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1 ENTREVISTA:SEVERIÁ IDIORIÊ FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI Ano III nº2 maio/junho 2006 ESPECIAL Conferência Nacional dos Povos Indígenas ENSAIO Christian Knepper TERRA Marãiwatséde

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Page 1: Brasil Indígena 2 que queria trabalhar na aldeia e não casar. Na época, eu tinha conhecido o Cipassé, que é nosso inimigo tradicional. Quando eu cheguei entre os “inimigos”,

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ENTREVISTA:SEVERIÁ IDIORIÊ

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI Ano III nº2 maio/junho 2006

ESPECIALConferência Nacional dos Povos Indígenas

ENSAIO Christian Knepper

TERRAMarãiwatséde

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O segundo número da nossa revista Brasil Indígena traz como matéria central a Conferência Nacional dos Povos Indígenas realizada em Brasília, entre os dias 12 e 19 de abril deste ano. Chamemo-la de “Primeira Conferência”, na expectativa de que, no próximo ano, venha a haver uma segunda e, em seguida, uma terceira, até consolidarmos no nosso País a prática de conferências que virem assembléias permanentes dos povos indígenas. Assim, dentro de um tempo previsto de três ou quatro anos, poderemos ter um Parlamento Indígena verdadeiramente nacional e verdadeiramente democrático.

Essa Primeira Conferência foi um sucesso estrondoso. Mais de 800 indígenas representaram mais de 200 povos indígenas de todas as partes do Brasil. Esses representantes, jovens uns, experientes outros, vieram como delegados eleitos nas nove conferências regionais que antecederam a Nacional. Portanto, foi com a experiência e o esforço exercido na sua respectiva Conferência Regional que cada delegado indígena deu o melhor de si para produzir um fabuloso documento de análise de suas situações interétnicas, de críticas e de propostas para a formulação de uma nova política indigenista.

Daí é que o sucesso da Conferência Nacional não tenha sido surpresa. A satisfação de cada delegado indígena está estampada na documentação escrita e em vídeo feita em todos os grupos de trabalho e nas plenárias. Dessa Conferência Nacional despertaram novos talentos políticos e administrativos, novos gestores e intelectuais indígenas, e deles ouviremos e saberemos nos próximos anos. Resultado fi nal: a Conferência Nacional abriu uma nova página no indigenismo brasileiro, uma página de maior participação e protagonismo dos povos indígenas em seus destinos.

Carta do Presidente

Capa: Pintura corporal de índio Kayapó

Foto: Ricardo Labastier

Este número traz também algumas reportagens importantes, ricas em informação etnológica e histórica. Destaco a história dos índios Avá-Canoeiro; a retomada heróica dos Xavante de sua terra, chamada Marãiwatséde (mato espesso, grande) – na qual teve papel muito importante a ajuda da Funai, do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público Federal; o programa de construção de casas em aldeias indígenas, casas estas que agregam os valores culturais tradicionais com elementos da modernidade; o decreto presidencial que criou a Comissão Nacional de Política Indigenista; e a formação das lideranças Kayapó.

Leiam também, caros leitores, o artigo de Marina e Noel Villas Bôas, que tiveram uma rica experiência de relacionamento com a Funai e os povos indígenas; regojize-se com as belas fotos dos índios Guajá, feitas com muita sensibilidade por Christian Knepper, e aprenda com a entrevista da Severiá Idioriê, uma índia Karajá formada em Letras, casada com um cacique Xavante.

Quer mais? Espere pelo próximo número.

Mércio Pereira Gomes, antropólogo, Presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai

Belém-PA - Rua Presidente Vargas, 762 - Galeria Ed. da Assembléia

Legislativa Paraense, lj. 02, Centro - Telefax: (91) 3223.6248

Brasília-DF - Centro de Exposição e Vendas Artíndia - SEPS Q702/902

Ed. Lex - Térreo - Telefax: (61) 3226.4270

Cuiabá-MT - Rua Pedro Celestino, 301, Centro - Telefax: (65) 3623.1675

Goiânia-GO - Av. Leopoldo de Bulhões, Q.1 - Lote 1/5 - Setor Pedro

Ludovico - Telefone: (62) 3241.5762

Manaus-AM - Rua Guilherme Moreira - Praça Tenreiro Aranha,

Centro - Telefax (92) 3232.4890

Recife-PE - Rua João de Barros, 668 - Boa Vista - Telefone: (81) 3421.2144

Rio de Janeiro-RJ - Museu do Índio - Rua das Palmeiras, 55

Botafogo - Telefone: (21) 3286.8899

São Paulo-SP - Rua Augusta, 1.371 - Galeria Ouro Velho, lj. 116-117

Telefone: (11) 3283.2102

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viagem pra Goiânia e fiquei num orfanato. Quando o pai dela faleceu, eu pedi para ir morar com ela. Ela deixou de ser freira, casou-se, teve filhos. Então, eu fui criada não dentro de igreja, mas com a filosofia de pessoas católicas.

BI: Quais as maiores dificuldades que você enfrentou? Severiá: Eu aprendi o português e perdi a minha língua muito rápido. Segundo os lingüistas, isso não deveria ter acontecido porque eu tinha seis anos e já estava com a língua na cabeça. Não sei se foi por causa da ruptura... Pelo que me contam, quando eu cheguei na rodoviária, eu não queria descer do ônibus de jeito nenhum. A maior dificuldade foi a saudade dos meus pais, de ver que eu estava num mundo diferente do meu. Com o tempo, as coisas foram melhorando. Todos na minha escola sabiam que eu era índia e que eu ia voltar pra minha aldeia, mas a minha adolescência foi muito mais ligada aos ritos de passagem de vocês do que aos meus.

BI: Você disse que perdeu a língua muito rápido. Tenta resgatar isso de alguma maneira? Severiá: Nunca perdi a minha origem. Eu sei quem eu sou. Toda vez que eu me olhava no espelho, sabia quem eu era. E mesmo quando não me olhava, todo o mundo me lembrava que eu era “a índia”. Quando fui pra universidade, entrei pensando em projetos que tivessem a ver com os povos indígenas. Em 1982, me envolvi num projeto da Universidade Federal de Goiás com a Universidade Católica, na área de educação para os Kraô [em Tocantins]. Foi lá que vi que eu estava muito branca. Um dia, estava um sol forte, todo o grupo tirou a roupa e pulou num laguinho. E eu fiquei lá parada, pensando: “Eu não vou tirar a roupa porque não conheço ninguém e depois vou cruzar com todos na universidade. De jeito nenhum!” (risos). Me dei conta de que eu tinha colocado na cabeça um padrão não-índio, o bonito era ser magrinha. Nessa época também descobri que existe o preconceito positivo e o negativo. Eu só tinha vivenciado o positivo, que era aquela coisa: “Nossa, como ela aprende rápido!”. Tudo era legalzinho porque eu era índia. Lá em Tocantins, as pessoas me olharam com raiva, com ódio. Não entendia por que; só depois percebi que existia uma resistência simplesmente pelo fato de eu ser índia.

BI: Você voltou a uma aldeia Karajá? Como foi esse reencontro?Severiá: Em 1987, fui conhecer a Ilha do Bananal, onde

está concentrada a maior parte dos Karajá. Meu tio falou pra mim que, se eu quisesse continuar lá, teria que casar. Respondi que queria trabalhar na aldeia e não casar. Na época, eu tinha conhecido o Cipassé, que é nosso inimigo tradicional. Quando eu cheguei entre os “inimigos”, fui tratada como uma rainha. Fui muito bem recebida. E, quando fui pro Karajá, que é o meu povo, fiquei lá sozinha com as malas nas mãos. Aí eu pensei: “Opa, tem alguma coisa errada!”. Me senti mal. Afinal, mesmo que eu tivesse passado muito tempo fora, era uma parente que estava chegando na aldeia.

BI: Como você conheceu o Cipassé?Severiá: Na universidade, comecei a trabalhar nesses projetos e, num belo dia, eu vi um índio lindíssimo, um Xavante alto, grande. Quando eu vi o Cipassé, ele estava amarrando uma pulseirinha xavante no pulso de uma menina americana. Aí, cheguei perto e pedi uma pra ele. Ele nem olhou pra mim e disse: “Acabou. Meu primo tem.” Eu fiquei tão decepcionada (risos). E era sempre assim: eu passava pelo Cipassé e ele nem me dava oi. Mas toda vez que eu o via, meu coração disparava, eu ficava suando. Um dia me ligaram pra dizer que eu precisava falar com uma pessoa que ia assumir a coordenação de um projeto novo. Essa pessoa era o Cipassé. Foi só então que a gente conversou e vimos que tínhamos muita coisa em comum. Ele foi lá em casa pra conhecer minha família e a gente começou a namorar. O problema era que ele tinha uma pretendente na aldeia. Não sei se vocês sabem, mas o sonho pros Xavante é muito forte. Eles têm sonhos de poder pelos quais sabem o que realmente é verdadeiro. E um tio dele sonhou que o Cipassé não ia se casar com a prometida. Aí esse tio reuniu todo o mundo e disse: “Olha, o Cipassé não vai se casar com a pessoa que está destinada a ele. Ele vai se casar com outra pessoa que vai ajudar muito o povo Xavante. Vocês devem apoiá-lo.” Foi assim que eu fui apresentada. Só que, entre uma coisa e outra, eu fui visitar [a Terra Indígena] Pimentel Barbosa e pensei comigo: “Eu não vou encarar essa.”

BI: Por quê?Severiá: Porque Pimentel Barbosa me lembrava muito a minha aldeia quando eu saí de lá, em 1969. E nós estávamos em 87. Imagine a responsabilidade, como eu poderia entrar num casamento e atrapalhar toda a dinâmica da comunidade? Você sentia – como sente até hoje – a essência do povo Xavante. Eu voltei pra cidade, conversei com o Cipassé e disse que achava que não

entrevistaSEVERIÁ IDIORIÊ

Ela saiu de sua aldeia aos seis anos de idade. Filha de Javaé com Karajá, foi se casar justo com um inimigo tradicional de seu povo. Mulher de Cipassé Xavante, mãe de Clara, ela se basta como Severiá Idioriê. Aos 44 anos de idade, já enfrentou a separação dolorosa da família, a discriminação velada das cidades, a dificuldade de conciliar sua origem com seu modo de vida e o preconceito, tanto dos Karajá como dos Xavante, em relação a seu casamento. Formada em Letras, com especialização em educação, Severiá trabalha em favor dos povos indígenas e faz uma reflexão sobre a situação atual do País. Mulher e indígena, num mundo comandado pelo machismo e pelo preconceito, tudo indicava que ela seria rejeitada em todos o lugares por onde passou. Mas a história é outra.

Brasil Indígena: Onde você nasceu? Conte um pouco de sua história.Severiá: Eu nasci numa aldeia em São José dos Bandeirantes, à beira do rio Araguaia. Antigamente o território do povo Karajá era da nascente do rio até o sul do Pará, em Xambioá. Hoje ele se concentra na Ilha do Bananal e em Xambioá. O mito de origem do povo Karajá é que a gente veio de um outro mundo que existia embaixo desse rio. Quando os meus pais faleceram, essa aldeia onde eu nasci deixou de existir e a

cidadezinha que existia ali tomou conta da área.

BI: E quando você saiu da aldeia?Severiá: Saí dessa região em 1969, quando eu tinha de seis pra sete anos de idade. Minha mãe morreu primeiro, de sarampo, quando eu tinha mais ou menos nove anos, e meu pai morreu quando eu tinha 12. A gente não sabe até hoje como ele faleceu. O povo Karajá já tem mais de 200 anos de contato e, por isso, tem muito problema com alcoolismo. Ele era uma pessoa excelente, trabalhador, mas, quando bebia, saía fora do seu normal. Então, a gente não sabe ao certo, só chegou pra gente a notícia de que ele tinha falecido... Nessa época, eu já estava em Goiânia.

BI: Você foi morar em Goiânia ainda criança. Como foi essa decisão?Severiá: Um belo dia, meu pai me chamou e me deu um monte de conselhos que, na época, eu nem entendi muito. Na minha cabeça, a decisão de sair foi minha, mas a minha irmã diz que eu estava muito doente e tive de ir pra cidade. Lembro que, quando entrei no avião, um doce felpudinho que as missionárias recebiam da Alemanha escorria entre meus dedos. Eu saí com uma freira para Crixás, mas assim que nós chegamos lá, ela soube que o pai dela estava muito doente em Goiânia. Então, eu segui

força índia Christiane Peres e

Júlia Magalhães

Fotos: Ricardo Labastier

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vem sendo ameaçado. Será que a gente vai conseguir resistir outros 500 anos?

BI: Você viveu muito tempo na cidade, esteve à frente de vários projetos. Como é o seu cotidiano na aldeia? Severiá: Bom, eu converso muito! (risos) Lá, alguns não falam português, eu não falo xavante, então eu ficava muda por dias seguidos. Mas foi um tempo de prestar atenção nas coisas. Em todos os povos, o feminino e o masculino são complementares. Eu acabo transitando muito no mundo dos homens. Às vezes, eu lavo roupa junto com as mulheres, no grande rio. Mas meu cotidiano é muito mais ligado ao mundo masculino do que ao feminino. Agora, isso não quer dizer que a gente não tenha uma boa relação. Eu acho até que elas também ficam tentando me entender. O meu sonho daqui um tempo é entrar mesmo no universo dessas mulheres e aprender a fazer cestos, por exemplo. Coisas que a Clara, com nove anos de idade, já sabe fazer. Ela está conseguindo se conectar de uma maneira muito legal com esse universo feminino. Mas meu sogro me disse: “Olha, o seu conhecimento vai ajudar a gente em outras coisas. Você vai ser muito boa quando a gente pedir pra você escrever os documentos, quando você falar pro mundo o que a gente pensa.”

