bichir tese rev
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Universidade do Estado do Rio de JaneiroInstituto de Estudos Sociais e Polticos (IESP)
Programa de Doutorado em Cincia Poltica
Renata Mirandola Bichir
Mecanismos federais de coordenao de polticas
sociais e capacidades institucionais locais:
o caso do Programa Bolsa Famlia
Rio de Janeiro
2011
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Renata Mirandola Bichir
Mecanismos federais de coordenao de polticas
sociais e capacidades institucionais locais:
o caso do Programa Bolsa Famlia
Tese apresentada como requisito parcial para obteno
do ttulo de Doutora ao Programa de Ps-
Graduao em Sociologia e Cincia Poltica, do
Instituto de Estudos Sociais e Polticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
rea de Concentrao: Cincia Poltica.
Orientadora: Profa. Dra. Argelina Cheibub Figueiredo
Rio de Janeiro
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Renata Mirandola Bichir
Mecanismos federais de coordenao de polticas
sociais e capacidades institucionais locais:
o caso do Programa Bolsa Famlia
Tese apresentada como requisito parcial para obteno
do ttulo de Doutora, ao Programa de Ps-
Graduao em Sociologia e Cincia Poltica, do
Instituto de Estudos Sociais e Polticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
rea de Concentrao: Cincia Poltica.
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Argelina Cheibub Figueiredo (Orientadora) (IESP)
Prof. Dr. Renato Boschi (IESP)
Profa. Dra. Maria Regina Soares Lima (IESP)
Profa. Dra. Marta da Silva Arretche (USP)
Profa. Dra. Natlia Guimares Duarte Styro (UFMG)
Rio de Janeiro
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AGRADECIMENTOS
Escrever esta tese foi mais ou menos como montar um grande quebra cabeas,
com muitas peas s vezes desencontradas e aparentemente desconexas, sem ter muita
clareza, inicialmente, da figura final que seria formada. No s por conta das
dificuldades enfrentadas em qualquer tese de doutorado, mas tambm pelo tema
escolhido, multifacetado, polmico, passvel dos mais diferentes olhares e ainda em
processo de construo. Nesse processo de montagem tortuoso e, ao mesmo tempo,
estimulante muitas pessoas foram extremamente importantes. Desnecessrio dizer que
qualquer confuso remanescente de minha inteira responsabilidade.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao CNPq, instituio da qual fuibolsista tanto no mestrado quanto no doutorado, o que me permitiu, alm da
sobrevivncia cotidiana, a participao em diversos eventos cientficos, no Brasil e no
exterior. Tambm contei com bolsa sanduche do CNPq no doutorado, o que me
permitiu passar seis meses na Universidade da Califrnia, em Berkeley, EUA, entre
janeiro e julho de 2009. L tive o privilgio de ter a orientao do Prof. Chistopher
Ansell, com quem pude conversar longamente sobre minha tese e diversos outros
assuntos, e a quem agradeo enormemente a pacincia, o incentivo, e o convite para
escrever um artigo conjunto. A tese tambm se beneficiou, direta e indiretamente, dasbrilhantes aulas do Prof. Peter Evans, figura genial e extremamente gentil, alm das
aulas com o Prof. James Holston e tambm diversos seminrios e palestras que tive a
oportunidade de assistir. Ao final, a experincia completa do sanduche foi
extremamente transformadora e gratificante, tanto do ponto de vista acadmico quanto
do ponto de vista pessoal.
Gostaria de agradecer profundamente todos aqueles se dispuseram a conversar
comigo sobre os percalos da implementao do Programa Bolsa Famlia em Salvador,
So Paulo, e tambm no nvel federal. Em Salvador, agradeo aos beneficirios de
diversas comunidades com os quais pude conversar sobre a relevncia do programa em
suas vidas. Ainda em Salvador, agradeo a Sarita Antonia Gonzalez, Viviane
Mascarenhas e a Joo Paulo Alves, todos da Secretaria Municipal do Trabalho,
Assistncia Social e Direitos do Cidado (SETAD), pelas entrevistas concedidas. Em
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So Paulo, agradeo a Wladimir Prado, Maria Rita Freitas, Luiz Fernando Francisquini
e Mrcia Gonalves, todos da Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvimento
Social de So Paulo (SMADS), pelas entrevistas concedidas. Para esclarecer os pontos
de vista do governo federal sobre o programa, a entrevista que pude realizar com Jnia
Quiroga, diretora do Departamento de Avaliao da Secretaria de Gesto da Informao
do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (DA/SAGI/MDS), e a
conversa com Luciana Jaccoud, do Ipea e do MDS, ambas realizadas na Anpocs de
outubro de 2010, em Caxambu, foram de extrema valia.
Esta tese muito se beneficiou da orientao da Prof Argelina Figueiredo. Desde
o incio, Argelina me deu liberdade para que eu seguisse minhas escolhas, ao mesmo
tempo em que me indicou caminhos menos tortuosos e mais profcuos analiticamente.
Sua leitura atenta e seus comentrios precisos em muito contriburam para a conexoentre as diversas peas desta tese.
Diversos outros professores do Iuperj contriburam, direta ou indiretamente, para
a confeco desse quebra-cabea. Agradeo principalmente aos professores Nelson do
Valle Silva e Renato Boschi, membros da minha banca de defesa de projeto, quando o
quebra cabea estava na sua fase mais catica. Com Nelson aprendi a importncia de
precisar minhas hipteses e a relevncia de no cair em falsas questes. Com Renato
aprendi que importante explorar todas as facetas de nosso problema de pesquisa, mas
que mais relevante ainda selecionar aquilo que faz parte do nosso processo de
aprendizagem, mas deve ficar fora da tese, e aquilo que realmente importa e deve
compor o texto. O seminrio de projeto, sob orientao do Prof. Joo Feres, e o
seminrio de tese, sob orientao do Prof. Marcelo Jasmin, tambm em muito
contriburam para precisar meu foco.
Ainda no Iuperj, gostaria de agradecer a Lia Gonzalez e a Caroline Carvalho,
cujo trabalho alegre e competente em muito contribuiu para facilitar e reduzir
minhas idas e vindas entre So Paulo e Rio de Janeiro. Tambm gostaria de agradecer adiversos colegas do doutorado em Cincia Poltica, com os quais pude dividir questes
intelectuais, pessoais, e tambm divertidos almoos, em especial Mrcio Andr Santos,
Cristiano Rodrigues, Brbara Lamas, Iara Leite, Dawisson Lopes e Andr Coelho. A
Cristiano e a Iara agradeo tambm as acolhidas generosas em suas casas.
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O ambiente do Centro de Estudos da Metrpole (CEM-CEBRAP), em So
Paulo, tambm foi importantssimo para o desenvolvimento desta tese. Agradeo
especialmente a Marta Arretche, sempre disposta a ouvir minhas inquietaes, dando
dicas utilssimas de leitura e me ajudando a mapear o terreno das polticas sociais. Seus
comentrios a verses preliminares de certos captulos, apresentadas sob a forma de
artigos para discusso nos seminrios internos do CEM, em muito contriburam para
aprimorar o meu trabalho. Outro agradecimento muito especial vai para Eduardo
Marques, meu eterno orientador, que acompanha meu trabalho desde a iniciao
cientfica. Mais do que por seus inmeros comentrios valiosos, sugestes de leituras e
escutas pacientes nos momentos de maior dificuldade ao longo da tese, gostaria de
agradecer por sua amizade ao longo de todos esses anos.
Ainda no CEM, gostaria de agradecer a duas amigas muito especiais e colegasde trabalho na pesquisa Redes e Pobreza, Graziela Castello e Encarnacin Moya. Vrios
outros colegas do CEM contriburam para dar humor e leveza ao processo de trabalho:
Jlio Costa, Patrick Silva, Lara Mesquita, Edgard Fusaro, Fernando Guarnieri, Natlia
Salgado, Daniel Waldvogel Silva, Donizete Cazzolato, Fernando Gonalves. Ao Edgard
agradeo ainda o auxlio no processamento dos dados quantitativos desta tese, e ao
Donizete por ter utilizado suas redes para abrir para mim as portas da Secretaria
Municipal de Assistncia Social de So Paulo.
Tambm me beneficiei da apresentao de verses parciais e preliminares dos
captulos em diversos seminrios e congressos. Agradeo particularmente aos preciosos
comentrios de Sandra Gomes e Carlos Vasconcellos, debatedores do meu artigo no 7
Encontro da ABCP realizado em Recife em agosto de 2010. Na ltima Anpocs em
Caxambu, em outubro de 2010, tive o privilgio de contar com os comentrios e
sugestes precisos de Jnia Quiroga e Telma Menicucci, s quais agradeo. Gostaria de
agradecer ainda a Celina Souza pelo convite e pelas discusses do seminrio A agenda
atual na Cincia Poltica, realizado em setembro de 2010 na UFBA.
J no momento da reviso final da tese uma reviravolta na minha trajetria
profissional acabou contribuindo para precisar certos argumentos desenvolvidos no
texto. O convite para trabalhar no Departamento de Avaliao da SAGI/MDS trouxe um
novo olhar para o mesmo problema de pesquisa, um pouco mais prximo dos meandros
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da gesto federal dos programas de transferncia de renda e da assistncia social. Pelo
convite para trabalhar na SAGI, agradeo a Jnia Quiroga.
Montar esse quebra cabea at o final teria sido uma tarefa ainda mais rdua sem
amigos queridos ao meu lado: Rosi, Rogrio, Isa, Enc, Bianca, Cabral, Joo, Ren,Giovanni, muito obrigada por todos os almoos, jantares, papos cabea, bobagens,
sorrisos e abraos trocados ao longo dos ltimos anos.
Agradeo ainda aos meus pais, Alusio e Cristina, e ao meu irmo Marcelo, que
direta e indiretamente contriburam para eu chegar at aqui. Agradeo a minha av
Raquel, que generosamente me acolheu em sua casa para que eu pudesse escrever os
captulos finais dessa tese, ouvindo o barulhinho do mar.
