bernard lewis - os Árabes na história

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"O que se segue não é tanto uma história dos Árabes quanto um ensaio interpretativo. Mais do que condensar uma tão vasta matéria num enunciado árido de datas e de eventos, procurei isolar e analisar alguns aspectos fundamentais - o lugar ocupado pelos árabes na história da humanidadde, a sua identidade, os seus empreendimentos, e os traços mais salienetes das diferentes épocas de sua evolução.

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  • BERNARD LEWIS

    OS ARABES NA HISTRIA

    2. edio

    1990Editorial Estampa

    Lisboa

  • N D I C E

    Prefcio da edio portuguesa............................................... 9

    Prefcio ................................................................................. 11

    Introduo ........................................................................... 13

    I A Arbia antes do Islo ...................................................... 27

    II Maom e a origem do Islo ............... 43

    III A poca das Conquistas ........................................... 57

    IV O Reino rabe .......................................... 75

    V O Imprio Islmico................................................ 93

    VI A Revolta do Islo ............................................................ 113

    VII Os rabes na Europa .............. 131

    VIII A civilizao islmica ........................................................... 149

    IX O eclipse dos rabes .......................................... 163

    X O impacto do Ocidente........................................................... 185

    Quadro Cronolgico................................................................ 201

    Bibliografia ............. 207

    ndice analtico .............................................. 217

  • PREFCIO DA EDIO PORTUGUESA

    Apresenta-se ao pblico de lngua portuguesa o livro clssico do Professor Bernard Lewis intitulado The Arabs in History. Autor e obra so bem conhecidos pelos especialistas e pessoas interessadas pelo Mundo Arabe e Islmico. Bernard Lewis professor de Estudos do Prximo Oriente na Universidade de Princeton (EUA), antigo professor da Universidade de Londres e co-direc- tor da prestigiosa Enciclopdia do Islo (em publicao). Laureado pelas Universidades de Londres e de Paris, foi professor visitante nas da Califrnia em Los Angeles, na Colmbia e na de Indiana. membro da British Academy, do Institut dEgypte, da Turkish Historical Society e da American Philosophical Society. autor de uma vasta bibliografia em que se salientam: The Origins of Is- mailism (1940)', The Emergence of Modem Turkey (I96I); Istambul and the Civization of the Ottoman Empire (1963); The Middle East and the West (1964); Islam from the Prophet Muhammad to the Capture of Constantinople (1974); e The World of Islam (1976). Foi um dos autores da The Cambridge History of Islam (1971). Os seus livros encontram-se traduzidos em numerosas lnguas, entre as quais o rabe. O Professor Bernard Lewis tem-se distinguido pela extenso e profundidade da sua obra histrica, pela lucidez da anlise, pela constncia com que tem defendido a importncia dos estudos sobre orientalismo e pelo cuidado evidenciado na difuso dos resultados da investigao.

    Os rabes na Histria foi escrito em 1950, sucessivamente actualizado at 6. edio, publicada em 1975, e j foi traduzido

  • em rabe, turco, hebreu, francs, espanhol, servo-croata, japons e malaio. Estuda a identidade rabe e islmica e procede sucessivamente ao exame dos diferentes perodos histricos desde o aparecimento de Maom at colonizao europeia. Livro de carcter explicativo de slida base informativa, constitui uma excelente introduo para aqueles que queiram iniciar-se no conhecimento do respectivo tema ou que pretendam verificar as suas prprias concepes sobre matria to controversa e actual.

    Antnio Dias Farinha

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  • PREFCIO

    O que se segue no tanto uma historia dos rabes quanto um ensaio interpretativo. Mais do que condensar urna to vasta matria num enunciado rido de datas e de eventos, procurei isolar e analisar alguns aspectos fundamentais o lugar ocupado pelos Arabes na historia da humanidade, a sua identidade, os seus empreendimentos, e os traos mais salientes das diferentes pocas da sua evoluo.

    Num trabalho desta natureza, no possvel nem desejvel indicar as fontes de cada um dos factos ou interpretaes referidos. Os orientalistas reconhecero de imediato a minha dvida aos mestres, do passado e do presente, que se dedicaram ao estudo da histria islmica. Resta-me to-s expressar a minha gratido a todos aqueles que me precederam, professores, colegas e alunos, e que contriburam de diversas formas para a construo da perspectiva da histria rabe desenvolvida nestas pginas.

    Agradeo muito especialmente ao Professor Sir Hamilton Gibb, aos Professores U. Heyd e D. S. Rice, j falecidos, o terem lido e criticado o meu manuscrito, a Miss J. Bridges que preparou o ndice, ao Professor A. T. Hatto pelas muitas e valiosas sugestes.

    B. L.

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  • INTRODUO

    ^ O que um rab ^ A definio de expresses tnicas extremamente difcil, sta no das mais fceis. Uma das definies possveis pode ser posta de lado de imediato. Talvez os rabes constituam uma na^o; no sp por enquanto jim a nacionaM no sentido legal. Um indivduo que se autodefina como rabe pode ser identificado no respectivo passaporte como nacional da Arbia Saudita, de um dos dois lmenes, do Iraque, da Sria, da Jordnia, do Sudo, da Lbia, da Tunsia, da Arglia, de Marrocos ou de qualquer outro do conjunto de estados de identificao rabe. Alguns desses estados como o caso da Arbia Saudita, da Unio dos Emiratos rabes, das Repblicas rabes da Sria e do Egipto adoptarem mesmo a expresso rabe na. sua nomenclatura oficial. No obstante, os seus cidados no so designados simplesmente por rabes. H estados rabes e existe efectivamente um liga de Estados rabes, mas no existe mda um EstadQ-rabe nico de que todos os rabes sejam nacionais.

    Se o Arabismo, porm, no possui contedo legal, no deixa por isso de constituir uma realidade..^ orgulho do rabe na sua arabicidade, a conscincia dos vnculos que o ligam a outros rabes, tanto no passado como no presente, no ^ o menos fortes. P factor de unificao ser ento xun factor lingstico ser rabe aquele que tem como lngua-me a lngua rabe? A resposta afigura-se simples e, primeira vista, satisfatria no entanto, levantam-se algumas dificuldades. So rabes o judeu de lngua rabe do Iraque ou do lmen, ou o cristo de lngua

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  • rabe do Egipto ou do Lbano? O investigador obteria respostas diferentes no s entre esses mesmos povos, como junto dos seus vizinhos muulmanos. O prprio muulmano de expresso rabe do Egipto ser rabe? Muitos consideram-se como tal, mas no todos, e a expresso rabe continua a ser usada coloquialmente, tanto no Egipto como no Iraque, para distinguir o beduino dos desertos circundantes do campons indgena dos vales dos grandes rios. Nalgumas zonas, a expresso depreciativa arabfono utilizada para distinguir aqueles que se limitam a falar a lngua rabe dos que so verdadeiramente rabes.

