bororo. a joia da coroa para antropologia

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Texto de antropologia acerca da etnia indígena Bororo, localizados no estado do Mato Grosso, Brasil.Conta com imagens.

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Page 1: Bororo. a Joia Da Coroa Para Antropologia
Page 2: Bororo. a Joia Da Coroa Para Antropologia

No espelho da diversidade cultural da humanidade todos os povos sãoiguais. Como portadores de uma identidade coletiva, seja esta auto-determinada ou de determinação alheia, eles são os representantesvisíveis das variegadas possibilidades da adaptação humana às exigên-cias e desafios de nosso mundo. E cada uma dessas adaptações mere-ce nosso respeito como expressão de nossa humanidade comum. Mas nem todos os povos desempenham o mesmo papel na con-cepção ocidental do mundo. Há os grandes e poderosos que comseu poderio econômico, sua força militar ou sua riqueza de ideiasimprimiram seu selo ao mundo; os trágicos (que muitas vezes sãoos mesmos grandes e poderosos), que fracassaram de modo maisou menos espetacular; os muitos que se procura em vão em umaboa obra de referência, porque sequer são objeto de nossa conver-sação usual; mas também os pequenos, que devem sua proemi-nência ao acaso, ao fato de terem estado na hora certa no lugarcerto, chamando assim a atenção de observadores a partir de cujosescritos foram por assim dizer canonizados. Os Bororo, uma população que mesmo nos melhores tempos malchegou a ser constituída de alguns milhares de indivíduos, são umbom exemplo disso. Poucos povos com essa ínfima envergadura sãocapazes de apresentar uma enciclopédia em três volumes, dedicadaexclusivamente a sua cultura (Albisetti e Venturelli 1962–1976).Porém desde que o fundador do estruturalismo francês Claude Lévi-Strauss os tornou conhecidos também de uma opinião públicamais abrangente em seu livro muito lido Tristes trópicos (1957[1955]) e logo no início de sua obra Mitológicas (Lévi-Strauss 2004)divulgou partes do rico tesouro de mitos dos Bororo, estes subiramdefinitivamente à Liga dos Campeões no mundo dos povos.

Os Bororo

Os “bons selvagens”, conforme Lévi-Strauss (1957: 225) os caracte-riza, aludindo ao calvinista genebrino Jean de Léry, que no final doséculo XVI contribuiu decisivamente no sentido de cunhar a imagemfrancesa dos índios através de sua descrição dos Tupinambá canibaisda região do Rio de Janeiro, chamam a si mesmo de “Bóe” (literal-mente “coisa, ser animado ou inanimado”). “Bororo” é a designaçãoque eles dão à parte da praça da aldeia que se localiza diante da casados homens, na qual são realizadas as danças e que, assim como aprópria casa dos homens, é tabu para as mulheres e as crianças. No uso linguístico científico, “Bororo” designa, hoje em dia, emsentido amplo, uma família linguística que, junto com os Chiquita-no na Bolívia, forma um subgrupo do tronco linguístico Macro-Jê.Certamente eram parte dessa família, além das três línguas bororobem documentadas, do Bororo em sentido estrito, do Otuké doleste da Bolívia, extinto no século XIX, e do Umutina de Mato Gros-so, que deixou de ser falado desde 1988 (Campbell 1997: 195),também numerosas línguas do Chaco boliviano, das quais foramdocumentadas apenas algumas poucas palavras ou então absolu-tamente nada, antes de estas caírem em desuso (Loukotka 1968:84–85). O mais importante, no entanto, é que a variedade linguís-tica e cultural dos grupos designados como “Bororo” na literaturahistórico-etnográfica era bem maior do que o nome conjunto per-mitiria supor a princípio. Pode-se conjeturar que o processo de diferenciação dessas línguassucedeu mais ou menos nos últimos 2000 anos no território histó-rico em que viviam essa populações, na região da linha divisória

Christian Feest

BORORO“A JOIA DA COROA PARA A ANTROPOLOGIA”1

1 Na versão em alemão da Wikipédia (http://de.wikipedia.org/wiki/Bororo, retira-do em 23.3.2012) é atribuído a Claude Lévi-Strauss o seguinte comentário: “[OsBororo] são a joia da coroa para qualquer etnólogo” [sic], sem a devida compro-vação. Vincent Debaene, o editor das obras de Lévi-Strauss, (Œuvres, Paris,2008: Galimard) desconhece essa citação e certamente duvida com razão de suaveracidade (comunicado pessoal a Marie Mauzé, em 23.03.2012). De acordocom o histórico dessa versão da Wikipédia, a referida frase foi acrescentada em28.11.2008, por ocasião do 100º aniversário de Lévi-Strauss, por um contribuin-te anônimo do artigo, identificado apenas por seu IP, que pode ser localizado naregião de Bonn (Alemanha). Certamente não se estará errado ao supor que afonte seja oriunda de uma citação mal interpretada e/ou deturpada anteriormen-te por uma tradução falha ou uma lembrança errada inserida em uma das home-nagens que no dia do jubileu encheram as páginas dos cadernos de cultura. Como subtítulo do presente artigo, “Joia da coroa para a antropologia” tambémnão pretende reproduzir a opinião de Lévi-Strauss, mas sim caracterizar a ava-liação de uma opinião pública culta e cidadã.

Imagem 92: Adorno para orelha. Bororo do Cabaçal, Brasil. Em tornode 1825. Anéis das sementes da palmeira tucum, fibras vegetais, penas epingentes em forma de peixe feitas de conchas. Col. Schröckinger, No de Inv.53.525 (ex-Col. Natterer).

Imagem 93: Os Bororos séculos XIX e XX (Sem levar em consideraçãoa assincronia da apresentação). Mapa: Christian Feest

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das águas entre a bacia do Amazonas, ao norte, e a região em quedeságua o Rio de la Plata, ao sul, na qual os Bororo em sentido es-trito formavam o grupo mais oriental (Imagem 93), e apesar de osBororo históricos possivelmente representarem o resultado de umprocesso de fusão de populações heterogêneas (Viertler e Ochoa2012). Nessa região marcada pelo cerrado e pelos campos em tornodo extremo norte da região palustre do Pantanal, os Bororo vi-viam sobretudo da caça, da pesca e da coleta, sendo que peixes ecoleta permitiam um sedentarismo em tal medida que acabou sig-nificando a condição mínima necessária para a manutenção dealgumas pequenas lavouras de produtos úteis (tabaco, algodão,cabaças) e plantas alimentícias (milho, mandioca); o período em queprincipiou a prática da agricultura ainda é objeto de discussão. Contatos esporádicos com europeus, fossem eles jesuítas espanhóisou grupos avançados de aventureiros (bandeirantes) vindos de SãoPaulo já aconteciam desde o século XVII. Em 1718, contudo, a regiãode um momento a outro passou a ser de interesse central para ospaulistas, quando na região de Cuiabá, hoje capital do Mato Grosso,foi encontrado ouro e mais tarde também diamantes. Em seu caminhoaté os Bororo, Lévi-Strauss vivenciou, ainda em 1935, a impor-tância excepcional dos garimpeiros em busca de ouro e pedras pre-ciosas para o Mato Grosso não indígena, de modo que a proximida-de dos Bororo com os diamantes dá uma dimensão nova, e talveznão intencional à metáfora das “joias da coroa”, ainda que os garim-peiros desde o princípio tenham se disposto antes a enganar a Coroa– e mais tarde o Estado – na medida em que isso lhes parecia possí-vel, omitindo ou fraudando o pagamento dos impostos devidos. Saindo de São Paulo, embora fosse necessário superar apenas doiscursos de rios de águas menos profundas, o tempo de viagem parachegar às correntes superiores do rio Paraguai e seus afluentes Jau-ru, Cuiabá e São Lourenço – no meio das terras dos Bororo – era dequatro a seis meses. (Ainda em 1935, Lévi-Strauss ficou durantesemanas a caminho, de caminhão e de barco, apenas para chegarde Cuiabá à aldeia bororo de Quejare.) O afluxo dos aventureiroslevou, o que aliás era de se esperar, a confrontos violentos com apopulação indígena, mas também à introdução de epidemias quelevaram a uma rápida diminuição da população. A presença constante dos neobrasileiros após a fundação da Capi-tania de Cuiabá, no ano de 1748, também trouxe mudanças à rela-ção de forças entre os povos da região. Em torno de 1740, gruposbororo foram instrumentalizados pelos portugueses na luta contraos Kayapó Meridionais – antigos inimigos dos Bororo –, mas tam-bém na defesa das fronteiras com as possessões espanholas, ondeinclusive encontraram novos inimigos por exemplo entre os Guai-kurú, já hábeis cavaleiros, e outros povos do Chaco. A fundação degrandes fazendas, em cujos campos escravos africanos passaram aplantar cana-de-açúcar, levou não apenas à separação espacial en-tre Bororo “Orientais” e “Ocidentais”, mas também a um conflitoduradouro, marcado por sua grande brutalidade, dos Bororo Oci-dentais com o latifundiário João Pereira Leite, conflito este que ter-minou no princípio do século XIX com a “pacificação” (com algunsaspectos de extermínio) dos índios e sua utilização nas fazendas,sob o controle explorador daquele que os subjugou e de seus des-cendentes (vgl. Viertler 1990).