Agradeo ao Lo, companheiro de longa data, por todo seu amor.
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Minha vassoura a caneta da minha filha
Frase de uma beneficiria do Programa Bolsa Famlia
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RESUMO
Este trabalho analisa o Programa Bolsa Famlia (PBF), tratando de sua evoluo
ao longo do governo Lula, tanto no que diz respeito ao seu escopo quanto a seu desenho
institucional e as alteraes que foi sofrendo em seus objetivos. Tendo em vista a
natureza federativa do Estado brasileiro, o objetivo do trabalho mostrar os desafios
enfrentados pelo poder central para garantir a implementao homognea de um
programa nacional de transferncia condicionada de renda a ser gerido pelos
municpios. Para tanto, so analisados, de um lado, os recursos institucionais e as
estratgias de que dispunha o governo federal para alcanar os seus objetivos para o
PBF, e de outro, os resultados e a dinmica da gesto municipal do programa em dois
grandes centros urbanos, So Paulo e Salvador. So analisadas informaes relativas ao
desempenho nacional do programa e tambm referentes implementao municipal do
PBF nos casos escolhidos, por meio de dados de surveys realizados com a populao de
baixa renda e de entrevistas semi-estruturadas com gestores municipais do programa
nessas duas cidades.
A tese identifica os mecanismos que asseguram o crescente poder de
coordenao do governo federal no sentido de fazer com que suas principais diretrizes
para o programa sejam de fato implementadas no plano municipal. Mostra tambm queo processo de implementao do PBF afetado no s por seu desenho institucional,
definido no plano federal, mas tambm pelas diferentes capacidades institucionais
disponveis no plano local recursos humanos, capacidade de gesto e articulao entre
diversos servios e polticas, infra-estrutura disponvel, entre outros aspectos e pelos
diferentes interesses polticos na maior ou menor coordenao dos programas locais de
transferncia com o programa nacional. Finalmente, o trabalho examina ainda os limites
e possibilidades para a articulao do PBF com uma poltica mais ampla de assistncia
social.
Palavras-chave: Programa Bolsa Famlia; federalismo; mecanismos de coordenao;
assistncia social; polticas sociais; So Paulo; Salvador
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ABSTRACT
This thesis analyzes the Bolsa Famlia Program (PBF), dealing with its evolution
over the Lula government, both in terms of its scope and its institutional design and also
considering the changes in its main goals. Given the federal nature of the Brazilian state,
the main goal is to show the challenges the central government face to ensure the proper
implementation of a national program of conditional cash transfer to be managed by the
municipalities. For this purpose, are reviewed, on the one hand, the strategies and
institutional resources available to the federal government to achieve its goals for the
PBF, and on the other hand, the results and the dynamics of the municipal
implementation of the program in two major urban centers, So Paulo and Salvador.
The study is based on information on the performance of the national program and also
considers the municipal implementation of the PBF in the selected cases, using data
from surveys carried out with low income people and also semi-structured interviews
with municipal managers of the program in these two cities.
The thesis identifies the main mechanisms developed to ensure the growing
power of the federal government in order to make its main guidelines for the program
are actually implemented at the municipal level. It also shows that the implementation
of the PBF is affected not only by its institutional design, set at the federal level, butalso by the different institutional capabilities available at the local level human
resources, management capacity and coordination among various services and policies,
infrastructure, among others and by the various local political interests in greater or
lesser coordination with the national program. Finally, the thesis also examines the
limits and possibilities for the articulation of the PBF with a broader social assistance
policy.
Keywords: Bolsa Famlia Program; federalism; coordination mechanisms; social
assistance policy; social policy; So Paulo; Salvador
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LISTA DE GRFICOS
Grfico 1. Valores repassados pelo MDS aos Estados. .............................................. 114
Grfico 2. Percentual de municpios com co-financiamento estadual para funo
assistncia social, por Unidade da Federao. 2009 ................................................... 151
Grfico 3. Percentual de municpios com co-financiamento federal para funoassistncia social, por Unidade da Federao. 2009 ................................................... 152
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Modelo de CHAID para o acesso a programas de transferncia de renda.Municpio de So Paulo, 2004. .................................................................................. 186
Figura 2. Modelo de CHAID para o acesso a programas de transferncia de renda.Municpio de Salvador, 2006. ................................................................................... 190
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. ndice de Gesto Descentralizada Municipal (IGD-M). Salvador e So Paulo,julho de 2010. .................... ....................................................................................... 124
Tabela 2. ndice de Gesto Descentralizada dos Estados (IGD-E). ............................ 126
Tabela 3. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo faixas de rendafamiliar per capita. Municpio de So Paulo, 2004. ................................................... 171
Tabela 4. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo tipo de regio.Municpio de So Paulo, 2004. .................................................................................. 172
Tabela 5. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo sexo doresponsvel pelo domiclio. Municpio de So Paulo, 2004. ...................................... 172
Tabela 6. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo presena decrianas de 7 a 14 anos. Municpio de So Paulo, 2004. ............................................ 173
Tabela 7. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo cor doresponsvel pelo domiclio. Municpio de So Paulo, 2004. ...................................... 173
Tabela 8. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo participaoquinzenal em associao religiosa. Municpio de So Paulo, 2004. ........................... 173
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Tabela 9. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo participaoanual em alguma associao no religiosa. Municpio de So Paulo, 2004. ............... 174
Tabela 10. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo prefernciapartidria. Municpio de So Paulo, 2004. ................................................................. 174
Tabela 11. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo faixas de rendafamiliar per capita. Municpio de Salvador, 2006. ..................................................... 176
Tabela 12. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo setor subnormal.Municpio de Salvador, 2006. ................................................................................... 177
Tabela 13. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo sexo doresponsvel. Municpio de Salvador, 2006. ............................................................... 177
Tabela 14. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo presena decrianas de 7 a 14 anos. Municpio de Salvador, 2006. ........... ................................... 178
Tabela 15. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo prefernciapartidria. Municpio de Salvador, 2006. ................................................................... 178
Tabela 16. Recebimento de dinheiro de programa do governo, segundo participaoquinzenal em associao religiosa. Municpio de Salvador, 2006. ............................. 179
Tabela 17. Variveis finais no modelo de regresso logstica. Municpio de So Paulo,2004. ......................................................................................................................... 194
Tabela 18. Variveis finais no modelo de regresso logstica. Municpio de Salvador,
2004. ......................................................................................................................... 196Tabela 19. Distribuio dos setores censitrios e da populao segundo osagrupamentos do IPVS. Municpio de So Paulo, 2004. ............................................ 219
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ABREVIATURAS E SIGLAS
BDC Banco de Dados do Cidado
BPC Benefcio de Prestao Continuada
Cadnico Cadastro nico para Programas Sociais do Governo Federal
CEF Caixa Econmica Federal
CGB Coordenadoria de Gesto de Benefcios (PMSP)
CIAS Central de Informao e Atendimento Social
CRAS Centro de Referncia da Assistncia Social
CREAS Centros de Referncia Especializada de Assistncia Social
IDH ndice de Desenvolvimento Humano
IGD ndice de Gesto Descentralizada
IPVS ndice Paulista de Vulnerabilidade Social
Loas Lei Orgnica da Assistncia Social
MDS Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome
NIS Nmero de Identificao Social
OPS Observatrio de Polticas Sociais (PMSP)
PBF Programa Bolsa Famlia
PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil
PLANSEQ Plano Nacional de Qualificao Setorial
PRODAM Empresa de Tecnologia da Informao e Comunicao do Municpio de
So Paulo
PRODESP Companhia de Processamento de Dados do Estado de So Paulo
RMS Regio Metropolitana de Salvador
RMSP Regio Metropolitana de So Paulo
SAGI Secretaria de Avaliao e Gesto da Informao (MDS)
SEADE Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados
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SEADS Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social
SEDES Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Combate Pobreza
(Salvador)
SENARC Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (MDS)
SETAD Secretaria Municipal do Trabalho, Assistncia Social e Direitos do Cidado
(Salvador)
SNAS Secretaria Nacional de Assistncia Social (MDS)
SUAS Sistema nico da Assistncia Social
SUS Sistema nico de Sade
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SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................... 17
CAPTULO 1. IMPLEMENTAO DE POLTICAS SOCIAIS EM CONTEXTOS
FEDERATIVOS: A RELEVNCIA DA COORDENAO FEDERAL E O PAPELDAS CAPACIDADES INSTITUCIONAIS LOCAIS ................................................. 33
1.1. Conseqncias do arranjo federativo brasileiro para as polticas sociais ............ 34
1.2. Implementao de polticas sociais ................................................................... 49
1.3. Capacidades institucionais locais ...................................................................... 57
CAPTULO 2. NOVAS FORMAS DE COMBATE POBREZA NO BRASIL: OSPROGRAMAS DE TRANSFERNCIA DE RENDA ................................................. 62
2.1. Trajetria das polticas sociais no Brasil ........................................................... 642.2. A evoluo dos programas de transferncia de renda ........................................ 75
2.3. As polmicas em torno do Programa Bolsa Famlia .......................................... 90
CAPTULO 3. OS MECANISMOS DE COORDENAO FEDERAL DOPROGRAMA BOLSA FAMLIA. ............................................................................ 102
3.1. O Cadastro nico de Programas Sociais ......................................................... 103
3.2. O ndice de Gesto Descentralizada ................................................................ 115
CAPTULO 4. A TRAJETRIA DA ASSISTNCIA SOCIAL E DOS PROGRAMASDE TRANSFERNCIA DE RENDA EM SO PAULO E SALVADOR:CONSTRUINDO CAPACIDADES INSTITUCIONAIS .......................................... 128
4.1. Assistncia social e programas de transferncia de renda em Salvador ............ 129
4.2. Assistncia social e programas de transferncia de renda em So Paulo .......... 132
4.3. Capacidades institucionais locais na rea da assistncia social ........................ 138
4.3.1. rgo Gestor da Assistncia ..................................................................... 140
4.3.2. Recursos Humanos ................................................................................... 143
4.3.3. Legislao e Instrumentos ........................................................................ 146
4.3.4. Conselhos Municipais .............................................................................. 148
4.3.5. Recursos Oramentrios ........................................................................... 149
4.3.6. Convnios e Parcerias .............................................................................. 153
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4.3.7. Servios e Modalidades ............................................................................ 155
4.3.8. Unidades da assistncia social .................................................................. 159
4.3.9. Cadastro nico e Transferncia de Renda ................................................ 160
4.4. Sntese ............................................................................................................ 161
CAPTULO 5. PERFIL DOS BENEFICIRIOS DO PROGRAMA BOLSA FAMLIAEM SO PAULO E SALVADOR ............................................................................ 164
5.1. Os surveys ...................................................................................................... 165
5.2. Anlises bivariadas do perfil dos beneficirios ................................................ 169
5.2.1. So Paulo ................................................................................................. 169
5.2.2. Salvador ................................................................................................... 175
5.3. Modelos de acesso transferncia de renda .................................................... 179
5.3.1 Modelo de CHAID .................................................................................... 185
5.3.2. Modelos de Regresso Logstica............................................................... 193
5.4. Sntese ............................................................................................................ 197
CAPTULO 6 DESAFIOS RECENTES NA IMPLEMENTAO DO PROGRAMABOLSA FAMLIA NO NVEL LOCAL ................................................................... 199
6.1. A implementao do Programa Bolsa Famlia em Salvador ............................ 202
6.2. A implementao dos programas de transferncia de renda em So Paulo ....... 216
6.3. Comparando as estratgias desenvolvidas em Salvador e So Paulo ................ 231
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 236
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... 247
ANEXO I SURVEY DE ACESSO DA POPULAO MAIS POBRE DE SOPAULO A SERVIOS PBLICOS. CEM-CEBRAP/IBOPE, 2004 ......................... 259
ANEXO II SURVEY SALVADOR: PROJETO RADAR DAS CONDIES DEVIDA E DAS POLTICAS SOCIAIS - FASE II ....................................................... 265
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INTRODUO
Neste trabalho analiso o crescente poder de coordenao do governo federal no
sentido de fazer com que suas principais diretrizes para o Programa Bolsa Famlia
(PBF) sejam de fato implementadas no plano municipal, nvel responsvel pela
implementao deste programa nacional de transferncia condicionada de renda.