BI: Vocês fazem parte de um movimento de luta pelos direitos indígenas. Incentivam isso entre os jovens também? Como é a organização de vocês?Severiá: Apesar de o Cipassé ser mais jovem do que eu, ele teve uma militância maior e eu aprendi muito com ele. O que eu mais gosto nele é essa questão do trabalho de base. Quando o Cipassé e a família dele começaram esse movimento, deram origem a uma das primeiras associações indígenas

do Brasil, a Associação dos Xavante de Pimentel Barbosa, fundada antes da Constituição de 88. Depois é que a Constituição garantiu o direito de os povos indígenas se organizarem. Pela filosofia do Apoena, que era avô do Cipassé, a formação do jovem era algo muito importante. Os jovens são, ao mesmo tempo, mensageiros e protetores. São os guerreiros.

BI: Que balanço você faz da atuação da Funai junto aos povos indígenas?Severiá: A Funai tem um papel fundamental quando garante os direitos dos povos indígenas. Ela tem que ser um órgão orientador e ver com mais cuidado as especificidades de cada etnia. Deve orientar, ajudar a coordenar e dar condições para o desenvolvimento dessas comunidades. Mas o trabalho da Funai está muito centrado em Brasília. Se isso é bom por um lado, por outro não é. Isso é uma dificuldade do Governo como um todo. O sistema que está posto – e a Funai faz parte desse sistema – é ruim. Porque tem o poder central, depois os departamentos e, até chegar lá na ponta, muita coisa se perde. O que precisa ser revisto são as relações que o Governo Federal estabelece com os povos indígenas.

BI: Você está falando da construção de políticas públicas?Severiá: Sim. Essa questão precisa ser melhor conduzida como um todo. A gente não quer nada diferente do que a maioria da população brasileira quer. Queremos saúde, educação, garantia de segurança. A única coisa de que a gente precisa é que a Funai tenha pessoas que entendam que os indígenas têm suas diferenças. O País precisa de políticas públicas pro povo brasileiro. Esse é o ideal pelo qual a gente luta. Queremos um projeto que respeite todas as particularidades, um projeto de Brasil.

ia dar certo. Mas aí ele me procurou, disse que tinha pensado muito e que queria ficar comigo. A gente fez uma reunião na aldeia, que deu uma discussão muito feia e tal, mas seguimos em frente. Casamos no civil, no religioso, por causa da minha família adotiva, e no Xavante. Só faltou casar no Karajá.

BI: E como é a relação de sua filha, a Clara, com os Xavante?Severiá: Antes disso, tenho de dizer que eu também consultei meus parentes sobre o casamento. Meu tio disse o seguinte: “Eu casei com uma índia do Xingu, Kamayurá.” Aí fui falar com outro tio, que me disse: “Eu acho muito bom casar com outro povo. Eu estou casado com uma pernambucana.” Pensei: “Nossa, a minha família é toda doida!” (risos). Já a minha irmã mais velha achou um absurdo. Então, essa coisa de ser aceita aconteceu dos dois lados. A relação da Clara com os avós é muito interessante porque a língua materna dela é o português, já que eu não falo karajá e não aprendi a falar xavante. Eu tenho um tipo físico Xavante, se eu falo a língua deles, viro Xavante e eu sei que eu sou Karajá. A gente morava na cidade, mas ia sempre pra aldeia. Um dia, quando a gente estava se despedindo pra voltar pra cidade, eu vejo a Clara encostar no banco de trás do carro e chorar. Aí eu disse pro Cipassé que estava na hora de a gente voltar pra aldeia. Quando nós voltamos, ela foi a que se adaptou mais rápido. Achei que fosse ser mais difícil pelo fato de ser filha única e ter sido criada na cidade.

BI: Você é formada em Letras, com especialização em Português e Inglês. Pensa em fazer uma pós-graduação?Severiá: O preconceito que as comunidades indígenas sofrem é muito grande, a questão da identidade, dos olhos do outro, do julgamento. Se você não for uma pessoa muito centrada, acaba se perdendo. E todo o

“Toda vez que eu me olhava no espelho, sabia quem eu era. E mesmo quando eu não me olhava, todo o mundo me lembrava que eu era ‘a índia’.”

mundo quer ser querido, não é? Quer ser respeitado. Quem fica muito tempo na cidade ou vira um não-índio ou mantém as raízes e sabe o peso disso. Existe preconceito mesmo. Quando a gente começou a trabalhar com projetos de meio ambiente e educação, começamos a pensar nessas diferenças. Eu me formei em 1986 e a coisa do mestrado e do doutorado não era tão comum. Comecei a pensar em fazer o mestrado nos últimos tempos, para falar sobre afirmação mesmo. Todos falam pela gente, os especialistas, os doutores etc. Porque eles são “os doutores”, as pessoas acreditam mais no que eles dizem do que, por exemplo, no que um indígena fala. Esse é um dos motivos pelos quais eu quero escrever a tese. Eu gostaria de fazer um mestrado que tratasse da questão socioambiental, a relação entre meio ambiente e comunidade. Às vezes, quando eu estou lá no rio, vendo as estrelas, aquele mundo perfeito, fico pensando que tudo isso está correndo muito perigo. Se a gente não fica antenado no que está acontecendo, a expansão agrícola vai atingir a nossa área. Há mais de 500 anos de contato que esse paraíso

DANIEL CABIXI

“Há mais de 500 anos de contato que esse paraíso vem sendo ameaçado. Será que a gente vai conseguir resistir outros 500 anos?”

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sumárioCarta do Presidente 1Mércio Pereira Gomes, antropólogo

Entrevista: Severiá Idioriê 2A índia Karajá que vive entre os Xavante

Cultura: Avá-Canoeiro 8Sobreviventes de um massacre, eles ensinam que a vida se transforma

Especial: Conferência dos Povos Indígenas 14A voz e a vez dos índios brasileiros

Opinião: Marina e Noel Villas Bôas 23O desafi o de colocar as reinvidicações em prática

Ensaio: Christian Knepper 24A beleza ameaçada dos Awá-Guajá do Maranhão

Terra: Marãiwatséde 32Após 40 anos de exílio, o povo Xavante recupera sua terra

Direitos: Participação Social 39Decreto presidencial cria Comissão Nacional de Política Indigenista

Geral: Construção de Moradia 40Projeto da Funai concilia tradição com elementos da modernidade

Educação: Ensino Superior 42Jovens indígenas ingressam na universidade

Opinião: Olgair Gomes Garcia 45Professora da PUC/SP fala de inclusão

Perfi l: Benhadjorore Kayapó 46As lideranças tradicionais guardam a cultura

expedientePresidente da República

Ministro da Justiça Presidente da FunaiChefe de Gabinete

Conselho Editorial

Coordenador Editorial Editores

Repórteres

Colaboradores

Fotógrafos

CopidesqueProjeto Gráfi co

Diagramação e arteTiragem

ImpressãoJornalista Responsável

Luiz Inácio Lula da Silva Márcio Thomaz Bastos Mércio Pereira Gomes Roberto Aurélio Lustosa Costa

Publicação bimestral da Fundação Nacional do Índio – Funai/Coordenação Geral de Assuntos Externos (CGAE) em parceria com Via Pública – Instituto para o Desenvolvimento da Gestão Pública e das Organizações de Interesse Público

Carmen JunqueiraDaniel Matenho Cabixi Dominique GalloisGuilherme CarranoIzanoel dos Santos SodréJoão Pacheco de OliveiraJosé Carlos Meirelles Jurandir Siridiwê XavantePierlângela Nascimento da CunhaMichel Blanco Maia e SouzaFelipe Milanez Júlia MagalhãesChristiane PeresDanielle SantosMário Moura FilhoChristian KnepperMarina Villas BôasNoel Villas BôasOlgair Gomes GarciaWalter SanchesAdemir RodriguesAnderson SchneiderFelipe BarraRicardo LabasierAnna IsabelTeresa BilottaMarcelo Afl aloUnivers Design / Marcelo Afl alo e Cristiane M. Novo10 mil exemplaresIpsis Gráfi ca e EditoraJúlia Magalhães

Fundação Nacional do Índio – Funai Coordenação Geral de Assuntos Externos – CGAE SEPS QD. 702/902 Ed. Lex, 3º andarCEP 70390-025Telefone: 61 32269411Contato: [email protected] | www.funai.gov.br

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11cultura

Máila, o encantado, espírito capaz de criar e destruir o mundo dos Avá-Canoeiro. Para eles, o nome de Máila tambêm designa o homem branco. A figura mitológica confunde-se hoje com a ira de jagunços contratados para dar fim à vida dos índios que habitavam o cerrado ao norte de Goiás, num morro de terras ricas chamado Mata do Café. Para os sobreviventes de um dos mais violentos massacres já vistos no Brasil, matadores que traziam em punho armas de fogo eram também chamados pelo nome desse poderoso espírito indígena. Em 1968, um grupo de cerca de 150 pessoas foi vítima da brutalidade de homens que, enraivecidos, cobiçavam suas terras e abominavam sua existência. Da grande aldeia, plenamente constituída, restaram apenas quatro pessoas – um homem, duas mulheres e uma criança. “Meu papai e minha mamãe morreu. Máila matou”, conta Iawi, que na época, tinha apenas cinco anos de idade.

AVÁ-CANOEIRO

tempo reiJúlia Magalhães

Fotos: Ademir Rodrigues

Região norte de Goiás Município Minaçu (GO) Área 38 mil hectares População 06 indivíduos Etnia Avá-Canoeiro Língua da família tupi-guarani

Retrato de família: os seis índios de Goiás, pela lente do indigenista e fotógrafo Walter Sanches, na década de 1990

Na maloca dos índios, Matcha, a mais velha do grupo, quase nunca se levanta da rede.Depois que perdeu a vista, ela deixou de andar com Iawi pelas matas da Terra Indígena

Hoje, 40 anos depois, Iawi evita falar sobre seu passado triste. Presenciou o assassinato de todos os seus parentes. Fugiu com Matcha, Nakwatcha e o marido de Matcha para viver anos de angústia, escondendo-se em grutas e caçando durante a noite. “A grande tragédia dos Avá foi que, por causa dessa perseguição constante, indivíduos foram privados do convívio com sua sociedade. Mas, quando conheci esse grupo de Minaçu, tive uma grande surpresa. Eles transformaram um sentimento que para nós é insuportável em algo suportável. Estão sempre aprendendo, conhecendo... Estão em constante expansão.” É assim que Cristhian Teófilo da Silva, antropólogo da Universidade de Brasília (UnB), define essa pequena família, hoje habitante da Serra da Mesa, a leste do rio Tocantins.

As investidas contra os Avá-Canoeiro começaram já no início do século 19, com o avanço de fazendas, vilas e garimpos sobre as terras tradicionais dos índios. Diversos ataques foram fragmentando, aos poucos, um povo resistente. No fim dos anos 60, numa área que abrangia o norte de Goiás e parte da Ilha do Bananal, restaram apenas dois grupos da etnia, separados por quase 400 quilômetros de distância. Um permaneceu no estado de Tocantins e, atualmente, vive em uma aldeia na Terra Indígena Parque do Araguaia. O outro, de Iawi, Matcha e Nakwatcha, escondeu-se nas serras próximas à cidade de Cavalcante, em Goiás.

Durante quase 10 anos, esse segundo grupo assistiu ao fim do mundo. “Para os índios, esses homens brancos eram um bando de máilas enraivecidos”, explica Cristhian. Por serem os únicos sobreviventes de uma aldeia e alvo de uma caçada sem fim por parte dos fazendeiros da região, os índios viveram em cavernas. Isso não representava apenas uma ameaça à vida, mas algo mais assustador. “As grutas são a morada das onças que, por sua vez, simbolizam os antepassados dos índios. Eles têm muito medo desses espíritos”, diz o antropólogo.

© Walter Sanches

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e Jatulika, este com 19 anos, são falantes e expansivos. Aproximam-se com coragem do novo, assim como Niwathima, de 16 anos.

Se, por um lado, transcendem a existência do próprio grupo, por outro, carregam as lembranças da tragédia que sofreram e a agonia de um futuro incerto. “Quando cheguei para trabalhar no Posto Indígena de Atração Avá-Canoeiro, encontrei-os comendo açúcar cristal em panelas de alumínio e bebendo óleo de soja em copos de vidro”, lembra Walter Sanches, indigenista da Funai que está entre os Avá desde 1990. Hoje, o cenário é outro. Mas em 1983, quando a Funai fez o primeiro contato com a família de Iawi, esses índios experimentavam o que havia de mais cruel e sórdido na cultura ocidental. Antes mesmo de se aproximarem dos indigenistas do Governo, os Avá de Minaçu tiveram uma desastrosa convivência com os operários que trabalhavam na construção da Usina Hidrelétrica Serra da Mesa, empreendimento da empresa Furnas Centrais Elétricas e o principal elo de ligação dos sistemas elétricos Norte e Sul.

Nos acampamentos da obra da usina, Matcha, Nakwatcha e Tuia foram vítimas de agressões atrozes. Iawi fumava cigarros “brancos” e tragava cachaça. Desabituado à bebida alcoólica, começou a depender daquela sensação estranha de torpor. As mulheres, no entanto, mostraram que faziam parte de um grupo tupi historicamente resistente a todo aquele impacto externo. Queriam outro mundo que não fosse aquele, queriam ver o grupo longe da violência e seguro de mais uma onda de fúria dos máilas.

Logo que os Avá-Canoeiro foram alcançados pelas frentes de contato da Funai, começaram a se

AVÁ-CANOEIRO

dois jovens trocaram de nome, ao passar da infância para a vida adulta – Trumak passou a se chamar Jatulika e Putdjawa hoje atende por Niwathima. São essas seis pessoas que, em meio a mais de 180 milhões de brasileiros, ensinam que a vida vai muito além de estatísticas, interesses ou qualquer cultura.