Em 1820, quatro anos antes da chegada de Johann Natterer a Cuia-bá, isso dizia respeito sobretudo aos assim chamados “Bororo daCampanha”, que viviam entre o rio Paraguai e o rio Jauru. Na con-dição de hóspede de Pereira Leite, o naturalista austríaco ficou du-rante meses, entre os anos de 1825 e 1826, na Fazenda da Caiçara,perto de Cáceres (Vila Maria), onde também aconteceu seu primeiroe mais importante contato com os Bororo da Campanha. O mesmoou outro grupo dos Bororo da Campanha vivia, nessa época, umpouco mais a oeste, em Pau Seco, junto ao rio Jauru, onde foi visita-do em 1827 pela expedição russa ao Brasil, comandada pelo barãoHeinrich von Langsdorff (e onde também Natterer permaneceu poralgum tempo); outros grupos haviam se estabelecido em Cambará,perto de Jacobina, e na propriedade de Francisco Correia, na mar-gem leste do rio Paraguai. Em 1894, os Bororo da Campanha haviamdeslocado seu território a Laguna, entre Cambará e Descalvados, aosul de Cáceres, e continuavam vivendo nas terras da família PereiraLeite, quando não se mudaram a San Matías, transpondo a fronteiraboliviana. Em 1931, o etnólogo americano Vincent Petrullo descreveos Bororo de Laguna como estando completamente aculturados,ainda que a seu pedido eles tivessem trazido uma pele de onça pin-tada e demonstrado diante dele a dança da onça, oriunda do ritualfúnebre não mais praticado por eles (Waehneldt 1864: 213–219; Flo-rence 1875, 2: 241–252; Koslowsky 1895; Petrullo 1932: 120–122;comparar com Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 293). Seus des-cendentes hoje em dia não constituem mais uma comunidade indí-gena reconhecida oficialmente.

Os Bororo Ocidentais

À época da visita de Natterer, os “Bororo do Cabaçal” ou Cabaçais(Cabaçaes), que habitavam mais ao norte, junto ao rio Cabaçal,continuavam envolvidos em combates com seus vizinhos brancos.Os objetos que Natterer conseguiu desse grupo são os únicosdocumentos culturais materiais que restaram dos Cabaçais (fig. 2).Eles são oriundos de butim de guerra e lhe foram entregues, pelomenos em parte, por seus amigos guaná, que em fevereiro de 1826participaram de uma milícia de ataque aos Bororo do Cabaçal. Setemulheres e 17 crianças foram presas no referido ataque e levadas àfazenda de Pereira Leite, onde Natterer se tornou testemunha dastentativas de libertação empreendidas por parte dos maridos e paisdas índias. O austríaco aproveitou a oportunidade favorável, e, com o auxíliode uma das mulheres presas, conseguiu registrar uma lista de pala-vras de sua língua. A mulher inclusive indicou o nome de seu povocomo sendo “Halorione”, ao passo que uma autoridade responsá-vel chamou os Bororo do Cabaçal de “Aravirá”. Na casa de PereiraLeite, em Jacobina, Natterer compilou mais tarde um segundo voca-bulário da boca de uma moça de 15 anos dos Bororo do Cabaçal.Esta disse que seu povo (ou talvez seu clã) se chamava “Makö-Görö-Itgé Taiè-Katö”. Os Bororo da Campanha relataram a Natte-rer a existência de pelo menos dois grupos dos Cabaçais: os Aravi-rá, que habitavam ambas as margens do rio Cabaçal, e os Ariuné(= Halorione?) entre o rio Cabaçal e o rio Sepotuba; os últimos

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compreendiam tanto a língua dos Aravirá quanto a dos Biribocon-né (Bororo da Campanha), ao passo que entre os Aravirá e Biribo-connés não havia possibilidade de compreensão (Johann Natterer2012b). As anotações de Natterer demonstram, ao mesmo tempo,que a língua dos Biriboconné não passa meramente de um dialetodos Bororo Orientais (Viertler e Ochoa 2012). Em sua extensa viagem pela América do Sul, o pesquisador gentle-man francês Francis de Laporte de Castelnau visitou, em junho de1844, uma aldeia com cerca de 110 Bororos do Cabaçal nas proximi-dades do Registo de Jauru, estabelecidos ali há alguns anos nas terrasde Pereira Leite, que deveriam ser convertidos ao cristianismo e leva-dos à civilização pelo padre José da Silva Fraga, vindo de Jacobina.Castelnau fez um desenho do cacique e também registrou uma listade palavras que de qualquer modo mostrou maiores semelhançascom os dois vocabulários dos Cabaçais registrados por Natterer doque com a língua dos Bororo Orientais. O diagnóstico linguísticomostra, sobretudo graças às anotações de Natterer, que a subdivisãousual vigente até hoje entre “Bororo Orientais” e “Bororo Ociden-tais” é meramente geográfica, e não linguística nem cultural. Ao quetudo indica, os Bororo da Campanha eram o grupo mais ocidentaldos Bororo Orientais, ao passo que os Cabaçais usavam uma ou pro-vavelmente várias línguas nitidamente diferentes, que em certo sen-tido eram mais semelhante ao Umutina e ao Otuké. Em agosto de 1844 o botânico britânico e companheiro de viagemde Castelnau, Hugh Algernon Weddell, também passou pela aldeiados Cabaçais, na margem oriental do rio Jauru, e foi confrontadocom um quadro de horror: os indígenas completamente deforma-

dos por bernes em suas cabanas de palha já decadentes morriamde fome diante dos olhos de Weddell em proporções epidêmicas.“Em pouco tempo, talvez em alguns dias, a Aldeia dos Cabaçaesexistirá apenas no nome” (Castelnau 1850–1851, 3: 47–49). Embo-ra Castelnau também relate que a aldeia visitada por ele em 1845foi reconhecida pelo governo da província de Mato Grosso (e por-tanto ao que tudo indica não estivesse completamente despovoa-da), os rastros dos Bororo Ocidentais logo acabam se perdendo(Castelnau 1850–1851, 3: 46, 51; comparar com Albisetti e Ventu-relli 1962–1976, 1: 293).2

