismo; entendida como indicativa, elasurge como resultado do seu dilema insupervel.

    De vez em quando, contudo, artistas preferem confrontar o dilemaao invs de evit-lo: correr o risco de um mercado annimo de bensculturais ao invs de submeter a produo esttica ao mercado ou isol-lado contato direto com ele. Mas tal confronto no pode parar no simplesimperativo de ser para todos, o que, em uma sociedade de mercado,como vimos acima, implica, qualquer que seja a atividade subjetiva doartista, um ajustamento da obra ao mercado que desvirtua, imediata-mente, sua pretenso de ser uma obra de arte de fato. Este ensaio defendeque Caetano Veloso, em 1969, e Bertolt Brecht e Kurt Weill, em 1928,

    desenvolveram conjuntos, notavelmente similares, de procedimentosestticos para a produo de significados artsticos ou seja, paraproduzir obras mesmo dentro do campo de mercadorias culturais,que tem como caracterstica anular qualquer significado. Embora existauma plausvel relao gentica entre Brecht e Caetano a apropriaobrasileira da dramarturgia brechtiana assinala fortemente o meio est-tico do qual Caetano emerge este ensaio no est preocupado com agnese histrica nesse sentido; a afirmao, pelo contrrio, a de que

    cada artista produz uma forte resposta, em circustncias histricas queso diferentes mas no estranhas entre si, para o duplo imperativo de seproduzir obras que sejam, ao mesmo tempo, arte e para todos. Da mesmaforma, aqui no h qualquer considerao sobre o legado gentico dessesdois momentos esttico-histricos. De fato, em um contexto contempo-rneo norte-americano, os msicos Jack White e Cee-Lo Green todiferentes um do outro em termos musicais quanto em relao ao quese expe neste ensaio esto, todavia, operando nos mesmos moldesprocessuais como Brecht e Caetano, mas em provvel desconheci-mento de ambos. Em vez disso, a questo a relao entre esse duploimperativo, de um lado, e, do outro, a histria pela qual se entende o

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    desenvolvimento do capitalismo, que desigual entre os setores, bemcomo entre as zonas geogrficas. Brecht e Weill esto trabalhando nesseproblema em um tempo e espao nos quais os procedimentos no-mercantis esto prontamente disponveis e devem ser expressamenterejeitados; as maiores inovaes de Caetano vm em um momento em que

    a possibilidade de tais procedimentos por ele entendida como negada;e White e Green (que no podem ser discutidos em maiores detalhesno espao deste estudo) esto trabalhando em condies nas quais taisprocedimentos no so mais que uma memria distante. A questo darelevncia, para o presente momento, do enfoque brechtiano/weilliano/velosiano delineado no que se segue, outra questo. Quando a satu-rao total da sociedade pelos mercados , ao mesmo tempo, a ideologia eo programa da hegemonia neoliberal contempornea, a questo de como

    circular valores que no podem ser reduzidos para a troca urgente e no somente para os artistas. Mas antes de voltarmos nossa atenopara os procedimentos e as obras em questo, preciso fazer um desvioatravs de Hegel, em cujo sistema a posio instvel da msica revela asuscetibilidade peculiar dessa ltima aos problemas da heteronomia domercado.

    Como Hegel inicia em sua discusso sobre a msica, ele admiteestranhamente que pouco versado nessa rea e deve, portanto, pedirdesculpas antecipadamente.4 A perplexidade de Hegel tem dois obje-

    tivos, e apenas parte pode ser atribuda sua relativa ignorncia emmsica e falta de um gosto musical avanado. Primeiramente, Hegelse aproxima do limiar conceitual do significado imanente do meio, masno o atravessa. Em sua discusso sobre pintura, Hegel, por vezes, chegaao ponto de manter indiferente o contedo referencial, enfatizando aforma e a tcnica como a substncia de uma obra5. Mas, quando a msicarecua em seu prprio meio, Hegel no v nada alm de um trabalhode detalhes, somente uma questo para especialistas e connoisseurs.6

    Hegel, mesmo que se aproxime do limiar de um contedo que deveriapertencer exclusivamente a operaes dentro de uma forma ou meio, nopossui um conceito de uma ideia puramente musical ou plstica7. De um

    HEGEL, G.W.F. Vorlesungen ber die sthetik III. Frankfurt am Main: Suhrkamp,, p. .

    Ver HEGEL,sthetik III, p. -.

    HEGEL,sthetik III, p. .

    Mais precisamente, e mais escandalosamente, a msica enquanto tema, para He-gel, no uma ideia a ser desenvolvida, mas sim uma mera sequncia que se esgotana primeira afirmao. Ver sthetik III, p. . O escndalo que Hegel era umcontemporneo de Beethoven.

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    lado desse limiar, Hegel parece presciente e esteticamente arriscado; poroutro, bitolado e provinciano. O modelo de Hegel no se limita Esttica.

    Mas essa somente a primeira perplexidade de Hegel. A segunda que a msica, como ele ento entende, no tem lugar em seu sistema.Desde que possa ser atrelada a um significado no-musical, a msica

    s fica em segundo lugar, seguindo a poesia e sua habilidade de regis-trar a interioridade do pensamento, e, de fato, essa penltima posio o lugar onde ela se mantm oficialmente no sistema de Hegel. Mas,nesse caso, a msica reduzida para fornecer efeitos amplificadoresde um contedo j existente. Alternativamente, a msica pode, em vezde expressar uma ideia, provocar ideias em ns enquanto ouvintes;mas, nesse caso, a ideia meramente nossa e no pertence obra8.Por ltimo, a msica pode afetar diretamente nossos estados mentais,

    ultrapassando por completo a ideao: a msica pode penetrar, apro-veitar, tocar, desenhar, colocar em movimento, inflamar, levarembora, divertir, distrair, estimular, incitar (eindringen,fassen,berhren,fortziehen, in Bewegung setzen, anfeuern, heben, beschftigen,abziehen, antreiben, zum Angriff anfeuern) e assim por diante9. Masestados afetivos so, eles mesmos, simples e abstratos, e no possuemqualquer contedo prprio. O significado somente pode ser oferecidopor um suplemento no-musical; quer se trate de uma balada ou de umcontexto de fervor nacionalista. Na verdade, em uma anlise minunciosa,

    as duas primeiras possibilidades hegelianas revelam-se somente comoverses de uma terceira: se a msica provoca ideias que no esto naprpia msica ou amplifica as ideias que so complementares a ela, elasso formas de induzir um estado em vez de produzir um significado.Como Hegel no tem um conceito de uma ideia puramente musical, apossibilidade restante (quarta possibilidade), a msica que permanencedentro dos domnios puramente musicais dos sons, assinala o estadofundamental da msica como tal, o que no estritamente contado

    entre as artes.10

    No somos obrigados a nos interessar sobre a questo do lugar aoqual a msica pertence no sistema das artes de Hegel. Mas a perplexidadede Hegel aponta para um problema que urgente para ns hoje, quandoa msica popular que significa msica comercial no final do sculo XXe no incio do XXI , quando no simplesmente decorativa, dada quaseque inteiramente para amplificar o contedo pr-fabricado ou para

    HEGEL,sthetik III, p. .

    HEGEL,sthetik III, p. , p. .

    HEGEL,sthetik III, p. , p. .

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    produzir efeitos que passam despercebidos totalmente pelo contedo.A dificuldade de Hegel que a caracterstica especfica que distingue amsica das outras artes a sua habilidade de produzir estados afetivosnos ouvintes. Esse aspecto da diferena especfica da msica, em relaos outras artes, a diferena da poesia que permitiu (alguma) msica na

    Repblicade Plato; para Aristteles, era um lugar-comum pelo qual eleno via necessidade de disputa11. Para tomar somente o elemento maisbsico, qualquer batida musical percebida seria suficiente para orga-nizar os movimentos internos ou externos de um ouvinte. Nas palavrasde Hegel, desde que o tempo do som tambm o tempo do sujeito, osom () coloca o eu em movimento.12Nossos neurocientistas contempo-rneos chamam isso de tempo entrainment.13Mas, como veremos embreve, essa caracterstica parece desqualificar a msica das outras artes

    ainda mais fortemente hoje em dia do que em Hegel.Em sua discusso em torno de Laocoonte, G. E. Lessing estavaexasperado com a crtica que pudesse pular para concluses interpre-tativas sem passar pelo momento da determinao imanente do meio.Quando eu examino as razes que citei para explicar o motivo pelo qualo escultor de Laocoonte to comedido na expresso da dor no corpo,ele diz, creio que elas derivam, sem exceo, das condies especficasda arte, dos limites necessrios e das exigncias impostas pela escultura.No posso imaginar aplicar qualquer uma delas para a poesia.14No

    que o grego fosse, como diz Winkelmann, mesmo nas extermidades,

    PLATO. The Republic, Livro III -, especialmente, d; ARISTTELES, Po-litics, Livro VII I, Captulo V, a, b.

    HEGEL,sthetik III, p. -.

    H uma robusta literatura sobre tempo entrainment. Ver NOZORADAN, Sylvie;PERETZ, Isabelle; e MOURAUX, Andr. Selective neuronal entrainment to thebeat and meter embedded in a musical rhythm. Journal of Neurosciencen. , p.-, . DOI: ./JNEUROSCI.-.. claro que os estudos neu-

    rocientficos sobre as artes no se limitam aos efeitos da msica. Ver, por exemplo,GOLDMAN, Alvin. Imagination and simulation in audience response to fiction.In: NICHOLS, Shaun (org.). The Architecture of the Imagination. London: Oxford,, p. -. Mas enquanto os efeitos neurolgicos da representao literal noincluem o ato crucial da interpretao e, portanto, claramente no so respons-veis por uma caracterst ica-chave da literatura, os efeitos da msica no corpo, osquais a cincia neural pode, eventualmente, ser equipada para entender, parecemconstituir intuitivamente a prpria existncia da msica. fcil, conceitualmente,subordinar, juntamente com Brecht, a empatia coagida (um efeito cuja reflexona literatura parte do projeto de Goldman) ao significado literal (que no partedo projeto de Goldman). Com a msica, menos bvio que os efeitos provocadospossam ser subordinados.

    LESSING, Gotthold Ephraim. Laokoon: Oder, ber die Grenzen der Malerei undPoesie. Stuttgar t: Reclam, , p. .