Estabeleceram uma relação de harmonia e afetividade. Trocam carinhos, são solidários uns com os outros e recebem os desconhecidos, que um dia lhes custou a dignidade, com os braços abertos. As mulheres, mais reservadas, falam muito pouco o português, principalmente Nakwatcha, a que mais resiste às infl uências da sociedade envolvente e luta para manter alguns costumes remanescentes dos Avá, como práticas curandeiras. Mesmo assim, não deixam de olhar no olho, pegar nas mãos do visitante, puxá-lo para bem perto do peito num abraço sincero. Já Iawi

Alegria de viver Ao contrário do que se possa imaginar, os sobreviventes do massacre da Mata do Café superam, a cada dia, uma história de perdas e ensinam que a vida se transforma. Se, por anos, viveram aterrorizados, hoje eles brincam, riem e fazem das pequenas coisas do cotidiano uma grande descoberta. Iawi revela alegria de viver. De calças jeans surradas e botinas velhas, ele passa parte de seu tempo a explorar a Terra Indígena Avá-Canoeiro, uma área de 38 mil hectares demarcada pela Funai. É ali que vive com suas três mulheres e dois fi lhos. Matcha e Nakwatcha, muito mais velhas que Iawi, são, respectivamente, sua primeira e segunda mulher. Tuia, a mais nova delas, nasceu nas grutas daqueles tempos terríveis e é fi lha do primeiro casamento de Matcha. Com Iawi, Tuia teve duas crianças, o menino Trumak e a menina Putdjawa. Há pouco mais de um ano, os

Nakwatcha é a que mais resiste aos impactos culturais. Na foto, ela prepara o milho colhido na roça

Abaixo, detalhe do espantalho criado pelos índios para a horta do posto indígena da Funai

© Walter Sanches

Irmãos inseparáveis:Jatulika e Niwathima brincam, pescam, trabalham na roça e estudam juntos

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Iawi mostra orgulhoso um álbum de fotografias, onde guarda lembranças de viagens que fez pelo Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília. Todos esses lugares despertam nele uma vontade de desvendar a imensidão de diferenças.

distanciar de um destruidor processo de perda de identidade e auto-estima. “Eram cinco mil operários, com vilas, prostitutas, bebida, festas, tratores, bombas. Um cenário dantesco. Eles foram completamente desumanizados naquela situação”, conta Cristhian Teófilo. Os próprios índios sentiam necessidade de sair dali e contaram com o apoio da Funai para isso. “O que o Walter fez, em 1990, foi um trabalho de filtragem indigenista, de tirar todo aquele lixo cultural de perto dos índios”, acrescenta o professor da UnB. Foi a partir de então que a Funai conquistou um difícil acordo de impacto ambiental com Furnas, que garantiu condições mínimas para os índios e a demarcação da área.

João Mandioca Embora a aproximação dos índios com pequenos agricultores, fazendeiros e depois com operários da hidrelétrica tenha colocado em risco a integridade do grupo, uma boa notícia começou a se espalhar na pequena Minaçu ainda no início dos anos 1980. Iawi, exausto de um isolamento profundo, começou a visitar a feira da cidade. Ainda não falava nem entendia o português, mas se comunicava por gestos. Os feirantes pensavam que ele queria comida e nem imaginavam que o que Iawi buscava ali era a reconciliação de seu passado com os máilas. Nas tentativas frustradas de diálogo, Iawi reconheceu apenas a palavra “mandioca”, de origem tupi-guarani.

Assim, a cada vez que alguém lhe dizia “mandioca”, ele a repetia diversas vezes, contente de encontrar algo em comum entre aqueles dois mundos. Aos poucos, começou a ficar conhecido na cidade como João Mandioca. “Logo que cheguei aqui, achava esse apelido um tanto pejorativo. Detestava ouvir “João Mandioca”. Até que um dia, uma jovem antropóloga, por quem eu tinha grande estima, desceu do carro e gritou para o Iawi ‘Fala, Mandioca!’. Foi então que eu percebi que não era bem assim”, lembra Walter Sanches.

Para Iawi, “mandioca” é como uma saudação. Ao invés de falar “oi”, ele grita “Mandioooca!”. E, às vezes, varia: “mandioquinha”, “mandiocão”, “madiocona”. De certa forma, conseguiu transformar o que poderia ser motivo de chacota em algo de extraordinário bom humor.

Em um abraço carinhoso, Iawi demonstra seu amor por Matcha.Toda vez que ela sai da aldeia, ele a leva nas costas e caminha pelo menos 2 km até o posto da Funai

ser quando crescer”. Já Iawi guarda no aparelho de som uma de suas pontes com o universo. Além de notícias e dos programas típicos das rádios de interior, ele também conserva num saco de estopa dezenas de fitas cassetes. “Ele tem uma sofisticação natural, gosta de ouvir boa música. Um dia, o [antropólogo] Marco Lazarin veio nos visitar na Terra Indígena e, durante uma caminhada, começamos a falar de cantores, compositores e estilos. Quando chegamos à aldeia, Iawi correu, abriu aquele saco cheio de poeira, procurou uma fita e colocou no som. Buscou, pacientemente, a música que queria mostrar. Aumentou o volume e disse: ‘Olha, olha! Bonito!’. Era Tempo Rei, de Gilberto Gil”, conta Walter Sanches. A letra de um dos maiores compositores da música popular brasileira fala de um tempo que leva a vida para o além, para um desconhecido que o homem não é capaz de controlar. Diz: Tudo permanecerá do jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando / Tempo e espaço navegando todos os sentidos.

Proteção de mãe: Tuia admira a filha Niwathima

Aprendizes do tempo Jatulika e Niwathima começaram a aprender a ler e escrever em português. Uma maneira de se conectarem com o resto do mundo. Gostam, especialmente, de folhear revistas, ver imagens de cidades distantes, de praias, dunas, prédios. O pai, Iawi, mostra orgulhoso um álbum improvisado de fotografias, onde guarda lembranças de viagens que fez pelo Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília. Todos esses lugares despertam nele uma vontade de desvendar essa imensidão de diferenças. “A música, o sexo, a comida, os objetos. Esse mundo de coisas desempenha um papel de sociabilidade”, diz Cristhian Teófilo.

Os adolescentes vão a festas e comemorações em Minaçu. Nasceram em outra época, quando puderam extrair do espírito urbano aquilo que menos prejudicava suas raízes. Jatulika e Niwathima fizeram aulas de violão, por exemplo, e iam de carro até o pequeno centro duas vezes por semana. Gostam de ouvir música, divertem-se pensando “o que você vai

© Walter Sanches

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A Conferência foi uma promessa do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Lideranças e organizações reivindicavam o encontro há anos, pois tinham a convicção de que seria fundamental para a consolidação de uma nova política indigenista. O presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, considera a Conferência o auge da participação política dos índios nos planos e decisões que lhes dizem respeito, ao criar oportunidades para decidirem seu futuro. Para Mércio, trata-se da construção de um fórum democrático inédito. Por ocasião do evento, ele afi rmou: “Trabalhamos na formulação desta Conferência Nacional desde o fi m de 2003. Em dezembro de 2004, realizamos a primeira regional. Tudo faz parte de um processo, em que os próprios indígenas defi nem os temas de interesse e organizam os debates. A Funai aqui é apenas o órgão que viabiliza o encontro. O trabalho é todo deles. Acredito que o movimento indígena saia fortalecido daqui.”

Mércio também vê a Conferência como o embrião para um Parlamento Indígena. A idéia de se

Pela primeira vez na história, o Governo Federal convidou os índios para debater temas que estão ligados a difi culdades para a garantia de seus direitos. Nesse sentido, as conferências são um importante instrumento para ampliar a participação social na formulação de políticas para a melhoria das condições de vida dos indígenas. Todos os delegados das regionais e a própria coordenação da etapa nacional foram eleitos pelos índios, o que permitiu direito a voz e infl uência direta nas decisões do encontro.

especial

Traços, línguas, costumes diversos. Um grande tecido pluritétnico formado pela união de indígenas de todos os cantos do País. Lado a lado, representantes de povos que nunca haviam se visto ou até grupos historicamente rivais, no maior encontro já realizado entre os povos originários do Brasil. Apesar das diferenças, compartilhavam um desejo: reivindicar o direito de serem ouvidos. Em Brasília, 800 líderes de 220 etnias elevaram suas vozes em escala e alcance jamais vistos, para debater as políticas públicas e a estrutura do Estado na implementação da política indigenista brasileira. A Conferência Nacional dos Povos Indígenas foi o resultado de 17 meses de articulação, desde os encontros regionais, que reuniram, juntos, mais de três mil participantes.

vozes em ascensão

Christiane Peres e Júlia Magalhães

Fotos: Ricardo Labastier

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS Onde Brasília Quando 12 a 19 de abril de 2006 Participantes 800 líderes de 220 etnias brasileiras Temas discutidos autonomia política, questões territoriais, educação, saúde e políticas públicas para índios urbanos

560 delegados indígenas participaram das votações de propostas para a formulação de uma nova política indigenista

criar um parlamento, inclusive, foi uma das propostas aprovadas pelas etapas regionais e o sexto item do documento fi nal da Conferência Nacional. Os índios esperam torná-lo a maior instância de consulta e deliberação a respeito de todas as questões que envolvem e afetam comunidades indígenas.

Primeiros debates A realização das nove conferências regionais serviu de base para as discussões da etapa nacional. Temas como autonomia política, regularização fundiária, educação e saúde precisavam ser revistos e atualizados diante da atual situação vivida pelos indígenas. Mais de 1.300 propostas foram aprovadas nesses encontros. Casos recentes, como a desnutrição das crianças em Mato Grosso do Sul, o despejo de famílias em Nhanderu Marangatu e a difi culdade de retirar arrozeiros e posseiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, são algumas evidências da importância das discussões.

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da articulação que irá inserir o índio no debate político e incentivar sua representação nas esferas federais. “É preciso resgatar a luta do Juruna, o primeiro índio a chegar a deputado federal. Essa memória precisa servir de estímulo aos outros, pois mais índios têm que entrar no Congresso Nacional e lutar pelos seus direitos. Esse é um passo para fortalecer o movimento indígena e para que um dia se crie o Ministério dos Povos Indígenas”, diz. “Quando tudo estiver fortalecido, e não está muito longe este dia, a Funai será presidida por um índio, pois o índio tem que estar representado em todas

as esferas brasileiras, defendendo seus povos e buscando alternativas econômicas”, acrescenta o presidente do órgão.

Um enorme número de demandas para os povos indígenas surgiu na Conferência como forma de consolidação de sua luta e contestação das políticas indigenistas atuais. A Conferência Nacional em Brasília tinha o objetivo de reunir a diversidade de propostas e conciliar duas formas de organização política: a cultura tradicional das etnias em suas aldeias e a estrutura política do Estado brasileiro.

Entre os destaques, estava a questão da tutela do Estado, prevista legalmente no Estatuto do Índio. “É preciso saber até onde vai a proteção ao índio. Se ela é igual para todos ou só para os índios que vivem nas aldeias”, diz um dos organizadores da Conferência, Caboclinho Potiguara.

O conceito de tutela não foi negado. O desejo dos participantes, aprovado em votação, era que o termo passasse a “proteção especial”. Desde a Constituição de 1988, o significado da tutela vem amadurecendo e ganhando força. Com a ratificação da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Estado brasileiro comprometeu-se a garantir autonomia e autodeterminação dos povos. Desde então, os índios puderam se organizar e participar mais efetivamente das discussões.

Ministério Indígena Das nove etapas regionais, seis propuseram a mudança da estrutura governamental responsável pela política indigenista. Os delegados pediram a formação de um Ministério dos Povos Indígenas, capaz de centralizar as ações em educação, saúde, questão fundiária, cultura e desenvolvimento sustentável. Tudo isso com orçamento próprio e chefiado por um titular indígena.

Tal proposta não foi aprovada na Conferência Nacional. O primeiro item do texto final mostra que a discussão será retomada no próximo encontro. Por enquanto, conforme o documento, os delegados decidiram pelo fortalecimento da Funai, acreditando que “não é o momento para criar outra estrutura, que não contará com o apoio necessário para seu funcionamento”. “Se nós criarmos um ministério agora, ficaremos só no cabelo, pois não temos pernas e braços. Não pode acontecer isso. Esse é um sonho. Precisamos fortalecer agora para criar depois. Hoje não temos um índio no Congresso, nem na Presidência da Funai, nada disso. Precisamos começar por aí”, afirma o líder Kayapó paraense Ákjboro.

Defensor de uma maior participação indígena na política brasileira, Mércio Gomes espera que a Conferência tenha sido o ponto de partida para o amadurecimento dos debates e o desenvolvimento

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS

Detalhe de camiseta usada pelos delegados durante a Conferência (acima) O líder indígena Cipassé Xavante participa atento das discussões na plenária (abaixo)

Fotos: Isaac Amorim / ACS /MJ

Momento importante: o índio Kayapó Ákjboro entrega o documento final com 382 propostas ao presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes

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principais propostasO documento final aprovado pelos 560 delegados da Conferência Nacional reúne 382 propostas para a formulação de uma nova política indigenista. Confira os principais itens:

1 Autonomia Política • A votação para a proposta de criar o Ministério dos Povos Indígenas foi adiada para a próxima conferência. Os delegados entenderam que agora é preciso fortalecer a Funai.

• Criação do Parlamento dos Povos Indigenas, com participação efetiva de todas as etnias do Brasil.