    Num encontro efectuado h alguns anos atrs entre vrios chefes rabes, rabe foi definido do seguinte modo: feTodo aquele que vive no nosso pas, fala a nossa lngua, educado na nossa cultura e tem orgulho na nossa glria um dos nosso^Compa- remos estas palavras com a definio produzida por uma fonte ocidental autorizada, o Professor Gibb de H arvard:t^o rabes todos aqueles para quem a misso de Maom e a memria do Imprio rabe constituem cerne da histria e que preservem a lngua rabe e a sua herana cultural como patrimnio ecm m m Sy Note-se que nenhuma das definies puramente lingusticT" Ambas introduzem um requisito cultural, e uma, pelo menos, um requisito religioso. Ambas devem ser interpretadas historicamente, pois s atravs da histria dos povos ditos rabes podemos esperar compreender o sentido dessa expresso, desde a sua utilizao primitiva e restrita nas pocas mais recuadas at ao seu mbito vasto, ainda que vagamente delimitado, de hoje. Como iremos ver, ao longo deste perodo vastssimo, o significado da palavra Arabe tem sofrido mutaes constantes, e porque esse processo lento, complexo e longo, verificamos que a expresso pode ser usada em diferentes sentidos distintos, simultaneamente, e que raramente tem sido possvel chegar-se a uma definio geral e uniforme do seu contedo.

    A origem da palavra Arabe ainda obscura, mau grado as explicaes de maior ou menor plausibihdade avanadas pelos fillogos. Para alguns, a palavra deriva de uma raiz semtica significando ocidente, e foi usada pela primeira vez pelos habitantes da Mesopotmia referindo-se aos povos a ocidente do vale

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  • do Eufrates. Esta etimologia discutvel em termos puramente lingsticos, podendo ainda objectar-se que a expresso foi usada pelos prprios rabes e no se afigura muito plausvel que um povo se identifique atravs de uma palavra indicativa da posio que ocupa relativamente a um outro. Mais profcuas se revelaram as tentativas no sentido de estabelecer a ligao entre essa expresso e o conceito de nomadismo. Foram diversos os mtodos empregados: relacionando-a com o hebraico 'Arabha terra escura ou estepe; com o hebraico Erebh misturado e, portanto, desorganizado por oposio vida organizada e ordenada das comxmidades sedentrias, rejeitadas e desprezadas pelos nmadas; com a raiz Abhar mover ou passar de que deriva, provavelmente, a nossa palavra hebreu. A relao com o nomadismo comprovada pelo facto de os prprios rabes terem usado, ao que parece, esta expresso, em tempos recuados, para distinguirem os beduinos dos habitantes de lngua rabe das cidades e aldeias, distino que se mantm, em certa medida, at hoje. A etimologia rabe tradicional que faz derivar o substantivo de um verbo significando expressar ou enunciar representa quase com certeza uma inverso do processo histrico. Um caso paralelo a conexo estabelecida entre o alemo deuten tornar claro para o povo e deutsch originalmente, do povo.

    ^ A primeira notcia que chegou at ns da Arbia e dos rabes -nos dada no captulo X do Gnesis, onde se refere o nome de muitos dos povos e distritos da pennsula. No entanto, a palayra rabe no aparece no texto, surgindo pela_primeira vez numa inscrio assria de 853 a.C , em que o rei Shalmaneser III reata o esmagamento de uma conspirao de prncipes rebeldes pelas foras assrias. Um deles era Gindibu, o Aribi, cujo contributo para o referido conluio foi de mil camelos. A partir dessa data e at ao sculo VI a.C. encontramos referncias freqentes a Aribi, Arabu e Urbi em inscries assrias e babilnicas. Essas inscries referem o pagamento de tributos por chefes Aribi, constitudos normalmente por camelos e outros produtos caractersticos do deserto, e por vezes falam de expedies militares em territrio Aribi. Alguma das inscries mais recentes so acompanhadas de ilustraes dos Aribi e dos seus camelos. As campanhas contra

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  • os Aribi no constituam, obviamente, guerras de conquista, mas expedies pimitivas que visavam chamar a ateno dos nmadas errantes para os seus deveres de vassalos assrios. Tinham como finahdade a defesa e proteco das fronteiras e vias de comunicao assrias. Os Aribi das inscries so um povo nmada do extremo norte da Arbia, provavelmente do deserto siro-rabe. No incluem a florescente civilizao sedentria do Sudoeste da Arbia, mencionada parte nos registos assrios. Podem identi- ficar-se com os rabes dos ltimos livros do Velho Testamento. Por volta de 530 a. C. comea a aparecer em documentos persas de escrita cimeiforme a palabra Arabaya.

    A mais antiga referncia clssica encontra-se em squilo, que no Prometeu menciona a Arbia como mna terra remota de onde vm guerreiros de lanas ponteagudas. possvel que o Magos Arabos a que se faz referncia nos Persas como um dos comandantes do exrcito de Xerxes seja tambm rabe. J em escritos gregos que deparamos pela primeira vez com o topnimo Arbia, formado por analogia com Itlia, etc. Herdoto e, depois dele, muitos outros escritores gregos e latinos estenderam as expresses Arbia e rabe a toda a pennsula e a todos os seus habitantes, incluindo os rabes do Sul e o deserto a leste do Egipto entre o Nilo e o Mar Vermelho. Nesta poca, a expresso parece abranger, pois, todas as regies desrticas do Prximo e Mdio Oriente, habitadas por povos de lngua semtica. igualmente na hteratura grega que a expresso Sarraceno comea a ser divulgada. Aparece pela primeira vez nas antigas inscries, supondo-se que seria o nome de uma nica tribo do deserto da regio do Sinai. Na literatura grega, latina e talmdica usada em relao aos nmadas em geral, e em Bizncio e no Ocidente medieval foi, posteriormente, aplicada a todos os povos muulmanos.