Pesquisa de campo e realidade etnográfica

Johann Natterer era um empalhador de animais de grande conhe-cimento; a etnologia ainda não existia como disciplina acadêmicaem sua época, e quando encontrou os Bororo da Campanha trata-va-se de seu primeiro contato com um grupo indígena, depois deter conhecido apenas alguns Kaingáns e Guanás isolados em con-texto urbano. Ele não foi o primeiro branco a encontrar com osBororo, mas foi o primeiro que reuniu material acerca deles de ma-neira sistemática: anotações acerca de observações próprias ou deoutros sobre seu modo de vida, cinco listas de palavras de suaslínguas e seus dialetos, o primeiro texto breve em sua língua, trêsdesenhos a lápis, cerca de 250 objetos etnográficos; e tudo isso nodecorrer de alguns poucos dias em um período de mais ou menostrês anos. O fato de Natterer ter achado uma de suas apresenta-ções musicais “arrepiantemente bela” é um sinal da mistura do es-tranhamento e do fascínio com que encarou os Bororo. Ainda quese mostrasse compreensivo com os esforços de “pacificação” doslatifundiários, isso não o impedia de fazer descrições etnográficasque se mostram quase completamente livres de arrogância, na me-lhor tradição do iluminismo. Nos anos de sua estada no Brasil, Nat-terer jamais voltaria a dedicar tanta atenção a um outro povo indí-gena. Sua obra, porém, permaneceu praticamente desconhecidada posteridade até um passado bem recente. Também para Claude Lévi-Strauss os Bororo Orientais foram o pri-meiro grupo indígena que ele encontrou em seu próprio mundo enão, como aconteceu com os Kaingán e Caduveo, em aldeias quemal se diferenciavam das dos seus vizinhos neobrasileiros. Em seulivro Tristes trópicos, Lévi-Strauss descreve sua mudança do eruditodecepcionado com a filosofia acadêmica na Sorbonne ao etnólogoque veio a se tornar e, vinculado a isso, seu desejo de alcançaracesso a comunidades que até então não haviam sido objeto depesquisas sérias e ainda se mantinham em estado quase intacto,uma vez que sua destruição havia acabado de começar justamentena época (Lévi-Strauss 1957: 225). Um primeiro sinal de que a al-deia de Quejare seria um lugar assim, resultou de sua observação

Imagem 94: O uso do estojo peniano entre os Bororo. À esquerda: Bororoda Campanha. Desenho de Johann Natterer, 1826 (Johann Natterer 2012b).Biblioteca da Universidade de Basel. À direita: Bororo Orientais, Quejare.Desenho conforme uma foto de Lévi-Strauss, 1925 (Lévi-Strauss 1957: 227).

Natterer informou sobre as Bororo da Campanha: “Eles andam completa-mente nus. A única cobertura usada pelos homens é uma tira da largura deum dedo feita de uma folha da palmeira babaçu, trançada de modo a formarum anel, colocado na ponta do órgão sexual, que é direcionado para cima,preso a um barbante que lhes envolve a cintura”. Mais de um século depois,Lévi-Strauss observa o seguinte acerca dos Bororo Orientais de Quejare: “Oshomems estavam completamente nus, salvo o pequeno estojo de palha queencobria a extremidade do pênis e era mentido preso pelo prepúcio”. Obser-ve-se a pequena diferença em relação aos Bororo da Campanha. (CF)

2 Com relação à segunda e florescente aldeia dos Bororo no caminho de Vila Mariaa Salinas mencionada por Castelnau, trata-se de San Matías, que hoje se locali-za na Bolívia, mas que ao que tudo indica era habitada por Bororo da Campan-ha. A descrição de uma visita à aldeia dos Cabaçais, junto ao rio Jauru, porFerreira Moutinho (1869: 168–170) é uma invenção adaptada do livro de Castel-nau (comparar com Von den Steinen 1894: 443–444).

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de que os homens, assim como à época de Natterer, apenas esta-vam vestidos com uma folha de palmeira trançada usada comoestojo peniano (Imagem 94).O tempo no entanto não ficara parado nos últimos 200 anos, e oisolamento solitário de Quejare era apenas relativo. Enquanto osBororo da Campanha e os Bororo do Cabaçal foram “pacificados”por meios militares no princípio do século XIX e levados a um esta-do de dependência, os Bororo Orientais permaneceram pratica-mente intocados até meados do século XIX às margens do rio SãoLourenço, onde eram conhecidos entre os neobrasileiros pela desig-nação genérica de “Coroados”. A construção de uma estrada queatravessava seu território e a vinda de camponeses e garimpeiros,porém, provocaram a resistência dos Bororo e os levaram a um con-

flito militar que terminou mais uma vez com sua “pacificação” e, em1887, com seu estabelecimento em “colônias” sob a guarda do go-verno. Ali eles foram visitados um ano depois por uma expediçãoalemã sob a chefia de Karl von den Steinen, a quem devemos aprimeira representação etnográfica detalhada dos Bororo, e que emseu livro também não poupou críticas à situação na Colônia TeresaCristina e sua administração (von den Steinen 1894: 441–518). Com a posterior entrada em cena de Cândido Rondon, que maistarde seria promovido a marechal, os Bororo já haviam alcançadoseu lugar na consciência nacional antes mesmo da chegada deLévi-Strauss. O marechal Cândido Rondon, que descendia ele mesmodos Bororo pelo lado materno, trabalhou como engenheiro naconstrução da linha telegráfica e da estrada pouco depois da “pa-cificação” dos Bororo no Mato Grosso. Rondon acabou por garan-tir aos mesmos Bororo seus direitos sobre a terra na colônia em1896 e mais tarde lhes deu trabalho na construção do telégrafo.Sua visão de uma integração pacífica e politicamente respeitosados povos indígenas no Estado Nacional levou, em 1910, à funda-ção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). No mito brasileiro da-quele que deu o nome ao Estado de Rondônia e à cidade de Ron-

Imagem 95: “Um missionário se tornou cacique bororo”. Fotógrafoanônimo, antes de 1939 (© Museum der Kulturen. Basel, (F)IVc7479R[Álbum Grisoni])

Os Bororo das missões uniam tradição e civilisação, os padres salesianos vin-culavam a tradição ao afastamento dela. (CF)

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donópolis, localizada na região dos Bororo, os índios Bororo assu-mem um lugar que não pode ser de todo compreendido emtermos históricos. Para incentivar o processo de “civilização” que pareceu necessárioà referida integração dos Bororo, a direção da Colônia Teresa Cris-tina foi entregue em 1895 à congregação salesiana, que foi consi-derada mais capaz de dar conta da missão do que os órgãos esta-tais. A congregação foi dispensada dessa tarefa já em 1898, masem 1902 fundou nas proximidades imediatas uma estação missio-nária própria, a partir da qual em pouco espraiou suas atividadepor toda a região dos Bororo Orientais (Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 218–222). A ordem fundada por Dom Bosco em 1859 ori-ginalmente via sua tarefa primordial na diminuição do sofrimentodas crianças de rua na Itália, mas já na década de 1880 estendeuseu campo de atuação até a América do Sul, e mais tarde inclusiveaté a Ásia. Na missão indígena, assim como na missão nas ruas, oque ocupava o primeiro plano era a ideia do valor educativo e civi-lizatório do trabalho; para o trabalho nos campos da missão, osBororo recebiam os salários normalmente pagos na região e comisso eram integrados ao mesmo tempo na economia nacional. Umaspecto essencial do interesse dos Bororo pelos salesianos estavana proteção que podiam desfrutar nas estações missionárias contraseus inimigos tradicionais, como os Xavante ou Kayapó (CaiubyNovaes 1997: 65–101). Além de sua atividade missionária e “civilizatória”, pelo menos al-guns entre os salesianos se dedicaram desde logo também à pesqui-sa etnográfica, que encontrou seu ápice na Enciclopédia Bororo e querepresenta de forma perene e inclusive até hoje, também para ospróprios Bororo, um recurso de preservação e renovação de sua tra-dição. Esse papel duplo dos salesianos como conservadores da cul-tura e da sociedade bororo, e ao mesmo tempo como iniciadores desua transformação, tinha lá suas contradições internas (Imagem 95).Na condição de pesquisadores, eles documentaram, antes de Lévi-Strauss, o sistema das metades e dos clãs, e como reformadorestentaram mobilizar os Bororo a abandonar a casa dos homens e aviver em aldeias com estradas, a fim de assim destruir o sistema dasmetades e dos clãs (Lévi-Strauss 1957: 226, 231–232). Em sua funçãode missionários, os salesianos viam na nudez um indício da selvage-ria a ser superada e da falta de vergonha natural, como pesquisado-res coletaram indicações detalhadas acerca da pintura cerimonial docorpo nu. Eles tentaram, em parte com o argumento do perigo deinfecção, fazer com que fossem cessados os complicados ritos fúne-bres dos Bororo, nos quais os ossos dos cadáveres decompostos sãolimpados e pintados, mas também reconheceram o papel centraldessas tradições na relação dos Bororo com o mundo. Lévi-Strauss se mostrou admirado, por um lado, com o trabalho dosmissionários como etnógrafos, mas por outro lado escolheu a aldeiade Quejare, sobretudo porque lá a influência das missões mal che-gava a ser visível, ainda que naturalmente se possa ver o distancia-mento dos Bororo tradicionalistas de seus parentes nas missõestambém como resultado das atividades salesianas. Curiosamente, opesquisador francês escolheu, como informante principal, um anti-go educando dos salesianos, que no passado havia sido mandadopor eles a Roma e inclusive encontrou o papa, mas que mais tarde