Partindo da considerao da natureza federativa do Estado brasileiro, que impe
constrangimentos e oportunidades particulares para o desenvolvimento de polticas
sociais no nvel local, o trabalho analisa, no caso especfico do PBF, os mecanismos de
coordenao que foram desenvolvidos pelo governo federal ao longo do governo Lula
(2003-2010), sem, contudo, assumir que estes garantem uma implementao
homognea da poltica no plano municipal. Isso porque o processo de implementao
do PBF afetado no s por seu desenho institucional, definido no plano federal, mas
tambm pelas diferentes capacidades institucionais disponveis no plano local
recursos humanos, capacidade de gesto e articulao entre diversos servios e polticas,
infra-estrutura disponvel, entre outros aspectos , e tambm pelos diferentes interesses
polticos na maior ou menor coordenao dos programas locais de transferncia com o
programa nacional. Alm da discusso mais geral sobre os mecanismos de coordenao
federal e sobre as capacidades institucionais locais, foram escolhidos dois grandescentros urbanos para uma anlise mais aprofundada das dinmicas recentes envolvidas
na implementao do PBF no plano municipal: So Paulo e Salvador.
Para contextualizar a discusso que ser desenvolvida, importante considerar a
evoluo dos programas de transferncia de renda na agenda de polticas sociais do
governo federal. No Brasil, as polticas sociais passaram de um padro de proteo
social vinculado ao mundo do trabalho, restrito a categorias especficas de trabalhadores
configurando um sistema corporativo de proteo, nos termos de Gosta Esping-
Andersen (1991)1, e caracterizado como cidadania regulada por Wanderley
Guilherme dos Santos (1979) , a um padro de polticas sociais de carter regressivo
1Ao abordar os regimes de welfare states como combinaes qualitativamente diferentes entre Estado,mercado e famlia, o autor caracteriza o modelo corporativista estatal como aquele no qual a famliadesempenha um papel central como fonte de solidariedade, dado o carter marginal do mercado e doEstado. A proviso de servios preserva diferenas de status e os direitos legados segundo categoriasespecficas no interior da sociedade, com baixo impacto redistributivo (Esping-Andersen, 1991, p.108).
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no perodo autoritrio (Draibe, 1993; Almeida, 1995; Pochmann, 2007), at sua
expanso no sentido da universalizao aps a redemocratizao, com as reformas das
polticas sociais.
No mbito das reformas de polticas sociais ocorridas em meados da dcada de1990 surgem os primeiros programas de transferncia condicionada de renda. Inspirados
no projeto de imposto de renda negativo do senador Eduardo Suplicy (Suplicy 2002;
Silva; Yasbek; Di Giovanni, 2007), esses programas surgiram como polticas de
combate pobreza primeiro no plano local, em meados dos anos de 1990, como aes
de garantia de renda mnima ou do tipo bolsa escola, destacando-se as experincias
pioneiras de Campinas, Distrito Federal, Ribeiro Preto e Santos. Houve um rpido
processo de difuso do programa do nvel municipal para os Estados e depois para o
nvel federal em 2001, quando surge o primeiro programa nacional de transferncia,eram sete estados e mais de 200 municpios com intervenes do tipo bolsa escola
(Villatoro, 2010).
No governo Fernando Henrique Cardoso, percebe-se a relevncia desses
programas locais, que vo ganhando visibilidade cada vez maior no debate pblico.
Logo aps a iniciativa de co-financiamento federal dos programas locais, por meio do
Programa Nacional de Garantia de Renda Mnima (PGRM), surge o primeiro programa
federal de transferncia de renda associado educao, o Programa Bolsa Escola, em
2001. No caso do Bolsa Escola, o foco recaa nos indivduos, seu escopo era reduzido
em dezembro de 2002, o programa beneficiava 5,1 milhes de famlias (IPEA, 2007)
e havia diversos problemas de coordenao entre as vrias iniciativas de transferncia
de renda. Outros programas de transferncia, como o Bolsa Alimentao e o Auxlio
Gs, estavam dispersos em diversos ministrios, sendo que a rea da assistncia social
no tinha destaque na coordenao dessas aes de transferncia. Fazendo um balano
das iniciativas na rea social no governo FHC, o ento assessor da Casa Civil para essa
rea, Srgio Tiezzi, reconhece que a prioridade foi dada a outras reas de poltica social
que no a assistncia: era preciso concentrar todo esforo e ateno nos servios
sociais bsicos de vocao universal: educao, sade e previdncia social (Tiezzi,
2004, p.50).
O governo Lula, por sua vez, elevou os programas de transferncia de renda a
um novo patamar, articulando os diversos programas federais existentes em um nico
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programa guarda-chuva, o PBF, em 2003. Este programa foi rapidamente ganhando
credibilidade na opinio pblica e mesmo entre especialistas e acabou ofuscando o
programa-vitrine do primeiro governo Lula, o Fome Zero. Em sua fase inicial, os
objetivos do PBF estavam centrados na garantia de boa cobertura e focalizao,
evitando acusaes de utilizao poltica em um contexto de legitimao do programa
na opinio pblica e entre os especialistas.
De maneira geral, esses objetivos foram cumpridos. Muitas anlises passaram a
apontar a contribuio dos programas de transferncia de renda, em especial do PBF,
para a queda recente da pobreza e da desigualdade (Arbix, 2007; Medeiros, Brito e
Soares, 2007; Neri, 2007; Soares et al, 2006; Rocha, 2010), bem como para o aumento
nos nveis de consumo das famlias mais pobres (BRASIL, 2007a; Cedeplar, 2007) e
mesmo para ressaltar a relevncia da mulher no contexto das decises familiares(BRASIL, 2007a; Cedeplar, 2007). As anlises destacam ainda a boa focalizao do
programa, que efetivamente atinge as famlias mais pobres, apesar de ainda haver
espao para expanso do programa, j que nem todo pblico-alvo atingido (Hall,
2008; Soares, Ribas e Osrio, 2007; Figueiredo et al., 20052).
De experincias pioneiras e pontuais, os programas de transferncia de renda
tornaram-se o carro-chefe da rede de proteo social brasileira (Silva; Yasbek; Di
Giovanni, 2007), sendo que o PBF cada vez mais se consolida como um programa de
Estado, e no de governo, como evidenciado nas ltimas eleies presidenciais, uma
vez que candidatos com diferentes posies polticas deixaram claro seu apoio ao
programa. Alm disso, importante destacar a crescente normatizao do programa:
alm da Lei N 10.836, de 9 de janeiro de 2004, que criou o PBF, h diversas outras
leis, decretos, medidas provisrias, portarias, instrues normativas e instrues
operacionais relacionadas ao programa3. Esse ritmo intenso de normatizao federal
contribui para a crescente institucionalizao do programa, apesar de tambm colocar
desafios do ponto de vista das capacidades institucionais municipais para absorver essas
normatizaes, que muitas vezes implicam ajustes nos grandes objetivos do PBF. O
2 Este trabalho mostra que mesmo em grandes cidades como So Paulo e Salvador, que no eram aprioridade do governo no incio da expanso do PBF, era boa a focalizao do programa, a despeito dacobertura ainda ser baixa (Figueiredo et al, 2005).3Entre 2001 e 2011, foram publicados 11 decretos, 4 leis, 2 medidas provisrias, 38 portarias, 1 instruonormativa e 50 instrues operacionais referentes ao PBF, incluindo regulamentaes do prprioprograma e seus programas correlatos, definio de formas de repasse de recursos para Estados emunicpios, formas de cadastramento e acompanhamento dos beneficirios, entre muitos outros objetos.