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    uma grande e firme alma em comparao s vtimas do moderno, masque o escultor de Laocoonte teve que lidar com a dificuldade de fazer,entre outras coisas, uma grande cavidade em sua escultura que um gritoconvincente exige15. Hoje a percepo de Lessing deve ser levada umpasso a frente: o conceito do meio ou suporte material deve ser expan-

    dido para incluir o modo de distribuio, que impe limites e determinapossibilidades com tanta fora quanto o prprio suporte material.

    Agora, o que a msica faz por excelncia provocar estados afetivosnos ouvintes parece definitivamente encerrar, nas condies atuais, apossibilidade dela ser um meio para obras de arte. Pois qualquer efeitoprovocado, nas condies atuais, j sempre uma mercadoria. ComoRoberto Schwarz coloca de forma concisa: Em regime capitalista, bastauma forma de utilidade qualquer para que algo ou algum sejam candi-

    datos a membro de pleno direito no mundo das mercadorias (K. Marx,Das Kapital, vol. II, cap. 20, VIII).16Agora, s porque uma obra de arte uma mercadoria, ela no somente ou imediatamente uma mercadoria.Entre outras possibilidades, o carter mercantil de uma obra de artepode ser contido por meio do estabelecimento de um campo de produorestrita, conceito defendido por Bourdieu, que forosamente substitui osvereditos imprevisveis de um pblico annimo o problema de umvendedor por um pblico de iguais que tambm so concorrentes.17Dessa forma, o modernismo, em sua forma paradigmtica, podia afirmar

    a autonomia de obras de arte dentro de uma plena sociedade da merca-doria. Mas a especificidade do momento atual que o momento anteriorfoi substitudo: os campos restritos especialistas e conhecedores deHegel foram superados de uma vez por todas pelo mercado annimo,e, doravante, todas as obras de arte logo so, afinal, mercadorias. Isso, arigor, no precisa ser verdade para que funcione como a ideologia estticadominante em nosso momento atual. Indubitavelmente, esferas restritas,dos ambientes amadores aos de vanguarda, ainda existem aqui e ali, mas

    a sua extino tida como certa por todas as partes: esferas restritas sojustificadas no por sua autonomia em relao ao mercado em geral, maspor sua contribuio a ele. Atualmente, qualquer produo esttica quese imagina imune a essa dinmica ao contrrio de procurar meios desuper-la, o que outra questo escolhe uma ingenuidade imperdovel.

    ApudLESSING, p. .

    SCHWARZ, Roberto. Tribulao de um pai de faml ia. In: O pai de famlia e outrosestudos. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, , p. , nota de rodap .

    BOURDIEU, Pierre. Le march des biens symboliques. LAne sociologiquen. , p. e , .

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    Hoje, o significado das obras musicais no pode ser estabelecidosem que levemos em considerao explicitamente o seu modo de distri-buio, ou seja, sem considerarmos o fato de que elas so entendidas comoimediatamente mercadorias. E, em tal situao, inevitvel o fato deque, nas palavras de Roberto Schwarz, as formas concretas de atividade

    deixam de ter em si mesmas a sua razo de ser; a sua finalidade lhes externa, a sua forma particular inessencial.18A finalidade essencial damercadoria encontrar quem a compre no mercado annimo; qualqueroutro fim, o potencial valor de uso, no importante: de fato, deixadaao consumidor a deciso sobre o que a mercadoria ou se ela tem algumvalor. Em outras palavras, nenhuma mercadoria pode plausivelmenteproduzir um significado cuja finalidade , por definio, essencial enenhum efeito subjetivo da msica, sob essas condies, deixa de ser

    uma mercadoria. Mas um artefato deve produzir um sentido quer sejareferencial, puramente imanente do meio, ou no a fim de qualificar-se como uma obra de arte19. Isso leva consequncia infeliz de que amsica da qual algum gosta seja, na medida em que as suas finalidadesesto vinculadas aos efeitos pelos quais algum dela gosta, excluda dosistema de arte. Portanto, urgente a questo de como produzir msicacuja essncia no reside nos efeitos que ela produz.

    As colaboraes de Bertolt Brecht e Kurt Weill compe o nossoprimeiro estudo de caso. Quase quarenta anos depois de Theodor Adorno

    ter proferido o que parece ser um golpe mortal s reivindicaes maisatraentes de Brecht, Roberto Schwarz foi bastante audacioso ao retornar auma questo bastante bsica: como Bertolt Brecht quer dizer o que diz20?O problema precisamente o da autonomia, ou da sua falta, enquanto noensaio de Adorno sobre a questo trata-se do problema do engajamento,ou da heteronomia da arte em relao poltica 21. Como se sabe, o teatrobrechtiano visa explicitamente a uma diferente autonomia, isto , a umaautonomia em relao ao mercado. O entretenimento, por certo, precede

    SCHWARZ, Roberto, Tribulao de um pai de famlia, p. .

    Esse ltimo postulado no necessrio nos estudos sociolgicos, antropolgicos,religiosos, entre outros, que podem tratar como indiferentes as diferenas entrearte e um papel de parede, a vida cotidiana ou a prtica religiosa. Mas, sem ele, oestudo da cultura, como conhecemos, incoerente.

    SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht. In: Sequncias brasilei-ras: ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, , p. -.

    ADORNO, Theodor W. Engagement. Noten zur Literature. Frankfurt: Suhrkamp,, p. -. Como o ttulo em alemo deixa claro, a terminologia de Sartee no de Adorno. Aps discutir o ensaio de Adorno com In Camargo Costa, souforado a admitir um certo elemento de m-f no argumento de Adorno. Contudo,no creio que isso desqualifique a sua crtica especfica.

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    ao mercado: a pera era um modo de diverso muito antes de ser umamercadoria.22Mas, sob as condies atuais, a arte uma mercadoriacujo valor advm, no caso da pera, da funo social do aparato teatral,qual seja, a de promover o entretenimento.23Em Mahagonny, esse modode diverso artisticamente neutralizado ao ser estruturado:

    No que diz respeito a [Mahagonny], seu tema a diverso: diversono apenas como forma, mas como questo subjetiva. A diverso algo para ser, no mnimo, objeto de indagao, mesmo se a inda-gao for um objeto de diverso. A diverso entra aqui em suaforma histrica presente: como uma mercadoria.24

    As duas partes do quiasmo no so simtricas: a indagao como

    objeto de diverso (Mahagonny) uma mercadoria; j a diverso comoum objeto de indagao (Mahagonny) no o . Apoiado pelo aparatoteatral, o teatro pico permanece o mesmo, porm dentro de um corpoestrangeiro.25 Entretanto, a autonomia de mercado entendida comoheteronmica. O objetivo do teatro pico desenvolver um objeto deinstruo fora dos meios de entretenimento, e converter certas insti-tuies de entretenimento em rgos de publicidade.26 Mesmo que oprocesso seja mantido, Brecht torna a antiga defesa da poesia ensinare deleitar mais fundamentalmente em uma escolha de prioridades:

    Vergngungstheater oder Lehrtheater? (Teatro para a diverso outeatro para o aprendizado?)27.

    Adorno levanta uma objeo, muito bsica em sua essncia e queretorna crtica de Hegel, a essa orientao, na introduo s suas confe-rncias sobre esttica, sobre a possibilidade de defender a arte por meiode seus fins. De uma perspectiva mais abstrata, a escolha que Brechtimpe no uma escolha em absoluto: ambos os teatros, para a diversoe para o aprendizado, so teatros paraalgo, ou seja, ambos devem ser

    julgados por sua eficcia como meios para outros fins. Se a obra de arteno deve ter seu fim e seu objetivo em si mesma, mas deve, por outrolado, ser avaliada como um meio para um fim outro, ento o foco de

    BRECHT, Bertolt. Das moderne Theater ist das epische Theater. In: Schriften zumTheater. Berlin: Suhrkamp, , p. .

    BRECHT, Bertolt . Das moderne Theater ist das epische Theater, p. , p. e .

    BRECHT, Bertolt . Das moderne Theater ist das epische Theater, p. .

    BRECHT, Bertolt. Literarisierung des Theaters: Anmerkungen zur Dreigrosche-noper. In: Schriften zum Theater, p. .

    BRECHT, Bertolt. Das moderne Theater ist das epische Theater, p. .

    BRECHT, Bertolt. Schriften zum Theater, p. -.

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    julgamento adequado muda da obra de arte para, ao mesmo tempo, o fimao qual ela alega servir e para a eficcia de seu statuscomo um meio28.Para a crtica de Hegel, no importa se os fins pretendidos so elevadosou vulgares: sua lista improvisada nomeia instruo, purificao,progresso, ganho financeiro, batalha por fama e honra. Mais tarde,

    Hegel acrescentar passatempos e diverses superficiais e agitaopoltica como extras29. A questo que nenhum dos momentos o dostatusda obra de arte como um meio (essencial ou arbitrrio?) e o dostatusdos fins para os quais a arte se subordina (desejveis ou indesej-veis?) so autoevidentes. Isso se aplica tambm aos atuais traficantesde empatia, aos modeladores de subjetividade de araque, aos benfeitorescomunitrios e aos guardies da civilidade, da mesma forma que se apli-cava ao teatro radical de outrora.

    No incio da dcada de 1950, Adorno suspeita dos fins com os quaisBrecht est engajado. De modo mais devastador, Adorno aponta para aimplausibilidade da obra de arte como um meio. Para colocar em prticao que se pretende atingir, por meio de imagens, o mago do capita-lismo , o teatro brechtiano recorreu aos aparatos tcnicos disponveisao drama como meio30. Mas, sob a perspectiva da verdade proposicional,da doutrina revolucionria que a obra de arte deve conter, esses aparatostcnicos so distores, e aqui Adorno no apenas discorda de Brecht,mas demonstra Brecht necessariamente discordando de si mesmo. Em

    A Santa Joana dos Matadouros, por exemplo, Brecht de fato requer umcerto nvel de coincidncia ao condensar todo um conjunto de contradi-es sobre a figura de Joana. Mas, que uma liderana de greve apoiadapor um partido devesse confiar uma tarefa decisiva a um no-membro, mesmo com a maior quantidade possvel de licena potica, algo toimpensvel quanto a ideia de que, pelo fracasso daquele indivduo, todaa greve fracassaria.31A questo aqui no a de que Brecht deveria terescrito um tratado sobre a ao revolucionria em vez de uma pea, mas

    a de que uma pea no pode ser, ao mesmo tempo, um tratado sobre aao revolucionria ou no pode ser uma boa pea. De fato, a prprianecessidade de que Santa Joanaseja uma pea falsifica o tratado que elatambm afirma ser. A ostensiva tese presente na pea que promoveratos individuais de bondade um substituto compensatrio para a ao

    HEGEL, G.W.F. Vorlesungen ber die sthetik I.Berlin: Suhrkamp, , p. .