se retradicionalizou e voltou para Quejare. Não sem escárnio, Lévi-Strauss (1957: 227) observa que “inteiramente nu, pintado de ver-melho, o nariz e o lábio inferior perfurados pelos tembetás, emplu-mado, o índio que vira o Papa revelou-se maravilhoso professor desociologia bororo”. (Um dos informantes-chaves dos salesianos era,aliás, um outro Bororo, que viajara pela Itália e pela França e maistarde se distanciou dos missionários, antes de voltar a seus serviçosmais uma vez; talvez de fato apenas um Bororo com formação oci-dental fosse capaz de compreender o interesse dos pesquisadores ese expressar de modo compreensível diante deles.) Um ano antes da chegada de Lévi-Strauss, os salesianos convida-ram o fotógrafo austro-brasileiro Mario Baldi para fazer um docu-mentário sobre o trabalho missionário com os Bororo. O filme foiextraviado, mas as fotos de Baldi dão uma ideia do pluralismocultural entre os Bororo na década de 1930, que aliás jamais sesuspeitaria depois da leitura de Tristes trópicos (Lopes e Feest 2009;Feest e Luiza da Silva 2011). Enquanto Lévi-Strauss louvava a nu-dez natural dos Bororo em Quejare, Baldi percebeu nas missõesuma timidez incomum diante das fotos: ali os Bororo não queriamde modo algum ser fotografados sem antes terem se vestido comtodo o asseio.Com o surgimento da teologia da libertação na década de 1970, ossalesianos perceberam a chance de se livrar de sua imagem arqui-conservadora no Brasil. Eles passaram a promover, agora também

Imagem 96: Planta da aldeia de Quejare. 1935. (Por Lévi-Strauss 1957: 231)

A linha que separa as duas metades corre mais ou menos em direção leste-oeste, da esquerda, embaixo, para a direita, acima; as linhas pontilhadasmarcam os caminhos para a casa dos homens. (CF)

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na condição de missionários, o respeito vivenciado ante a culturatradicional, e se colocaram, ainda mais do que antes, ao lado dosBororo na luta contra seus vizinhos neobrasileiros que continuavamávidos por terras e extremamente violentos, o que aliás culminou,em 1976, no assassinato de um Bororo e do padre salesiano alemãoRodolfo Lunkenbein (Caiuby Novaes 1997: 102–144).

Grupos de parentesco e suas propriedades

A aldeia dos Cabaçais, que Weddell desenhou em 1844, era consti-tuída de 30 casas retangulares com telhado de duas águas para umtotal de cerca de 110 habitantes. Estas casas estavam organiza-das na forma de um retângulo alongado. Dois terrenos cercados naparte da frente insinuavam pequenas hortas; nas proximidades damargem do rio pode ser reconhecida uma casa maior de paredessem revestimento e com redes penduradas na parte interna. Quejare, junto ao rio Vermelho, que Lévi-Strauss visitou em 1935,era um pouco maior: exatamente 150 habitantes viviam em 26 ca-sas. Também ali telhados de duas águas haviam substituído, confor-me o modelo ocidental, as antigas casas com telhado redondo emforma de cúpula; sua organização circular em torno da grande casados homens correspondia, no entanto, à forma tradicional, na qualse refletia também a organização de parentesco típica dos Bororo:nas casas da metade norte do círculo viviam os membros da meta-de Tugarége, na metade sul os da E?eráe; eles eram subdivididos deforma ideal em quatro clãs, que por sua vez se estruturavam emsubclãs (Lévi-Strauss 1936; 1957: 233–234; fig. 5). Em razãodo número reduzido de 150 habitantes, a realidade não correspon-dia ao ideal, que poderia ser vivenciado apenas com uma popula-

ção maior. Devido aos acasos de todo e qualquer desenvolvimentopopulacional, estruturas fundamentadas em clãs raramente são es-táveis a longo prazo: alguns clãs são extintos, outros crescem em talmedida que acabam se dissociando em vários subclãs. As mudançaspopulacionais maciças ocorridas após o contato com os neobrasilei-ros apenas aceleraram ainda mais processos como esse. As metades eram exógamas, ou seja, os cônjuges tinham de serescolhidos sempre na metade oposta; além disso havia relações decasamento preferenciais entre determinados clãs. Pertencer às me-tades, aos clãs e subclãs era uma herança materna, e depois docasamento os homens se mudavam para a casa de sua mulher, ouseja, se transferiam para o outro lado da aldeia. Os homens de to-dos os clãs, no entanto, passavam boa parte de sua vida na casados homens comum, na qual a tradição era cultivada e também osprivilégios dos clãs eram expressados materialmente. Os clãs, entreos quais havia ricos e pobres, eram na verdade os proprietários demitos a partir dos quais eram deduzidos os direitos a determinadascerimônias, tarefas sociais e nomes próprios, mas também a formade objetos de uso cotidiano. Lévi-Strauss (1957: 236) escreve que“quase todos os objetos” eram adornados com os emblemas queindicavam o pertencimento a clãs e subclãs, e a Enciclopédia Bororosalesiana apresenta várias descrições detalhadas dessas diferenças. Em sua visita a um acampamento temporário dos Bororo da Cam-panha no ano de 1825, Natterer não descreve a forma das casasnem sua organização; metades, clãs ou subclãs estavam longe deser algo importante para a etnografia em sua época (o mesmo valepara Karl von den Steinen, 60 anos mais tarde). Natterer relataapenas que suas casas eram cobertas com folhas de palmeira, que“toda a parentela vivia em um rancho ou oca” e que após a sepa-ração os filhos ficavam com a mãe (Johann Natterer 2012b). Em umdesenho feito no âmbito da expedição de Langsdorff por Aimée-Adrien Taunay, no entanto, pode ser reconhecida com nitidezuma grande casa com telhado de duas águas, de paredes sem re-vestimento, em torno da qual se juntavam de forma mais ou menoscircular numerosas casas com telhado de duas águas ou redondoem forma de cúpula, de fundamento oval ou retangular e sem pa-redes destacadas (Imagem 97). Apenas supõe-se que a organizaçãode parentesco dos Bororo da Campanha correspondia à de seusparentes próximos que viviam junto ao rio São Lourenço. A descrição dos emblemas que indicavam pertencimento a clã eenfeitavam os objetos dos Bororo Orientais do século XX abre porcerto um questionamento interessante no que diz respeito aos ob-jetos da cultura material colecionados em tempos históricos ante-riores. Se “quase todos os objetos” mostravam peculiaridades espe-cíficas ao clã, os objetos colecionados durante o século XIX tam-bém seriam fontes para uma história da organização social dosBororo. De qualquer modo existem, nas coleções dos museus domundo inteiro, cerca de 7000 objetos oriundos dos Bororo – umaquantidade suficiente para, partindo das descrições minuciosas daetnografia salesiana, poder constatar a manutenção ou a mudançadas diferenças particulares que caracterizavam cada um dos clãs. Acoleção bororo de Natterer com seu grande número de peças domesmo tipo de objeto ofereceria um fundamento ideal para talpesquisa.