    A primeira utilizao rabe da palavra ocorre nas antigas inscries do Sul da Arbia, relquias da florescente civilizao fundada no lmen pelo ramo meridional dos povos rabes, e que datam de finais da era pr-crist e princpios da era crist. Nessas inscries. rabe significa beduino, muitas vezes assaltante, e aplica-se populao nmada em contraste com a popu

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  • lao sedentria. No Norte, a primeira ocorrncia verifica-se nos incios do sculo IV d.C. no Epitfio de amara, um dos mais antigos registos que nos chegaram na lngua rabe do norte e que vdo a ser mais tarde o rabe clssico. Essa inscrio em rabe, na escrita aramaica nabateia, relata a morte e os feitos de Imru1- -Qais, Rei de Todos os rabes, em termos que sugerem no ter a clamada soberania ido muito alm dos nmadas do Norte e centro da Arbia.

    S depois do surgimento do Islo em princpios do sculo VII, viemos a ter informaes concretas quanto ao uso da palavra no centro e Norte da Arbia. Para Maom e seus contemporneos, os rabes eram os beduinos do deserto e no Alcoro a expresso usada exclusivamente neste sentido e nunca em relao aos habitantes de Meca, de Medina ou de outras cidades. Por outro lado, a Ungua falada nessas cidades e a do prprio Alcoro designada por lngua rabe. Aqui encontramos j em embrio a ideia dominante em pocas posteriores de que a Jforma mais pur^ de rabe a dos beduinos, os quais preservaram com maior fidelidade do que quaisquer outros o modo de vida e a hngua rab^ originais.

    As. imensas vagas de conquistas que se sucederam morte de Maom e o estabecimento do Califado pelos seus sucessores na chefia da nova comunidade islmica difundiram o nome rabe atravs dos trs continentes, na sia, na frica e na Europa, e colocaram-no como ttulo de um captulo vital, ainda"q no duradouro, da histria do pensamento e do esforo huraanos,jC!s povos de lngua rabe da Arbia, tanto as populaes nmadas como as sedentrias, fundaram um vasto imprio que se estendia desde a sia Central, atravs do Mdio ^ Oriente e do Norte de frica, at ao Atlntico. Tnd' cTTsli^ m o religmo nachl e grito de guena, e o novo impri^mo objectivo, os rabes encontraram-se a viver no meio de uma grande variedade de povos de diferentes raas, lnguas e religies, em que constituam uma minoria dominante de conquistadores e senhores. As diferenas tnicas de tribo para tribo e as diferenas sociais entr a populao das cidades e a populao do deserto tomaram-se por algum tempo menos significativas do que a diferena entre os senhores

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  • do novo imprio e os diversos povos conquistados. Durante este primeiro perodo da historia islmica, quando o Islo era apenas urna religio rabe e o Califado um reino rabe, o termo rabe aplicava-se queles que falavam rabe, eram membros por descendncia de urna tribo rabe e, pessoalmente ou atravs dos seus antepassados, eram originrios da Arbia. Estabelecera a distino entre eles e a multido de Persas, Sirios, Egipcios e outros que as grandes conquistas haviam submetido ao dominio rabe, e cons- tituia como que o rtulo do novo povo imperial excluindo os que no pertenciam Casa do Islo. Os primeiros dicionrios rabes clssicos oferecem duas formas para a palavra rabe Arab e A rab e dizem-nos que esta ltima significa Beduino, enquanto a primeira era usada no sentido amplo acima descrito. Esta distino, a ser autntica e muito do que encontramos nos primitivos dicionrios tem uma existncia puramente lexicogrfica deve datar deste perodo. No h indicios anteriores, e parece no ter sobrevivido por muito tempo.

    A partir do sculo VIII, o Califado foi-se transformando gradualmente de um Imprio rabe num Imprio Islmico, em que o acesso casta dominante era determinado mais pela f do que pela origem. medida que um crescente nmero de povos conquistados se ia convertendo ao Islo, religio deixou de ser o culto nacional ou tribal dos conquistadores rabes e adquiriu o carcter universal que manteve at hoje. O desenvolvimento econmico e o termo das guerras de conquista, que tinham constitudo a principal actividade produtiva dos rabes, deu origem a uma nova classe dirigente de administradores e comerciantes, de raa e lngua heterogneas, que desapossou a aristocracia mih- tar rabe criada pelas conquistas. Esta mudana reflectiu-se na organizao do governo e dos seus funcionrios.

    O rabe permaneceu a nica lngua oficial e a principal lngua da administrao, do comrcio e da cultura. A rica e diversificada civilizao do Califado, criada por homens de muitas naes e fs, era rabe tanto na lngua como no esprito. O uso do adjectivo rabe para qualificar as mltiplas facetas desta civihzao tem sido frequentemente posto em causa com base

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  • no facto de o contributo dos que eram de ascendncia rabe para a medicina rabe, a filosofa rabe, etc., ser relativamente pequeno. Mesmo o emprego da palavra muulmano tem sido objectivo de crticas, na medida em que muitos dos arquitectos desta cultura eram cristos e judeus, pelo que o termo islmico, de conotao cultural e no apenas religiosa ou nacional, considerado prefervel. As caractersticas autenticamente rabes da civilizao do Califado so, contudo, maiores do que poderia sugerir o mero exame das origens rcicas dos seus criadores individuais, e o uso desta expresso justificado desde que se faa uma clara distino entre as suas conotaes culturais e tnicas. Outro aspecto importante o de que na conscincia colectiva dos rabes de hoje a civilizao rabe do Cahfado, no seu sentido mais amplo, que constitui a sua herana comum e a influncia formativa da sua vida cultural.

    Entretanto, o prprio contedo tnico da palavra rabe foi-se alterando. A irradiao do Islo entre os povos conquistados foi acompanhada pela irradiao da lngua rabe. Este processo foi acelerado pela fixao de grande nmero de rabes nas provncias e, a partir do sculo X, pela chegada de uma nova raa dominante, os Turcos, em relao aos quais a distino entre os .descendentes dos conquistadores rabes e os nativos arabizados deixou de ter significado. Em quase todas as provncias a oeste da Prsia as velhas lnguas nativas morreram e o rabe tornou-se a principal lngua falada. A partir dos finais do perodo abssida, a palavra rabe retomou o seu primitivo significado de Beduino ou nmada, de sentido predominantemente social e no tnico. Em muitas das crnicas ocidentais das Cruzadas a expresso usada apenas para os Beduinos, designando-se aqueles que formavam a maioria da populao muuhnana do Prximo Oriente de Sarracenos. certamente neste sentido que, no sculo XVI, Tasso fala de

    altri Arabi poi, che di soggiorno, certo non sono stabili abitanti;

    (Grusalemme Liberata, XVII 21)

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  • o historiador rabe do sculo XIV Ibn Khaldun, ele prprio um citadino de ascendncia rabe, usa a palavra neste sentido.