    HEGEL,sthetik I, p. ; HEGEL,sthetik III, p. .

    ADORNO, Theodor W. Engagement. Noten zur Literatur. Frankfurt: Suhrkamp,, p. .

    ADORNO, Theodor W. Engagement. Noten zur Literatur. Frankfurt: Suhrkamp,, p. .

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    coletiva subvertida pelo fato de que tudo depende, necessariamente,pois se trata de uma pea, do sucesso ou fracasso dos atos individuaisde bondade realizados por Joana. Em vez disso, como de se esperar,bruscamente refutando as reivindicaes de Brecht, Adorno desdobra-asdelicadamente sobre aquilo ao qual procuram se opor, efetivamente

    alinhando a dramaturgia de Brecht ao esteticismo formal, pois o prximomovimento consiste em insistir que o didatismo de Brecht , na verdade,mais um princpio formal do que um princpio poltico. A tcnica redu-cionista de Brecht seria legtima apenas no campo da arte pela arte, oqual sua verso de engajamento condena, como o faz Luculo.32

    O brilhantismo da interveno posterior de Schwarz reside emobservar que essa crtica devastadora reivindicao de Brecht poruma eficcia didtica, mas no pea qual essa reivindicao feita.

    A perda no to grande quanto pode parecer, afinal, lembra Schwarz,as lies brechtianas so de alcance modesto, e no bvio que elaspermaneam hoje frente dos desenvolvimentos histricos33. Assim,diversamente do proclamado, a verdade nas peas no estaria nos ensi-namentos transmitidos, nos teoremas sobre a luta de classes, mas nadinmica objetiva do conjunto (...).34 Isso no quer dizer que as peasdo dramaturgo no tenham contedo cognitivo ou fora poltica, massim que seus contedos e polticas so mediados pela natureza auto-le-gisladora da obra autnoma. Como corolrio, quando a obra titubeia

    enquanto obra, como ocorre no terceiro ato de Me Coragem e seus filhos,os contedos e polticas ostensivos presentes na pea se dispersam aovento, como tantas outras boas intenes.

    A releitura reveladora deA Santa Joana dos Matadouros empreen-dida por Schwarz, que de fato traz tona essa dinmica objetiva, mereceateno cuidadosa por si s, mas um aspecto aqui particularmenteimportante. Confiando em seu talento excepcional para o pastiche,[Brecht] apresentou as vicissitudes da luta de classe e as maquinaes

    do cartel dos produtos enlatados [] em versos que imitam Schiller,Hlderlin, o segundo Fausto, a poesia expressionista ou as tragdiasgregas (percebidas como alems por honoris causa). EmA cano dodestino de Hyperion, de Hlderlin, por exemplo, a qual Schwarz destacacomo fulcral para o sistema de citao da pea, o destino humano figu-rativizado como errncia heroica: vagar sem consolo, Como gua do

    ADORNO, Theodor W. Engagement. Noten zur Literatur. Frankfurt: Suhrkamp,

    , p.

    SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht, p. .

    SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht, p. .

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    penhasco / pelo penhasco arremessada. Em Santa Joana, so os preosdas aes em declnio que so Lanadas como gua, de penhasco empenhasco.35

    Em seus contornos mais simples, o pastiche modernista, enquantocomentrio recproco entre o passado heroico e o presente prosaico,

    dificilmente se renova com Brecht. Em termos de virtuosismo osten-sivo, o episdio dos Touros do sol, em Ulisses, j tinha desenvolvidoessa modalidade de modo bem mais aprofundado do que Brecht. Porm,a diferena brechtiana profunda, perpassando em Schwarz o rtulocircunspecto de a atualidade do conjunto,36 outrora conhecido comoHistria, ou o que, em termos mais abstratos, corresponde identidadeda identidade e diferena hegeliana. Em outras palavras, o peculiar dafisgada brechtiana no reside na diferena entre a fonte clssica e o mate-

    rial moderno, mas em sua identidade, que no est apenas no projeto doartista. A brutalidade mesquinha do homem de negcios o ponto finalda batalha romntica, no a sua negao: algo [do rei dos frigorficos]Bocarra j existia no Fausto.37

    Mas no h lio nessa identidade. No h final exterior ao qual aimagem dramtica est subordinada. Em vez disso, os dois momentosde Fausto e Bocarra esto postulados como uma identidade na imagemdramtica, e isso tudo. O que apresentado no uma doutrina, massim uma figura: Fausto como Bocarra, uma ideia potica (a qual

    tambm, como se ver, uma ideia narrativa). Dessa figura, nada apren-demos sobre o modo como o capitalismo funciona. Ao contrrio, Brechtabre uma linha de questionamento por meio de uma configurao senso-rial. A ideia brechtiana uma questo de postular contedos disponveisde um modo particular: uma ao familiar (digamos) como produto demotivos que se alternam em vez de natureza humana; ou brutalidadeburguesa como algo contguo revoluo burguesa.

    Em uma srie de listas conhecidas, Brecht contrasta forma tradi-

    cional (dramatische) e forma pica (epische)38

    . Algumas das categoriasso primordialmente formais (a sequncia dos eventos linear ou curvi-lnea?), enquanto outras so mais obviamente ideolgicas (as pessoasso imutveis ou so mutveis e esto mudando?). Mas os engajamentos

    BRECHT, Bertolt. Die heilige Johanna der Schlachthfe. Werke, vol. , p. . A ob-servao extrada de SCHWARZ, Altos e baixos da atualidade de Brecht, ensaioque articula, em leitura atenta,A cano do dest ino de HyperioneA Santa Joanados Matadouros.

    SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht, p. .

    SCHWARZ, Roberto. Altos e baixos da atualidade de Brecht, p. .

    BRECHT, Bertolt. Das moderne Theater ist das epische Theater, p. -.

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    ideolgicos, que so de fato cruciais, no podem ser considerados lies.Mesmo se a ideia do pico digamos, a natureza humana no dada pudesse ser demonstrada como correta, tudo que uma pea podedemonstrar sua plausibilidade: uma categoria aristotlica, no umacategoria particularmente brechtiana, a qual o dramaturgo preserva

    de modo enciumado emoldurando sua prpria implausibilidade comoimplausvel. Santa Joanaobteve sucesso precisamente porque no rompefundamentalmente com as normas da arte herdadas dos primeirosromnticos. A pea critica essas normas, no h dvida, mas o faz comopoesia: de fato, a obra satisfaz enfaticamente a exigncia de FriedrichSchlegel de que toda crtica de poesia seja, ela mesma, poesia em todosos aspectos e, igualmente, uma obra de arte viva e vibrante.39

    Nada disso, e isso um ponto a se enfatizar, embota o vis

    materialista da crtica de Brecht. O sentido produzido por meio deuma crtica de poesia que tambm potica, mas isso no significa queo sentido fica restrito ao campo da poesia. O sentido profundamentecompatvel com o conjunto de lies possveis de serem extradas, liesas quais Brecht est impedido de apresentar sem distoro incapacitanteresultante das limitaes da forma. A crtica de Brecht a Hlderlin eGoethe est alinhada crtica de Marx a Hegel ou mesmo crtica deAdorno a Heidegger: ao introduzir contedo concreto novamente emuma linguagem abstrata, Brecht postula uma identidade entre o vulgar, o

    contedo social do dia a dia e o pensamento sublime e abstrato. O sublimerisco existencial de um mundo universalmente sem garantias se torna orisco de perder dinheiro. (Para outros, seu ponto final, o Desconhecidona cano de Hlderlin, simplesmente o desemprego). A ideia potica deBrecht a manipulao mesquinha do mercado financeiro (mesquinhaem suas motivaes e nos danos que causa) narrada na linguagem dodestino humano no requer preciso particular em sua representaodas operaes do mercado financeiro, e inteiramente produzida, em

    vez de impedida, pela condensao dramtica. Quando Santa Joana considerada, de modo perverso, como sendo primeiramente sobre poesiae no sobre capitalismo (ou sobre organizao revolucionria), a peanada perde de sua pegada marxista, pois a base que une Fausto e Bocarra a identidade histrica (a unidade de processo de Schwarz) de umaclasse; e uma vez que reconheamos essa identidade, o enredo pode servisto, em si, como construdo sobre outra narrativa na forma de umaperipcia marxiana: Sem herosmo, como a sociedade burguesa, estano mais requer herosmo, sacrifcio, terror, guerra civil e a subjugao

    SCHLEGEL, Friedrich. Athenums-Fragment ; in: Fragmente der Frhromantik.

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    das naes para vir a existir.40A burguesia emergiu em sangue e glria,mas teve rapidamente que reprimir suas grandes ideias, e qualquer umque nelas ainda pensasse teve que se submeter aos negcios, ao ganhardinheiro.

    O pastiche novamente, bastante diferente do pastiche que

    praticamente um procedimento padro modernista, e tambm em tudodiferente da reanimao das formas mortas praticada pelo ps-moder-nismo funciona de modo diferente emA pera dos trs vintns, na qualo comportamento de classe tpico transmitido por meio das classes. Oexemplo bvio a indstria burguesa transmitida pelos desfavorecidos:a indstria da mendicncia de Peachum e, mais importante, o O que o roubo de um banco diante da fundao de um banco?41de Mac. Maso exemplo sobre o qual Brecht parece ter despendido maior energia,

    ao menos se forem seguidas suas dicas para atores, o do amor, ou,mais apropriadamente, o da ideologia do amor, daquele desacreditadomaldito texto do consegue sentir meu corao bater.42Quando Mac,o notrio criminoso, se casa com Polly, filha do agente de mendicncia esua segunda pretendente, em um estbulo, e em cujo casamento o buffet servido pelos membros de sua gangue, os elementos esto dispostospara a pardia desbragada. E, de fato, recebemos algo disso uma pontasobre a distino entre Chippendale e Luz XIV, normalmente omitidanas produes contemporneas da pea, pura bufonaria ao estilo dos

    irmos Marx43. Porm a ironia no to direta quanto parece.