Imagem 97: “Vista da aldeia dos índios Bororo, chamada de Pau-Seco [...]”. Aquarela de Aimé-Adrien Taunay, dezembro de 1827. AcademiaRussa de Ciéncias, São Petersburgo. (© Christian Feest)

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O exame do acervo colecionado, no entanto, apresenta resultadosdecepcionantes, por vários motivos. Por um lado na Coleção Natterer(e também na coleção de Langsdorff, da mesma época, que se en-contra em São Petersburgo; comparar com Manizer 1967: 202–205)estão representados objetos que nunca foram ou não eram mais con-feccionados pelos Bororo Orientais no século XX. Deles fazem partepor exemplo os alongadores de cabelo artificiais, feitos de cabeloshumanos ou pelos de cavalos (Imagens 98 e 99), grande parte dosadornos de pescoço e de testa feitos de dentes de onça, bovinos,macacos e cervos, e também conchas, alguns adornos em pena, oscascaveis feitos de unhas de cervo e de caitetu e os clarinetes com

bojo de chifre de boi (Steinle 2002: 71–72, 76–77, 79–85, 86–87, 88).Por outro lado há objetos que nos séculos XX e XXI eram de grandeimportância justamente como bem pertencente a um determinadoclã, caso do diadema de penas chamado pariko (Dorta 1981), quenão podem ser encontrados nas coleções de Natterer e Langsdorff. Uma observação das peças comparáveis oferece poucas indicaçõesa modelos específicos de clãs e sua divisão. Isso vale sobretudopara os arcos e flechas que não mostram nenhuma das peculiarida-des que Albisetti e Venturelli (1962–1976, 1: 488–499, 940–952)identificaram como características de algum dos grupos de paren-tesco. No que diz respeito aos alongadores de cabelo que podemser encontrados em grande quantidade, existem diferenças, masque parecem ser individuais; objetos semelhantes eram usados porhomens de todos os clãs entre os Bororo Orientais (Albisetti e Ven-

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Imagem 98: Adorno alongador de cabelos (aé-aé) e proteção de pul-so (aé). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, MatoGrosso, Brasil. Em torno de 1825. Crina de cavalo, resina, fibras vegtais,cabelos humanos. C. 55 cm. Col. Schröckinger, No de Inv. 52.529 (ex-Col.Natterer), Col. Natterer, No de Inv. 886

Cabelos humanos, arrancados ou cortados no âmbito de rituais fúnebres,eram transformados em adornos capilares semelhantes a perucas a longoscordéis pelos Bororo da Campanha. Enrolados em torno de pulso, eles ser-viam de proteção ao fio do arco que rebatia assim que a flecha era disparada.Entre os Bororo Orientais, seu uso era restrito ao caçador, que na condiçãode representante do morto vingava a perda sofrida peos parentes enlutadosmatando uma onça. A utilização substitutiva de crinas e pelos de cauda decavalo pode ser constatada apenas entre os Bororo da Campanha e sugereum distanciamento do ritual fúnebre. (CF)

Imagem 99: “Bororo da Caiçara”. Desenho a lápis de Johann Natterer. 1826.(© Naturhistorisches Museum Wien, Wissenschaftsarchiv [Arquivo de Ciências])

Representação de uso de labrete, adorno para orelhas, adorno em penas eartfato para alongar os cabelos. Natterer descreve o use deste último con-forme segue: “Os cocares de penas de feitio mais grosseiro (baatsch) sãopresos atrás na cabeça. Antes disso, os cabelos são presos na parte de trás,em seguida colocados em torno dos mesmos vários adornos de pele de ca-valo e por fim, sobre o conjunto enfeixado, fixados vários desses adornos empena compostos de penas dispostas em pé, formando uma espécie de auré-ola de santo”. (CF)

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turelli 1962–1976, 1: 419). Os adornos em pena em forma de bu-quê de flores, usados na parte de trás da cabeça e chamados porNatterer de kuruga bare enau (Imagem 100), podem ter sido atéespecíficos de algum clã, mas não permitem qualquer identificaçãonítida com formas mais recentes. No caso das viseiras (ebukejéwu) eadornos para o occipício (kiogoáro bóe) (Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 390–393, 550–554), dos quais pode ser encontrado umexemplar de cada um na Coleção Natterer, também há, por umlado, diferenças significativas em relação às formas mais recentesdos Bororo Orientais, assim como por outro lado surgem proble-mas na atribuição à propriedade específica de um clã devido à di-ficuldade de determinar com mais precisão a origem das penas. Osimpressionantes adornos de peito feitos de unhas de tatu-canastra(bokodóri), que Natterer descreve como adornos de peito e de tes-ta, podem, segundo Albisetti e Venturelli (1962–1976, 1: 364–366)ser usados por todos os homens e mulheres de todos os grupos deparentesco; formas peculiares, específicas a clãs, no entanto, se di-ferenciam nitidamente dos exemplares da Coleção Natterer. Égrande a probabilidade de que a pele de onça com pintura sejaespecífica ao clã (fig. 10), pois seus adornos, em sua estruturafundamental, se parecem muito com uma variante registrada na

etnografia salesiana (Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 234–238). Há vários motivos possíveis que podem explicar o problema nadeterminação de formas específicas a clãs na Coleção Natterer, emuitos deles também poderiam ser concomitantemente corretos.Em primeiro lugar é improvável que os Bororo da Campanha gos-tassem de abrir mão, no princípio do século XIX, de objetos que nacondição de propriedade de seu grupo de parentesco tinham gran-de importância para eles; Natterer, que não tinha noção clara acer-ca dessa importância, não concedia nenhum significado especial aquais eram os objetos que lhe eram dados em troca quando formousua coleção.3 Ao mesmo tempo, a afirmação de que “quase todos osobjetos” dos Bororo mostraria uma especificidade de clã tambémprova ser inconsistente. Ao que tudo indica, eram específicos do clã

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Imagem 100: Dois cocares de pena. Bororo da Campanha, Brasil. Emtorno de 1825. Col. Natterer, No de Inv. 772–773

Natterer chama esses apliques de pena de “2 cocares. Um enfeitado com umapena de Gavião real (Falco destructor [esta faltando]). É amarrado na cabeça– kurugâ baré-enau”. Bóe etáu significa adorno de cabeça entre os BororoOrientais, kurugúgwa o gavião carrapateiro; a posse de determinadas penasde diferentes espécies de gaviões significa entre eles um privilégio concedi-do a clãs específicos. As peças colecionadas por Natterer se assemelham cla-ramente aos grampos de cabelo em formato de flor (sem penas de gavião)chamadas péku dos Bororo Orientais, que são, na versões preta ou amarela,propriedade do sub-clã Baádo J Èebáge CÈebegiwúge CÈebegiwúge. (CF)

Imagem 101: Pele de onça. Bororo da Campanha, Brasil. Em torno de1825. Col. Natterer. No de Inv. 890

Natterer observa acerca da presente peça: “Pele de onça, serve para deitar eem dias de festa é amarrada no pescoço durante as danças, caindo sobre ascostas, com a parte do pelo virada para dentro. Ade – significa onça. Adugaåböli. Onça é um antigo termino portugués para o jaguar. A pintura corporalcorresponde, com pequenas variações, à iwará arége edúgo, “a pintura cor-poral dos espíritos dos iwará arége” entre os Bororo Orientais, e é proprie-dade do clã Baádo-JÈebáge CÈebegiwúge.(CF)

3 Entre os pontos críticos dos Bororo à exposição dos objetos colecionados porLévi-Strauss no Musée de l’Homme, em Paris, estava a falta da menção à pro-priedade do clã nos objetos, que para eles constituem a característica primor-dial e fundamentadora de sentido (Carvalho 200: 36; 2012).