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PBF hoje o maior programa de transferncia de renda condicionada do mundo,
beneficiando, em 2010, 12,6 milhes de famlias. O escopo da poltica foi ampliado, e
seu foco passou dos indivduos no caso do Bolsa Escola para uma preocupao mais
ampla com as composies familiares e suas estratgias de sobrevivncia no caso do
PBF. Dessa forma, o programa estaria levando em conta aspectos enfatizados pelas
anlises mais recentes a respeito da pobreza, que ressaltam o papel no s dos ativos
individuais mobilizados pelos mais pobres, mas tambm dos recursos familiares
(Moser, 1998; Filgueira, 1998).
No bojo desse processo de capitalizao poltica do PBF, associado e
(re)alimentado pela evoluo institucional do programa, os objetivos do governo federal
para o programa foram ampliados. Atualmente, o governo federal pretende utilizar o
PBF como eixo articulador da poltica de assistncia social. Isso significa, em primeirolugar integrar os benefcios monetrios da assistncia, destacadamente o PBF e o
Benefcio de Prestao Continuada (BPC)4no mbito dos demais servios da assistncia
social, ou seja, os servios de proteo bsica destinados para as famlias em maior
situao de vulnerabilidade e de proteo especial, voltados para famlias que tiveram
seus direitos violados. Esse objetivo mais recente implica a considerao de que o
combate pobreza e a desigualdade implica no somente a dimenso da transferncia
de renda:
Integrar benefcios e servios tem sido apontado, nos ltimos anos, como um dos grandesdesafios para consolidao da Assistncia Social. A relevncia deste objetivo vem sendodestacada com frequncia. Com esta, ressalta-se a necessidade de reconhecimento do limite dasgarantias mnimas de renda como promotoras de bem-estar e desenvolvimento humano e sociale, ao mesmo tempo, da afirmao da oferta de servios como patamar incontornvel doenfrentamento da desigualdade e da promoo de oportunidades. (Jaccoud, Hadjab eChaibub, 2009, p.229).
Nesse sentido, o PBF visto atualmente como um importante instrumento para
estimular a implementao efetiva do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS),
ou seja, para de fato ajudar a consolidar a assistncia social como uma poltica pblica
inserida em um novo modelo de proteo social. O prprio desenho do PBF, que prev
a articulao do objetivo mais imediato de combate pobreza por meio das
transferncias monetrias com a dimenso mais estrutural de gerao de capital humano
4O BPC um benefcio monetrio no valor de um salrio mnimo concedido a idosos e portadoresde necessidades especiais que tenham renda familiar per capita inferior a de salrio mnimo.
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e combate intergeracional da pobreza por meio das condicionalidades de educao e
sade, alm da garantia de acesso a outras polticas estratgico para pensar essa
articulao. Esse objetivo recente comeou a ser delineado mais claramente a partir do
Protocolo de Gesto Integrada de Servios, Benefcios e Transferncias de Renda no
mbito do SUAS (Resoluo CIT N 7, de 10 de Setembro de 2009), oriundo das
discusses na Comisso Intergestores Tripartite (CIT)5, prevendo a oferta prioritria de
servios scio-assistenciais para as famlias mais vulnerveis que j so benefiicirias
do Programa Bolsa Famlia, do Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI) ou
do BPC. De acordo com esse Protocolo, no cenrio de quase universalizao da
cobertura de programas de transferncia de renda como o BPC e o PBF, torna-se
necessrio avanar na articulao desses benefcios com os diversos servios
assistenciais da proteo bsica e especial, de modo a contribuir de maneira mais efetivapara a superao de situaes de vulnerabilidade social:
Entende-se que programas e benefcios como o PBF e o BPC constituem respostasextremamente importantes para a garantia da segurana de sobrevivncia das famlias pobres.Entretanto, os riscos e vulnerabilidades sociais que atingem as famlias e indivduos colocamdesafios e necessidades que em muito extrapolam a dimenso da renda. Neste sentido, somentepor meio da oferta simultnea de servios que a Assistncia Social pode assegurar de formaintegral a promoo e proteo dos direitos e seguranas que lhe cabem afianar. (MDS/CIT,2009, p.4)
Essa pretenso de integrao entre benefcios e servios evidencia-se ainda apartir da anlise da evoluo dos mecanismos federais de coordenao das aes
municipais, com destaque para as normas que regulam o repasse de recursos federais
para a gesto municipal do PBF e tambm aquelas que ordenam o cadastramento dos
beneficirios. Esses diversos instrumentos institucionais construdos pelo governo
federal tambm apontam para esse objetivo mais recente de plena implementao do
SUAS por meio do PBF, como ser discutido nesse trabalho.
5 A CIT um espao de articulao e expresso das demandas dos gestores federais, estaduais emunicipais, sendo formada pelas trs instncias do SUAS: a Unio, representada pelo MDS; os estados,representados pelo Frum Nacional de Secretrios de Estado de Assistncia Social (Fonseas); e osmunicpios, representados pelo Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistncia Social(Congemas). As principais funes da CIT, que funciona como um frum de pactuao, incluem pactuarestratgias para implantao e operacionalizao de servios, polticas e benefcios; estabelecer acordossobre questes operacionais da implantao dos servios; pactuar critrios e procedimentos detransferncia de recursos para cofinanciamentos, entre outras. Para maiores detalhes, ver:www.mds.gov.br/sobreoministerio/orgaoscolegiados/orgaos-em-destaque/cit
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No limite, se de fato esses objetivos mais ambiciosos do governo federal para o
PBF se efetivarem, podemos at pensar que as distines entre as polticas de combate
pobreza, como os programas de transferncia de renda, e a poltica social tradicional,
estariam sendo diludas. Segundo Srgio Abranches (1994, p. 15), a poltica social
convencional opera para alm da fronteira da carncia absoluta e resistente. Enquanto as
polticas sociais devem visar universalizao, atuando em manifestaes ocasionais de
privao, as polticas de combate pobreza tm carter seletivo (operam na lgica da
discriminao positiva) e visam combater um estoque acumulado de carncias agudas.
Com a articulao dos programas de transferncia de renda no interior da poltica de
assistncia social, contribuindo para a composio de uma rede mais ampla de proteo
social para as populaes mais vulnerveis, essa distino faria cada vez menos sentido.
Contudo, h diversos desafios a serem superados na construo desses objetivosmais ambiciosos para o PBF. Como diversos autores apontam (Houtzager, 2008; Fleury,
2007; Castello, 2008), os programas de transferncia de renda nasceram insulados fora
do campo tradicional da assistncia social, por iniciativa de economistas ligados
administrao pblica e ao governo, tanto no plano federal como no caso de municpios
como So Paulo. Atualmente, um dos grandes desafios burocrticos, institucionais e
mesmo em termos de integrao das redes das comunidades de polticas pblicas6
refere-se exatamente a essa maior integrao dos programas de transferncia de renda
no mbito da poltica de assistncia social, seja no plano federal, seja no plano
municipal. Este insulamento inicial dos programas de transferncia de renda, justificado
nas entrevistas com gestores do MDS e burocratas municipais da assistncia em
Salvador e So Paulo como necessrio para o desenvolvimento inicial dos programas,
para instaurar uma nova cultura de combate pobreza diferente do assistencialismo
tradicional, hoje surge como um obstculo reintegrao com a rea da assistncia
social. O prprio governo, por meio de estudo realizado por tcnicos do IPEA,
reconhece as incertezas envolvidas nessa nova fase do PBF, e os desafios de sua plena
integrao rea da assistncia social:
6 No mbito do governo federal, trata-se da articulao das redes de profissionais mais ligados aosprogramas de transferncia de renda, situados na Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC),e os profissionais tradicionalmente ligados ao campo da assistncia social, concentrados na SecretariaNacional de Assistncia Social (SNAS). Para uma interessante discusso a respeito das diferentes culturastcnicas que caracterizam as vrias secretarias que compem o MDS, ver Dulci (2010). Para umadiscusso mais abrangente a respeito da influncia das redes de comunidades de polticas naimplementao de polticas pblicas urbanas, ver Marques (2000 e 2003).
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Sua progressiva expanso ao longo dos ltimos cinco anos consolidou a transferncia de rendano contributiva como um efetivo pilar da proteo social brasileira. Como ser visto maisadiante, apesar de no ser oficialmente reconhecido como parte da Assistncia Social e seroperado por uma gesto prpria e independente, o PBF pode ser considerado integrante daquelapoltica. De um lado, um benefcio no contributivo situado no mbito da segurana de rendaque, como j citado, uma das seguranas a serem garantidas pela Poltica Nacional de
Assistncia Social. De outro, tem como meta a cobertura universal no grupo beneficirio e quesua regulamentao no conflita com os demais princpios constitucionais organizadores daSeguridade Social. (Jaccoud, Hadjab e Chaibub, 2009, p.216)
Este trabalho procura analisar a evoluo desses objetivos para o PBF, que
foram sendo construdos e consolidados a partir de crescentes normatizaes federais
para o programa, bem como as oportunidades que foram abertas para a consecuo
dessa ltima fase da agenda do governo para o PBF, ou seja, a pretenso de maior
integrao do programa no interior da poltica de assistncia social. possvel afirmar
que esse olhar relativamente recente entre os mltiplos olhares sobre o PBF, sendo
presente somente entre autores ligados ao campo da assistncia social (Silva, Yasbek, e
Di Giovanni, 2007; Yasbek, 2004). Entre os economistas, as anlises geralmente
abordam a responsabilidade do programa na queda recente da pobreza e da desigualdade
no Brasil (Soares, 2006; Soares et al, 2006; Soares et al, 2007; Barros et al, 2007;
Medeiros, Brito e Soares, 2007; Baumann, 2007; Neri, 2007; Arbix, 2007; Styro e
Soares, 2009; Rocha, 2010)7, alm de discutirem os efeitos do programa sobre um
possvel desestmulo ao trabalho (Soares e Styro, 2009) e os efeitos das
condicionalidades de sade e educao atreladas ao programa (Medeiros, Britto e
Soares, 2007; Soares e Styro, 2009; Kerstenetzky, 2009). Por outro lado, o debate entre
cientistas polticos geralmente assume uma perspectiva mais restrita, visando
principalmente determinar a contribuio do PBF para a reeleio do Lula em 2006
(Nicolau e Peixoto, 2007; Hunter & Power, 2007; Hall, 2006; Zucco, 2010) ou mesmo
para explicar o fenmeno recente do Lulismo (Singer, 2009 e 2010). Outros cientistas
polticos, entretanto, alertam para certa miopia presente no debate, para o foco
excessivo no PBF em detrimento de outras alteraes recentes no campo das polticassociais, destacando que o PBF deve ser entendido no mbito do novo sistema de
7A reduo da pobreza no Brasil desde 2004 um fato irrefutvel, que no depende de dados estatsticospara ser reconhecido. Pode ser percebido a olho nu, em funo da expanso do consumo por todas ascamadas da populao e da melhoria das condies de vida no que depende diretamente da rendafamiliar. Rocha, 2010, p.15.