    Os atores devem evitar representar esses bandidos como umagangue daqueles indivduos patticos com lenos vermelhosao redor de seus pescoos que animam feiras, e com os quaisnenhuma pessoa respeitvel tomaria um copo de cerveja. Elesso homens naturalmente dignos: um pouco corpulentos, mas emtudo ( parte suas profisses) sociveis.44

    O espetculo de criminosos colocados na situao de um casamento

    burgus em um estbulo absurdo no porque os criminosos so bufes,

    mas porque so, parte suas profisses, burgueses (Bocarra, o empresrio

    proeminente deASanta Joana dos Matadouros, igualmente parte

    MARX, Karl. Der achtzehnte Brumaire des Louis Napoleon. MARX, Karl and Frie-drich Engels, Werke, v. . Berlin: Dietz, , p. .

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

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    sua profisso socivel). Mesmo a bufonaria genuna est adequada aesse modelo. A ponta risvel normalmente omitida, que foi mencionadaacima, ocorre s custas do Capito Macheath, o desfavorecido preten-sioso, que no sabe a diferena entre Chipendalle e Luiz XIV, mas fingesab-lo. Aqui a bufonaria parece operar na direo esperada. Contudo,

    os comparsas de Macheath, que sabem qual a diferena, permitem-se serem corrigidos. Assim, a ignorncia de Mac um luxo, no umaprivao: ele no um ignorante, mas um inculto.

    Desse modo, quando Mac, no momento em que est montandosua casa em um celeiro com um relgio Chipendalle roubado, entoa,momentos mais tarde, Todo comeo difcil, ele no est citando ofamoso verso de Goethe em Hermann und Dorothea, mas repetindo oclich no qual esse verso se tornou. Brecht, por outro lado, est citando

    Goethe. O verso de Goethe continua: Todo comeo difcil; mais difcilainda comear uma famlia essa ltima palavra traduzindo Wirts-chaft, mais comumente empresa ou negcio. Essa cena toda, comseu cenrio semi-rstico no meio de Londres, um comentrio sobreHermann und Dorothea: com sua m reputao, na posio da refugiadaDorothea, ele est repetindo as palavras do pai respeitvel (e, de fato,est fazendo uma combinao prtica), enquanto Polly, no centro doconflito entre a famlia como empresa e a famlia como unio amorosa,quem ocupa a posio do pai, e quem, de fato, incorpora os impulsos

    contraditrios personificados no Wirtschaft de Goethe:

    absolutamente desejvel que Polly Peachum impressione aplateia como uma jovem virtuosa e agradvel. Se, na segundacena, ela demonstrou seu amor inteiramente desinteressado,agora ela exibe essa percepo prtica sem a qual a primeira cenateria resultado em mera frivolidade.45

    As mltiplas implicaes dessa pardia poderiam ser buscadasnos recnditos mais profundos da cena, mas, nesse momento, o que importante que, enquanto o tema da cena , claramente, a questo declasse especialmente a substncia econmica do sentimento burgus , somente sobre classe por ser, primeiramente, sobre poesia.

    Por certo, h muito mais para o teatro do que para a poesia. Oteatro pico gestual, escreveu Benjamin. Em que medida ele pode

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

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    ser potico no sentido tradicional uma questo parte.46Mas o que o gesto brechtiano? Para Benjamin, trata-se de uma questo de inter-rupo, de enquadramento. Benjamin chega a uma concluso apropriadapor meio da seguinte passagem:

    Em suma, a ao interrompida. Podemos nos aprofundar aquie considerar que a interrupo um dos procedimentos funda-mentais de toda articulao formal. Ela atinge muito mais do quea esfera da arte. Trata-se, para tomar apenas um aspecto, da baseda citao. Citar um texto implica em romper com os laos de seucontexto. Faz sentido, portanto, que o teatro pico, que baseadona interrupo, seja citvel em um sentido especfico. A capaci-dade de citao de seus textos no tem nada de extraordinrio. No

    que concerne ao gestual que esse teatro utiliza, tem-se aqui umaquesto de outra ordem.Tornar os gestos citveis um dos feitos fundamentais do teatropico.47

    A questo da citao, longe de ser uma questo de outra ordemem relao literariedade tradicional de Brecht, , na verdade, a tradioda literariedade do dramaturgo. A citao o girar e rodar da repetiodo penhasco a penhasco de Hlderlin, a repetio irnica de Todo

    comeo difcil, de Goethe precisamente gestual. De fato, comose verificou, esse ltimo gesto potico indissocivel de um conjuntode outros gestos: aqueles de Polly, Mac e dos subordinados de Mac. Deonde o teatro pico retira seus gestos?, pergunta Benjamin. Os gestosse encontram na realidade.48Certamente correto, mas no muito til.De qual ordem de realidade o teatro pico retira seus gestos? Brechttorna os gestos citveis precisamente ao cit-los, o que constitui outromodo de dizer que eles j so citveis. A ordem de onde so retirados

    uma ordem textual. O maldito texto do consegue sentir meu coraobater49pode se referir ao Liederromntico, do mesmo modo que Todocomeo difcil se refere a Goethe. Contudo, tambm pertence igual-mente ao modo como os amantes agem um com o outro, como a repetio

    BENJAMIN, Walter. Was ist das epische Theater? [primeira verso]. In: Versucheber Brecht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, , p. .

    BENJAMIN, Walter. Was ist das epische Theater? [segunda verso]. In: Versucheber Brecht, p. -.

    BENJAMIN, Walter. Studien zur Theorie des epischen Theaters. In: Versuche berBrecht, p. .

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

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    de chaves pertence ao modo como as pessoas agem em um casamento.Esses so dois tipos diferentes de texto o gesto em si deve ser expe-rienciado como espontneo, enquanto o gesto literrio parte de umcampo esttico que se supera a si mesmo , porm so ambos textos, ouno seriam citveis. Como as notas para atores deixam claro, elementos

    estritamente gestuais so uma questo de ideologia corporificada, umroteiro social: Esforos para no escorregar em uma superfcie escorre-gadia se tornam um gesto social to logo escorregar signifique perder orosto.50O procedimento adotado pelo pastiche brechtiano e pela atuaogestual o mesmo, qual seja, a citao ou o enquadramento de um textopr-existente, de modo a criar uma unidade de sentido.

    No que diz respeito msica, a questo do gesto adquire uma novadensidade. Em Do carter gestual da msica, que precede os primeiros

    comentrios sobre o gesto publicados por Brecht, Kurt Weill declarouque, hoje, o compositor no deve mais abordar seu texto a partir deuma posio de prazer sensual.51 Aqui, Weill est discutindo critica-mente o problema brechtiano do entretenimento-mercadoria. Contudo,o que ali proposto , ao mesmo tempo, mais radical e menos pudicodo que sua afirmao sugere. O alvo da crtica de Weill o teatro dapoca passada, que era escrito para o prazer sensual. Sua intenoera excitar, irritar, despertar e aborrecer (kitzeln, erregen, aufpeitschen,umwerfen) o espectador.52Logo, irritar e aborrecer esto includos

    sob a rubrica do prazer sensual. O que Weill probe ao que ele deno-mina msica gestual provocar qualquer tipo de estado emocional noespectador. Isso no exatamente uma surpresa, visto que est bastantealinhado com os antemas de Brecht lanados sobre efeitos teatraiscomo a empatia coagida.53

    Porm, como vimos, a gerao de estados emocionais nos ouvintes parte do que a msica. Weill parece ter se tornado vtima de si mesmo:o que a msica proibida de fazer precisamente o que a distingue das

    outras artes. H, de fato, a soluo modernista paradigmtica: uma explo-rao imanente da msica como um medium, possvel graas base docampo restrito bourdieusiano. Mas essa linha de fuga precisamente oque Weill procura superar:

    BRECHT. ber gestische Musik. In: Schriften zum Theater, p. .

    WEILL, Kurt. ber den gestischen Charakter der Musik. In: DREW, David (org.).

    Kurt Weill: Ausgewhlte Schrif ten. Frankfurt: Suhrkamp, , p. .

    ber den gestischen Charakter der Musik, p. .

    Ver BRECHT, Schriften zum Theater, p. -.

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    O desenvolvimento recente da msica tem sido predominante-mente esttico: emancipao em relao ao sculo XIX, luta contraas influncias extramusicais (msica de programa, simbolismo,realismo), retorno msica absoluta. [] Hoje estamos um passo frente. Uma separao clara est ocorrendo entre aqueles msicos

    que [], como em um clube privado, trabalham na soluo deproblemas estticos, e aqueles msicos que vo se empenhar emembalar qualquer audincia.54

    Mesmo que o momento do desenvolvimento imanente da msicaseja visto como um passo frente, dois imperativos contrrios so suge-ridos de imediato: embalar uma audincia para alm do restrito campoespecializado dos msicos e experts; e produzir sentidos para alm

    daqueles que somente uma audincia restrita valoriza, o que significacriar sentidos que no so puramente msica imanente. Esses dois impe-rativos parecem alinhados, e ambos tm em comum certo apelo popular.Porm, na verdade, como do conhecimento de Weill, eles esto emprofundo conflito. Em uma sociedade de mercado, o primeiro imperativos pode ser concretizado colocando-se o mercado em risco (qualqueraudincia). Quanto ao segundo imperativo, o de produzir sentidos pol-ticos do tipo preconizado por Weill, tal assero indiferente para omercado; esse imperativo no , na verdade, comercializvel, uma vez

    que sentidos que podem ser vendidos sentidos para os quais existedemanda no so sentidos em absoluto, mas mercadorias. Um sentidopoltico que satisfaz uma demanda no um sentido, mas um produtocomprvel de identificao social, como uma insgnia.

    Qual a soluo de Weill? Seu prprio comentrio em Do cartergestural da msica, ou em outros textos, no particularmente til aesse respeito. Contudo, o exerccio de Weill completamente claro. (Noque se segue, continuaremos a lidar quase que exclusivamente com a

    msica, o texto e os escritos tericos de Brecht e Weill os dois primeirosse fazem necessrios, mas, de modo algum, so aspectos suficientes paraa performanceoperstica. Para uma descrio mais completa, vale a penamencionar que a produo atual de Berliner Ensemble paraA pera dostrs vintns, dirigida por Robert Wilson a qual foi apresentada em SoPaulo em novembro de 2012 , compreende os procedimentos de desiden-tificao sublinhados aqui com tremenda fora, principalmente no que

    WEILL, Kurt. Verschiebungen in der musikalischen Produktion. In: HINTEN,Stephen e SCHEBERA, Jrgen (orgs.). Kurt Weill: Musik und Theater: GesammelteSchriften, mit einer Auswahl von Gesprchen und Interviews. Berlin: Henschelver-lag, , p. .