• Será discutida a eleboração do Estatuto dos Povos Indigenas, que deverá contemplar, entre outras coisas, o termo tutela como “proteção especial”.

2 Território• Revisão e adequação do Decreto 1.775/1996, com o objetivo de facilitar e acelerar o processo de

regularização de terras indígenas.

• Ibama e Funai devem fiscalizar permanentemente as áreas indígenas, além de promoverem a formação de índios como agentes fiscais e engenheiros ambientais e florestais.

3 Educação• Criar e implementar um sistema de ensino federal de Educação Escolar Indígena.

• A Funai deve acompanhar e supervisionar todas as ações e projetos relacionados à área de educação indígena.

4 Saúde• Garantir que o atendimento à saúde volte a ser responsabilidade da Funai.

• A Funai, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), deve realizar o Censo Indígena a cada dois anos.

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENASTERRA

por compromisso e agilidade

Dos cinco temas debatidos durante a Conferência Nacional, a questão fundiária foi a que ganhou maior destaque. Cento e quarenta e sete propostas foram aprovadas, pedindo mudanças legislativas e maior agilidade no processo de regularização das terras indígenas. Um exemplo crítico é o caso de Nhanderu Marangatu (MS), que, já homologada, sofreu uma reintegração de posse obtida na Justiça pelos fazendeiros da região.

A líder Guarani Kaiwá Maria Regina de Souza lamenta a interferência da Justiça no caso e levanta a bandeira da questão fundiária. “A gente podia estar discutindo saúde e educação, mas sem terra a gente não tem isso. Terra é o principal de tudo. A terra que já está homologada tem de ser respeitada e o que aconteceu foi muito triste. Os fazendeiros foram lá e eles têm dinheiro pra comprar tudo”, critica.

Para evitar situações como essa, as lideranças pediram maior articulação entre os órgãos governamentais e federais. Além disso, ressaltaram a importância de revisar e atualizar o decreto 1.775/1996, que hoje estabelece os passos do processo de regularização de terras indígenas. Com isso, os delegados querem garantir que os prazos sejam cumpridos e os procedimentos administrativos, acelerados.

A Conferência também decidiu que são necessárias medidas emergenciais, como interditar áreas de índios sem contato e retirar ocupantes não-índios das terras já identificadas. É o atual desafio das etnias Makuxi, Taulipang, Wapixana e Ingarikó, que vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em

Roraima. “A gente está passando por um problema muito grande. Mesmo nas áreas demarcadas ou homologadas, nossos direitos são desrespeitados pelos posseiros, que destroem a nossa terra. Precisamos que haja a retirada deles”, pede a vice-coordenadora da Organização de Mulheres Indígenas de Roraima, a Makuxi Luciana Lima.

Nesse caso, desde abril, a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) atuam em conjunto para retirar os invasores de Raposa Serra do Sol. Mais de 20 indenizações já foram pagas pela Funai e as famílias foram reassentadas pelo Incra em lotes de 100, 250 ou 500 hectares.

Para assegurar agilidade do processo de regularização fundiária, os delegados aprovaram um item que reivindica a participação direta e efetiva dos índios na criação e na implementação de um Conselho Nacional de Política Fundiária Indígena.

O Ministério da Justiça e o Ministério de Minas e Energia concluíram o anteprojeto de lei sobre mineração em terras indígenas. Desde 2004, uma comissão interministerial discute alternativas legais para a exploração de recursos minerais nessas áreas. Apesar de não ter sido oficialmente apresentado aos representantes das mais de 220 etnias do Brasil, diversos líderes indígenas já tiveram acesso ao anteprojeto de lei. Mas os delegados da Conferência Nacional decidiram adiar a discussão sobre mineração para o próximo encontro, sem previsão de data.

Para algumas comunidades, no entanto, há a preocupação de se regularizar urgentemente a exploração de minérios. É o caso da Terra Indígena Roosevelt, onde, em 2004, garimpeiros morreram em conflito com índios Cinta Larga, em razão da exploração ilegal de diamantes. Em abril deste ano, mais dois casos de homicídio foram registrados na área.

O anteprojeto institui um regime especial para atividades relacionadas à mineração em terras indígenas e baseia-se, entre outras coisas, em seis pontos importantes:

• as concessões anteriores à promulgação desta Lei serão anuladas;

• as comunidades indígenas afetadas serão consultadas, podendo autorizar ou não as atividades;

• as comunidades poderão participar do procedimento licitatório, por meio de cooperativas ou associações;

• laudos do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Funai avaliarão os impactos ambientais e socioculturais das atividades dentro das áreas indígenas, para conceder ou não autorizações a qualquer iniciativa;

• os índios terão direito à participação de 3% do faturamento bruto da exploração, dos quais metade irá para a comunidade afetada e a outra metade para o Fundo de Compartilhamento de Receitas sobre a Mineração em Terras Indígenas, que será instituído para atender a diversos povos indígenas;

• a comunidade afetada terá direito a uma renda pela ocupação e instalação de empresas dentro da terra indígena.

projeto em discussão

Foto: Anderson Schneider

Conheça todas as propostas e o documento final da Conferência no sítio www.conferenciaindigena.com.br

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22 23CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS

Mais que bom atendimento à saúde, os índios querem profissionais que entendam a diversidade dos povos

O cacique Aritana Yawalapití viajou do Parque do Xingu (MT) até Brasília, a fim de defender uma educação diferenciada para as crianças indígenas. Representando as 15 etnias do Parque, Aritana tenta manter o objetivo dessas comunidades: preservar a cultura, tal como idealizaram os irmãos Villas Bôas. Isso passa pela educação nas aldeias. Os dados do Censo Escolar 2005 mostram que existem 2.324 escolas funcionando em terras indígenas, com 164 mil estudantes, mais da metade deles nas séries iniciais do Ensino Fundamental. No entanto, a quantidade de escolas não garante a qualidade da educação.

“Tem de melhorar. Precisamos da cultura do índio e também aprender o português. Aprender primeiro nossa cultura, língua e tradições, depois vemos o resto”, afirma Aritana. A reivindicação deu o tom das propostas apresentadas sobre o tema. O documento final detalha diretrizes para currículos escolares, formação de profissionais indígenas e produção de material didático.

Trata-se de uma preocupação das lideranças com o respeito às tradições indígenas. Apesar de a Constituição Federal garantir, no papel, um ensino bilíngüe, na prática, muitas vezes não funciona dessa forma. As escolas levam para dentro das aldeias um sistema que não corresponde à realidade dos índios e acabam por impor um processo de

aprendizagem que os distancia de suas tradições. “Durante a Conferência, nós aprovamos

uma proposta para a criação do Sistema Federal de Educação Escolar Indígena”, diz a mestre em Educação Francisca Novantino Paresi. Chiquinha, como é conhecida, era membro do Conselho Nacional de Educação, mas foi substituída por outro indígena este ano. Na Conferência, houve uma mobilização para que ela retomasse sua cadeira no Conselho.

EDUCAÇÃO

aprender sem perder as raízes

De olho no futuro, a criança indígena observa o debate sobre educação, na Conferência

SAÚDE

em busca de soluções

Dados mostram que existem 2.324 escolas em terras indígenas. No entanto, a quantidade não garante a qualidade da educação.

Contatados há menos de 20 anos, os Matis, etnia do extremo oeste da Amazônia, vivem ainda hoje a fase inicial de problemas pós-contato com a sociedade envolvente. Nômades, foram obrigados a se organizar em comunidades. A falta de estrutura e saneamento trouxe doenças antes desconhecidas para esse povo: a malária e a hepatite.

Escolhido para representar na Conferência cerca de 200 indígenas da etnia, o cacique Txamã Matis sentiu dificuldade para acompanhar a complexidade dos debates dos outros povos. “Ainda não entendo bem como essas discussões vão melhorar a vida dos Matis. As doenças estão acabando com meu povo e não foram lá para resolver. A gente busca uma melhora para nossa situação. As discussões aqui estão acima do que a gente precisa”, diz, por intermédio de um tradutor índio da língua pano.

No Vale do Javari, onde moram os Matis e outras três etnias, a mortalidade infantil é o dobro da encontrada nas demais áreas indígenas pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). No ano passado, o índice mostrou que, a cada mil nascidas, morreram 103 crianças.

Na busca por soluções, a Conferência Nacional dos Povos Indígenas dedicou parte de seu trabalho para sugerir mudanças na atenção à saúde. Uma das propostas apresentadas no documento final é que a saúde indígena volte a ser responsabilidade da Funai — desde 1992, o atendimento médico aos índios está sob controle da Funasa. “A gente está aqui para mudar isso. Os recursos precisam ser divididos igualmente entre as comunidades e regiões”, diz o delegado Darcy Duarth Comapa, da etnia Marubo (AM).

Mais do que devolver à Funai a atenção à saúde, os índios enfatizam a necessidade de os profissionais dessa área serem capacitados para lidar com a diversidade dos povos indígenas. Em março, a Funasa promoveu a 4a Conferência Nacional de Saúde Indígena, em que lideranças e representantes da sociedade civil e do Governo debateram 543 propostas para melhorar a política pública de saúde. Mas os índios ainda não perceberam resultados concretos a partir desse encontro.

No Vale do Javari, a mortalidade infantil é o dobro da encontrada nas demais áreas indígenas.

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O Documento Final da 1ª Conferência Nacional dos Povos Indígenas representa uma conquista histórica para os índios. Com mais de 300 propostas aprovadas, os povos indígenas mostram à sociedade brasileira o rumo que devemos tomar na elaboração de uma política indigenista que atenda à justa participação que esses povos têm na formação de nossa sociedade. Existe, no entanto, uma questão que não parece muito clara: como será posta em prática a “Constituição” elaborada na Conferência?

O fortalecimento da Funai, como foi levantado nas propostas 18 a 24, pode sem dúvida ser uma alternativa. Mas será mesmo viável? Como exemplo, vale lembrar que o Parque Indígena do Xingu, marco na política indigenista brasileira, foi criado em 1961, após uma campanha de quase dez anos. Ora, é evidente que não se pretende esperar tanto tempo entre a elaboração do Documento Final e a concretização das propostas aprovadas, tal como ocorreu na ocasião da elaboração do anteprojeto do Parque e sua criação. Poderia ter sido votada a criação de uma estrutura eficiente, não meramente de consulta, que viabilizasse o cumprimento das decisões dos povos indígenas.

Os Villas Bôas, no final da década de 1960, entendiam que o primeiro passo no sentido de melhorar as condições de vida dos índios, de defendê-los, seria livrar a Funai de qualquer pressão política. Ela deveria, portanto, estar subordinada diretamente à Presidência da República.

A Funai, como se sabe, foi criada em 1967 para substituir o Serviço de Proteção aos Índios, SPI, que não tinha mais condições de funcionar como órgão de proteção às populações indígenas. Substituiu. Aliás, substituiu tão bem que começou a seguir os passos do antigo SPI, reservando para si, inclusive, o mesmo destino. Assim, a Funai, desde sua criação até hoje, devido à política indigenista nacional não fixada, atua melhor ou pior conforme seja melhor ou pior seu presidente. Observa-se que os índios têm experimentado um período de intensa atuação positiva da Fundação na atual gestão; entretanto, cedo ou tarde estará novamente sujeita a interferências do Ministério ao qual é ligada.

desafio à práticaMarina Villas Bôas e Noel Villas Bôas

OPINIÃOCONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS

Dos 560 delegados da Conferência, apenas 50 eram mulheres. Não dava 10% dos participantes. Apesar do número pequeno, sua representatividade era grande. Caciques, curandeiras, mulheres engajadas na luta pela melhoria da saúde e da educação. Suas preocupações são aparentemente mais simples que as dos homens – tradicionais representantes indígenas em busca de autonomia política –, mas nem por isso menos importantes.

Até hoje as indígenas precisam superar os obstáculos do preconceito masculino para poder participar ativamente das discussões que vão influenciar suas vidas. Essa foi uma das dificuldades encontradas pelas delegadas na Conferência. “Ser delegado e ser delegada é muito diferente. É desigual, somos minoria, mas não é por isso que a gente vai desanimar. Esse é mais um motivo para que a gente se organize e se estruture. Só assim vamos lutar em pé de igualdade com os homens”, defende Maria Helena Paresi, a primeira mulher indígena a se tornar chefe de posto da Funai.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, algumas mulheres indígenas começaram a se inserir nos debates e buscaram legitimar-se também como lideranças com direito a serem ouvidas e respeitadas. Quase 20 anos depois, a Conferência Nacional simboliza a conquista desse espaço, embora alguns povos ainda se neguem a reconhecer a participação feminina. “Lugar de mulher não é aqui na Conferência. Isso não é coisa de mulher”, diz, brincando, o Kayapó Ákjboro, ao ser indagado sobre a falta de mulheres de sua etnia entre os delegados.

Aos olhos das feministas, a afirmação pode parecer ultrapassada, o cúmulo do machismo, mas existe uma explicação. A maior parte dos povos não aceita, por exemplo, que a mulher exerça o papel de cacique ou outro tipo de comando dentro de sua aldeia. É uma questão cultural. Não faz parte da tradição indígena. Às mulheres sempre foi reservado o trabalho de educar, cuidar da maloca e dos filhos. Entretanto, muitas indígenas enfrentam os costumes para, no futuro, poderem ter direitos similares aos dos homens.

Engajada desde os 14 anos em movimentos indígenas, até mesmo feministas, a Xukuru Kariri Graciliana Selestino Wakanã defende o respeito às

culturas indígenas. “Muitas vezes ouvi dizer dos meus próprios parentes: ‘Olha, lá vem a feminista’, só porque sempre participei e lutei pelos direitos das mulheres. Mas eu sei que tenho de respeitar a cultura do meu povo porque, mesmo querendo meus direitos, a gente sabe que tem papéis fundamentais que só competem ao homem dentro da cultura indígena. Então, eu jamais vou me meter e incentivar algo que vá de encontro aos valores e tradições das culturas”, diz. “Mas uma liderança política é diferente. Pode incluir as mulheres, pois temos um papel essencial dentro disso. A mulher tem uma visão mais geral. Ela se preocupa com a coletividade”, acrescenta.