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proteo social brasileiro que vem se consolidando nos ltimos anos (Arretche, 2010;
Draibe, 2003; Almeida 1995, 2004)8.
Partindo da questo mais geral dos mecanismos de coordenao federal
desenvolvidos no caso do PBF, este trabalho procura analisar especificamente oprocesso recente de implementao do PBF em So Paulo e Salvador. Apesar dos
incentivos e constrangimentos colocados pelo governo federal, que foi
progressivamente formalizando diversas normas de coordenao das aes federativas
para a implementao do PBF, as condies locais de implementao do programa,
dependentes das capacidades institucionais locais e dos diferentes objetivos perseguidos
no plano local, permitem pensar um cenrio mais complexo do que aquele que seria
esperado somente a partir dos constrangimentos e incentivos gerados pelo governo
federal. Parto de uma perspectiva crtica da lgica racionalista do ciclo de polticas,criticada por diversos autores (Sabatier, 2007; Hill e Hupe, 2009): este ciclo de
produo de polticas pblicas seria diferenciado em estgios ou etapas estanques
(definio da agenda, formulao de polticas e sua legitimao, implementao e
avaliao de polticas), como se estes fossem quase independentes. Ao contrrio, analiso
como o processo de implementao de um programa federal no nvel local implica uma
srie de decisese mesmo alteraes em relao ao desenho original, decises estas que
so balizadas pelos mecanismos de coordenao desenvolvidos pelo governo federal
para o PBF. Considerando que s anlises que combinem as diferentes escalas
federativas conseguem abranger a complexidade de programas como o PBF, o trabalho
aborda como o desenho institucional do programa, definido no plano federal, se articula
com as dinmicas e escolhas institucionais locais, influenciando os resultados do
programa.
Em termos gerais, este trabalho insere-se na linha de estudos recentes da cincia
poltica que destacam as peculiaridades do federalismo brasileiro e seus efeitos sobre a
implementao de polticas sociais (Arretche, 2009; Gomes, 2009; Melo, 2005;
Abrucio, 2005), destacando os efeitos dos diversos mecanismos de coordenao
disposio do Executivo federal para induzir a implementao de polticas e programas
nos nveis subnacionais (Arretche, 2009; Menicucci, 2006; Gomes, 2009; Vazquez,
8Para uma resenha dos principais eixos analticos contemporneos que abordam os regimes de bem estarsocial anlise integrada da economia e da poltica; padres e tipos de Estados de Bem Estar Social;dimenses de gnero e famlia nos regimes de bem estar social , ver Draibe (2007).
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2005), como ser aprofundado no Captulo 1. Nas relaes intergovernamentais
brasileiras, Arretche (2010) aponta a centralidade das capacidades institucionais dos
municpios brasileiros que, se no so totalmente autnomos para decidir e legislar em
matria de poltica social, ainda tm algum espao para decises prprias quando se
considera a implementao de diversas polticas sociais no nvel local. Entretanto, a
efetiva capacidade de gesto dos municpios que envolve dimenses financeiras,
burocrticas, de logstica, entre outros aspectos tem sido pouco explorada
especialmente nos estudos sobre o PBF, lacuna que este trabalho procura preencher,
ainda que parcialmente, ao analisar os processos de implementao do PBF em duas
importantes cidades brasileiras, So Paulo e Salvador.
Quando levamos a srio a diferena entre a formulao e a coordenao de
polticas e o processo de implementao das mesmas, podemos observar que, no casodo PBF, apesar da descentralizao da implementao, a cargo dos municpios, as
decises gerais inclusive a seleo efetiva dos beneficirios so centralizadas no
nvel federal. A despeito da fragmentao inicial dos programas no s aqueles do
nvel local, mas mesmo no caso do Bolsa Escola , foi sendo desenvolvido um alto
poder regulatrio no nvel central, com a criao de diversos mecanismos que permitem
o controle e a coordenao das aes desenvolvidas no plano local. Como principais
mecanismos, abordados no Captulo 3, destacam-se o Cadastro nico de Programas
Sociais, que define os parmetros gerais para o cadastramento das famlias
potencialmente elegveis ao PBF, e o ndice de Gesto Descentralizada (IGD) em suas
verses municipal e estadual, que condiciona os repasses de recursos federais ao
seguimento de uma srie de parmetros nos nveis subnacionais.
de se esperar que o elevado poder de coordenao federal em matria de
poltica social conduzisse convergncia nos resultados locais de programas como o
PBF. Isso porque, como ser visto, as normatizaes federais para o programa, com
destaque para as regras de cadastramento dos beneficirios e para os mecanismos de
repasse de recursos federais, foram deixando cada vez menos espao para decises
municipais muito distintas dos grandes parmetros nacionais para o PBF. Por outro
lado, entretanto, o prprio processo de implementao do programa, fortemente
dependente das capacidades institucionais locais e dos interesses polticos locais na
maior ou menor coordenao com os objetivos centrais do PBF, pode alterar os
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resultados possveis, principalmente no mbito de um programa que ainda est em fase
de consolidao. Essa articulao entre as diretrizes federais, cada vez mais
normatizadas sob a forma de mecanismos especficos para o cadastramento de
beneficirios e o repasse de recursos para os municpios, e as capacidades institucionais
locais para a consecuo desses objetivos, deve ser analisada em casos especficos. Por
um lado, objetivo mais imediato de boa focalizao do PBF foi bem atingido no pas
como um todo e nos dois casos aqui selecionados (So Paulo e Salvador). Ou seja, o
PBF de fato atinge a populao elegvel e h poucos vazamentos, ainda que erros de
excluso sejam inevitveis. Por outro lado, objetivos mais ambiciosos, de mais longo
prazo, como a integrao dos programas de transferncia de renda com a rea mais
ampla da assistncia social, ainda enfrentam grande variao nos diversos contextos
locais.Para testar esses argumentos referentes ao alcance e s limitaes do poder de
coordenao do governo federal na implementao local do PBF, foram escolhidas duas
cidades para uma anlise mais aprofundada: So Paulo e Salvador, municpios
principais de importantes regies metropolitanas, em diferentes regies do pas
Sudeste e Nordeste. Assim como Rocha (2010), acredito que em um pas marcado por
fortes desigualdades faz sentido analisar questes gerais em contextos especficos, de
maneira a descobrir particularidades que no seriam evidenciadas em uma anlise mais
agregada. Abordando a relevncia dos programas de transferncia de renda para a queda
da pobreza e da desigualdade no perodo 2004-2008, Rocha (2010, p.10) afirma: Como
o Brasil um pas continental, com caractersticas espaciais muito diferenciadas,
informaes agregadas nacionalmente encobrem necessariamente situaes especficas
que ajudariam a entender fenmenos complexos9.
Mesmo considerando que os primeiros programas nacionais de transferncia de
renda iniciaram-se em meios rurais, cada vez mais faz sentido analisar a implementao
desses programas em grandes centros urbanos. Em um pas cada vez mais urbano de
acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio) 2009, o Brasil tem
uma populao total de cerca de 191,8 milhes de pessoas, sendo que 83,9% delas
vivem em reas urbanas a questo da pobreza urbana e metropolitana torna-se cada
9A partir de dados da PNAD 2008, autora contrasta os efeitos da retomada do crescimento econmico noperodo 2004-2008 na Regio Metropolitana de So Paulo e no Nordeste rural, destacando que osprogramas de transferncia de renda tm maior peso na formao da renda familiar no Nordeste.
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vez mais relevante. Como Rocha (2010, p.17) bem destaca: Como o pas, a pobreza se
desruralizou, e no s no que concerne a renda, mas as condies de vida em geral.
Mesmo considerando a queda recente da pobreza e da desigualdade, ainda faz sentido
analisar como a gesto pblica municipal procura atender populao mais vulnervel
em municpios como Salvador e So Paulo, uma vez que em reas urbanas so ainda
mais complexos os desafios da articulao da poltica de assistncia social com os
novos programas de transferncia de renda. Ainda mais quando se considera a
relevncia da transferncia de renda em economias urbanas altamente monetizadas:
(...) numa economia moderna e monetizada, a cidadania plena depende de que se disponha
adequadamente de renda suficiente para o atendimento das necessidades no mbito do consumo
privado. Alm disso, para o um mesmo valor do gasto pblico, o bem-estar do beneficirio
maior quando obtm renda, em comparao com recebimento sob a forma de bens e servios.
(Rocha, 2005, p. 191)
So Paulo a maior e mais importante metrpole brasileira. A cidade de So
Paulo considerada o mais importante ncleo financeiro e empresarial da Amrica
Latina. Em So Paulo possvel encontrar tanto uma parte significativa das atividades
produtivas mais modernas, associadas a circuitos globalizados, e tambm uma grande
massa de populao pobre, vivendo em espaos segregados e com acesso precrio a
servios e polticas, em uma clara ilustrao das desigualdades brasileiras. Por sua vez,Salvador, capital do Estado da Bahia, a cidade mais densamente povoada da regio
Nordeste, a mais pobre do pas. Salvador o centro econmico do estado e um porto
exportador, centro industrial e um centro de turismo. Como marcas de suas
desigualdades sociais, a capital da Bahia tambm sofre com nveis elevados de
desemprego e violncia, e um processo de desordenado de expanso urbana.