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    diz respeito direo musical, de modo prximo ao esprito das tcnicasde Brecht e Weill que estamos discutindo.) A Cano dos canhes, deApera dos trs vintns, uma variao em marcha de uma msica de barpara se cantar junto, a qual pode ser genericamente classificada comouma balada de quartel. Como toda boa msica para se cantar junto,

    ela pode muito bem embalar um ouvinte que esteja familiarizado coma cano, de modo que ele deseje cantar junto, e a razo pela qual taltipo de msica tem esse poder algo que talvez um dia a cincia possaexplicar. Entretanto, alguns ouvintes podem no se sentir to motivados,e o fracasso da motivao , em princpio, passvel de explicao. Mas,para a produo de sentido, esse efeito ou sua falha so irrelevantes. Abalada de quartel a expresso de Kipling se torna um feito notvelnas mos de Weill, uma citao. A Cano dos canhes enquadra o

    gesto e, ao faz-lo, cria um sentido, que o de apresentar a camaradagemmilitar como extremamente repugnante.O texto de Brecht tambm uma citao, um pastiche de cantigas

    em marcha de Kipling, como Screw Guns:

    For you all love the screw-guns the screw-guns they all love you!So when we call round with a few guns,o course you know what to do hoo! hoo!

    Jest send your Chief an surrender its worse if you fights or you runs:You can go where you please,you can skid up the trees,but you dont get away from the guns.55

    No texto de Brecht, racismo e genocdio passam do subtexto parao texto de uma forma deliberadamente nada sutil. No papel, acontece de

    forma mais branda, mas, no empolgante contexto de refeitrio de Weill, espetacular.

    KIPLING, Rudyard. Barrack-Room Ballads and Other Verses. Leipzig: Heinemannand Balestier, , p. . [N.T.] Traduo literal: Por todos vocs amarem os ca-nhes - / os canhes todos amam a vocs! / Ento quando os visitarmos com algu-mas armas, / claro que vocs sabem o que fazer hoo! hoo! / Apenas enviem seulder e se rendam - / pior se vocs lutarem ou correrem: / Vocs podem ir aondequiserem, / vocs podem se embrenhar / mas vocs no podem se ver longe dasarmas.

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    The troops live underThe cannons thunderFrom cape to Cooch Behar.And if it rained one day,And they had chanced to stray

    Across a different race,Brown or pale of face,They made them, if they liked,Into their beefsteak tartare.56

    Qual a fonte da horripilncia da Cano dos canhes? Comotantas outras msicas emA pera dos trs vintns, a marcao do tempo j uma citao: Foxtrote-Tempo.57(As anlises musicais que se seguem,

    embora no sejam exaustivas, presumem certa familiaridade comtermos musicais bsicos. Com isso, no se pretende desqualificar leitoresque no tenham tal familiaridade. Ao contrrio, uma ferramenta parase argumentar sobre msica e, nesse caso, sobre citao musical e alie-nao musical, por meio do texto. O argumento pode ser melhor provadoou refutado, igualmente para msicos e no-msicos, pela escuta atenta performanceda cano que, como na gravao original de Lewis Ruth-Band, est afinada com o esprito das coordernadas de Brecht e Weill.A anlise musical somente fornece um ndice para tal escuta atenta).

    O ritmo bsico um foxtrote (ritmo quaternrio com nfase no contra-tempo) e a parte introdutria do trompete desenvolve um motivo dejazz,culminando no clich do compasso de 6 do ragtime. Mas o suingue domotivo inicial escrito como uma colcheia pontuada, seguida de umasemicolcheia, e para ser tocada como est escrita, portanto sacodeem vez de suingar. A linha atonal de saxofone lembra a chamadae a resposta do jazz exceto quando se chega a um tempo adiantadoque interrompe a linha de trompete, em vez de repeti-la e refor-la.

    Os compassos de introduo no conduzem tonalidade do verso, aocontrrio, no possuem nenhum centro tonal ou direo bvia. A linhameldica angular da introduo caracterstica que se torna clara quando,

    WEILL, Kurt e BRECHT, Bertolt, Die Dreigroschenoper [Score]. Vienna: UniversalEdition, , p. -. O primeiro dstico emprestado da traduo de Man-nheim e Willet. [N.T.] Traduo literal: As tropas vivem embaixo / Do trovoar doscanhes / Do Cabo a Cooch Behar. / E se chovesse algum dia, / E eles tivessem asorte de vagar / Em meio a uma diferente raa, / De rosto plido ou marrom / Elesos transformariam, se desejassem / No seu bife tr taro.

    WEILL, Kurt and Bertolt Brecht, Die Dreigroschenoper[Score], p. -. Die Drei-groschenband [Lewis Ruth-Band], Die Dreigroschenoper: The Original Recor-dings.Teldec/Warner, .

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    na primeira repetio da ideia inicial, o intervalo de quinta comprimido

    em uma quarta aumentada no terceiro compasso no para ser subordi-

    nada dana.Enquanto isso, a instrumentao em especial, o uso dosmetais graves enfatiza a relao entre a msica popular de dana e amarcha, uma conexo que coopera com o significado da cano. Quando

    a cano aporta em um centro tonal (compasso 7), o movimento harm-nico subjacente se torna convencional, atado a um ciclo de quartas (ver,especialmente, os compassos 14 a 16), que pode ser intudo ou anali-sado. Mas essa estrutura desfamiliarizada quando se evitam trades eos movimentos que elas implicam, quase que completamente: a super-fcie harmnica consiste em conjuntos pareados de quintas justapostasnos tempos fortes e nos contratempos. O resultado tambm desfami-liarizado os movimentos so convencionais, mas agora roubados de

    qualquer iluso de necessidade e vagamente orientado, o que enfa-tizado pela melodia, em grande parte, pentatnica. A cano torna-sediatnica e tonal somente com o refro em marcha, que, na srie demnimas descendentes (cape to Cooch Behar), evidencia um acordemenor (F# menor) e leva sua dominante o primeiro acorde conven-cionalmente destacado na cano. Essa a msica de bar ou de umaestao de recrutamento. Mas a voz central, um abstmio ou um paci-fista, ainda coloca esse tom em dvida. A dominante dura muito tempo,comprimindo-se em um acorde diminudo em vez de progredir. Por fim,

    medida do barbarismo da letra, chega-se a uma cadncia que se centraem outra dominante evidente, o que acontece no compasso 34, no clmaxda cano (o beefsteak antes de tartare). Mas a cadncia implcita duas vezes falsa, enganosa tanto sobre para onde vai, quanto sobre deonde vem. Deveria levar a L menor, mas, em vez disso, leva a R menor.E, enquanto a melodia em They made them, if they liked (compasso 32)sugere que estamos, basicamente, em F# menor, o compasso 33 j estem R menor. Portanto, a falsa cadncia no apenas falsa, mas, em vez

    de levar a algum lugar surpreendente, leva exatamente a lugar nenhum.O efeito geral, se olharmos de perto, a remoo de todos os sentidos denaturalidade das estruturas convencionais subjacentes. A cano seguemuito de perto as formas convencionais foxtrote, marcha, balada dequartel; ciclo de quartas, melodia altamente nachsingbare58, cadnciaclimtica para emprestar seus efeitos, enquanto as desnaturalizapor meios formais que no so efeitos, exceto medida que tais efeitosvisam o efeito de desidentificao, expresso brechtiana diversamente

    [N.T.] Em alemo, o termo nachsingbareest relacionado ideia de uma msicaque pode ser facilmente cantada.

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    traduzida, que, nos termos do presente artigo, no estritamente umefeito, mas sim um conjunto de tcnicas para evitar ou formatar efeitose submet-los a interpretaes. Tudo isso simples de entender comoimanente na cano, o que torna difcil de imaginar que qualquer ouvintenegue que o produto dessas distores formais no seja profundamente

    assustador.Hoje, o compositor no deve mais abordar seu texto a partir de

    uma posio de prazer sensual.59Se, por um instante, imaginssemoscolocar um hino de guerra em um filme patritico sancionado peloEstado, a primeira coisa que o compositor teria em mente seria produzirum efeito de cano para se cantar junto, um esprit de corps identifi-catrio, na maior quantidade possvel de pessoas. Se imaginssemos aconstruo de um filme comercial, a primeira coisa que o compositor

    teria em mente seria a mesma j referida, mas por uma razo diferente:apelar maior quantidade possvel de pessoas que desejem experienciarum esprit de corpsidentificatrio. As verses de Brecht e Weill funcionamde modo inteiramente diferente, visto que no necessrio sentir a forada msica para cantar junto (ainda que se precise entender seu sistemade citao, se no, sua especificidade) para entender o sentido de Weill,que o de fundir a brutalidade da lrica de Brecht com a coeso social doesprit de corpsmilitar, o que no to diferente do significado da danade salo. Ao faz-lo, impe-se uma interpretao.

    Porm, haver chances de se sentir sua fora: a Cano doscanhes permanece, parte isso tudo, um estimulante. Isso irre-levante para o sentido dessa msica como uma obra de arte, mas estlonge de s-lo para o sucesso de Cano dos canhes como um entrete-nimento popular. Como diz Brecht, o teatro permanence teatro, mesmoquando teatro pedagcio; e, na medida que bom teatro, diverso.60Se Cano dos canhes falhasse como estimulante, isso no implicariamudana de seu sentido, mas tambmA pera dos trs vintnsno teria

    sido traduzida para dezoito lnguas e encenada mais de 10 mil vezes noscinco anos anteriores emergncia do nazismo, e nem se falaria delaaqui hoje61. At a cena do estbulo, a plateia parecia fria e aptica, comose previamente convencida de que aquilo resultaria em um fiasco. Ento,depois da Cano dos canhes, um brado inacreditvel se fez ouvir, e

    WEILL, Kurt. ber den gestischen Charakter der Musik. In: DREW, David (org.).

    Kurt Weill: Ausgewhlte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, , p. .

    BRECHT. Vergngungstheater oder Lehrtheater? In: Schriften zum Theater, p. .

    Ver BRECHT, Werke, v. , p. .

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    dali para frente estava maravilhosamente claro que o pblico estavaconosco.62

    Que no haja pera aqui!,63exige Mac em uma obra chamada depera, uma palavra que se pretende to irnica quanto os trs vintnsque a sucede64. O gesto ecoado (mas no citado) cerca de vinte anos

    mais tarde, no Rio de Janeiro, pelos compositores Janet de Almeida eHaroldo Barbosa:

    Pra que discutir com madame

    Madame diz que a raa no melhora

    Que a vida piora por causa do sambaMadame diz que o samba tem pecadoQue o samba, coitado, devia acabar

    Madame diz que o samba tem cachaaMistura de raa, mistura de corMadame diz que o samba democrata msica barata sem nenhum valor

    Vamos acabar com o sambaMadame no gosta que ningum sambeVive dizendo que samba vexamePra que discutir com Madame?