Prova disso é que as reivindicações mais freqüentes delas se encontram nas áreas mais básicas para a manutenção dos povos: saúde, educação e questão fundiária. “As mulheres têm um papel muito importante porque nós nos preocupamos com o futuro dos nossos povos, das nossas famílias. Nós nos preocupamos com saúde e educação, e com território, pois percebemos que sem a terra não há saúde, sem saúde não há educação. Então, essas são questões muito fortes, sendo que uma depende da outra. A nossa participação representa a preocupação com a perpetuação da nossa gente e a sustentabilidade dos nossos filhos no futuro”, explica a delegada Terena Janete Lili Azambuja, da Aldeia Bananal (MS).

PARTICIPAÇÃO FEMININA

novas guerreiras

Retomando as questões iniciais, fortalecimento da Funai e colocação em prática das propostas da Conferência, entendemos que os povos indígenas perderam a oportunidade de mudar o provável e lamentável destino da Funai, ao votarem contra a criação do Ministério dos Povos Indígenas. A decisão de adiar para uma próxima conferência esse debate, a nosso ver, é mais uma chance que deixaram passar. Ao contrário do que se propaga, o Ministério não extinguiria a Funai, vindo a substituí-la, não. O Ministério traria para si esse órgão fortalecido, já que cumpriria as propostas da Conferência, a educação e a prestação de serviços médico-sanitários da também claudicante Funasa.

O Ministério dos Povos Indígenas deve ser entendido como instrumento de consolidação da política indigenista nacional, autônomo, livre de ingerências e meio eficaz de concretização das propostas da CNPI. Mas, por enquanto, resta esperar para ver como o Governo Federal receberá o Documento Final da Conferência.

Viúva de Orlando Villas Bôas, atuou no Xingu como enfermeira por 16 anos. Filho de Orlando e Marina Villas Bôas, advogado e filósofo.

Os Villas Bôas, no final da década de 1960, entendiam que o primeiro passo para melhorar as condições de vida dos índios seria livrar a Funai de qualquer pressão política.

Durante a Conferência, algumas mulheres reuniram-se para debater o papel delas na política indigenista

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27ensaio

Um olhar carregado de sentimento, como o do

menino que observa, por trás das flechas, um grupo

que chega cantando na aldeia. A beleza dos Awá-

Guajá através das lentes de Christian Knepper é um

manifesto apaixonado pela proteção desse povo,

cuja cultura é cada vez mais ameaçada pelo avanço

da sociedade envolvente. Paixão que se reflete na

sinceridade de imagens captadas no cotidiano da

aldeia. Como a silhueta de um pequeno caçador que

aponta o arco em direção ao céu para derrubar uma

preguiça, escondida na mira do arqueiro.

Christian, alemão radicado há 15 anos no

Maranhão, esteve por diversas vezes, entre os anos

2002 e 2003, nas aldeias Awá e Juriti, na Terra

Indígena Awá. Desde que teve seu primeiro contato

com o grupo, impressionou-o a harmonia com que

vivem e interagem com a natureza. Confeccionam

habilmente os objetos de que necessitam em seu dia-a-

dia. Usam a boca para deixar as flechas afiadas. Criam,

com carinho, os filhotes dos animais caçados, que mais

tarde se transformam em amigos e brinquedos das

crianças. “Mas é triste escutar o barulho ensurdecedor

de um trem da Estrada de Ferro Carajás, enquanto

dançam para a Lua”, comenta o fotógrafo, ao lembrar o

momento em que retratou o ritual “viagem para o céu”

(ohó iwa-beh), cerimônia praticada durante o período

da estiagem nas noites de Lua cheia. Nessa cerimônia,

os homens são adornados pelas mulheres com penas

de aves, como na foto desta página.

Os Guajá, que se autodenominam Awá, termo

que significa “homem”, “pessoa” ou “gente”, tiveram

os primeiros contatos na década de 1970. Não muito

longe de onde foram tiradas as fotos deste ensaio, um

subgrupo de Awá vive ainda mais ameaçado: cerca

de 30 indivíduos perambulam pela Terra Indígena

Araribóia, na floresta, ainda sem contato permanente

com a sociedade ao redor. De uma forma geral, os Awá,

um dos últimos povos caçadores e coletores do Brasil,

enfrentam problemas com doenças introduzidas pelos

não-índios, e vivem em áreas em constante perigo de

invasões. Um futuro incerto.

CHRISTIAN KNEPPER

beleza ameaçadaFelipe Milanez

Mirando o céu, 2002, aldeia Awá. “O menino subiu no telhado de sua casa para derrubar um bicho preguiça que havia fugido para uma árvore, depois de uma caçada”, conta Christian

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Em um dia chuvoso, na aldeia Awá, em 2002, menino descansa em rede de tucum

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30 31CHRISTIAN KNEPPER

Aldeia Juriti, 2003. Adultos consertam arcos e flechas em volta de fogueiraCrianças brincam no rio num final de tarde em 2003, na aldeia Awá

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Aldeia Juriti, 2003. “Esse menino era muito tímido e não parava de me olhar enquanto eu fotografava. Ficava escondido. Nessa hora, veio um grupo cantando, que chamou sua atenção, e ele olhou para eles.”

Ao lado, mãe cata piolho em criança na aldeia Awá, em 2003Criança brinca com macacos, em 2003, na aldeia Juriti

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35terra

O nome faz referência à vegetação. Mata perigosa, mata desconhecida, mata misteriosa, mata alta. Diferente da mata baixa do cerrado, rala, que deixa ver longe para caçar, para fl echar, para cercar em emboscada e matar. Marãiwatséde. Passaram quatro décadas sem ver essa fl oresta. Nesse tempo, mato só o do cerrado. No fi nal da tarde de 16 de agosto, há exatos 40 anos, eles embarcaram em um avião. O ano era 1966. Eles não sabiam o que era um avião. Velhos, crianças, mulheres, guerreiros. Uma aldeia inteira. Vestiram roupa pela primeira vez – “presente” imposto pelo padre que acabara de chegar. Apertava, roçava a pele, manchava de urucum, arrancava a fi ta que prendia o cabelo e sufocava o pescoço. Eram altos, fortes, esguios. As roupas não os deixavam respirar direito. A respiração era ofegante. Tinham medo. Não sabiam para onde estavam sendo levados. Nem por que o sorriso do fazendeiro Ariosto da Riva, que parecia ser amigo, estava tão fi rme em seu rosto branco. Finalmente, ele iria se livrar dos “temíveis Xavante”. Deixaram tudo para trás, cestos, mandioca, e entraram no avião. No máximo, pensavam que iriam voltar para a aldeia ao lado, Bo’u, de onde tinham sido recém-expulsos.

retorno à mata misteriosaFelipe Milanez

Fotos: Anderson Schneider

Região nordeste de Mato Grosso Municípios São Félix do Araguaia e Alto Boa Vista Área 165 mil hectares População 615 ( + 100 ainda fora da área) Etnia Xavante Língua xavante, tronco macro-jê

MARÃIWATSÉDE

Zeferino caminha pelo pátio da nova aldeia de Marãiwatséde

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São Marcos”, recorda. “Mas só fiquei sabendo um mês depois. Os padres não queriam me falar”. Após a morte do pai, Damião ainda ficou dez anos sem ver a mãe, enquanto era aluno na Missão. Eram seis irmãos. Três morreram. Quando se reencontraram, ela dizia ao filho: “O espírito do seu pai está lá em Marãiwatséde. Quero morrer dentro da terra de Marãiwatséde.” Sua vontade era chegar viva. Dona Brígida, seu nome cristão, talvez com mais de 90 anos, praticamente não fala mais e não se levanta de sua cadeira de rodas. Conseguiu voltar, acompanhada do filho. “Ela veio junto com a gente, resistiu, lutou, ficou acampada para entrar ao lado dos guerreiros. Era o sonho dela voltar. Desde que chegou, nunca quis ir para o hospital. Não quer mais sair.”

A traumática decisão da retirada foi tomada num ambiente político que os Xavante ainda não conheciam, em salas de reuniões de São Paulo e Brasília. Vieram os recursos. Aviões da FAB. Um audacioso piloto de nome Comandante Rolim Adolfo Amaro. Um respeitado Xavante, Mário Juruna, de São Marcos. Padre Mário Panziera, diretor da Missão, com uma fala fluente em A’uwê e trouxas de roupas para cobrir as “vergonhas”. Alguns indigenistas. Os novos donos das terras. Tudo para persuadir os Xavante a embarcar, sem dizer a eles para onde estavam sendo levados. É uma história muito mal contada, que Carolina, 45 anos, mulher de Rufino Ruwa’wé, irmão de Damião, tenta recuperar. Recém-formada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), seu objeto de estudo foi a cronologia da espoliação e a retomada da área. “Quero dar a nossa versão sobre o que aconteceu, responder aos antropólogos”, diz.

Exílio em terra emprestada “Pensavam que Xavante era tudo igual”, analisa Carolina. Esse foi um

dos principais erros históricos em relação a seu povo. Apesar de pertencerem à mesma etnia, os subgrupos Xavante possuem regras sociais muito específicas. “Somos muito diferentes uns dos outros. Xavante não é tudo igual, isso é mentira de ‘branco’”, afirma. Sem levar isso em conta, forçaram a transferência do grupo para São Marcos. O período seguinte à epidemia foi uma longa diáspora. Obrigados a peregrinar por cinco terras indígenas, exilados em território Xavante. Viveram quatro décadas em “terras emprestadas”, segundo expressão cunhada pela socióloga Xavante. Primeiro se refugiaram na T.I. Couto Magalhães. Diferentemente da influência salesiana, ali a organização religiosa que dominava era protestante. Pensavam que teriam mais chances. “Depois de alguns anos, começou a haver muita briga. Nosso povo estava ameaçado e teve que ir buscar ajuda em Parabubure. Era terra emprestada, e também não deu certo por muito tempo. Dez anos depois, tivemos que mudar para a T.I. Areões”, explica Carolina. Ficaram nela até 1985, quando novamente o convívio se tornou insustentável. Sem outra alternativa, o grupo conseguiu asilo na T.I. Pimentel Barbosa, onde construíram a aldeia Água Boa. Foi a última mudança. Não havia outro lugar para irem. Faltava caça, o que acabava com seus sonhos. Passavam fome. Rivalidades e guerras marcaram esse período e

Apertados, ouviram o “barulho grande”, que fazia voar. Os ouvidos doíam muito, não se escutavam. Medo. Choro. Do alto, a mata alta foi ficando pequena, pequenina, bem pequenininha. No ar, viram de perto o que pareciam ser flocos de algodão gigantes. Não sabiam que de perto o céu era assim. Muito algodão que daria para fazer muito, mas muito cordão para suas gravatinhas tradicionais (dañorebzu’a). Até distraía um pouco a tensão. Três horas no ar. 400 km ao sul. Deu sono, enjôo, apreensão. Quando aterrisaram, a mata já era baixa, quente, cerrado. Não era a mesma, que só voltariam a ver – quem teve a chance de sobreviver – há dois anos. Em agosto de 2004.

A expulsão dos Xavante de Marãiwatséde é uma ferida aberta na história do indigenismo nacional, que começa a cicatrizar com o recente retorno desse povo a sua terra. Expansão para o oeste, rodovia Belém–Brasília, Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Eles estavam no meio do caminho. Estima-se que a transferência forçada de sua terra tradicional para a Missão Salesiana de São Marcos, para onde foi levado o grupo de Marãiwatséde, tenha matado, só nas duas primeiras semanas, cerca de 160 dos 233 que embarcaram nos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Sem anticorpos, foram massacrados por uma

MARÃIWATSÉDE

epidemia de sarampo. Feitiço, dizem os índios. Corpos e mais corpos eram carregados pelas próprias famílias, em tratores, em carrinhos de mão, nas costas, e empilhados em valas comuns. Noite e dia. A mortandade imediata foi apenas a primeira etapa de sucessivos sofrimentos. “Ninguém nos ajudou, ninguém nos deu apoio, nos largaram para morrer durante todos esses anos”, reflete o cacique Damião Paradzané, o atual líder do grupo. Depois de muita luta, conseguiram voltar. Com um espírito forte, enfrentaram sarampo, Igreja, dinheiro, bala e até mesmo flecha de parentes Xavante que tentaram matá-los. Ao longo de 40 anos, permaneceram unidos. Uma cultura forte. Uma identidade guerreira. A’uwê uptabi, como se chamam. “Povo verdadeiro”.

“Meu pai morreu!” Damião tinha oito anos, quando foi colocado dentro do avião. Era pequeno, mas se lembra bem de cada momento. Seu pai, o grande chefe Caetano Ru’waê, não queria ir de jeito nenhum. Não acreditava no que diziam os waradzu, “brancos”. Queria ficar, morrer em Marãiwatséde, se fosse preciso. De guerra ele não tinha medo. Enfrentaria quem fosse. Sabia que, se saísse, poderia nunca mais voltar. Tinha sonhado com isso. E nunca mais voltou. “Meu pai morreu dois dias depois que a gente chegou em

A expulsão dos Xavante de Marãiwatséde é uma ferida aberta na história do indigenismo nacional.