    Naquela poca o principal critrio classificativo era rehgioso. As diversas crenas minoritrias organizavam-se em comunidades religioso-polticas, cada uma com os seus prprios chefes e leis. A maioria pertencia ao Ummat d-lslam, a comunidade ou nao do Islo. Os seus membros consideravam-se a si prprios Muulmanos, antes do mais. Se havia necessidade de uma outra classi- sificao, esta tanto podia ser territorial egpcio, srio, iraquiano, como social citadino, campons, nmada. a este ltimo que o termo rabe pertence. Mas reteve to pouco do seu significado tnico que chegamos a encontr-lo por vezes associado a nmadas no-rabes de origem curda ou turcomana. Quando a classe social dominante no seio da Ummat al-Islam era predominantemente turca como foi o caso, durante muitos sculos, no Prximo Oriente encontramos por vezes a expresso Descendentes ou Filhos dos rabes {Abnaal-Arab ou Awlad al-Arab) aphcada populao de lngua rabe da cidade e do campo, para os distinguir da classe governante turca, por um lado, e dos nmadas ou rabes, por outro.

    No rabe coloquial esta situao manteve-se substancialmente inalterada at aos dias de hoje, muito embora os Turcos tenham cedido o lugar a outros como classe dominante. Todavia, entre os intelectuais dos pases de Ungua rabe verificou-se uma alterao de alcance significativo. A rpida evoluo da actividade e influncia europeias nestas regies trouxe consigo o conceito europeu de nao como um conjunto de pessoas com um territrio, uma lngua, carcter e aspiraes polticas comuns. O Imprio Otomano havia dominado desde 1517 a maior parte dos povos de lngua rabe do Prximo e Mdio Oriente. O impacto da ideia de nao num povo nos estertores da violenta transformao social provocada pelo eclodir do imperialismo ocidental produziu os primeiros esboos de um renascimento rabe e de um movimento nacional rabe, visando a criao de um ou vrios estados independentes. O movimento comeou na Sria e os seus primeiros mentores parecem t-lo concebido em termos estritamente locais. Em breve alastrou ao Iraque, e nos anos imediatos esta

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  • beleceu relaes mais estreitas com os movimentos nacionalistas locais do Egipto e dos pases de expresso rabe do Norte de frica.

    Para os teorizadores do nacionalismo rabe os rabes so uma nao no sentido europeu, nela incluindo todos aqueles que dentro de certas fronteiras falam a lngua rabe e so sensveis memria da glria rabe passada. H diferentes pontos de vista acerca da localizao destas fronteiras. Alguns consideram apenas os pases de lngua rabe do Sudoeste da sia. Outros acrescentaram o Egipto embora neste caso houvesse conflito de opinio com muitos Egpcios que conceberam o seu nacionalismo em termos puramente egpcios. Muitos incluem todo o mimdo de Ungua rabe, desde Marrocos at aos confins da Prsia e da Turquia. Nesta perspectiva, a barreira social entre sedentrios e nmadas deixou de ter significado, apesar da sobrevivncia na linguagem coloquial de rabe com o sentido de Beduino. Torna-se mais difcil remover a barreira religiosa de uma sociedade longamente dominada por uma f teocrtica. Embora s um pequeno nmero dos porta-vozes do movimento o reconheam, muitos rabes excluem ainda aqueles que, mesmo falando a lngua rabe, rejeitam a sua f e, consequentemente, grande parte da civilizao que ela forjou.

    Resumindo: a palavra rabe surge pela primeira vez no sculo IX a.C., referindo-se ao Beduino da estepe do Norte da Arbia. Manteve-se em uso com este sentido durante vrios sculos entre os povos sedentrios dos pases circunvizinhos. Na Grcia e em Roma o seu mbito foi alargado pela primeira vez a toda a pennsula, abrangendo os povos dos osis e a civilizao relativamente avanada do Sudoeste. Na prpria Arbia, parece ter sido ainda limitada aos nmadas, conquanto a lngua comum dos rabes sedentrios e nmadas tivesse a designao de rabe. Aps as conquistas islmicas e ao longo do Imprio rabe, fez a distino entre a classe dominante de lngua rabe dos conquistadores de origem rabe e toda a massa dos povos conquistados. medida que o Reino rabe se ia transformando num cosmopolita Imprio Islmico, passou a abranger numa utilizao mais exterior do que interior a variegada cultura do Imprio,

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  • criada por homens de muitas raas e religies, mas em lngua rabe e condicionada pelo gosto e tradio rabes. Com a fuso dos conquistadores rabes e dos conquistados arabizados e a sua sujeio comum a outros elementos dominantes, perdeu gradualmente o seu contedo nacional, constituindo uma expresso social aphcada apenas aos nmadas que haviam preservado com maior fidelidade do que quaisquer outros a hngua e o modo de vida rabes originais. Os povos de lngua rabe das regies povoadas eram normalmente classificados como Muulmanos, por vezes como descendentes ou filhos dos rabes, para os distinguir dos Muulmanos de outras lnguas. Conquanto todas estas diferentes utilizaes tenham sobrevivido em determinados contextos at hoje, uma nova acepo resultante do impacto do Ocidente foi ganhando fora nos ltimos cinqenta anos. Considera os povos de lngua rabe como mna nao ou um conjunto de naes irms no sentido europeu, unidas por um territrio, por uma lngua e por uma cultura comuns e por uma aspirao comum independncia poltica.