A cidade de So Paulo um caso relevante para estudo dos programas de
transferncia de renda por diversos motivos. Na cidade, os programas de renda mnima
tiveram incio antes das primeiras experincias nacionais tanto o Renda Mnima(municipal) quanto o Renda Cidad (estadual) tiveram incio em 2001. Alm disso, o
Estado de So Paulo tem um considervel aprendizado institucional na rea de
programas de transferncia de renda. o Estado que concentra o maior nmero de
programas de transferncia de iniciativa municipal e no qual muitos programas
pioneiros se desenvolveram, como os programas de renda mnima e do tipo bolsa escola
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que surgiram antes das iniciativas nacionais (Silva, Yasbek e Di Giovanni, 2007). Como
apontam esses autores, so justamente os Estados mais desenvolvidos, como So Paulo,
aqueles que mantiveram os programas locais de transferncia mesmo aps o advento
dos programas nacionais:
(...) somente os municpios dos estados mais desenvolvidos e com menor concentrao relativade populao situada abaixo da linha da pobreza que apresentam condies de manter essesprogramas. Isso significa que so aqueles municpios com maiores possibilidades oramentriasque mantm um programa municipal custeado com recursos locais (Silva, Yasbek e DiGiovanni, 2007, p. 153).
O municpio de So Paulo destaca-se ainda pelo elevado nmero de famlias
atendidas pelo PBF: dados do MDS referentes a agosto de 2010 apontam para 401.225
famlias cadastradas no Cadastro nico e para 132.735 famlias beneficirias do PBF.
Alm do desafio da implementao e gesto desse programa federal, em So Paulo
ainda h a questo da articulao do PBF com os programas municipal e estadual que
existiam previamente. Desse modo, o problema de coordenao tem dois eixos em So
Paulo: por um lado, h a questo da coordenao das aes locais de implementao do
PBF com as diretrizes do governo federal; por outro, h o problema da articulao dos
programas municipal, estadual e federal de transferncia.
Quando consideramos a dinmica poltica local no perodo que aqui nos
interessa centralmente as duas gestes de Lula (2003-2010), do Partido dosTrabalhadores (PT), na presidncia , notamos que tanto o Estado de So Paulo quanto
o Municpio de So Paulo foram predominantemente governados por polticos de
oposio ao governo central. No plano estadual, seguiram-se os seguintes governadores:
Geraldo Alckmin do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) entre 2001 e
2006, Cludio Lembo do Partido dos Democratas (DEM) entre 30 de maro de 2006 e
primeiro de janeiro de 2007, Jos Serra (PSDB) entre janeiro de 2007 e abril de 2010 e
Alberto Goldman, do Partido do Movimento Democrtico Brasileiro (PMDB) entre
abril e dezembro de 2010. Na prefeitura, no incio dos programas de transferncia derenda no municpio, Marta Suplicy do PT era a prefeita (2001-2005). No restante do
perodo, polticos da oposio ao governo central foram prefeitos: Jos Serra (PSDB),
entre em janeiro de 2005 e maro de 2006, e depois Gilberto Kassab, do (DEM),
prefeito at hoje. Se fossem consideradas somente as motivaes polticas, poderamos
esperar menores incentivos articulao dos programas locais de transferncia com os
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programas nacionais no perodo recente, uma vez que os polticos locais poderiam ter
interesse em deixar uma marca prpria em matria de poltica social, distanciando-se da
vitrine do PBF. Porm, como veremos, os incentivos federais convergncia das aes
municipais com as diretrizes nacionais para o programa tm tido forte efeito.
Por sua vez, em Salvador, ao contrrio de So Paulo, h apenas um programa de
transferncia de renda em operao, o PBF. Segundo dados do MDS para agosto de
2010, Salvador contava com 294.897 famlias cadastradas no Cadastro nico e 187.868
famlias beneficirias do PBF. Neste caso, ao contrrio de So Paulo, a expectativa
que haja menor problema de coordenao com as diretrizes do governo federal, dada a
inexistncia de programas de transferncia de renda concorrentes. Do ponto de vista
poltico, no incio do perodo analisado tanto o governador quanto o prefeito faziam
parte de partidos opositores ao governo de Lula; no restante do perodo, os polticoslocais faziam parte de partidos da coalizo de governo de Lula. No governo do Estado
da Bahia, Paulo Souto (DEM) foi o governador de janeiro de 2003 a janeiro de 2007 e
Jacques Wagner (PT) governador desde janeiro de 2007 at hoje. Na prefeitura de
Salvador, Antnio Imbassahy (PSDB), de janeiro de 1997 at janeiro de 2005, e Joo
Henrique de Barradas Carneiro (PMDB), de janeiro de 2005 at hoje. Nesse sentido, no
perodo mais recente, seriam esperados menos obstculos implementao do PBF em
Salvador.
Considerando dados referentes pobreza metropolitana oriundos da PNAD
(Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio) 2009 que no podem ser desagregados
para o nvel municipal , a Regio Metropolitana de So Paulo (RMSP) destaca-se pelo
elevado nmero absoluto de pessoas vivendo com menos de meio salrio mnimo
mensal 527 mil pessoas, contra 335 mil na Regio Metropolitana de Salvador (RMS).
Porm, em termos relativos, a RMS se sobressai com 9,4% das pessoas com renda
inferior a meio salrio mnimo, contra 2,8% na RMSP. Desse modo, os dois casos
escolhidos apresentam um estoque significativo de pobreza a ser combatido, entre
outras iniciativas, por programas de transferncia de renda.
Como ressaltado por estudos do Banco Mundial (De La Brire e Lindert, 2005;
Ribe, Jones e Vermehren, 2008), reas urbanas colocam desafios especficos
implementao de programas de transferncia de renda: so reas mais heterogneas,
impondo a necessidade de considerao da dimenso espacial da pobreza e a
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focalizao espacial dos beneficirios. Alm disso, cidades tendem a abrigar estruturas
familiares especficas, com menor presena de famlias extensas e maior presena de
famlias monoparentais. A economia monetria e o mais elevado custo de vida
requerem ateno tanto na definio das linhas de pobreza a serem consideradas pelos
programas quanto nos valores a serem repassados. Grandes distncias e deslocamentos
afetam o acesso ao mercado de trabalho e aos servios alm de afetar a qualidade de
vida das famlias (menor tempo para lazer e convvio). Por um lado, o maior acesso
tecnologia sistema bancrio, telefones celulares facilita a dimenso logstica da
implantao dos programas. Por outro lado, a exposio a variados tipos de riscos e
vulnerabilidades, destacando-se a dimenso da violncia urbana, impe dificuldades
especficas, particularmente no processo de cadastramento dos beneficirios. Essas
dimenses implicam maiores desafios focalizao, maiores dificuldades decadastramento, alm de maiores problemas de coordenao com outros programas
sociais existentes. Como ser visto nos Captulos 5 e 6, todas essas questes permearam
o processo de implementao dos programas de transferncia de renda em So Paulo e
Salvador.
Salvador e So Paulo foram escolhidos ainda devido disponibilidade de dois
surveys que procuraram aferir as condies gerais de vida e de acesso a polticas
pblicas da populao de mais baixa renda. As pesquisas desenvolvidas pelo Centro de
Estudos da Metrpole (CEM-CEBRAP) em convnio com o IPEA em 2004 no caso
de So Paulo e em 2006 no caso de Salvador, que tambm contou com a parceria da SEI
(Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia) possuem metodologia
comparvel e constituem rica fonte para analisar o grau de cobertura e focalizao dos
programas de transferncia de renda nessas duas cidades, bem como identificar o perfil
daqueles que tinham acesso na fase inicial de expanso e consolidao do PBF
(Figueiredo et al, 2005; Figueiredo et al, 2006).
Esta tese est dividida em seis captulos, alm desta introduo e das
consideraes finais. O primeiro captulo apresenta a contextualizao terica do
trabalho e o modelo de anlise a ser utilizado para investigar as condies para a
implementao de polticas sociais nacionais de combate pobreza em pases
federativos. Em primeiro lugar, apresento as caractersticas do federalismo brasileiro,
destacando aquelas que afetam os incentivos e as oportunidades para moldar a
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implementao de polticas, como o poder de coordenao do governo federal em
matria de poltica social. Alm disso, apresento literatura recente sobre a
implementao de polticas pblicas, especialmente a que se refere s capacidades
institucionais locais necessrias para implementao e gesto de polticas sociais.
No Captulo 2, investigo por que e como os programas de transferncia de renda
passaram a compor o leque de alternativas para o combate pobreza e desigualdade
no Brasil. Apresento a trajetria recente das polticas sociais no Brasil, com nfase para
as polticas de combate pobreza e rea da assistncia social. Esse captulo aborda
ainda a evoluo dos programas de transferncia de renda no Brasil, desde as primeiras
experincias locais at os programas nacionais, Bolsa Escola e PBF. Na apresentao do
PBF, so destacadas as distribuies de competncias e responsabilidades entre os
nveis da federao. Por fim, o captulo apresenta as principais polmicas no debaterecente em torno do PBF.
O Captulo 3 analisa os principais mecanismos disponveis para o governo
federal coordenar a implementao do PBF no nvel local, com destaque para o
Cadastro nico e as diversas modalidades do ndice de Gesto Descentralizada que
foram desenvolvidas ao longo do tempo. Esses instrumentos foram progressivamente
aperfeioados pelo governo federal, de modo a garantir que os objetivos centrais do
PBF, definidos no plano federal, fossem bem realizados no plano municipal,
principalmente, e no plano estadual apenas muito recentemente. O captulo mostra ainda
como esses mecanismos afetam a implementao do PBF dois casos que nos
interessam, Salvador e So Paulo.