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talvez apenas os arcos, flechas ou estojos penianos usados em ocasi-ões cerimoniais; por outro lado, isso certamente é correto apenas emparte em relação aos bokodóris e certamente não diz respeito aosalongadores de cabelo. Depois que a utilização de arco e flecha comoferramentas para buscar o sustento diminuiu, os mesmos avançaramao centro do interesse como armas cerimoniais.Também se pode especular se o significado dos privilégios materiaisdos clãs e subclãs não aumentaram a partir do momento em que osBororo foram estabelecidos em aldeias e devido às mudanças demo-gráficas. Arcos e flechas Bororo reconhecivelmente específicos declãs aparecem em coleções apenas na virada do século XIX para oséculo XX, o que poderia ser esclarecido tanto por uma prontidãocrescente à venda de insígnias, quanto pelo significado cada vezmaior da especificidade do clã. Por fim não pode ser completamenteexcluída a possibilidade de que a organização de parentesco dosBororo da Campanha (e sobretudo dos diferentes grupos de Bororodo Cabaçal) se diferenciava da organização dos Bororo Orientais. A pergunta sobre se ao final das contas tentamos aqui compararcoisas apenas em parte comparáveis ou inclusive completamenteincomparáveis, deve ser feita não apenas devido às mudanças his-tóricas nas estruturas dos clãs, mas também às mudanças nas pró-prias insígnias. Uma vez que “história” e “tradição” são duas cons-truções diversas (comparar com Feest 1997), a afirmação da imuta-bilidade da transmissão como parte da afirmação da tradição emmuitos casos não resiste a um exame histórico. Isso vale sobretudopara o presente caso, no qual se passaram quase dois séculos entrea época dos objetos colecionados e o saber contemporâneo dosportadores da tradição, que além disso nem sequer são os descen-dentes diretos daqueles que os confeccionaram. As coleções formadas sobretudo na primeira metade do século XXpelos salesianos junto aos Bororo Orientais hoje em dia se encontramem boa parte na sede italiana da congregação, em Castelnuovo DonBosco, nas proximidades de Asti, e no Museu das Culturas Dom Bos-co, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O Museu das Cultu-ras também coordena um museu de aldeia, cujo nome homenageiaRodolfo Lunkenbein, na comunidade bororo de Meruri. Um grupode Bororos de Meruri teve a oportunidade, em 2004, de visitar ascoleções na Itália, e pôde assim ser confrontado nitidamente com asmudanças históricas em sua cultura material, que ao mesmo temposerviu de incentivo para que, através de reproduções, eles se reapro-priassem desses objetos do passado reclamados por eles como pro-priedade de clã (fig. 11; Carvalho 2006: 28–37, 219). Desse interesse dos Bororo de Meruri surgiu a ideia de uma “repa-triação visual” da propriedade de clã oriunda da comunidade, quealhures havia sido preservada como documento de diversidade cul-tural (Carvalho 2012). No âmbito de um projeto conjunto do Museudas Culturas e do Museum für Völkerkunde de Viena, o acervo mun-dial das coleções bororo de mais de dois séculos foi identificado e emseguida principiada sua documentação, para ao fim tornar o mate-rial acessível aos próprios Bororo, e ao mesmo tempo encontrar, jun-to com os mesmos Bororo, uma resposta às perguntas ainda abertasacerca da identificação da propriedade histórica de seus grupos deparentesco. Para a realização desse projeto ainda será preciso resol-ver vários problemas de ordem metodológica e técnica, mas tam-

bém outros de natureza financeira, uma vez que muitos museus hojeem dia se veem obrigados a contemplar suas coleções não apenascomo herança cultural, mas também como recurso financeiro. A percepção de que as coleções de objetos dos Bororo que JohannNatterer principiou há quase 200 anos como parte de seu esforço nosentido de fazer do Gabinete de História Natural do imperadoraustríaco um dos maiores e mais belos do mundo, agora visto comrazão também pelos Bororo como sua herança cultural, significapara a Áustria, o Brasil e os Bororo a chance de professar uma res-ponsabilidade no sentido de continuar conservando e pesquisandoesse tesouro.

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Imagem 102: Repatriação Visual. Bororo Orientais, Meruri, Brasil.Em torno de 2005.(Fotografia: © Sergio Sato)

Jorge Bororo durante a reconstrução de um cocar tipo pariko, feito de penasde arara, seguindo fotos de um artefato do Museu das Culturas Dom Bosco(Campo Grande–MS). (CF)

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Flechas com pontas de osso (dögöla) e pontas de cana (döga, duga,köka, tschora). Bororo da Campanha, Rio Paraguai, Mato Grosso,Brasil. Em torno de 1825. Cana, madeira, penas, fibras vegetais, resina, al-godão, C. máx 229 cm. Col. Natterer, Nos de Inv. 735, 744, 750, 753, 764

Os dois tipos de pontas de flecha dos Bororo da Campanha, tanto as com pon-tas de osso ou de madeira e emplumação tangencial (preferencialmente para acaça de pássaros e caça de pequenos animais), ou então as com pontas de canae emplumação radial (para a caça de grandes animais e para a guerra), se pare-cem com aquelas, que mais tarde foram encontradas também entre os Bororodo rio São Lourenço. Elas eram, no entanto, meio metro mais longas, e pelomenos as encontradas por Natterer não mostram quaisquer sinais específicosde clãs. A emplumação radial com fixação por meio de costura também é inco-mum. Como as flechas dos Bororo do Cabaçal eram provenientes de butim deguerra, elas representam mais o segundo tipo de flecha, mas possuem umahaste de cana muita curta e mostram, além da fixação por costura, também afixação de penas mediante envoltura de ambos extremos, na qual uma das pásé cortada, na maior parte das vezes de maneira denteada. As formas diferentespoderiam ser um indicativo da heterogeneidade dos Bororo Ocidentais. (CF)

Viseira de penas (até mutché). Bororo da Campanha (Biriboconné),Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Penas de arara ede papagaio, algodão, fibras vegetais, resina, C. 45 cm. Col. Natterer, No deInv. 766

A viseira, pela descrição de Natterer, “usada na testa com o topo apontandopara baixo durante as danças”, corresponde ao ebukejéwu dos Bororo de SãoLourenço, que é usado em conjunto com o grande cocar (pariko), e no qualfalta a pena central ou que é cortado na largura da viseira. Essa diferençatorna impossível a atribuição a eventualmente imaginada propriedade de umclã específico. (CF)

Dois adornos para o occipício (baatsch, “garça”). Bororo da Campanha(Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825.Penas, algodão, fibras vegetais, C. máx. 48 cm. Col. Natterer, Nos de Inv.. 767, 769

Johann Natterer descreve o modo de usar esses adornos de cabeça, feitos depenas de garça e aves de rapina, conforme segue: „Primeiro os cabelos sãopresos na parte de atrás da cabeça, depois adornos de pelos de cavalo ama-rrados ali, e depois são fixados no feixe vários desses adornos em penas comas penas arranjadas verticalmente, como se fosse a auréola de um santo.“Entre os Bororo Orientais do século XX, a posse de adornos com penas degarça (bá?e ariareu), semelhantes aos baatsch dos Bororos da Campanha, eraprivativo aos homens do clã Iwagúdu-dóge. (CF)

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Seção Catalográfica

BORORO

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Adorno de penas para o occipício. Bororo da Campanha (Biribo-conné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Penas depapagaio e de falcão, algodão, fibras vegetais, resina, H. 36 cm. Col. Natte-rer, No de Inv. 771

Adornos semelhantes a esse (kiogoáro bóe el-aobáru) foram encontradosentre os Bororo do rio São Lourenço. Eram usados junto ao occipício, tanto porhomens quanto por mulheres, de um modo que as penas caíssem sobre odorso. O tamanho e o tipo de penas utilizadas eram as marcas determinantespara a diferenciação entre os clãs (CF)

Pente (budega). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai,Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Madeira, algodão, C. 8 cm. Col.Natterer, No de Inv. 787

Assim como seus parentes orientais, os Bororo da Campanha penteavamseus longos cabelos com pentes duplos feitos de pontas do tronco de pal-meira, que eram afixadas artisticamente com barbante de algodão a duasvaretas de madeira (CF)

Duas testeiras de garras de onça (aduga bulegi). Bororo da Campanha(Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Sãorespectivamente 18 e 52 garras de onça, couro, ossos, algodão, fibrasvegetais, resina, C. máx. 26,5 cm. Col. Natterer, No de Inv. 771 , col.Schröckinger, No de Inv. 771 53.523 (antiga col. Natterer).