    uma tarefa bastante mais fcil examinar o alcance do Arabismo em termos de espao, na actuahdade. Os pases de lngua rabe dividem-se em trs grupos: Sudoeste Asitico, Egipto e Norte de frica. O maior territrio rabe do primeiro grupo a prpria Pennsula Arbica, na sua maior parte ocupada pelo reino patriarcal da Arbia Saudita, que permanece, no obstante o advento da indstria petrolfera, largamente pastoril e nmada. Um golpe republicano contra a monarquia no lmen, em 1962, deu incio a uma guerra civil que se prolongou durante anos. Em 1967 a colnia e os protectorados de Adm tomaram-se independentes com o nome de Repblica Popular do lmen do Sul, e em 1971 os Estados do Golfo conseguiram tambm a sua independncia, a maior parte deles agrupando-se na Unio dos Emiratos rabes. Para norte estendem-se as terras do Crescente Frtil, at 1918 provncias do Imprio Otomano, e que constituem actualmente o Iraque, a Sria, o Lbano, a Jordnia e Israel. nestes pases que o processo de arabizao foi mais longe e onde o sentimento de identidade rabe mais forte. Ligado sia

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  • rabe, no canto nordeste de frica, fica o Egipto, o mais populoso, desenvolvido e homogneo dos Estados de lngua rabe, possuidor da mais longa tradio de nacionahsmo poltico e de existncia poltica distinta nos tempos modernos. Em Fevereiro de 1958 o Egipto''formou com a Siria a Repblica rabe Unida, de que a Siria veio a sair em 1961.

    A sul do Egipto, no continente africano, fica a Repblica do Sudo, de lngua predominantemente rabe, que obteve a independncia em 1956. Para oeste, a antiga colnia italiana da Libia tornou-se urna monarquia independente em Dezembro de 1951 a independncia da Tunsia e de Marrocos foi reconhecida em 1956, e a da Arglia, depois de uma longa e dura luta, em 1962 Na maior parte destes pases a populao mista, com predo minio da lngua rabe, ainda que com minorias de lngua berbere, sobretudo em Marrocos. Alguns europeus permaneceram. Todos estes pases tm sido extremamente afectados pela penetrao econmica, cultural e poUtica europeia, menos do que pelo ressurgimento rabe. Nos ltimos anos os movimentos nacionalistas no Norte de frica tornaram-se cada vez mais vigorosos. Conquanto os seus objectivos sejam ainda essencialmente locais, a irradiao das influncias culturais rabes do Prximo Oriente,, especialmente na Tunsia, vai criando um maior sentimento de afinidade com os rabes orientais. Alm destes pases, h comunidades rabes nas antigas dependncias inglesas e francesas em frica, inseridas no meio de populaes predominantemente negras, e pequenas minorias rabes em Israel, na Turquia e na Prsia. A populao total de lngua rabe na sia e em frica calculada habitualmente em cerca de cem milhes, dos quais cerca de trinta e cinco milhes vivem no Egipto e outros trinta e cinco milhes no Norte de frica.

    Todos estes pases tm muito em commn. Todos eles se encontram na fronteira entre o deserto e as terras de cultivo, e todos se confrontam desde sempre com o problema permanente do invasor nmada. Dois dos mais importantes, o Egipto e o Iraque, so os vales irrigados de grandes rios, importantes rotas comerciais e sedes de Estados centralizados desde pocas remotas. Quase todos so pases de campesinato, assentes na mesma ordem

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  • social e nas mesmas classes governantes muito embora as formas exteriores e as prprias realidades sociais se vo alterando medida que o impacto do mundo moderno os vai afectando separadamente, em pocas diferentes, de formas diferentes e com diferentes tempos. Todos, com excepo da prpria Arbia, foram arrastados para o Arabismo e para o Islo pelas grandes conquistas, e todos receberam o mesmo grande legado de lngua, religio e civilizao. No entanto, a lngua apresenta muitas diferenas locais, do mesmo modo que a religio, a cultura e a tradio social. Um longo afastamento e as grandes distncias contriburam para que os rabes, em fuso com diferentes culturas nativas, criassem marcadas variantes locais da tradio comum, por vezes, como no Egipto, com um sentido de identidade local e nacional que mergulha as suas razes no passado. Entre os povos conquistados, aqui e ali, houve os que recusaram quer a lngua do conquistador, quer a sua religio, ou mesmo ambas, sobrevivendo no meio dos rabes, como foi o caso dos Curdos ou dos Berberes no Iraque ou no Norte de frica, dos Maronitas ou dos Coptas no Lbano ou no Egipto. Surgiram novas seitas no prprio Islo, por vezes atravs da aco de cultos preexistentes: Xiitas e Yazidi- tas no Iraque, Druzos na Sria e no Lbano, Zaiditas e Ismailitas no lmen. A poca moderna, ao submeter os territrios rabes a uma grande diversidade de processos, trouxe novos factores de desunio que se prendem com a existncia de nveis sociais diferentes e tambm com interesses tanto regionais como dinsticos. Todavia, os progressos actuais tambm contribuem para reforar os factores de unidade o rpido desenvolvimento das comunicaes modernas, possibilitando uma maior e mais rpida aproximao das diversas partes do mundo rabe; o alargamento da educao e da instruo, conferindo maior ampUtude ao poder unificador de uma lngua escrita e de uma memria comuns; e, obviamente, a nova solidariedade em oposio ao Ocidente e em reaco influncia ocidental.

    Resta discutir um ltimo problema nestas notas introdutrias. O escritor europeu que se dedica histria islmica trabalha em condies especialmente difceis. Ao escrever numa lngua oci-

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  • dental, ter que usar necessariamente termos ocidentais. Esses termos tm por base categorias ocidentais de pensamento e de anlise, determinados na sua maior parte pela Historia do Ocidente. A sua aplicao aos condicionalismos de outra sociedade formada por influncias diferentes e vivendo formas de vida diferentes pode, na melhor das hipteses, ser urna mera analogia e perigosamente enganadora. Consideremos um exemplo: alguns binmios como Igreja e Estado, espiritual e temporal, eclesistico e laico, no tinham verdadeiramente correspondncia em rabe at aos tempos modernos em que foram criadas para traduzir ideias modernas; dado que a dicotomia que expressam era desconhecida da sociedade muulmana medieval e desarticulada em relao mentalidade muulmana medieva. A comunidade do Islo era simultaneamente Igreja e Estado num todo, indistintamente interligados; o seu chefe titular, o Cafa, era ao mesmo tempo chefe secular e religioso. Tambm a expresso feudalismo, em sentido estrito, refere-se forma de sociedade existente na Europa Ocidental entre a queda do Imprio Romano e o comeo da ordem moderna. A sua utilizao noutras reas e para outras pocas, a menos que seja cuidadosamente definido no seu novo contexto, pode gerar a impresso de que o tipo de sociedade assim descrito idntico ou pelo menos similar ao feudalismo europeu ocidental. No existem, porm, duas sociedades exactamente iguais, e muito embora em certos perodos a ordem social do Islo apresente um nmero significativo de semelhanas com o feudalismo europeu ocidental, tal no justifica a total identificao que est implcita numa utihzao no restritiva da palavra. Expresses como religio, estado, soberania, democracia, significam coisas muito diversas no contexto islmico e assumem significaes distintas em diferentes partes da Europa. O recurso a tais palavras , porm, inevitvel ao escreve-se em ingls e, pof conseqncia, ao escrever-se nas lnguas modernas do Oriente, influenciadas por quase um sculo de formas de pensamento e de classificao ocidentais. Nas pginas que se seguem devem ser entendidas sempre no seu contexto islmico, no implicando nunca um maior grau de semelhana com as instituies ocidentais correspondentes do que o que especificamente indicado.