O Captulo 4 apresenta as transformaes recentes nos rgos municipais
responsveis pela gesto dos programas de transferncias de renda em So Paulo e
Salvador. Como ser visto, nem sempre os programas de transferncia estiveram
integrados rea da assistncia social, e houve importantes alteraes nas lgicas de
gesto desses programas. Alm disso, o captulo discute as capacidades institucionaisdisponveis em So Paulo e Salvador para a implementao da poltica de assistncia
social como um todo e para a implementao do PBF em particular. A partir dos dados
dos suplementos da Assistncia Social da Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais
(MUNIC) de 2005 e 2009, so discutidos os recursos humanos, financeiros e logsticos
para a implementao da poltica de assistncia social em Salvador e So Paulo.
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O Captulo 5 apresenta uma primeira aproximao da implementao dos
programas de transferncia de renda nessas duas cidades, centrando na dimenso da
focalizao dos programas. Este captulo apresenta os determinantes do acesso dos mais
pobres aos programas de transferncia de renda, a partir de dados de surveys que
permitem explorar, para alm dos critrios de elegibilidade do programa, quais so as
demais dimenses que afetam o perfil daqueles que tm ou no acesso aos benefcios
em So Paulo e Salvador. Nesse sentido, o captulo pretende avaliar como essas duas
cidades cumpriram um dos objetivos iniciais do PBF (boa focalizao e elevada
cobertura), ainda no contexto de integrao dos diversos programas nacionais de
transferncia remanescentes.
O Captulo 6 complementa a discusso da implementao do PBF em So Paulo
e Salvador, considerando uma perspectiva mais ampla de integrao dos programas detransferncia rea da assistncia social, no mbito da consolidao do Sistema nico
de Assistncia Social (SUAS). A partir de entrevistas com gestores dos programas de
transferncia de renda em So Paulo e Salvador e dados documentais, apresenta-se
como se deu a implementao dos programas nessas duas cidades. Destaco as
convergncias e divergncias em relao s principais diretrizes federais, bem como os
esforos de integrao dos programas de transferncia no mbito mais amplo das
polticas de assistncia social.
Ao final, so exploradas as conexes entre os diversos captulos, destacando-se
como as estratgias locais de implementao do PBF dialogam, alteram e/ou convergem
com os objetivos do governo federal para o programa.
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CAPTULO 1. IMPLEMENTAO DE POLTICAS SOCIAIS EM
CONTEXTOS FEDERATIVOS: A RELEVNCIA DA COORDENAO
FEDERAL E O PAPEL DAS CAPACIDADES INSTITUCIONAIS LOCAIS
Quais so as principais dimenses que afetam a implementao de polticas
sociais em contextos federativos? Esta a questo geral que orienta este captulo, que
tem como objetivo apresentar o arcabouo terico-analtico utilizado nesta tese. Para
entender a dinmica e os resultados da implementao de um programa nacional, em
uma federao como a brasileira, necessrio entender suas principais caractersticas,
mais particularmente, as regras que regem as relaes intergovernamentais. No desenho
federativo brasileiro, os municpios, alm dos estados, so entes federativos e, portanto,
tm autonomia poltica e administrativa. Assim, a implementao de polticas nacionais
depende, em grande medida, da capacidade de coordenao da Unio, dos instrumentos
institucionais com que esta conta para incentivar os nveis subnacionais a seguir seus
objetivos gerais de polticas. Por outro lado, contudo, a qualidade da proviso e os
resultados das polticas dependem tambm das capacidades institucionais locais,
particularmente dos recursos humanos, tcnicos, informacionais, capacidade de gesto e
articulao entre diferentes servios e polticas, entre outras dimenses disponveis no
nvel municipal.Em primeiro lugar, o captulo analisa como as caractersticas mais gerais do
federalismo brasileiro, que vem se transformando desde a Constituio de 1988 com
algumas importantes linhas de continuidade, afetam a implementao de polticas
sociais. Mais especificamente, aborda-se a discusso recente referente ao grau de
centralizao/descentralizao da federao brasileira, a diviso de atribuies e
competncias entre os nveis de federao no mbito das polticas sociais e,
principalmente, os diferentes mecanismos de coordenao de polticas disposio do
governo federal. A partir da discusso das reformas de polticas sociais nos anos 1990,
que definiram certos modelos de implementao e coordenao de polticas, so
definidas algumas hipteses especficas para o caso da poltica de assistncia social e do
PBF. O objetivo desta seo mostrar que, mesmo considerando o crescente poder de
coordenao federal, responsvel por um grau cada vez maior de uniformizao de
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alguns aspectos da poltica de assistncia, ainda h espao para decises no nvel
municipal, como ser visto ao longo deste trabalho.
A segunda seo aborda os estudos sobre a implementao de polticas pblicas,
inclusive no caso brasileiro, procurando mostrar o Estado em ao (Jobert e Muller,1987). Dando continuidade a essa discusso, a terceira seo aborda a literatura que se
debruou sobre o conceito de capacidades estatais, ou seja, sobre as caractersticas
necessrias para que o Estado possa de fato implementar as suas aes no nvel local.
1.1. Conseqncias do arranjo federativo brasileiro para as polticas sociais
Em um texto bastante influente entre os analistas de polticas sociais brasileiros,
especialmente entre aqueles mais alinhados com a perspectiva do neo-institucionalismohistrico10, Paul Pierson (1995) analisa a relevncia de uma instituio especfica, o
federalismo, e suas conseqncias para a implementao de polticas sociais. O autor
destaca que a existncia de mltiplos sistemas decisrios (multi-tired systems of
decision-making) em ambientes federativos contribui para certa fragmentao
institucional (p. 451). Do ponto de vista das polticas sociais, Pierson afirma que as
iniciativas de poltica tendem a ser altamente interdependentes, porm modestamente
coordenadas, gerando diferentes resultados possveis: competio, projetos
independentes com objetivos sobrepostos ou cooperao no caso de fins que no podemser obtidos isoladamente. Alm disso, o autor destaca que os atores sociais interessados
em certa poltica tendem a pressionar por arenas decisrias que privilegiem seus
interesses (p.452), sendo que esta competio entre diferentes jurisdies afeta as
estratgias dos atores e suas posies relativas de poder (p.453).
Em suma, o autor destaca que as regras institucionais de sistemas federais tm
grandes conseqncias para a implementao de polticas sociais. Se, por um lado, a
existncia de mltiplas jurisdies pode gerar problemas de coordenao e dificultar a
consolidao de polticas nacionais em contextos federativos havendo inclusive o
risco de a competio entre unidades subnacionais estimular uma race to the bottom,
uma corrida para baixo nos gastos sociais, prejudicando o desenvolvimento de
10Para uma excelente resenha das explicaes do neo-institucionalismo histrico para o desenvolvimentode Estados de Bem Estar Social nos pases desenvolvidos, ver Arretche (1995).
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polticas sociais , por outro lado Pierson destaca que mltiplas jurisdies com
autoridade para formular polticas sociais tendem a estimular a inovao e a emulao
de polticas (pp.456-457). O autor reconhece, entretanto, a necessidade de cautela no
estabelecimento de proposies gerais a respeito das conseqncias do federalismo
sobre as polticas sociais, uma vez que h grandes variaes entre diferentes sistemas
federativos e h tambm outras variveis a considerar, como a interao com outras
polticas e instituies nacionais, a estrutura do sistema partidrio, a economia poltica
envolvida numa determinada poltica, entre outras dimenses. Assim, reconhecer que h
tipos diversos de federalismo um ponto inicial central.
No caso brasileiro, o debate sobre as principais dimenses que afetam a
produo das polticas pblicas foi fortemente influenciado pela literatura que
considerava a forma do Estado federal ou unitrio uma dimenso decisiva (Gomes,2009). Nessas discusses, eram ressaltadas as dificuldades impostas por contextos
federativos, nos quais as unidades subnacionais representariam pontos de veto,
dificultando a capacidade de produo de polticas nacionais (Abrucio e Samuels,
1997). Por outro lado, estudos recentes (Arretche, 2009; Vazquez, 2010) tm
questionado o poder explicativo dessa dimenso to agregada forma do Estado , a
partir da observao emprica de grandes variaes na capacidade de produo de
polticas nacionais em diferentes pases federativos (Obinger, Leibfried, e Castles,
2005). De acordo com Sandra Gomes (2009), cada vez mais ganha destaque a
percepo de que h variadas formas de interao entre os governos centrais e
subnacionais em diferentes arranjos federativos e unitrios, levando a diferentes graus
de autonomia para os governos locais ou regionais. Ou seja, federalismo no equivale
necessariamente menor capacidade de controle e de coordenao do governo central.
Nesse sentido, mais importante analisar as relaes intergovernamentais e no
apenas o federalismo como instituio abrangente em casos especficos, como o caso
brasileiro.
O debate brasileiro sobre o federalismo em geral e as relaes
intergovernamentais em particular fortemente baseado em interpretaes diversas
sobre a Constituio de 1988, sobre o grau de centralizao/descentralizao da
federao. Com a abertura democrtica, marcada por grandes expectativas em relao
transformao das polticas pblicas herdadas do regime autoritrio (Draibe, 2003;
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Almeida, 1995), a maioria das interpretaes destacava o carter descentralizador11da
Constituio de 1988, especialmente por conta das realocaes de funes e recursos
para instncias subnacionais, destacadamente para os municpios. Como ser abordado
em maiores detalhes no Captulo 2, a descentralizao era vista pelas oposies ao
regime autoritrio como sinnimo de democracia, de devoluo da cidadania usurpada,
como condio para o aumento da participao (Almeida, 1995).