    Vamos acabar com o sambaMadame no gosta que ningum sambeVive dizendo que samba vexame

    Pra que discutir com Madame?

    Vamos acabar com o sambaMadame no gosta que ningum sambeVive dizendo que samba vexamePra que discutir com Madame?

    LENYA, Lotte. That Was a Time. Theater Arts, maio de , p. .

    BRECHT, Bertolt. Die Dreigroschenoper. Werke, v. , p. .

    Ver, como exemplo, o ensaio Commitment to Opera, de Weill. In: WEILL, Kurt.Bekenntnis zur Oper. In:Ausgewhlte Schriften, p. -.

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    Dui run di...

    No carnaval que vem tambm concorroMeu bloco de morro vai cantar pera

    E na avenida entre mil apertoVocs vo ver gente cantando concerto

    Madame tem um parafuso a menosS fala veneno, meu Deus, que horrorO samba brasileiro, democrataBrasileiro na batata que tem valor.65

    O elenco de personagens parece direto: Madame; o protagonista,que mora em um bairro da classe operria, pertence a uma escola desamba e presumivelmente trabalha para Madame; e a escola de samba,uma metonmia para entre mil aperto no Carnaval, em si uma meto-nmia para o povo brasileiro. Pesquisando-se de modo mais aprofundado,descobre-se que Madame era uma pessoa real, a conservadora crticacultural Magdala da Gama de Oliveira, tambm conhecida comoMaggy, que tinha colunas importantes no rdio e no jornal Dirio deNotcias e que, recentemente, foi identificada como Madame em um

    ALMEIDA, Janet de e BARBOSA, Haroldo. Pra que discutir com madame? Conti-nental, . A ordem da letra, como foi apresentada, segue GILBERTO, Joo. JooGilberto Live in Montreux. Elektra/Musician, . Devo muitos agradecimentosa Marcelo Pretto por desenterrar a gravao de . Alm das sensibilidades deperformancee arranjo, marcadamente da dcada de , o que mais impressio-nante, na gravao original de Janet de Almeida, que a citao de Tchaikovsky um pouco mais abstrata, sugerindo que Joo, acompanhando Tchaikovsky de

    perto, deliberadamente enfatizou a citao. Tambm na gravao de , a citaosegue gente cantando concerto, em vez de vir antes dessa frase. Liricamente, uma diferena trivial , mas vale a pena pensar que o interldio usado para modu-lar. Na verso de Janet de Almeida, o interldio e a modulao so utilizados paraintroduzir uma breve coda no final da cano. Na performancede Joo Gilberto,o interldio e a modulao so utilizados na prpria forma, de tal maneira que acano, indo da primeira para a segunda parte, de um lado para o outro, modulada tonalidade de R maior para a de Mi Maior. (Aqui devo agradecer Marcelo Prettonovamente por pontuar a importncia desse fato). Na verso de Janet de Almeida,em outras palavras, a piscadela para a burguesia uma reflexo tardia, enquanto,na gravao de Joo Gilberto, trazida para a prpria estrutura da cano. Hrazes puramente musicais para essa alterao feita por Joo Gilberto, mas elatambm pode ser entendida como um comentrio sobre a gravao de Janet deAlmeida.

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    ensaio do jornalista e compositor Fernando Lobo66. Sob uma perspec-tiva histrica, a posio do protagonista se torna mais complicada: eleainda pertence classe trabalhadora, porm o conflito narrativo entreele e Madame apenas metaforicamente uma luta de classe, visto que oconflito cultural que se d em torno do protagonista ocorre inteiramente

    entre jornalistas: no apenas Maggy e Fernando Lobo, mas tambmJanet de Almeida e Haroldo Barbosa eram jornalistas, e no caso dos trsltimos, tambm compositores.

    Por mais sugestivo que seja, esse sentido histrico essencial-mente isolado. Trata-se de um aspecto no desprovido de interesse queum pouco de pesquisa nos permite observar. sintomtico de um campoideolgico reconhecvel. Mas no se tentar aqui inscrever esse sentidohistrico em um campo normativo, e at onde vai o sentido pblico da

    cano, estamos de volta onde iniciamos.Ou poderamos ficar apenas com o pequeno interldio sem pala-vras antes da penltima estrofe, o qual uma parfrase muito prximados compassos 20 a 24 do Concerto para piano n 1de Tchaikovsky67.Aqui, o sentido histrico da cano a apropriao da subjetividadepoltica da classe operria pela burguesia progressista est inscritodiretamente na matria musical. No contente em ser mais democr-tico e sensvel do que Madame (e, possivelmente, tambm um danarinomelhor), o protagonista coloca a si prprio como mais erudito, uma

    vantagem que no estava disposio do homem do morro. Sem o inter-ldio, cantando concerto o discurso aproximado de algum que notem uma ideia muito precisa do que um concerto. Depois do interldio,cantando concerto uma referncia para o que foi abordado: a vozlrica se identifica com a classe operria, mas apenas quando Madameest na terceira pessoa, ou seja, quando a voz lrica se dirige ao pblico,que composto pelas classes inferiores e pela burguesia. A passagememprestada de Tchaikovsky , no entanto, dirigida apenas para Madame,

    para a burguesia como tal.Muito mais pode ser dito sobre e peculiar combinao entre a

    identificao popular e a distncia irnica do que relevante para o

    Ver a entrevista com Haroldo Barbosa para O Pasquim (). In: JAGUAR eSRGIO AUGUSTO (orgs.).Antologia do Pasquim, Vol. III: -. Rio de Janeiro:Desiderata, . Ver tambm GARCIA, Tania da Costa. Madame Existe. Revista daFaculdade de Comunicao da FAAP.Disponvel em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/artigos_madame.htm

    TCHAIKOVSKY, Pyotr Ilyich. Piano Concer to Number in Bb Minor, Op. . GOLD-ENWISER, Alexandr (org.). P.I. Tchaikovsky: Complete Collected Works. v. . Mos-cow: Muzgiz, .

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    argumento em questo. A forma musical s tem sentido aqui como umacitao, a qual se desdobra em duas: o emprstimo de Tchaikovsky eo que, luz de Tchaikovsky, aparece como um emprstimo da formado samba. Todavia, em nenhum dos casos a forma musical significaqualquer coisa que no seja seu statusenquanto citao: ao mundo da

    msica erudita de um lado, e ao mundo (idealizado ou real) da formamusical comumente orgnica. Contudo, a citao funciona aqui de ummodo oposto ao seu funcionamento em Brecht e Weill. Pois, em Brecht eWeill, a citao uma tcnica de no-identificao, de modo que libertao trabalho dramtico da obrigao de produzir uma relao de empatiacom a ao de modo a substitu-la por um questionamento. J em Praque discutir com Madame, trata-se de uma tcnica para a produo deuma dupla identificao, sendo a primeira uma identificao pblica e

    universal (do eu lrico com o pblico), e a segunda uma identificaoprivada e particular (do eu lrico com a elite cultural).Somos tentados a destacar que a escolha do Concerto para piano

    n 1 de Tchaikovsky particularmente apropriada, ou porque nelatambm uma dana folclrica, no caso, ucraniana, contrastada a umtema romntico, ou porque sua longa melodia introdutria, de onde acitao de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa tomada, uma linhade fcil digesto que pode ser absorvida pela cultura industrial semdificuldade68. Mas, na entrevista citada acima, na qual Haroldo Barbosa

    canta um pouco do interldio, no h o que sugira que ele considere acano como nada alm de umjeu desprit, um gesto no enquadrado69. Oenquadramento, equivalente brechtiano, deve envolver um ator dizendoalgo razovel para outro autor, enquanto disfaradamente pisca para opblico. Mas a piscadela sem moldura mais uma ideia sobre a duplici-dade do que a duplicidade em si.

    Teria sido conveniente para esta discusso se Joo Gilberto, aoresgatar a cano do esquecimento, tivesse vencido essa duplicidade

    de um modo brechtiano. Entretanto, a bossa nova uma forma resolu-tamente anti-teatral (Retrato em preto e branco, que Joo performa

    Quatro anos depois de Pra que discutir com Madame, o lder americano de bandaFreddy Martin obteve xito ao arranjar o tema introdutrio para uma orquestradanante. O rtulo no lado B do registro, lanado em rpm: Piano Concerto inB Flat Fox Trot (Bluebird, ). Martin construiu seu sucesso ao popularizaroutros temas clssicos; no h dvida de que ele um dos alvos das crticas maisferrenhas de Adorno sobre tal popularizao. Posteriormente, uma letra foi adicio-nada e lanou-se a cano Tonight we love.

    Citaes musicais diretas em solos dejazzgeralmente funcionam, sem o mesmoexcedente significado social, da mesma forma, como gestos insinuantes que redu-zem a autonomia do processo em questo.

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    logo antes de Pra que discutir com Madame, em um famoso concerto,comea com uma srie de pequenos intervalos que imita na letrade Chico Buarque, na composio de Tom Jobim e na interpretaode Joo um homem resmungando a si mesmo) e no tem interesseem trabalhar com a teatralidade70. Ao contrrio, na execuo de Joo

    Gilberto, o conflito social incorporado na letra de Janet de Almeida eHaroldo Barbosa transformado, como ocorre com a bossa nova emgeral, em um problema que a forma musical tenta suplantar. Apesar daabordagem e do aspecto poltico serem diferentes, o problema inven-tado e confrontado pela gerao da bossa nova pertence ao caso deWeill: criar uma msica capaz de satisfazer as necessidades musicaisda maior quantidade possvel de estratos sociais, sem desprezar a subs-tncia artstica.71 Em outras palavras, o projeto da gerao da bossa

    nova constitui-se em se utilizar completamente dos avanos reais possi-bilitados pela segmentao de classe ao mesmo tempo em que cria umamsica que, a princpio, no depende da segmentao para sua recepo.Ou, mais propriamente, produzir uma arte musical que no seja apenaselitista, uma msica que seja samba e Tchaikovsky ao mesmo tempo.