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  • A ARBIA ANTES DO ISLO

    I

    Orculo contra o deserto do mar. Como vm os tufes da parte do meio-dia, assim vem ele (o inimigo) do deserto, de urna trra terrvel.

    (Isaas, xxi. I)

    A Pennsula Arbica forma um vasto rectngulo com urna rea de cerca de um milho e duzentos e cinqenta mil milhas quadradas. limitada a norte pela cadeia de territorios comum- mente designados por Crescente Frtil da Mesopotmia, Sria e Palestina e desertos limtrofes; a leste e a sul pelo Golfo Prsico e pelo Oceano Indico; a oeste pelo Mar Vermelho. Os distritos do Sudoeste do lmen so uma regio montanhosa bem irrigada, o que favoreceu desde muito cedo o desenvolvimento da agricultura e a implantao de civilizaes sedentrias relativamente avanadas. O resto do territrio constitudo por estepes ridas e por desertos aqui e ali interrompidos por um osis, atravessados por algumas rotas de comrcio e caravanas. A populao era essencialmente pastoril e nmada, vivendo dos rebanhos e do produto das incurses aos habitantes dos osis e das provncias vizinhas cultivadas.

    Os desertos da Arbia apresentam diversos tipos: os mais importantes, de acordo com a classificao rabe, so os de Nufud, imensa vastido de dunas mveis que formam uma paisagem em permanente mutao; os de Hamad, de terreno mais consistente nas zonas prximas da Sria e do Iraque; a zona das estepes, de solo mais compacto, onde chuvas oca.sionais fazem surgir uma vegetao sbita e efmera; e por ltimo, o imenso e impenetrvel deserto do Sudeste. As comunicaes entre estas regies so escas- .sas e difceis, dependendo essencialmente dos wadis. pelo que os

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  • habitantes dos diferentes pontos da Arbia tinham poucos contactos entre si.

    O Centro e o Norte da pennsula so tradicionalmente divididos pelos rabes em trs zonas. A primeira a Tihama, palavra semtica que significa terras baixas, que caracteriza as planicies e vertentes do htoral do Mar Vermelho. A segunda, mais para leste, a do Hijaz ou barreira. Esta expresso referia-se inicialmente apenas cordheira montanhosa que separa a planicie costeira do planalto de Najd, mas veio mais tarde a englobar grande parte da regio litoral. Para leste do Hijaz fica o grande planalto interior de Najd, grande parte do qual constitui o deserto de Nufud.

    Desde muito cedo que a Arbia constituiu uma rota de trfego entre os pases do Mediterrneo e o Extremo Oriente, e a sua historia foi determinada, em larga medida, pelas vicissitudes do trfico este-oeste. As comunicaes tanto no interior como atravs da Arbia foram condicionadas pela configurao geogrfica da pennsula, segundo linhas precisas. A primeira a rota de Hijaz, que vai desde os portos do Mar Vermelho e postos fronteirios da Palestina e Transjordnia, ao longo do flanco interior da cordheira costeira do Mar Vermelho at ao lmen. Em pocas diversas foi urna rota de caravanas entre o Imprio de Alexandre e dos seus sucessores no Prximo Oriente e os pases do Extremo Oriente. Foi tambm a rota do caminho-de-ferro de Hijaz. Urna segunda rota atravessa o Wadi d-Dawasir, desde o extremo nordeste do lmen at Arbia central, onde se une a urna outra rota, a Wadi r-Rumma para o sul da Mesopotmia. Esta constituiu a principal via de comunicao, nos tempos antigos, entre o lmen e as civilizaes da Assria e da Babilnia. Por ltimo, a Wadi s-Sirhan liga a Arbia central ao sudeste da Siria atravs dos osis de Jawf.

    Enquanto a investigao histrica na Arbia no se processar em moldes idnticos ao que se tem feito no Egipto, na Palestina e na Mesopotmia, os primeiros sculos da sua histria permanecero obscuros, e o investigador ter de ir abrindo caminho cautelosamente por entre os destroos de hipteses semiconstru- das, semidestrudas, que o historiador, com o escasso material de

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  • que actualmente dispe, no pode nem completar nem deitar por terrq. De todas, talvez a mais famosa seja a teoria de Winckler- -Caetani, assim designada em homenagem aos seus dois expoentes mais clebres. De acordo com esta teoria, a Arbia foi na sua origem um territrio extraordinariamente frtil e ptria dos povos semitas. Ao longo de milnios foi sofrendo todo um processo de seca constante, de esgotamento de riquezas e de cursos de gua, e de alastramento do deserto em detrimento das terras cultivveis. A produtividade decrescente da pennsula, jimtamente com o aumento da populao, levou a uma srie de crises de sobre- povoamento e, consequentemente, a um processo cclico de invases dos pases vizinhos pelos povos semitas da pennsula. Foram essas diversas crises que levaram os Srios, os Arameus, os Cana- neus (incluindo Fenicios e Hebreus) e, finalmente, os rabes at ao Crescente Frtil. Os rabes de que nos fala a histria seriam, assim, como que uma massa residual indiferenciada depois de terem tido lugar as grandes invases da histria antiga. Muito embora no tenha sido feito at data nenhum levantamento geolgico minucioso da Arbia, j vierani a lume algumas provas em apoio desta teoria, sob a forma de leitos secos de rios e outras indicaes de anterior fertilidade. No existe, porm, qualquer prova de que este processo de dessecao tenha ocorrido aps o aparecimento de vida humana na pennsula, nem mesmo que se tenha verificado a uma escala susceptvel de influenciar directamente o curso da vida humana. Existem tambm alguns testemunhos de carcter filolgico em apoio desta tese, na medida em que a lngua rabe, se bem que a mais recente das lnguas semticas no seu surgimento como instrumento hterrio e cultural, , no obstante, de diversas formas, a mais antiga de todas na sua estrutura gramatical e, por conseqncia, a que se encontra mais prxima da lngua original proto-semtica. Uma hiptese alternativa a proposta pelo estudioso itahano Ignazio Guidi que considera o Sul da Mesopotmia como a ptria dos semitas, e acentua que enquanto as lnguas semticas possueni vocbulos comuns para rio e mar, no os tm para designar montanha ou colina. Outros autores propem a frica e a Armnia.