Ressaltando as dimenses descentralizadoras da Constituio de 1988 e
baseados nas predies da literatura comparada, alguns autores (Abrucio e Samuels,
1997; Loureiro, 2001; Abrucio, 2005; Melo, 2005) destacaram os efeitos nocivos do
novo arranjo federativo que se formava do ponto de vista da reforma do Estado, das
transformaes necessrias no campo das polticas pblicas. Segundo Fernando Abrucio
e David Samuels (1997, p.160), a natureza das relaes intergovernamentais no Brasilaumentaria os custos de negociao poltica e possibilitaria a criao de coalizes de
veto; desse modo, a prpria natureza institucional do federalismo brasileiro seria um
obstculo importante reforma do Estado. Para Abrucio (2005, p.46) haveria mais
foras centrfugas no federalismo brasileiro do que cooperao12:
"Dois fenmenos destacam-se nesse novo federalismo brasileiro, desenhado na dcada de 1980 ecom reflexos ao longo dos anos 1990. Primeiro, o estabelecimento de um amplo processo dedescentralizao, tanto em termos financeiros como polticos. Em segundo lugar, a criao de ummodelo predatrio e no-cooperativo de relaes intergovernamentais, com predomnio docomponente estadualista."
Entretanto, anlises mais crticas das premissas baseadas na literatura comparada
comearam a demonstrar que a Constituio de 1988 no teve tal grau de
descentralizao, e muito menos estimulou a fragmentao poltica e a criao de
11Almeida (1995, p.90) aponta as imprecises conceituais do termo descentralizao, que na literaturatem sido usado para indicar processos de realocaode funes e recursos para instncias subnacionais;processos de consolidao, quando recursos centralizados so usados para financiar funesdescentralizadas e processos de devoluo, quando funes e recursos so descontinuados. A autoradestaca que cada uma dessas formas tem conseqncias distintas do ponto de vista das relaesintergovernamentais.12O autor defende que a histria federativa brasileira foi caracterizada por desequilbrios entre os nveisde governo (Abrucio, 2005, p.46): na Repblica Velha, predominaria o modelo centrfugo, com baixacooperao e governo federal fraco; na Era Vargas, o governo federal fortaleceu-se e os estaduaisperderam autonomia; o perodo 1946-64 seria o de maior equilbrio federativo; com o golpe militar,tivemos modelo "unionista autoritrio"; na transio democrtica, o autor destaca o poder das elitesregionais e, destacadamente, dos governadores. Por fim, no novo tipo de federalismo surge com aConstituio de 1988, o autor ressalta as tendncias descentralizadoras, combinando foras democrticase velhos grupos regionais tradicionais, com destaque para o papel dos governadores.
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inmeros pontos de veto s aes do governo central, seja no que tange s relaes entre
Executivo e Legislativo (Figueiredo e Limongi, 200013), seja no que se refere aos
impactos das novas regras sobre as polticas pblicas (Arretche, 2002 e 2009). Autoras
como Arretche (2002 e 2004) e Almeida (1995 e 200514) argumentam que a
Constituio de 1988 estimulou a descentralizao de receitas para as unidades
subnacionais, mas no de responsabilidades sobre polticas, alm de preservar iniciativa
legislativa da Unio em vrias reas de poltica (Arretche, 2009). Almeida (2005, p. 29)
argumenta que, a despeito do destaque ao tema da descentralizao na agenda dos anos
1980, "o andamento da descentralizao no foi nem simples nem linear. Tendncias
centralizadoras poderosas tambm estiveram presentes, aumentando a complexidade do
processo de redefinio das relaes intergovernamentais."
Para entender essa dinmica aparentemente contraditria entre tendnciascentralizadoras e descentralizadoras, necessrio ressaltar a diferena entre processo
decisrio sobre polticas pblicas e processo de implementao das mesmas. Enquanto
o processo decisrio refere-se relao horizontal entre os poderes Executivo e
Legislativo, a implementao de polticas pblicas implica relaes verticais entre a
Unio e os demais entes da federao. No caso deste trabalho, o foco recai exatamente
sobre essas relaes verticais no processo de implementao do PBF, com nfase no
poder de coordenao desenvolvido progressivamente pelo governo federal, de modo a
induzir aes municipais condizentes com suas principais diretrizes para o programa.
Desse modo, a despeito da expectativa de fragmentao institucional nos
sistemas federativos, devido existncia de mltiplas arenas decisrias (Pierson, 1995,
p. 451), autores vm destacando recentemente que, no caso brasileiro, muitas decises
sobre polticas pblicas so centralizadas no governo federal, ou seja, a fragmentao
no to grande assim, e varia fortemente de acordo com a poltica considerada
13
Em trabalho que pautou o debate na rea, esses autores demonstram que no possvel derivardiretamente do federalismo ou das leis eleitorais os comportamentos esperados dos polticos noCongresso, uma vez que outras instituies neutralizam os incentivos esperados de instituiesfederativas e levam o Congresso a decidir em favor de temas mais gerais, inclusive quando os interessesdos estados so negativamente afetados.14 Criticando a tese de Abrucio, segundo a qual o poder extremado dos governadores teria gerado grandefragmentao, Almeida (2005, p.32) argumenta que outras foras polticas, mais relevantes, tambmcontriburam para a descentralizao no perodo Constituinte: "Democracia com descentralizao era umaidia-fora e como tal tinha gravitao prpria."
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(Arretche, 2004; Almeida, 2005). Em texto mais recente, Arretche (2009, p.413)
questiona as interpretaes dominantes sobre o carter da Constituio, mostrando que
muitos analistas ignoraram seus princpios centralizadores e maximizaram seus aspectos
descentralizadores:
"Os formuladores da Constituio de 1988 combinaram ampla autoridade jurisdicional Uniocom limitadas oportunidades institucionais de veto aos governos subnacionais. Assim,formularam um desenho de Estado federativo em que os governos subnacionais tmresponsabilidade pela execuo de polticas pblicas, mas autorizaram a Unio a legislar sobresuas aes. Alm disso, formularam regras que permitem que a maioria, nas arenas decisriascentrais, aprove mudanas no status quo federativo. Em suma, a CF 88 no produziu instituiespolticas que tornariam o governo central fraco em face dos governos subnacionais."
Almeida (2005, p.36) aborda trs tipos de alterao nas funes do Executivo no
contexto posterior Constituio de 1988:
"Em alguns casos, transferiu-se a governos subnacionais a prerrogativa de decidir o contedo e oformato das polticas. Em outros, estados e municpios tornaram-se responsveis pela execuo egesto de polticas e programas definidos em nvel federal. Finalmente, governos transferiram aorganismos no-estatais a proviso de servios sociais."
No campo da proviso de servios sociais, a descentralizao significou quase
sempre municipalizao, sendo que os Estados ficaram sem atribuies claras. De fato,
a Constituio de 1988 no definiu com clareza uma hierarquia de competncias entre
os nveis da federao, mas sim multiplicou as funes concorrentes entre Unio,
estados e municpios, especialmente na rea social (Almeida, 1995 e 2005). Somente no
mbito das reformas dos anos 1990 foram definidas mais claramente as
responsabilidades federativas em matria de poltica social, balizadas principalmente
pelos instrumentos de coordenao definidos pelo governo federal. Segundo Arretche
(2004), at a segunda metade dos anos 1990 a distribuio federativa das
responsabilidades sobre polticas sociais derivava mais dos legados de cada poltica, ou
seja, da forma como historicamente as reas se estruturavam com maior centralizao
no caso das polticas de sade e desenvolvimento urbano e maior descentralizao no
caso da educao fundamental, por exemplo do que das obrigaes definidas pela
Constituio de 1988. De acordo com a autora, novas regras introduzidas por meio de
legislao ordinria, emendas constitucionais ou normas ministeriais, de acordo com
cada poltica foram necessrias para estimular a descentralizao da execuo das
polticas sociais, no sendo suficiente ou auto-executvel o princpio da
descentralizao presente na Constituio (Arretche, 2009).
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Assim, no contexto das reformas de primeira e segunda gerao, houve
alteraes no status quofederativo, especialmente no sentido da maior centralizao das
relaes intergovernamentais (Arretche, 2004). Segundo Marcus Melo (2005), as
reformas de primeira gerao compreendem especialmente as medidas macro-
econmicas visando estabilizao e liberalizao da economia, ao ajuste fiscal. Por
sua vez, as reformas de segunda gerao entre as quais se incluem as reformas das
polticas sociais tm um foco mais institucional, objetivos complexos e pouco
tangveis, de modo a aperfeioar a proviso dos servios, as estruturas regulatrias e as
capacidades administrativas, consistindo em prescries de polticas em resposta s
falhas das reformas de primeira gerao. Segundo a literatura comparada, as reformas
de segunda gerao seriam mais difceis de aprovar e implementar, uma vez que afetam
esferas polticas e sociais, envolvendo amplos esforos de (re)construo institucional(Melo, 2005; Weyland, 2002).
No debate sobre as reformas dos anos 1990, se alinham, por um lado, os autores
que destacam as dificuldades de aprovao e implementao das mesmas em um
sistema poltico fragmentado, com inmeros pontos de veto (Melo, 2005; Abrucio,
2005). De acordo com Melo (2005), no Brasil as reformas de primeira e segunda
gerao foram concomitantes, o que facilitou a aprovao de ambas, sendo que, para o
autor, as reformas de segunda gerao s foram aprovadas dado o carter geral de
urgncia na reestruturao do Estado que se imprimiu naquele contexto. Por outro lado,
autores como Arretche (2009) demonstram que no houve obstculos intransponveis
para a aprovao das reformas. Mesmo concordando com Melo que as reformas dos
anos 1990 mudaram o status quo federativo, no sentido de aumentar a capacidade de
regulao da Unio sobre as polticas de estados e municpios, Arretche (2009) no v
neste processo uma ruptura radical. Ao contrrio, a autora destaca as linhas de
continuidade entre 1988 e 1995 alterando seu prprio posicionamento anterior, que
destacava mais enfaticamente o processo de centralizao dos anos 1990 (Arretche,
2004). Como mencionado anteriormente, Arretche (2009, p.383) defende que as regras
do jogo estabelecidas em 1988 j definiam um governo central "forte", com autoridade
para iniciar legislao e com alta probabilidade de sucesso na