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O cacique Damião na plantação de arroz: em um ano e meio vão colher a segunda safra

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estivessem no local. O decreto de homologação foi expedido em dezembro de 1998 . Mesmo assim, eles continuaram impossibilitados de entrar. O desafi o para eles era reconquistar, efetivamente, seu território, uma vez que as instâncias burocráticas já haviam sido concluídas. Desde 1995, após a demarcação da área, corre uma ação na Justiça Federal, proposta pela Funai e pelo Ministério Público, para que o Judiciário determine a desocupação da área. Até hoje, ela não foi decidida. Desacreditados e cansados de esperar – a situação se tornava drástica na aldeia Água Boa –, tiveram que agir por conta própria. As primeiras tentativas forçadas de entrar ocorreram em 2003. Sempre sofreram represálias. Posseiros e jagunços armados, às centenas, ameaçavam fulminar quem entrasse em qualquer das fazendas da região. Tiveram que reunir forças, chamar remanescentes que estavam

deixaram cicatrizes de desunião. Precisavam voltar a Marãiwatséde, mas não podiam. Sua terra estava cada vez mais ocupada por fazendas e vigiada.

Durante todo o tempo em que estiveram fora, pleitearam politicamente o retorno. Na época da ditadura militar, a requisição não teve chance alguma. As primeiras esperanças apareceram com a Constituição Federal de 1988. No início dos anos 1990, com a ajuda de ONGs, começaram a pressionar a Agip Petroli, então dona da área (veja box pág. 37). O cacique Damião começou a peregrinar por todas as instâncias, para juntar recursos e forças políticas. Foi levado para a Itália, para olhar nos olhos de quem se dizia dono de sua terra. Durante a Eco 92 – a Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, com a presença de mais de 180 países – conseguiu pressionar a poderosa petroleira italiana. O seu presidente, Gabrielli Cagliari, aproveitando a atenção da mídia no encontro, anunciou a intenção de devolver a terra aos ocupantes tradicionais. Não conseguiu, no entanto, entrar em acordo com a fi lial brasileira, que começou a estimular a invasão por posseiros e a difi cultar os trabalhos técnicos da Funai de identifi cação e delimitação.

Com a área completamente invadida, o processo de homologação ocorreu sem que os Xavante

MARÃIWATSÉDE

Era lua cheia. Batemos palmas. Cantamos. No outro dia, também dormimos pouco. A gente tava muito feliz. Matei porco, comemos”, recorda Damião.

“A volta dos Xavante a Marãiwatséde é o maior ato de poder e de vontade da política indigenista realizado durante o governo Lula, talvez até mesmo da última década”, sentencia o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, que também esteve presente ao local para incentivar a luta, durante as tentativas de retomada. “Uma terra que estava praticamente perdida, totalmente invadida, sem espaço para os habitantes tradicionais”, comenta. O apoio irrestrito que a agência ofi cial tem proporcionado ao povo de Marãiwatséde pode ser visto como um mea-culpa pela incapacidade anterior do Estado de recolocar os Xavante na sua terra. Pelo erro histórico da retirada. Dívida histórica. Hoje, os funcionários do órgão lutam ao lado dos índios. “Edson Beiriz terrorista da Funai” lê-se numa das placas demarcatórias. Ameaçado de morte, o administrador regional precisa andar com cuidado na região. “Eu me

“Entramos de peito aberto”, recorda o cacique Damião, “depois de nove meses acampados na BR 158”. Em 10 de agosto de 2004, a fazenda Caru foi a primeira propriedade invasora a ceder.

não iria reagir, não iria derramar sangue, iria buscar seus direitos nas esferas competentes. Poucas horas antes das 19:00, quando a liminar assinada por Ellen foi enviada via fax para a Funai, os Xavante, impacientes, já tinham tomado o rumo em direção à fazenda Caru.

O retorno Com um golpe certeiro de borduna, Damião esfacelou o cadeado que lacrava a corrente na porteira de entrada da fazenda. Colocou toda a sua força. “Entramos de peito aberto”, lembra. Em 10 de agosto de 2004, a Caru foi a primeira propriedade invasora a ceder. Nos meses seguintes, conseguiram desocupar cerca de 20 fazendas. Ainda restam algumas dezenas. Nenhuma conseguiu indenização em troca da retirada. Todos os casos foram julgados como ocupações de má-fé pela Justiça. “Primeira noite que chegamos aqui eu nem dormi! Dançamos a noite toda!

dispersos por outras aldeias Xavante. Conseguiram reunir 400 guerreiros, liderados por Damião. Em 2004, decidiram que era hora de entrar.

Rodovia BR 158, estrada de chão batido, caminhões lotados de soja passando de hora em hora. Um grupo de 400 guerreiros Xavante, pintados para o confronto, algumas armas de fogo, arcos, fl echas e bordunas, amontoados em barracos de palha e plástico. Um pequeno córrego, uma ponte de madeira. Do outro lado, 500 posseiros, jagunços, fazendeiros, também acampados, armados para atirar “em qualquer índio que passar”. Essa situação durou exatos nove meses. Fome, desnutrição e pneumonia começaram a atacar os índios, que não arredavam pé. A Justiça, com o processo em mãos, relutava em decidir. Para pressionar, os Xavante trouxeram suas famílias – mulheres, velhos e crianças. O drama aumentava. Recebiam comida, suporte e apoio da Funai. Mesmo assim, nessa situação, estavam incapacitados de se alimentar adequadamente. Três crianças morreram à beira da estrada. Indignados, os índios fi zeram seu funeral na entrada de uma fazenda, já em sua terra. A mídia denunciou a situação, e a Ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu a entender que iria conceder uma liminar em favor dos Xavante. O dono da Fazenda Caru, uma das tantas na área invadida, em negociação, afi rmou que

É de quem chegar primeiro

Carolina, em casa, quer reescrever a história de seu povo. Mércio Gomes, presidente da Funai, durante a retomada: apoio aos Xavante de Marãiwatséde

dañorebzu’a, gravatinha tradicional

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previno ao máximo e nunca fico sozinho”, afirma. “A retomada só começou, mas conseguimos finalmente entrar na área e começar a plantar e a produzir”, diz o sertanista Denivaldo da Rocha, que também trabalha na Funai local.

Reconstrução Marãiwatséde hoje é formada por 70 casas dispostas em forma de ferradura. De uma ponta a outra, vai um quilômetro. É imponente como qualquer outra aldeia Xavante. Ali vivem 615 indígenas – algumas crianças já nasceram na aldeia. Outros cem Xavante continuam espalhados e esperam mudar para junto de suas famílias. Atrás das casas de palha, há roças individuais. Mandioca, urucum, mamão, feijão, milho, goiaba, raízes diversas. A retomada tem sido caracterizada pelo anseio de culturalização do ambiente, para usar o termo dos antropólogos, transformar, dar a cara Xavante para a terra. No ano passado, fizeram o ritual de furação de orelha. Meados de maio, realizaram o waiá – cerimônia de iniciação espiritual. Um belo projeto de “arquitetura intercultural” assinado pelo indigenista e arquiteto Renato Sanchez vai melhorar a qualidade das habitações – já não restam quase buritis para fornecer palha. Se ficaram 40 anos fora, em menos de dois conseguiram mostrar por que queriam tanto voltar.

A história fica guardada na memória de oito velhos que conseguiram retornar. É com eles que Carolina tenta recuperar os fatos para escrever. Rostos magros, de traços retos. Não sobram rugas na cara. A pele cola ao osso. Fortes, magros. Cabelos em corte geométrico. Zeferino, com mais de 60 anos, irmão de Damião, é o artesão. Por suas mãos, saem as cordinhas firmes que amarram os pulsos e tornozelos em rituais. As gravatas dañorebzu’a, do algodão que planta em sua roça, cocares – “Este daqui é para a formatura da Carolina!”. Mãos macias que seguram netos com carinho. Netos nascidos em Marãiwatséde como ele. Ninguém ousa contrariar o que os velhos decidem. Nas discussões, são eles que dão a última palavra. Guardiões de uma cultura sólida. “Antigamente não tinha brancos”, lembra o ancião Dabobó, mais de 80 anos. Óculos leves lhe conferem um ar intelectual. Seu bisneto anda grudado a ele. Usa uma pena de gavião amarrada na “gravata” semelhante a sua e idêntica pintura corporal de guerra. “Aí chegaram os brancos. Mataram meu pai, meu avô. No mato. Tinham saído para caçar. Eu tava junto. Fugi. Chorei muito, por muito tempo.” Seu bisneto escuta atentamente. “Branco fez muito mal para Xavante. A gente não quer que leve não sei para onde mais. Quer ficar aqui em Marãiwatséde... Morrer aqui.”

Meninas jogam futebol no pátio central da aldeia

política

A consolidação da democracia depende da criação e do funcionamento de estruturas de Estado que permitam a participação social e o exercício da cidadania. Instituir comissões e conselhos para elaborar políticas públicas é uma dessas formas. No caso dos povos indígenas, trata-se de uma reivindicação antiga. Desde 1992, quando o Governo brasileiro descentralizou as responsabilidades da Funai e repassou áreas como Educação e Saúde para outros órgãos, as organizações indígenas e indigenistas pedem a revisão dos princípios gerais da política indigenista. Em março, essa reivindicação começou a se tornar realidade. Por decreto do Presidente da República, foi criada a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI).

“Há muito tempo somos apenas consultados. Uma coisa é você dar o direito à fala, à voz. Outra coisa é o direito de ser escutado. A criação dessa Comissão foi uma proposta conjunta entre governo e organizações indígenas”, diz a presidente do Instituto Indígena Brasileiro Warã, Azelene Kaingang, integrante do primeiro Grupo de Trabalho Interministerial, que, em 2004, propôs a Comissão.

Para o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, a criação da Comissão significa a união dos índios com o Estado brasileiro. “É o reconhecimento do Estado de que os índios estão aqui para ficar, permanentemente. Significa que os povos indígenas podem dialogar e serem ouvidos pelo Governo brasileiro.”

o direito de ser ouvidoChristiane Peres

O funcionamento da Comissão será um teste para a futura criação de um Conselho Nacional de Política Indigenista, que deverá ter poderes mais amplos, com um caráter deliberativo. Por isso, será criado por lei. A expectativa é a de que, no início de 2007, a Comissão já tenha apresentado o anteprojeto para a criação do Conselho que garantirá um debate mais sólido, com total participação dos índios na formulação de uma nova política indigenista. Para que os trabalhos tenham início, serão escolhidos 35 integrantes: 20 indígenas, 13 membros do Governo Federal e dois representantes de organizações não-governamentais ligadas às causas indígenas. Índios e Governo terão, cada um, direito a dez votos, e as organizações assumirão o papel de observador – podendo ser consultadas, mas sem direito a voto. Em caso de empate, segundo o decreto, a decisão ficará a critério da Funai.

O primeiro passo da Comissão deve ser a discussão das resoluções da 1ª Conferência Nacional dos Povos Indígenas. “O que a Comissão ia fazer, a Conferência já fez: indicar as prioridades, as normas, a discussão imediata do Estatuto do Índio pelos povos, pelas organizações e comunidades indígenas. A Comissão Nacional tem agora o papel de propor um anteprojeto para a criação do Conselho Nacional que poderá pôr em prática os caminhos pensados até agora”, opina Azelene Kaingang.

O Presidente Lula recebe índios Rikbaktsa

PARTICIPAÇÃO SOCIAL

© Radiobrás

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4343geralhumildade característica da espiritualidade de seu povo.

Apesar de estarem satisfeitos com o projeto, a família de Roberto e outras 24 famílias atendidas pela ação fazem questão de manter a arquitetura de suas casas tradicionais. Preservar a cultura é mais forte que qualquer “novidade” vinda para dentro da aldeia. E a moradia é uma peça-chave. Antes mesmo de iniciar as obras, o pai do cacique Vergílio, Hélio Fernandes, “homem experiente e sabido”, conta o fi lho, aconselhou-o a conservar o que existe de mais precioso na comunidade: a identidade. Ele, que é o rezador da aldeia, vai transformar sua casa tradicional num Op~y, o lugar sagrado de reza. “Aqui a gente não muda nossos costumes ou deixa de valorizar nossa sabedoria, se aparecer luz elétrica ou água encanada. A gente vai usar essas coisas, mas não vai deixar de ter respeito pela nossa cultura”, afi rma, enfático, o cacique Vergílio.

Adaptações culturais As obras foram iniciadas em 2004 e a perspectiva é de que 160 casas sejam entregues até meados de agosto deste ano. Outra comunidade atendida será a Kaingang da Terra Indígena Monte Caseros, também no Rio Grande do Sul. Hoje com 1,1 mil hectare, a terra foi ocupada por colonos durante mais de 60 anos. Ao retornarem, os índios depararam-se com um cenário bem diferente: casas, igrejas, salão comunitário e outras benfeitorias que acabaram sendo incorporadas ao cotidiano da comunidade. Para as 78 famílias, 330 pessoas, o número de habitações ainda estava bem aquém das necessidades. Os Kaingang, que vivem um contato antigo com a sociedade envolvente, modifi caram muito alguns de seus costumes tradicionais. Um percurso inevitável e sem volta que foram obrigados a seguir. Hoje buscam casas de material resistente, madeira ou alvenaria, com divisórias e janelas, casas que isolem a luz exterior. As adaptações culturais são feitas no interior da moradia, como uma única fonte de água ou um pequeno rancho tradicional.