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  • A tradio nacional dos rabes divide o povo rabe em dois ramos principis, o do Norte e o do Sul. Essa distino encontra eco no. captulo X do Gnesis, em que se referem duas linhas distintas de descendncia de Shem para os povos do Sudoeste e do Centro e Norte da Arbia, sendo este ltimo o que se encontra mais prximo dos Hebreus. O significado etnolgico desta distino , e provavelmente continuar ser, completamente desconhecido. Surge pela primeira vez na histria em termos hngus- ticos e culturais. A lngua rabe do Sul diferente da do Norte da Arbia, que veio a dar o rabe clssico. escrita num alfabeto diferente, que chegou at ns atravs de inscries, e aparentada com o etope que se desenvolveu efectivamente na Abissnia por influncia dos colonos vindos do Sul da Arbia e que estabeleceram os primeiros centros da civilizao etope. Outra distino impor-

    tante reside no facto de os rabes do Sul serem um povo sedentrio.

    A cronologia da histria primitiva da Arbia do Sul obscura. Um dos primeiros reinos referidos em registos o de

    ^ab, provavelmente o mesmo referido na Biblia com o nome de Sheba, cuja rainha estabeleceu relaes com o rei Salomo. A existncia de Sab remonta possivelmente ao sculo X a.C. Existem referncias ocasionais que datam do sculo VIII e testemunhos do seu florescimento no sculo VI. Por volta do ano 750 a.C. um dos reis Sabeus mandou construir o famoso dique de Marib, que durante muito tempo regulou a vida agrcola do reino. Eram mantidas ligaes comerciais com o litoral africano e, provavelmente, com pases mais afastados. Os Sabeus parecem ter levado a cabo uma vasta colonizao no territrio africano e fimdado o reino da Abissnia, cujo nome provm de Habashat, povo do Sudoeste da Arbia.

    A partir do momento em que as conquistas de Alexandre puseram o mundo mediterrneo em contacto com o Extremo Oriente, o crescente nmero de informaes provenientes de fontes gregas atesta o interesse pela Arbia do Sul. Os Ptolomeus do Egipto enviaram frotas pelo Mar Vermelho para explorar as costas da Arbia e as rotas comerciais para a ndia. Os seus sucessores no Prximo Oriente mantiveram o mesmo interesse. Nos

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  • finais do sculo V d.C. o reino de Sab encontrava-se em avanado estado de declnio. Fontes muulmanas e crists sugerem ter sucumbido sob o domnio dos Himiaritas, outro povo do Sul da Arbia. O ltimo rei himiarita, Dhu Nuwas, converteu-se ao judasmo. Como represlia contra as perseguies movidas por Bizncio aos Judeus, adoptou medidas repressivas contra os colonos cristos estabelecidos no Sul da Arbia. Tais medidas vieram, por seu turno, a ter repercusses em Bizncio e na Etipia, nessa poca um estado cristo, permitindo que esta ltima tivesse simultaneamente um incentivo e a oportunidade de vingar os cristos perseguidos e apoderar-se da chave do comrcio com a ndia. Uma invaso etope bem sucedida, com o apoio de cristos locais, ps termo ao reino Sabeu. O domnio etope no lmen no durou muito. No ano 575 d.C., uma expedio persa invadiu o pas e reduziu-o a uma satrapia sem dificuldades de maior. Porm, o domnio persa tambm foi efmero, e data da conquista muulmana poucos vestgios restavam dele.

    A base da sociedade no Sul da Arbia era a agricultura, e as inscries com as suas freqentes referncias a diques, canais, problemas fronteirios e propriedade rural sugerem um elevado grau de desenvolvimento. Alm de cereais, os rabes do Sul produziam mirra, incenso e outras especiarias e essncias, que constituam sua principal fonte de exportao. Nos pases do Mediterrneo as especiarias do Sul da Arbia, frequentemente confundidas com as que chegavam atravs da Arbia do Sul provenientes de territrios mais distantes, levaram sua reputao quase lendria de pas de riquezas e de prosperidade a Arabia Eudaemon ou a Arabia Flix do mundo clssico. As especiarias da Arbia encontram mltiplos ecos na literatura ocidental, desde o the- sauris arabicis de Horcio at aos perfumes da Arbia, de Shakespeare e s spicy shores of Araby the blest de Milton.

    A organizao poltica da Arbia do Sul era monrquica e o seu regime parece assentar na sucesso de pais para filhos. Os reis no tinham carcter divino como nos restantes territrios do Oriente, e a sua autoridade, pelo menos em determinadas pocas, era limitada por conselhos de notveis e, posteriormente, por um

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  • certo tipo de feudalismo, em que os senhores locais governavam dos seus castelos os vassalos e camponeses.

    A religio da Arbia do Sul era politesta e apresenta analogias, mais de ordem geral do que de pormenor, com as de outros antigos povos semitas. Os templos constituam centros importantes da vida pblica e possuam grandes riquezas, administradas pelo chefe dos sacerdotes. O produto das colheitas de especiarias era considerado sagrado e uma tera parte reservada aos deuses, isto , aos sacerdotes. Muito embora a escrita fosse conhecida e tenham chegado at ns inmeras inscries, no existe qualquer indcio de livros ou de literatura.