    Comparado ao trabalho dos compositores da bossa nova, Pra quediscutir com Madame (no sendo, claro, uma bossa nova) , apenas parao interpelado Tchaikovsky e a modulao que isso naturaliza, banal emtermos de composio72. Parece provvel que a cano foi revivida por

    Joo mais por sua relevncia temtica para o projeto da bossa nova do quedevido a qualquer interesse particular em sua forma. Contudo, as inova-es formais da bossa nova so, na verso de Joo, impostas cano:a estrutura de acordes extremamente texturizada com elaboraespara altas extenses; o ritmo do violo complexo, derivado do samba:o polegar operando, na pulsao, independentemente dos outros dedosque estruturam o ritmo em variaes sincopadas que sugerem (emboraseja uma iluso) uma liberdade completa de improvisao da repetio;

    os vocais so cantados sem vibrato ou glissando, prximos qualidadevocal de uma conversa (essencialmente fundamental para a anti-teatra-lidade), entonao extraordinariamente precisa, e, o mais importante, asugesto constante de uma relao completamente sem restries entrea pulsao e a linha de sncope. Quando esses elementos so executadospor uma s pessoa, de modo que a relao entre os trs elementos centrais pulsao, ritmo e vocais , em cada ponto, intencional, o resultado

    Ver GILBERTO, Joo. Live in Montreaux. Elektra/Musician, .

    WEILL, Kurt . Die Oper wohin?. In: Kurt Weill: Musik und Theater, p..

    BRECHT. ber gestische Musik. In: Schriften zum Theater, p. .

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    uma performance de excepcional densidade musical. Um ndice dessadensidade que Joo, em concerto, frequentemente repete uma formainteira trs ou mais vezes e ainda no h a sensao de repetio, atal ponto que no conseguimos reconhec-la quando vem. Mas a bossanova continua a ser uma forma artstica popular: no s so acessveis

    as canes em si, mesmo quando so de interesse formal substancial,mas tambm os elementos individuais esto ao alcance de quem quiseraprend-los.

    Pode-se dizer muito mais sobre a ideologia esttica da bossa nova,a qual o expoente na msica de um populismo desenvolvimentista cujoideologema, repleto de implicaes contraditrias, constitui o desenvol-vimento de foras produtivas no intermediadas pelos interesses do tododa populao do pas. O ponto a se enfatizar aqui, no entanto, que o

    eclipse da bossa nova no um ponto final artstico, mas sim histrico,pois o populismo desenvolvimentista deslocado de modo decisivo pormeio do golpe militar de 1964, da ditadura e pela integrao com o capitalnorte-americano. A bossa nova em si continua a se desenvolver aps ofenecimento de sua relevncia histrica, atingindo o seu ponto alto nocomeo dos anos 1970 com guas de maro, de Tom Jobim73. Mas, napoca em que guas de maro foi gravada (1972), um novo movimento,a tropiclia, j tinha ido e vindo. De fato, a bossa nova j havia se tornadoum assunto de pastiche para os msicos do movimento tropicalista:

    Corao vagabundo (1967), de Caetano Veloso, um grande exemplode bossa nova; contudo, trata-se de uma tese magistral sobre a tcnicacomposicional de Tom Jobim, e no o desenvolvimento ou a transfor-mao dessa tcnica74.

    Como se sabe, a nova msica do perodo ditatorial, a tropiclia,reorienta brutalmente o dialeto do mais ambicioso projeto musicalbrasileiro. Os elementos a serem musicalmente aproximados no soelevados ou baixos entre os quais nem a identidade, real ou ideal,

    imaginada , mas sim elementos modernos e arcaicos, que no devem sersintetizados, mas tornados existentes em suas contradies patentes. Nacano-manifesto Tropiclia (Caetano Veloso), por exemplo, os refrosso organizados em opostos pareados75. Mas so organizados ao longode linhas de contradio temporal, no de contradio de classe: bossanova versusa palhoa, Ipanema versusIracema mas nunca choupanas

    JOBIM, Antonio Carlos. Jobim.MCA, .

    VELOSO, Caetano e COSTA, Gal. Domingo.Polygram, .

    VELOSO, Caetano. Caetano Veloso. Philips, .

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    versus apartamentos em arranha-cus76. Em outra cano-manifesto,Panis et Circenses (Gilberto Gil e Caetano Veloso), essas contradiesse tornam uma questo formal77. A melodia deliberadamente inspidauma genial performance ao vivo, datando do perodo, serve tambmcomo um esforo corajoso de Marisa Monte para demonstrar quo difcil

    tornar Panis et Circenses uma boa cano convencional. A melodiacurta, tocada do modo mais deselegante possvel; uma banda militar;uma cadncia anticlimtica perfeita seguida de um silncio embaraoso;um acompanhamento em meio tom que crianas seriam capazes detocar; tudo isso soterrado sob o peso das tcnicas de gravao contem-porneas, particularmente a de montagem de tape um desacelerandotocado por meio de um polegar sobre o rolo da fita de gravao, umaconversa de jantar aleatria, o Danbio Azul sob a direo de Rogrio

    Duprat, que treinou com Stockhausen e Pierre Boulez. Na afirmao deRoberto Schwarz sobre esse efeito tropicalista, que expe o contedo demau gosto luz branca do ultramoderno, trata-se de algo como umsegredo familiar trazido rua.78

    A tropiclia, que abordamos rapidamente aqui, marca ummomento crucial, a brutalidade e a rapidez de transio entre uma socie-dade proto-socialista e uma sociedade de direita integrada ao capitalnorte-americano que ocorre praticamente do dia para a noite; a tropi-clia registra todas as contradies do que mais tarde seria chamado de

    Para uma verso melhor detalhada desse argumento, incluindo leituras atentas aalgumas das canes aqui citadas, ver: BROWN, Nicholas. Postmodernism as Semi-peripheral Symptom. In: Utopian Generations: The Political Horizon of TwentiethCentury Literature. Princeton: Princeton University Press, , p. -. Quemj leu tal captulo deve notar uma reviso desse argumento no presente estudo. Nadiscusso anterior, o elemento ideolgico da tropiclia era visto como sua hipoti-zao de contradies, enquanto o elemento utpico estava nos desejos que as can-es da tropiclia buscavam, no-enfat icamente, atender. Eu no estava satisfeito

    com a segunda par te do argumento na poca; nos termos do presente argumento,no poderia estar certo, uma vez que o ltimo desejo ajustado no mercado sim-plesmente como uma demanda. Nenhum desses argumentos anteriores , contudo,precisamente errado. Ao contrrio, a l inha que divide os aspectos ideolgicos e osutpicos terminologia que no orienta a presente discusso da tropiclia passano entre a cano e o desejo que ela satisfaz, mas sim atravs de ambos. Desejo, claro, muito superior ao do mercado, que s pode canalizar alguns desejos emdemanda. Enquanto isso, a hipotizao das contradies realmente ideolgica.Mas, como veremos, mesmo a ideologia de Caetano Veloso tem, quando produzidaatravs de uma forma musical, um aspecto em oposio, que o fardo do argumen-to que se segue.

    VRIOS. Tropiclia ou Panis et Circencis.Philips, .

    SCHWARZ, Roberto. Cultura e poltica, -. In: O pai de famlia e outros estu-dos. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, , p. .

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    ps-modernismo, de um modo que ainda marca tais contradies comomonstruosas. Entretanto, a marca deixada pela tropiclia na msicabrasileira foi provavelmente menor na msica em si e maior no treina-mento em termos da ambio esttico-poltica, assim como no mbitomusical proporcionado a uma gerao de msicos brasileiros. De fato,

    j no lbum branco (1969) de Caetano Veloso, um projeto inteira-mente novo, desenvolvido a partir, porm distinto, daquele da tropiclia,emergiu em todos os seus contornos79. A primeira coisa que se notaem Caetano Veloso a diversidade de roupagens do lbum: uma tradi-cional cano de marinheiro baiana, um tango cnico dos anos 1930,uma balada extremamente elaborada dos anos 1940 e uma bossa novalanada recentemente. H, tambm, puros pastiches: uma marcha aoestilo de trio eltrico, um fado portugus, e uma tentativa de pop psico-

    dlico britnico e rock de lbum80

    . Apenas nas duas ltimas faixas dodisco uma de Caetano Veloso e outra de Gilberto Gil, seu primeirocolaborador e violonista h uma aproximao reconhecvel aos proce-dimentos tropicalistas: Acrilrico uma palavra valise que combinaacrlico (novo e sinttico) e lrico (antigo e orgnico) para produzir oacre entre ambas um poema concreto falado que inclui fragmentosde som de tape; e Alfmega, de Gil, talvez a destilao da alegre anti-socialidade da tropiclia, que constri jogos de palavra concretistas emtorno da palavra analfabeto e os coloca dentro do que essencialmente

    uma cano de rock, tocada aqui de um modo que s pode ser descritocomo moderno e deixando em aberto a questo se o rock usado comouma espcie de cultura avanada ou cultura perifericamente derivada.Por certo que, luz do que se observa no conjunto das faixas anterioresdo lbum, essas duas msicas no devem ser entendidas de modo dife-rente das outras dez: a tropiclia est includa na miscelnea, e no oprincpio em si da miscelnea. Dentro do posicionamento do lbum de1969, a lgica da tropiclia j tinha sido superada.

    Com exceo de momentos em que faz-lo deformaria o materialmusical para alm do reconhecvel, o material do lbum tratado demodo uniforme do comeo ao fim, logo Chuvas de vero (um samba-cano de Fernando Lobo, da mesma poca de Pra que discutir comMadame) pode servir de ilustrao para o procedimento seguido nolbum como um todo. So prescindidos os ornamentos orquestrais e

    VELOSO, Caetano. Caetano Veloso. Philips, .

    Na ordem: Marinheiro s, cano de tradio oral; Chuvas de vero, de Fernan-do Lobo; Cambalache, de Enrique Santos Discpolo; Carolina de Chico Buar-que; Atrs do trio eltrico, Os Argonautas, Lost in the Paradise e The EmptyBoat, de Caetano Veloso.

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    interldios presentes na gravao de Francisco Alves de 1948. (A linhade flauta aludida em uma breve introduo assobiada que, diferen-temente da gravao original, no se desvia da estrutura da cano).O todo da estrutura rtmica e harmnica sendo o ritmo largamentediversificado e afrouxado, ainda que fortemente alinhado com o vibrar

    e o silenciar como no original, um samba-cano trazido pelo violode Gil, cujo virtuosismo totalmente discreto. Os vocais so cantadossem vibrato ou glissando, sonorizados de modo muito preciso e gravadosprximos ao microfone, resultando em uma vocalizao intimista:mesmo quando os vocais sobem (por exemplo, na primeira linha vocale particularmente em trazer uma aflio), a variao dinmica mantida em reduo, de modo que o efeito dramtico do longo intervaloenfatizado na gravao original minimizado e, assim, internalizado.