Na casa do cacique Gabriel Glaudino, em Monte Caseros, vivem três famílias, entre elas, a de Danilo Braga. Pai de três fi lhos, Danilo ajeita-se com os

casa nova Danielle Santos

Foto: Felipe Barra

Sete e meia da manhã. O barulho de serrotes, martelos e betoneiras anuncia mais um dia de trabalho intenso na aldeia Gengiva, Terra Indígena Guarita, norte do Rio Grande do Sul. Entre as atividades corriqueiras da comunidade, como a colheita, a fabricação de artesanato e a criação de animais, o cacique Vergílio Benites e 40 homens assumem a função de ajudante de obras para a construção de 25 casas. Líder dos Guarani Mbiá de Guarita desde 1999, Benites participou de reuniões com técnicos da Funai para discutir o melhor modelo de habitação para eles. Os encontros foram realizados em 2004 e tiveram a presença de representantes de mais quatro etnias (Kaingang, Guarani Kaiwá, Karajá e Pataxó), do Rio Grande do Sul, de Mato Grosso do Sul, de Tocantins e da Bahia.

CONSTRUÇÃO DE MORADIA

Assim surgiu a ação Construção de Moradia para a Comunidade Indígena, que faz parte do Programa Identidade Étnica e Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas, da Diretoria de Assistência da Funai. Segundo João Gilberto da Silva Nogueira, indigenista e coordenador da ação, o objetivo é identifi car comunidades indígenas em áreas ambientalmente degradadas – sem recursos naturais para construir casas tradicionais – e oferecer condições de moradia. A idéia é melhorar a qualidade de vida e reduzir, assim, os índices de insalubridade, defi ciências sanitárias e doenças que poderiam ser facilmente evitadas.

Nossos hábitos No caso dos Mbiá da aldeia Gengiva, muitas famílias que serão benefi ciadas vivem uma situação delicada. É o caso de Roberto Gonçalves, 85 anos, o mais velho da comunidade. Viúvo, divide uma casa de apenas sete metros quadrados com dois fi lhos, noras, netos, a irmã e o cunhado. Com jeito tranqüilo e olhar tímido, ele faz sinal de positivo com a cabeça, quando lhe perguntam sobre a casa nova, de sessenta metros quadrados. “A antiga é boa, mas, com a nova, a gente vai ter mais espaço para fazer as coisas”, diz com a

familiares no porão da casa de seu Glaudino até a sua fi car pronta. Tem sido assim durante os últimos oito meses. Na expectativa de receber logo o novo espaço, diz que essa oportunidade vem ao encontro das “grandes batalhas nas reservas, que são a da moradia e a da questão fundiária.” Professor de História e propagador de conhecimentos dentro e fora da aldeia, ele admite que muito de sua etnia já se perdeu ao longo dos dois séculos de contato. Mas orgulha-se, ao lembrar que a língua e o artesanato os mantêm fortes e decididos para enfrentar as adversidades e lutar pela preservação cultural. Sabe que apenas o respeito aos costumes antigos poderá mantê-los unidos. “Nós, Kaingang, já temos uma certa mistura. Nós vemos os outros grupos étnicos que têm traços físicos mais fortes que o nosso e percebemos que isso os une. É assim que a gente quer fazer também, fi car unido”, afi rma Danilo.

Outras comunidades aguardam, para 2007, o início das obras em suas áreas. O total previsto para a execução do projeto é de R$ 7,9 milhões, garantidos até 2011 pelo Plano Plurianual (PPA) do Governo Federal. A ação Construção de Moradia para a Comunidade Indígena, da Funai, visa também a incentivar outras propostas de órgãos federais e estaduais de investir recursos em habitações indígenas. “Nossa empreitada nos possibilita fazer mediações para conseguir maiores benefícios para as comunidades”, diz o coordenador João Gilberto. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, o Ministério das Cidades vem investindo recursos na construção de 900 unidades habitacionais para a comunidade Guarani Kaiwá, projeto acompanhado pela Funai. No Paraná, 370 unidades estão em fase de construção. Em Minas Gerais, a projeção é de 1.200 novas casas. “Além disso, temos contatos com Tocantins, Santa Catarina e Goiás para o início de projetos com a mesma característica”, explica João Gilberto. Sempre que possível, numa forma próxima à da arquitetura tradicional e do desenho espacial das aldeias. Chocar o menos possível para que, como deseja o cacique Vergílio, a tecnologia não atrapalhe os costumes e as tradições.

“A gente não muda nossos costumes ou deixa de valorizar nossa sabedoria, se aparecer luz elétrica ou água encanada. A gente vai usar essas coisas, mas não vai deixar de ter respeito pela nossa cultura.”

Vista de habitação em terra indígena na região de Passo Fundo, RS

Modelo de Arquitetura Intercultural

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45educaçãovai essa formação, para que realmente venha atender às demandas das comunidades. Hoje, os cursos tradicionais não nos possibilitam fazer uma reflexão crítica e aproveitar isso dentro das nossas próprias comunidades”, alerta.

Pierlângela é pedagoga e acredita na função social do profissional indígena. “Nossa preocupação é formar primeiro professores, para termos uma melhoria na qualidade do ensino de base e, assim, capacitarmos nossos jovens para o vestibular de outras áreas. A importância não é formar intelectuais indígenas ou deixar que a formação superior se sobreponha à nossa concepção de vida, mas formar pessoas com capacidade e comprometimento de luta pelos nossos direitos.” Para ela, o modelo de multiplicação de agentes sociais precisa estar acompanhado de uma política governamental que promova o acesso ao ensino superior e garanta a permanência nele.

Na busca por soluções, o movimento de professores indígenas vem tentando aprofundar a discussão sobre um sistema próprio de educação na esfera federal. Isso significa a federalização das escolas indígenas. A mestre em Educação Francisca Novantino Paresi, mais conhecida como Chiquinha Paresi, explica que é uma nova perspectiva que se abre: momento de se buscar autonomia na gestão educacional, além de contribuir para a construção de uma proposta pedagógica comunitária. “Isso mostra que as comunidades indígenas têm compreensão e experiência suficientes. Sabem o que querem da educação. Nós entendemos que há possibilidade e a lei assegura um sistema próprio de educação, voltado para os interesses da educação indígena e, principalmente, para os interesses da comunidade”, afirma.

No Brasil, segundo o último censo escolar, em média, 190 mil universitários abandonam os cursos superiores, todos os anos. As causas são as mais variadas, desde dificuldades financeiras e habitacionais até falta de adaptação. Entre os índios, esse problema é ainda mais crítico. Dados da Funai revelam que cerca de 60% são forçados a desistir dos estudos por falta de apoio. De acordo com o antropólogo da Coordenação

Geral de Educação da Funai Gustavo Hamilton Menezes, não basta ter apenas políticas de acesso, é preciso pensar em formas de garantir a permanência deles no ensino superior. “Não adiantam só as vagas. Eles precisam de reforço acadêmico, material para acompanhar as aulas. É preciso muito para chegar ao sucesso da formação desses estudantes, principalmente, porque a formação deles é diferente da nossa”, explica.

Sotaques e costumes Edilsom Martins Melgueiro lembra como a falta de uma política de inclusão prejudicou seu desempenho dentro da sala de aula. Por ser índio e não falar bem o português, ele era freqüentemente discriminado pelos colegas e professores, razão pela qual pensou várias vezes em largar os estudos e engrossar a estatística de desistência indígena do ensino superior. Tinha dificuldade em falar a letra “o”, por exemplo. Sua pronúncia era mais fechada, puxando para a vogal “u”. A palavra bola virava “bula”, sempre – motivo de deboche entre os futuros educadores amazonenses.

A situação só melhorou no penúltimo ano de curso, quando estudaram as variações lingüísticas. Aprenderam que existe diversidade nos níveis do sistema (contato entre línguas), da norma (normas e subnormas no processo social) e da fala (idioleto – conjunto de características da língua de um indivíduo) bem como as variantes lingüísticas sociais, regionais

oportunidade ampliadaChristiane Peres

Fotos: Anna Isabel

Vindo do alto do rio Içana, no norte do Amazonas, o garoto Kdakwali aterrissou em Manaus para ter sua maior penitência. Levado a contragosto por religiosos, o filho único de uma família Baniwa começou, aos 16 anos, o curso profissionalizante de uma escola agrotécnica. Já havia estudado disciplinas tradicionais para não-índios numa escola de freiras, onde quem não tentasse falar português ficava sem merenda. Porém, na capital, viveu seu maior choque cultural – a diferença da língua, o preconceito dos colegas, o aprendizado pela pedra. Há 20 anos, Kdakwali, nome da pintura do deus Dzulli, tornou-se Edilsom Martins Melgueiro. Hoje, cursa a segunda faculdade, no momento em que o País busca estruturar um sistema público de ensino capaz de incluir os indígenas.

“Fui muito discriminado, primeiro por não saber falar português, depois eu não conseguia me adaptar à comida. Discriminado, tanto pelos colegas como pelos professores, que não respeitavam a nossa cultura”, lembra. O Ensino Médio terminou com a vontade de nunca mais abandonar a aldeia Baniwa. Edilsom tornou-se professor e presidente da Associação das Comunidades Indígenas do Rio Negro, que reunia as demandas de educação e saúde de 23 etnias. Em seu trabalho de liderança, conseguia se comunicar, mas não possuía conhecimento técnico para reivindicar aquilo de que precisava. “A gente falava que queria educação, mas quando sentava com a secretária de Educação do estado ou com o prefeito, não sabia colocar no papel o que estava pedindo. Muitas vezes, os brancos escreviam por nós. Foi aí que surgiu a idéia de fazer vestibular.”

Ao terminar o curso de Letras na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e ingressar, este ano, na faculdade de Ciências Farmacêuticas na

ENSINO SUPERIOR

Universidade de Brasília (UnB), Edilsom torna-se um dos 2,5 mil indígenas que chegam ao ensino superior. O ingresso na universidade é uma realidade ainda em processo de discussão para essa parcela população que, só a partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, teve uma política educacional voltada para suas necessidades. Isso porque o artigo 210 do documento garante às comunidades indígenas a possibilidade de utilizar nas escolas – além do português – suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Isso fez com que crescesse o número de escolas indígenas e, conseqüentemente, aumentasse seu nível de alfabetização.

Com a crescente demanda escolar indígena, alguns projetos começaram a ser pensados para garantir o acesso dos alunos ao ensino superior. A Funai, o Ministério da Educação (MEC) e dez universidades públicas firmaram alguns convênios, como o Programa de Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (Prolind), no qual as universidades são incentivadas a desenvolver projetos de cursos de licenciatura para a formação de professores indígenas, que integrem ensino, pesquisa e extensão, além de valorizarem a língua materna, a gestão e a sustentabilidade das terras e da cultura desses povos. Entre elas, estão a Universidade Federal de Roraima, a Universidade do Estado de Mato Grosso, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e a Universidade Federal de Tocantins. Ao mesmo tempo, outras instituições tentam implantar vagas extras para indígenas em seus cursos tradicionais. Esse foi o caso da UnB, que abriu, este ano, 14 vagas para as áreas de saúde.

Cada povo, uma cultura Defensora de um sistema educacional criado pelos e para os índios, a coordenadora geral da Organização dos Professores Indígenas de Roraima (Opir), a Wapichana Pierlângela Nascimento da Cunha, lembra que a construção desse processo não é fácil, pois as necessidades dos povos são diferentes. “Cada povo, cada cultura tem as suas especificidades, que devem ser respeitadas. Nós, indígenas, é que temos que nortear para onde

“Fui muito discriminado, tanto pelos colegas como pelos professores, que não respeitavam a nossa cultura.”

Aluno indígena na UnB

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e situacionais. “Nós entendemos que todos temos nossas particularidades e, mesmo assim, somos brasileiros. Ou seja, o nordestino, o gaúcho, o paulista falam diferente: tem os sotaques, as gírias. E nem por isso um está mais certo que o outro. Isso foi muito legal pra mim. Depois dessa disciplina, eu passei a ter mais amigos na sala, as pessoas já me tratavam mais como parte do grupo”, relembra.

Assim como na história do contato com os povos originários, os índios, mais uma vez, precisaram se adaptar ao “conhecimento branco” para serem aceitos. O movimento nunca é o inverso, nem mesmo quando o assunto é educação. Muitas universidades ignoram ou mesmo desconhecem a presença indígena na sua região administrativa. O coordenador geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (CGEEI/MEC), Kleber Gesteira, critica esse modelo de ensino e lembra que existem conhecimentos importantes, detidos tanto pelas comunidades indígenas como por outras comunidades brasileiras, que as universidades nem colocam em pauta. “Seria muito importante que a temática indígena contaminasse todos os cursos, não só os de Antropologia e Lingüística, Etnologia e Política Indigenista ou História, mas

ENSINO SUPERIOR

uma experiência de inclusãoOlgair Gomes Garcia

OPINIÃO

Medicina, Arquitetura, Engenharia. Todos têm muito que aprender com os índios. Nesse sentido, todos ganhariam, se as universidades fossem mais plurais e realmente se abrissem aos múltiplos conhecimentos indígenas”, aconselha.

1º Licenciatura Indígena

2º Normal Superior

3º Pedagogia

4º Direito

5º Letras

Fonte: Coordenação Geral de Educação – CGE/Funai

Novos professores A principal opção entre estudantes indígenas é pela formação de educadores. O curso com maior procura é o de Licenciatura Indígena, com 475 matriculados, no ano passado, e a expectativa é atingir quase mil, este ano.

Ranking

De 1997 a 2005, o número de estudantes indígenas cresceu 20 vezes. De 100 saltou para dois mil alunos, de acordo com a Coordenação Geral de Educação (CGE/Funai). Os números não são precisos, mas a dimensão aproximada já dá uma idéia. Essa inclusão acelerada esbarrou na falta de preparo das instituições responsáveis pela educação dos índios. Aproximadamente 60% desses alunos são levados a deixar de lado os estudos por falta de apoio. Normalmente, eles precisam de habitação, alimentação, transporte e ajuda para a aquisição de material escolar – necessidades mais freqüentes dos alunos que vivem em terras indígenas distantes dos centros urbanos. Na tentativa de amenizar a evasão do ensino superior e viabilizar a formação desses estudantes, a Funai disponibiliza uma verba mensal de apoio, que varia de acordo com as necessidades de cada aluno e convênio.