As garras e os dentes de uma onça morta em uma caçada cerimonialdepois de uma morte eram presenteados aos parentes do índio morto.Natterer conseguiu adquirir pelo menos 10 dessas testeiras com as garrasviradas para cima, nas quais não havia diferenças específicas de clãs e quese diferenciavam sobretudo pela quantidade das garras utilizadas. A tes-teira maior entrou para a coleção do museu apenas após o falecimento deNatterer, oriunda de seu espólio. (CF)

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Dois peitorais de dentes de onça (aduga-a) e dentes bovinos (dabi-ra-à,dabiráõ). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai,Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de onça, algodão e resinae, respectivamente, dentes bovinos, algodão; C. total 129 e 85 cm. Col. Nat-terer, Nos de Inv. 796, 803

Mesmo que Natterer tenha definido essas peças como testeiras seu uso édocumentado somente como peitoral. Os aduga-a eram confeccionadoscom 4 caninos de onça flanqueados por 4 a 5 molares. Esses adornos nãoeram específicos de clãs e podiam ser usados por homens e mulheres. Domesmo modo que as testeiras, os peitorais estão relacionados aos rituaisfúnebres. Isso certamente não vale para os exemplares de dentes de bois,os quais provavelmente tenham sido adquiridos pelos Bororo ao trabalharcomo vaqueiros das grandes fazendas. (CF)

Brinco (apa da ato) e dois pares de brincos (idaé). Bororos da Cam-panha (Biriboconnés), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em tornode 1825. Anéis de tucum, bico de tucano, algodão, conchas, fibras vegetais;L. máx. 7 cm. Col. Natterer, Nos de Inv. 805, 809–810 e 838–839.

Os pingentes em forma de meia-lua, feitos de bico de tucano ou conchas,eram utilizados como peça única ou aos pares. Era bastante comum o uso devários brincos na mesma orelha. Entre os Bororo Orientais do século 20 osbrincos feitos de bico de tucano (apódo otó) eram um privilégio exclusivo doshomens do clã Kie, enquanto ao mesmo tempo os brincos feitos de lata (emvez de madrepérola) eram usados por todos, homens e mulheres, sem distin-ção de clã. (CF)

Um par de brincos (atu-bulinia). Bororo da Campanha (Biriboconné),Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. 12 e 13 anéis detucum, respectivamente, pingentes de conchas, penas, fibras vegetais,algodão, resina, C. 5,5 a 5,9 cm. Col. Natterer, Nos de Inv. 807–808

Johann Natterer caracteriza esses brincos muito elaborados, confeccionadospor homens, como adornos destinados exclusivamente a “meninas cresci-das”. Não se descobriu o eventual significado simbólico das mãos. (CF)

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Peitoral de garras de tatu (bakàdåli bulegi). Bororo da Campanha(Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825.Garras de tatu-canastra, conchas, resina, algodão, L. 13,5. Col. Natterer,No de Inv. 810

Entre os enfeites mais característicos dos Bororo estão os ornamentos emforma de meia-lua crescente, feitos de duas das grandes garras das patastraseiras do tatu-canastra, que além disso são decorados com conchas, pe-nas ou fios de algodão. Natterer provavelmente comete um equívoco quan-do se refere a eles como peitorais e testeiras. Mais além, a designação bororodeste adorno como relatado por Natterer refere-se a um colar feito das gar-ras das patas dianteiras do tatu. (CF)

Colar com dentes de onça (i kuie). Bororo da Campanha (Biriboconné),Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de onça,fibras vegetais, L. 16,5cm. Col. Natterer, No de Inv. 850

Faltam dados quanto à utilização especial dos dentes incisivos de onçacomo contas do colar que Natterer colecionou entre os Bororo da Campan-ha, não há peças comparativas dos Bororo Orientais. (CF)

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Cinta para mulheres (ïuoei) e faixa (kada binoei). Bororo da Campa-nha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de1825. Casca de árvore, fibra vegetal, entrecasca, algodão, C. máx. 210 cm.Col. Natterer, Nos de Inv. 859, 863

No que diz respeito à indumentária feminina Johann Natterer comentou: “Asmulheres [...] trazem em volta da cintura uma faixa de mais de um palmo delargura feita da casca da árvore Nagale cogu. Esta casca é dura e imóvel, masuma faixa mais estreita da entrecasca de figueira passa por entre as pernase está afixada na parte de trás e na frente. Nenhuma mulher quis me cederesse ornamento até que um tecido vermelho ganhou a batalha. Após entrarem sua maloca, a proprietária deu a faixa ao marido, que veio me entregá-la”. Durante a gravidez e o resguardo, a faixa de entrecasca fica presa a umacordinha de algodão ou outra fibra vegetal. (CF)

Corda de cintura (baràgurà), corda de cintura (noito-ina, aevora)e estojo peniano (inobe). Bororo da Campanha (Biriboconné), RioParaguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Ossos de pássaros, lã,folha de palmeira, algodão, C. máx. 103 cm. Col. Natterer, Nos de Inv. 867,875, 880

De acordo com Johann Natterer “os homens usam somente uma corda nacintura, à qual amarram o membro masculino”. Antes de amarrá-lo, eles ocomprimem em um estojo peniano trançado de folha de palmeira, de talmaneira que apenas o prepúcio se destaque no orifício da extremidade. Ascordas na cintura podiam ser apenas de fibra vegetal e enfeitadas comcontas de osso, ou também conchas e nozes de tucum. (CF)

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Dois pares de braçadeiras. Bororo da Campanha (Biriboconné),Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Couro de cobra,penas, C. máx. 75 cm. Col. Natterer, Nos de Inv. 881, 882^

Não há objetos dos Bororo do rio São Lourenço, que pudessem servir parauma comparação com essas “3 braçadeiras de couro de cobra” colecionadaspor Natterer entre os Bororo da Campanha. As grandes diferenças em rela-ção à falbalá de penas poderia ser um indício relativo à propriedade de de-terminados clãs. (CF)

Corda com guizos (butolé) e maracá de cabaça (ï-u-abó). Bororo daCampanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Emtorno de 1825. Unhas de veado, fibras vegetais, cabaça, madeira e pedriscosou sementes, C. máx. 131 cm. Col. Natterer, Nos de Inv. 887, 889

Para acompanhar as danças, os Bororo da Campanha usavam dois tipos dechocalhos. Cordinhas com guizos feitos de unhas de animais como o porcosilvestre ou veado campeiro “(Cervus dichotomus) eram amarradas envolvendoos pés ou os tornozelos, dando várias voltas. [...] O proprietário dessesguizos abriu mão deles somente mediante a troca por uma faca, um lenço eum pedaço de fumo de rolo.” Os maracás de cabaça dos Bororo Orientaiscom marcas específicas de clã eram usados durante as danças para dar orimo. (CF)

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Page 17: Bororo. a Joia Da Coroa Para Antropologia

Dois clarinetes (koa). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Pa-raguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Cana, cabaça, penas,resina, crina de cavalo, algodão, C. máx. 40 cm. Col. Natterer, Nos de Inv.904, 906

Durante o ritual fúnebre dos Bororo Orientais, o caçador da onça, que incor-porava a alma do morto, recebia de seu pai ou de seu cunhado um clarinetecom um pavilhão feito de cabaça, que representava a voz do morto no ritual.Todos esses instrumentos apresentam adornos específicos de clãs e erammantidos escondidos dos olhares de mulheres e crianças. Ao final do jantarfestivo, o caçador da onça recebia de presente um clarinete igual ao usadodurante a cerimônia fúnebre.

Clarinete (boali). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai,Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Chifre de boi, cana, fibras vegetais,algodão e cabelo humano, C. máx. 19,5 cm. Col. Natterer, No de Inv. 894

Os instrumentos musicais, chamados de “chifres” por Natterer, devido aomaterial de seu pavilhão, e utilizados tanto pelos Bororo da Campanha quan-to pelos Bororo do Cabaçal, eram clarinetes, cujo nome aponta para suaorigem dos clarinetes de cabaça (Bororos Orientais powári, “cabaça”). O seuuso, no entanto, não era ritualístico. “Eles tocam os instrumentos para secomunicarem e quando estão viajando”. Os Bororo do rio São Lourenço des-conheciam esse instrumento (CF).