    (Mesmo em Atrs do trio eltrico, os vocais so dobrados em vez decantados com alta intensidade). Em outras palavras, ainda que a canono seja bossa nova, os procedimentos nela seguidos esto de acordocom a sensibilidade da bossa nova. A verso em estdio particular-mente notvel. Rogrio Duprat acrescenta uma parte orquestral que ,em si, um excelente acompanhamento, muito melhor do que a originalpara a qual muitas vezes alude. Contudo, as qualidades ureas da linhaorquestral so completamente diferentes das partes de violo e vocais: como se essas partes tivessem sido gravadas em um quarto, enquanto a

    parte orquestral tivesse sido gravada em uma catedral. O efeito geral ooposto da maioria das produes em estdio. Em vez de produzir a ilusode uma performance sem interrupo, na qual o processo de fusoatinge o espectador, que imediatamente fundido e agora representauma (sfrega) parte passiva da totalidade da obra de arte, o resultado uma separao radical dos elementos.81 Isso ocorre inteiramentepor razes brechtianas. A linha orquestral est excessivamente alta namixagem. Uma vez que o acompanhamento orquestral intermitente,

    isso serve para separ-lo mais frente do violo e das bases vocais demodo a no dificult-lo, ao mesmo tempo em que tambm dramatiza ogrande conflito primevo entre estrutura e ornamento, que no pode sersimplesmente suprimido, pois constitui parte da forma popular. Em vezde serem combinados para produzir um efeito, os elementos so sepa-rados para narrativizar uma relao.

    Confirmando tudo isso, esto as partes orquestrais misturadas emum nico canal, de modo que, se um fone de ouvido removido ou aequalizao movida inteiramente para um nico lado, ambas podem

    BRECHT. Das moderne Theater ist das epische Theater, p. .

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    ser totalmente eliminadas. (As partes de violo e dos vocais esto mistu-radas nos dois canais, logo, no podem ser eliminadas). O conflito entreestrutura e ornamento , assim, decidido em favor da estrutura. Isso muito fcil, respondendo questo que se supunha instaurar e obscu-recendo totalmente o papel do ornamento na estrutura em si. O que

    importante frisar no momento, contudo, que esse procedimento bemdiferente do procedimento tropicalista. Onde, anteriormente, Duprat eseus colaboradores tinham usado a gravao em estdio para ironizarbrutalmente as matrias-primas culturais nela empregadas, o estdioaborda o material musical que agora aparece como estrutura em vez dematria-prima sem assumir uma posio superior a esse material. Noh, em outras palavras, ironia na nova relao com o material.

    A nica exceo possvel constitui um caso interessante. A

    gravao de Carolina, de Chico Buarque, foi recebida escandalosa-mente como um ataque irnico. Sem o contexto, fica difcil entendero porqu. A gravao de Chico dominada por um acompanhamentoorquestral que , respectivamente, meloso (cordas) e grudento (metaissurdos), e com uma linha de percusso embaraosamente e quaseinacreditavelmente, para uma gravao brasileira fraca tocada com ochimbau. De fato, a gravao toda no uma m aproximao de uma maproximao norte-americana da bossa nova. Chico no faz muito coma linha vocal exceto, ocasionalmente, cantar fora de tom. Nem mesmo

    Chico se importou com Carolina, que aparece como uma pea musicalbem mais interessante na verso de Caetano82. A cano desnudadaprecisamente da mesma forma que Chuvas de vero (a linha orquestralnem sequer entra at os ltimos quinze segundos ou mais da cano),com Gil produzindo no violo uma maravilhosa destilao e reviso dasestruturas rtmica e harmnica ao adicionar alguma cor e complexidade vibrao basicamente uniforme um discreto shufflede rock breve-mente introduzido e estrutura diatnica do material original.

    Todavia, complicado ver Carolina, de Caetano, como algo queno seja uma pardia. Chico , naquele momento, um heri da esquerdaculturalmente hegemnica, que simptica ao marxismo mesmo ondeeste no est totalmente incorporado conceitualmente. Caetano, aindaque venha dessa esquerda um de seus primeiros feitos musicais foi umamsica incidental para uma produo de uma pea didtica de Brecht (Aexceo e a regra) uma figura para o que parece, em retrospecto,com um liberalismo insurgente. Chico , entrementes, um amador de

    WERNECK, Humberto. Gol de letras. In: HOLLANDA, Chico Buarque de. ChicoBuarque: letra e msica . So Paulo: Companhia da Letras, , p. .

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    talento, mas ainda um amador. Profissionalismo um termo privi-legiado no vocabulrio de Caetano, como o fora para os primeirosmodernismos antropofgicos do Brasil. O termo requer o mercado, noh dvida, porm se refere, de modo mais imediato, ao anti-imperia-lismo da substituio da importao cultural, o desenvolvimento de uma

    indstria cultural local suficientemente especializado para ser capaz decompetir com a cultura primeiro-mundista progressista. Essa a ideo-logia esttica dos modernismos perifricos de James Joyce a Oswald deAndrade a Chinua Achebe, a qual relega o amadorismo ao diletantismo(de acordo com Jlio Medaglia, compositor de vanguarda e arranjadorda tropiclia) e, supostamente, a autntica cultura macumba paraturistas (de acordo com Oswald de Andrade, em uma frase que os tropi-calistas gostavam de citar). Quando Caetano canta Carolina com uma

    entonao descontrada vista em nenhum outro lugar do lbum e,virtualmente, em nenhum outro lugar de sua obra difcil no tomar ogesto como algo deliberado. Alm disso, a letra uma reminiscncia deuma seduo que no deu certo se presta facilmente a uma interpre-tao poltica: a fria Carolina representando a burguesia que d as costaspara Uma rosa nasceu / Todo mundo sambou / Uma estrela caiu, a vozlrica representando a vanguarda revolucionria tentando mostrar todosesses aspectos. Se a cano deve ser tomada como puramente romnticaou como uma alegoria poltica, a voz lrica se pinta em tons excessiva-

    mente lisonjeiros. A interpretao de Caetano, cantada num tom poucoacima de um sussurro, oferece apenas uma distncia interna suficiente,em relao voz lrica, para tornar-se um narrador machadiano: o revo-lucionrio galante se revela um sedutor preguioso que Carolina deveser sbia o suficiente para ignorar.

    Em uma fala recente, Caetano afirma que a inspirao para agravao foi uma jovem, a anti-musa do Brasil (note-se que anti-musical foi uma palavra-chave na cano-manifesto da bossa nova,

    Desafinado, de Antonio Carlos Jobim e Newton Mendona) cantandoCarolina em um concurso de talentos na TV83. Dificilmente se podeacreditar nisso. Por outro lado, essa fala confirma, em sua falta de credi-bilidade, tudo que foi dito acima. Tanto quanto os sentimentos inflados dacano popular dos anos 1940, de tradicionais canes de marinheiro, demarchinhas de Carnaval, de fado portugus, dentre outros, uma robustacultura musical semiprofissional uma parte da (e uma pr-condio)extremamente profissionalizada cultura musical no Brasil. Em outraspalavras, esse relato uma tentativa de tornar Carolina consistente

    WERNECK, Humberto. Gol de letras, p..

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    com o resto do lbum, e se isso no plausvel, ento se tem um fracassode Carolina, no um contrassenso nas perspectivas do lbum. Umaconsiderao posterior mais plausvel, e mais interessante ainda:

    Quando gravei, em 69, a Carolina num tom estranhvel [o adje-

    tivo brechtiano intencional?], (...) no era preciso agredir Chicopara afirm-la [para afirmar a nossa viso]. Porque estvamosseguros de que a criao de Chico, ela mesma, ganharia com arelativizao.84

    Relativizar sem atacar, na verdade, tornar arte para relati-vizar, para alienar: em outras palavras, enquadrar. Esse o modo dolbum em si. E, de fato, esse relato que finalmente est adequado aos

    fatos musicais. As ambivalncias de Carolina so destacadas mesmoque a destilao musical em si no seja uma forma de julgamento, emesmo que tal destilao seja uma reverncia.

    No que tange ao procedimento apontado aqui, e sobre a lgica deseparao de elementos que ele requer, todo o contedo lrico do lbum radicalmente relativizado da mesma forma que se observa em Caro-lina: Os argonautas pode nos mover para uma resignao navegante(Navegar preciso / Viver no preciso); Atrs do trio eltrico podenos fazer querer danar atrs de um grupo de Carnaval (Atrs do trio

    eltrico / S no vai quem j morreu); Alfmega pode nos preenchercom uma euforia de rockinteiramente inapropriada para o seu contedo.Por serem boas canes, elas certamente incitaro tais movimentos esentimentos; e o choque efetivo que provocam sua raison dtremerca-dolgica. Porm, promovendo ou no tais incitaes, essas canes so,inegavelmente, a respeito desses estados emocionais, que se constituemem uma raison dtrede ordem completamente diferente.

    A maneira de usar citaes para produzir significado musical est

    muito bem alinhada com aquela buscada por Weill e Brecht; o sentidoproduzido , obviamente, diferente. O projeto ps-tropiclia ser, ento,como Caetano e Gil escrevem em uma cano do lbum Tropiclia 2(1993) sobre o Cinema Novo brasileiro, outras conversas sobre os

    jeitos do Brasil. O que emerge do lbum como um todo uma repre-sentao musical do Brasil elaborado a partir de um certo ponto devista de classe, necessariamente incompleto e que exclui, sob todos os

    VELOSO, Caetano. Verdade tropical. So Paulo: Companhia das Letras, , p. -.

  • 7/26/2019 Brecht Eu Misturo Com Caetano

    36/42

    Rev. Inst. Estud. Bras., So Paulo, n. , p. -, dez.

    aspectos, influncias estrangeiras85. De fato, esse o princpio que guiara carreira de Caetano dali por diante. Tropiclia 2detm, sob o pontode vista do presente argumento, um nome equivocado: o lbum , prati-camente faixa por faixa (ainda que nenhum das canes seja repetida),uma sequncia no ao Tropicliaoriginal, mas sim ao lbum branco

    de Caetano de 196986. Esse princpio se tornou, em boa parte, o princpioda ousada msica brasileira e