Apoios e dificuldadesDepois de 45 anos de profissão, foi apenas no

ano passado que tive a chance, pela primeira vez, de ser professora de alunas indígenas. Eram três mulheres Pankararu, de Pernambuco. Oportunidade rara, pois ainda são poucos os índios que conseguem freqüentar a universidade. No caso da PUC de São Paulo, começou com o Projeto Pindorama, em 2002, quando essa universidade passou a se ocupar de forma mais explícita com a formação de alunos indígenas. Como qualquer proposta de inclusão, o projeto gerou apreensão e diversas preocupações para os educadores.

Na conclusão do curso de Pedagogia, em 2005, uma preocupação começou a envolver a equipe de professores já no início do ano: as três alunas não correspondiam ao nível mínimo que se poderia esperar, em termos acadêmicos, de alunos em vias de concluir um curso universitário. Orientadora da elaboração dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) das três, a angústia de meus colegas sobre a “capacidade” de elas elaborarem esse trabalho também começou a me dominar, mas sob outra perspectiva.

Comecei a me perguntar por que havia tanta angústia nos professores em relação a pequenas questões de ortografia e de expressão do pensamento por escrito. Percebi, nas discussões, a falta de curiosidade em olhar e compreender o que estava embutido na diferença que essas alunas representavam com relação aos demais alunos. Apesar de acolhidas pela universidade, essas alunas sofriam uma forma velada de discriminação. Por que eles não se interessavam em aceitá-las naquilo que as constituía como indígenas? Essa diferença, que se mostrava no cotidiano, poderia desencadear novas descobertas e converter-se em novas possibilidades e desafios para, no nosso papel de educadores, compreendermos e nos enriquecermos com a nova situação docente. A inclusão a que a PUC se propunha apresentava-se como aprendizagem sobre a diferença, para imprimir mais sentido e significado ao processo de formação de todos os alunos. Com essas alunas, os professores tiveram a chance de um interessante questionamento sobre si mesmos, no ofício de educar.

Na interação com as alunas indígenas, o que entendia sobre opressão, tão bem analisada pelo professor Paulo Freire no seu livro Pedagogia do Oprimido, tornara-se vivo e fazia-me sentir constrangimento, vergonha, tristeza, face aos preconceitos intelectuais que estava presenciando. A esperança e a confiança no potencial transformador dessa experiência permitiram o relato e a discussão sobre o desconforto que a situação nos criava, e teve repercussão forte na equipe de professores.

As alunas falaram e registraram suas histórias de vida, refletiram e analisaram hábitos e costumes de suas etnias, de seus ancestrais, seus modos de vida, seus valores, interpretaram e destacaram a importância desses aspectos na vida comunitária de suas aldeias. E, sobretudo, colocaram tudo isso como objeto de estudo e aprofundamento teórico. Ao revermos nossas posições, descobrimos que incentivá-las transformou os nossos modos de ser e agir como pessoas no grupo todo, nas nossas próprias formas de compreensão e aceitação do outro. Esse convívio fez mudar o foco de nossas preocupações acadêmicas, tornando-nos não apenas mais humanos, mas essencialmente melhores educadores.

À medida que crescia a interação com Dora, Rejane e Elisângela, as três alunas Pankararu, fomos nos modificando, a ponto de permitir um novo olhar sobre nós mesmos, sobre nossos preconceitos e nossa falsa idéia de zelar por um suposto modelo acadêmico, repetido, copiado e consagrado como o melhor e o único.

Fomos surpreendidos em nossa arrogância acadêmica de um suposto saber, de um saber fundamentado na racionalidade ocidental, que nos faz enxergar como único modelo para explicar e aceitar os saberes a dicotomia de sempre entre o certo e o errado, o bom e o mau, o superior e o inferior. A reflexão sobre a experiência de inclusão colocou em xeque a tão defendida forma dialética de refletir e analisar a vida cotidiana; mostrou incoerências e contradições que existem entre o discurso e a prática. Habituados a nos colocarmos sempre como modelos do certo, vivemos a experiência de ser, para o outro, o diferente, e, com isso, fomos desvelando o significado de ser gente com o outro, bem ao gosto de Paulo Freire.

Olgair Gomes Garcia é doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Fomos surpreendidos em nossa arrogância acadêmica.

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dá atenção a um chefe que impõe sua própria vontade. Ele apenas formula, de maneira hábil, uma idéia para se chegar a um consenso. Se persistir uma discórdia entre o grupo, ele consulta os mais velhos. Esses sim dão a última palavra.

Os benhadjorore de qualquer idade serão muito respeitados em qualquer aldeia Kayapó em que estiverem. No Piaraçu, eles ditavam o tom das discussões. Conduziam as cerimônias. Em comum, o fato de terem aprendido suas tarefas com os pais. Mas essa não é a regra. Oro, 39 anos, benhadjorore na aldeia Môikàràkô, aprendeu com seu tio Tutupombo. Fluente em português, contou sua experiência: “Aprendi a lutar no mato, nas caçadas, ajudando os mais velhos. Prestava atenção em tudo. E quando chegava a noite, na casa dos homens, ouvia. Ouvia tudo, com muita atenção. Aprendi com meu tio, que me ensinou o que eu sei.” Hoje, ele segue o benhadjorore Moté, o mais velho da aldeia, que continua a lhe passar os ensinamentos da cultura.

Mundo de fora Se no universo das aldeias os conhecimentos tradicionais conseguem dar conta dos problemas que enfrentam, os benhadjorore precisam cada vez mais conhecer a sociedade envolvente para conseguirem proteger seu povo. Adaptar sua forma de liderança aos novos desafios. A fidelidade irredutível a sua aldeia, sua associação, sua comunidade, é um traço que carregam permanentemente. É o que garante a força nas incursões longínquas que fazem no País, na Europa, nas grandes cidades. Raoni rodou o mundo na luta por seu povo. Algumas lideranças foram preparadas

perfil

O agudo e o grave das vozes, marcantes na fala kayapó, eram ouvidos entre batidas de bordunas (tacapes) nos troncos que estruturam a “casa dos homens”, onde acontecia a reunião. Gritos alternados com sussurros, tanto diziam “tudo bem”, meikumre, quanto incitavam à guerra, à briga. A depender do olhar. Soavam sempre no ritmo da borduna, inseparavelmente à mão. Povo guerreiro. Grandes guerreiros. Algumas frases, soltas ao ar com mais força, som abrupto como um soco no estômago, faziam levantar os cerca de 200 presentes para cantar e dançar. Música alta, tom forte, grave, cantada de forma a desconcertar os “brancos” presentes. Ao anúncio enraivecido, brotavam veias no pescoço e saltavam obedientes os guerreiros. Braços a balançar, olhares a flutuar com as notas. As frases de ordem, chamadas ben, eram comandadas por poucos, que depois descobri serem os chefes benhadjorore. De diversas idades, tinham todos a mesma força na hora de despertar os outros guerreiros para cantar ou para lutar. São os tradicionais benhadjorore.

“Tá com medo da gente?” O cumprimento do guerreiro Morura dá o tom da reunião no Piaraçu, um posto de fiscalização transformado em aldeia às margens do rio Xingu. Olhar firme e cortante, envolto pelo negro da pintura de jenipapo. Guerreiro. Dias depois, ainda no Piaraçu, já com mais intimidade, ele resolveu me explicar a dureza do trato no nosso primeiro contato dentro da “casa dos homens”. “Kayapó é assim. Quando chega ‘branco’ aqui, a gente se pinta, bota cocar, fica com borduna e flecha na mão para ele sentir medo da gente. É pra colocar medo mesmo.” Essa maneira intimidadora, em um encontro de líderes

chefes da guerra e da pazFelipe Milanez

Fotos: Ademir Rodrigues

que não acontecia há pelo menos dois anos, serviu também como uma apresentação das novas lideranças à comunidade, para demonstração de força e coragem de cada um. Morura é um guerreiro. Com os chefes benhadjorore é diferente. Amedrontadores para os de fora, nas relações internas portam-se com simpatia e carisma e, sobretudo, como pacificadores. Uma natureza ambígua. Viver com a guerra e com a paz. Assim se via nos choros de saudade dos reencontros, nos abraços fraternos. Conversas, papos, risos. Para esses chefes benhadjorore Kayapó, os valores mais apreciados são os conhecimentos, a sabedoria, o interesse pela cultura e tanto a combatividade quanto a solidariedade e a generosidade.

A última palavra “Em todos estes anos que tenho acompanhado os Kayapó”, conta o antropólogo americano Terence Turner, “notei três qualidades essenciais que deve ter um benhadjorore: falar os cantos ben nas horas adequadas, para estimular os rituais e incentivar as danças; determinar, por esses cantos, locais para a segurança do grupo, em caso de catástrofes naturais, anunciadas por eclipses ou outros fenômenos naturais, e ser apaziguador, colocar fim em qualquer briga, manter a paz social”. Esses ensinamentos são passados na casa dos homens, durante as noites, para um grupo de quatro ou cinco jovens que um benhadjorore experiente considere aptos para a tarefa. E leva anos para concluir essa transmissão dos ensinamentos. O conhecimento passado é enorme. Mesmo assim, isso não significa que um chefe tenha o poder de mandar nos outros. Ele não tem poder, não é superior. Ninguém

BENHADJORORE KAYAPÓ Região Rio Xingu, nordeste de Mato Grosso e sul do Pará Área aproximadamente 10.600 mil ha (7 terras indígenas) População cerca de 7 mil pessoas Etnia Kayapó, 11 subgrupos Língua kayapó, tronco macro-jê

para serem os interlocutores entre os dois mundos, hoje com 40, 50 anos, como Payakan, Ákjboro, Miti’i, Kube’i, Megaron, Puyu. Enquanto Bekrê aperfeiçoa seu português e aumenta a desenvoltura no diálogo com os “brancos” – o que deve complementar seu porte atlético e a postura ereta de líder, olhar firme, pintura corporal e adereços sempre impecáveis – guerreiros como Dotô ou Bepkampo especializam-se em conhecer os meandros políticos da sociedade envolvente. É a confiança neles que tranqüiliza os mais velhos de que a cultura kayapó vai permanecer forte. “A gente está pedindo para eles. E temos certeza de que os mebêngokrê [Kayapó] vão lutar, continuar para o futuro, que a cultura kayapó não acabará”, explica, em kayapó traduzido por Dotô, o benhadjorore Kokorêty.

Reproduzir os ensinamentos de forma natural, num ambiente de forte expressão ritual, como é o caso da “casa dos homens”, é a melhor forma de proteger essa cultura. Uma cultura realmente viva não deve se preocupar com preservação. Existe e se impõe contra as outras, naturalmente, pelas práticas culturais. Assim são formados, entre os Kayapó, os chefes benhadjorore. Nesse caminho de ensinamentos longos, as tragédias, no entanto, atormentam o espírito confiante dos velhos. Raoni preparava, da melhor forma que ele entendia ser possível, com muita conversa, seu filho mais velho, Tedjê, para que ele soubesse tudo o que Raoni sabe. Tudo. Na sexta-feira santa de 2004, junto com outros dez Kayapó que voltavam de uma reunião na sede da Funai, em Brasília, ele faleceu num acidente.

Na “casa dos homens”, são passados os ensinamentos. Velhos benhadjorore, como Raoni e KoKorety, contam histórias que os mais novos escutam com atenção. Dançam. Cantam. O abraço fraterno de KoKorety em Ákjboro e, ao final do encontro, a pose para a memória.

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Choque e tristeza Uma profunda depressão. Assimilar a morte do filho é um desafio que Raoni tem enfrentado. Meditações que faz todas as noites, em seus sonhos. “A vida do branco é muito complicada para a gente”, contou, paciente, num esforçado português, em entrevista concedida à Brasil Indígena na sua casa no Piaraçu. Era fim de tarde. Uma dúzia de redes postas, algumas esteiras pelo chão. Fala mansa, com espasmos de raiva momentâneos que alteravam o timbre, quando a memória doía o coração. Como nos cantos de ben. Baforadas constantes no cachimbo. Um olhar para a rua. “Eu tava triste por causa do meu filho que morreu. O outro também já tinha morrido. Eu tava sempre triste. Muito tempo”, lembra, pausadamente, o ano em que esteve em reclusão total, de poucas palavras, sem sair da aldeia Metyktire, cinco horas de barco do Piaraçu. “Daí eu

não andei mais pra nenhum lugar, nenhuma cidade. Agora quando eu me pintei para a reunião, eu vi pessoas, tantas crianças, muita gente, guerreiros, benhadjorore jovens, fortes. Ah não, eu vou brigar de novo. Eu vou voltar a lutar.” Sua inspiração vem de seus sonhos, confessava por vezes. Neles, um guerreiro forte, alto, pintado de preto e vermelho, com um belo cocar amarelo, cabelos longos, borduna na mão. Anda sempre junto dele. Ao lado. Protege-o da onça na floresta. Espanta as cobras. “Homem forte. Homem inteligente. Nossa língua chama mekaron-ni [alma, espírito]”, explica. “Essa noite, depois que acabou a reunião, eu sonhei com ele, ele me disse que estava muito contente, que estava feliz. Disse para eu continuar, para eu ensinar. Para eu cantar, contar histórias pros mais jovens. Não pode perder costume do Kayapó. Não vai.”

BENHADJORORE KAYAPÓ

Cacique Raoni fuma cachimbo durante reunião na “casa dos homens”

2001 2002 2006

1971 1973 1976

1977 1979 1982

A história do indigenismo brasileiro nas páginas da Funai

Contracapa: Flechas dos Awá-Guajá Foto: Christian Knepper

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