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Artefato para afiar pontas de flechas (duga barega) e concha decaracol como plaina. Bororo da Campanha (Biriboconné), RioParaguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de animalroedor, algodão, resina, folhas de palmeira, concha de caracol, C. máx.27,5 cm. Col. Natterer, nºs de inv. 901–903

Leque ou abanador para fogo (bá kuu). Bororo da Campanha (Biribo-conné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Folhas depalmeira, C. 65 cm. Col. Natterer, nº de inv. 896

Como único exemplar de um trabalho de cestaria feito por mulheres, Nat-terer adquiriu com os Bororo um leque ou abanador para fogo, feito deduas folhas de palmeira trançadas e entrelaçadas, cujas extremidadesainda serviram de cabo ao leque. (CF)

Um dente afiado de capivara ou outro animal roedor, afixado em um pedaçode madeira, servia para os homens bororo como ferramenta multiúso, poisnão somente afiava as pontas das flechas, como também aplainava a madei-ra. Para cada ferramenta havia um cabo da palmeira bacuri, que servia paraafiar os dentes. As ferramentas de tratamento da madeira eram complemen-tadas com uma concha de caracol, que servia para aplainar e alisar tambémos cabos das flechas. (CF)

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O espólio fotográfico do fotógrafo austro-brasileiro Mario Baldi(nascido em 1896, em Salzburgo, na Áustria, e falecido em 1857,no Mato Grosso, no Brasil), constitui sem dúvida uma das coleçõesfotográficas mais importantes do Museum für Völkerkunde de Vie-na e, com certeza, também a maior.Ajudado por seu material visual, o outrora fotógrafo de guerra e,que tornou-se fotógrafo profissional após ter emigrado para o Bra-sil em 1921, conseguiu documentar em todas as suas variadas for-mas o modo de vida da população da pátria que escolheu para vi-ver, concedendo atenção especial às comunidades indígenas. Emsuas longas viagens pelo país (por algum tempo na condição desecretário de Dom Pedro de Orléans e Bragança, bisneto de donaLeopoldina, Imperatriz do Brasil), o pioneiro do fotojornalismo bra-sileiro Mario Baldi retratou os mais variados tipos de gente e suascondições de vida nas cidades grandes e nas comunidades rurais.Ao mesmo tempo, sua volumosa coleção apresenta também umgrande número de fotografias das paisagens, das expedições e deregistros privados. Estas imagens refletem não apenas seu grandeinteresse na etnografia, como também nos permitem, e de umamaneira inigualável, conhecer de perto as condições de vida dosBororo, dos Karajá e de outros grupos indígenas. Viajando durantegrande parte de sua vida, Baldi acabou morrendo durante uma desuas expedições e foi sepultados pelos Tapirapés. Graças à ajuda do embaixador da Áustria no Brasil, a grande e im-portante coleção de objetos etnográficos de Mario Baldi, e tam-bém seu espólio fotográfico de 4.800 imagens (que ainda precisaser identificado e classificado), acabou chegando ao acervo do Mu-seum für Völkerkunde de Viena. (CZ)

Mulher idosa. Bororo Orientais, Meruri, Brazil. Foto: Mario Baldi,1934. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.808

Vestida com roupas neobrasileiras, essa senhora idosa, que possivelmenteainda se lembrasse da vida fora das colônias e aldeias missionárias, usavários colares de dentes de onça, um presente que ganhou de um caça-dor no passado. Esses adornos não diferem significativamente daquelesque Johann Natterer coletou mais de um século antes com os Bororo daCampanha. (CF)

Vista da aldeia Meruri. Bororo Orientais, Brasil. Foto: Mario Baldi, 1934.Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.791

Em Meruri os padres salesianos conseguiram convencer os homens a aban-donar a casa dos homens, centro da vida social até então, e distribuir suascasas no sistema de ruas, deixando para trás a organização em círculo típicado passado. (CF)

Padre Albisetti e crianças bororos. Bororo Orientais, Sangradouro,Brasil. Título da série: “O caminho espinhoso”. Foto: Mario Baldi, 1934.Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.896

“A maior parte dos missionários é muito estimada pelas crianças dos índiose também gosta muito das crianças. O missionário sabe perfeitamente que otrabalho sério com as crianças é de suma importância. As crianças escutamatentamente as belas histórias da Bíblia Sagrada que o Bom Padre lhes lê.Seguram as mãozinhas em oração, rezando com ele em sua língua indígena.E assim o primeiro grão de fé é plantado na alma delas” (descrição originalde Mario Baldi). (CF)

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OS BORORO NA FOTOGRAFIADE MARIO BALDI

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Menina com papagaio. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Foto:Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.872

“Uma menina graciosa dessa tribo na Colônia do Sagrado Coração. Sobreseu ombro pousa um papagaio manso” (descrição original de Mario Baldi).Johann Natterer já mencionava a criação de pássaros de estimação. Princi-palmente as araras eram muito estimadas como fornecedoras de penas. Umatécnica chamada “tapiragem” possibilitava colorir as penas, deixando-asamarelas, quando se pingava gotas de certa seiva de árvore sobre o local deonde foi retirada recentemente a pena da ave viva. Mas os Bororo tambémacreditavam que suas almas eram araras vermelhas e que quando morres-sem eles mesmo continuariam vivendo nessas aves. (CF)

Apelo para a cerimônia. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Título dasérie: “Danças fúnebres dos índios Orarimugudoge, 2”, Foto: Mario Baldi,1934. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.902

“Um jovem guerreiro chama os dançarinos para a cerimônia fúnebre usan-do uma trombeta de cabaça de timbre abafado” (descrição original deMario Baldi). Essa trombeta (pána), feita geralmente de um conjunto decabaças, é propriedade de um clã específico, mas também pertence aItubóre, o herói cultural e senhor do reino dos mortos do leste, o que juntocom Bakoróro organizou a mundo para os Bororo. Sua história é dramati-zada no ritual fúnebre. Orárimógudóge (“moradores do país dos peixes manchados” foi uma desig-nação introduzida pelos missionários salesianos para designar os BororoOrientais. (CF)

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Prontos para a dança. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Título dasérie: “Danças fúnebres dos índios Orarimugudoge, 4”. Foto: Mario Baldi,1934. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.892

“À esquerda se encontra o bâri (feiticeiro), que simboliza a alma do morto e,por isso, mantém seu rosto coberto com uma viseira de penas de gavião; namão o maracá dos espíritos. À direita se encontra um dançarino com saia defolhas da palmeira babaçu, cocar de penas de araras azuis e vermelhas e la-brete de madrepérola de conchas ribeirinhas. O peitoral é de garras do tatu-canastra” (descrição original de Mario Baldi). (CF)

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A dança Marido. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Título da série:“Danças fúnebres dos índios Orarimugudoge, 9”. Foto: Mario Baldi, 1934.Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.896

A dança “Marido” faz parte do ritual fúnebre, e nela os vivos e as almas dosmortos são incorporadas por homens que dançam ou competem em corri-das a pé com rodas feitas de folhas da palmeira buriti de até 100 quilogra-mas. Lévi-Strauss sugeriu que “numa alegre desordem, os indígenas têm asensação de jogar com os mortos e de ganhar deles o direito de continuarvivendo”. (CF)

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“Bororos pescando”. Bororo Orientais, Meruri, Brasil. Foto: MarioBaldi, 1936. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/3.046

Os Bororo gostavam de ficar na água – para se refrescar, para sua higiene epara pescar com redes de três pontas. Essas redes eram chamadas buke (“ta-manduá-bandeira”), uma vez que seus contornos se assemelham aos desteanimal. Natterer chega a mencionar a pesca em suas anotações, mas nãocolecionou material referente a ela. (CF)

“Mulher bororo confeccionando um cesto”. Bororo Orientais,Meruri, Brasil. Título da série: “Posto avançado da civilização, 9”. Foto:Mário Baldi, 1934. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/2.796

“Esses cestos, que são extremamente resistentes, são trançados a partir deuma única folha da palmeira babaçu ou buriti. Contudo, cada umas dessasfolhas têm entre seis a oito metros de comprimento” (descrição original deMario Baldi). Cestos e bolsas eram utilizados pelos Bororo para o transpor-te de carga em suas viagens, e também para o sepultamento definitivo dosossos dos falecidos. (CF)

Guerreiro bororo pronto para a dança. Bororo Orientais, Meruri,Brasil. Título da série: “Tipos de indígenas nas missões no Brasil central”.Foto: Mario Baldi, 1936. Coleção de fotografias, No de Inv. 30.896/3.067

“O arco de honra do ‘Caçador da Onça’ mostra arranjos impressionantes depenas” (descrição original de Mario Baldi). Nas aldeias missionárias a antiganudez desapareceu, porém, as formas de adornos como os cordões de cabe-los humanos enrodilhados na cabeça à maneira de um turbante e as noçõese cerimônias tradicionais continuaram visíveis como expressão da identidadebororo. (CF)

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