    Se nos voltarmos do Sul para o Centro e Norte da Arbia, deparamos com uma histria completamente diferente, que assenta em informaes muito mais escassas. Vimos que algumas fontes assrias, bblicas e persas nos oferecem referncias ocasionais a povos nmadas do Centro e do Norte. Do mesmo modo, os rabes do Sul parecem ter estabelecido colnias do Norte, provavelmente para fins comerciais. A primeira informao detalhada que possumos data da poca clssica, altura em que a penetrao de influncias helensticas procedentes da Sria e a explorao peridica da rota comercial da Arbia ocidental deram origem a uma srie de estados fronteirios, semicivilizados nos desertos limtrofes da Sria e do Norte da Arbia.

    Esses estados, ainda que de origem rabe, encontravam-se sob uma forte influncia da cultura aramaia,.heleuizada .e utilizavam, de um modo geral, a lngua aramaica nas suas inscries. A sua natureza rabe revela-se unicamente nos seus nomes prprios. O primeiro e talvez o mais importante de todos foi o dos Nabateus que dominou, no perodo do seu maior poderio, uma rea que se estendia desde o Golfo de Aqaba para norte at ao Mar Morto, abrangendo uma grande parte do Norte do Hijaz. O primeiro rei de que temos conhecimento atravs de inscries Aretas (Haritha, em rabe), mencionado em 169 d. C. A capital era em Petra, no actual reino da Jordnia. O reino nabateu estabeleceu os primeiros contactos com Roma no ano 65 d. C., quando Pompeu visitou Petra, ^ s jm anos estabeleceram relaes amigveis com o reino rabe, qu^Tuficoilava cmo'"uma

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  • espcie de estado-tampo entre as regies colonizadas do oriente romano e o deserto selvagem. Em 25-24 d.C. o reino nabateu serviu de base expedio de lio Galo. Essa expedio enviada por Augusto para conquistar o lmen constituiu a nica tentativa romana de penetrao na Arbia, com o objectivo de controlar o escoamento a sul da rota comercial para a India. Partindo de um porto nabateu no Mar Vermelho, lio Galo conseguiu desembarcar na costa ocidental da Arbia e penetrar at ao interior. Todavia, a expedio revelou-se um fracasso total e terminou numa vergonhosa retirada romana.

    Ao longo do primeiro sculo da era crist, as relaes ro- mano-nabateias foram-se deteriorando e em 105 d. C. o Imperador Trajano transformou a Nabateia do norte numa provincia romana.

    O Prximo e Mdio Oriente em vsperas da ascenso do Islo

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  • conhecida por Palaestina Tertia. Refira-se de passagem que os rabes das provncias limtrofes romanas deram ao Imprio Romano pelo menos xun Imperador, Filipe, que governou de 244 a 249 d. C. No perodo que se seguiu sua morte, assistiu-se ascenso do segundo dos estados rabes aramaizados do Sudeste da Sria. Trata-se do famoso reino de Palmira, fundado no deserto siro-rabe, uma vez mais no ponto de partida da rota comercial do ocidente. O seu primeiro soberano foi Odenato (em rabe Udaina), reconhecido rei pelo Imperador Galiano em 265 d. C. como recompensa pelo auxho prestado na guerra contra os Persas. Aps a sua morte, sucedeu-lhe a viva, a clebre Zenbia (em rabe Zainab), que durante algum tempo se intitulou rainha da maior parte do Prximo Oriente e proclamou seu filho, Athenodorus segundo as fontes clssicas, provavelmente a traduo grega do rabe Wahballat, Csar Augusto. O Imperador Au- reliano passou finalmente aco e em 273 d. C. conquistou Palmira, subjugou o reino e enviou Zenbia para Roma, fazendo-a desfilar numa marcha triunfal romana acorrentada com correntes de ouro.

    Esses dois estados, a despeito de um breve instante de glria nos anais romanos, foram incidentes transitrios, faltando-lhes a consistncia e a firmeza dos reinos do Sul da Arbia, apoiados, de um modo geral, em povos nmadas e seminmadas, de caractersticas flutuantes. A importncia que tiveram advinha-lhes da sua posio nas rotas comerciais que partiam de Roma e atravessavam a Arbia Ocidental at ao Extremo Oriente, e da sua funo como estados-tampo ou principados tributrios fronteirios, que poupavam aos Romanos a tarefa rdua e dispendiosa de manuteno de defesas militares nas fronteiras junto ao deserto.

    Sabemos menos de dois estados rabes que floresceram na poca helenstica, no interior os estados da Lihyan e de Tha- mud. So conhecidos essencialmente atravs de inscries feitas na sua prpria lngua e, no caso do ltimo, a partir de algumas referncias no Alcoro. Supe-se que ambos tenham estado durante algum tempo sob a suserania dos Nabateus, tomando-se independentes mais tarde.

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  • Num dado momento, no sculo IV, as rotas comerciais parecem ter-se desviado do Oeste da Arbia para outros canais atravs do Egipto e do Mar Vermelho e atravs do vale do Eufrates e do Golfo Prsico. O perodo que medeia entre os sculos IV e V foi de declnio e de depauperamento, No Sudoeste, como vimos, as civilizaes do lmen enfraqueceram e submeteram-se ao domnio estrangeiro. A perda de prosperidade e as migraes das tribos do sul para o norte so sintetizadas e simplificadas pela tradio nacional rabe no episdio nico e dramtico da rotura do dique de Marib e conseqente devastao. A norte, os estados fronteirios anteriormente florescentes ou ficaram sujeitos ao domnio imperial, ou regressaram a um anarquismo nmada. As cidades existentes na maior parte da pennsula foram perdendo importncia ou desapareceram, e o nomadismo alastrou por toda a parte, custa do comrcio e da cultura.

    O trao dominante da populao do Centro e do Norte da Arbia neste perodo crucial que precedeu imedialamente a ascenso do Islo o do tribalismo beduino.; Na sociedade beduna a unidade social constituda pl grupo e S indivduo. Este s tem direitos e obrigaes enquanto membro do respectivo grupo. O grupo mantm-se unido exteriormente pela necessidade de autodefesa contra as dificuldades e perigos da vida no deserto, e internamente pelos laos de sangue de descendncia por liriha masculina, que constitui o vnculo social bsico. A subsistncia da tribo depende dos rebanhos e manadas e da pilhagem de aldeias vizinhas e de caravanas que se aventuram a atravessar a Arbia. atravs de uma espcie de cadeia de pilhagens recprocas que os produtos e gneros provenientes dos territrios colonizados penetram, por via das tribos mais prximas das fronteiras at s tribos do interior. Normalmente, a tribo no reconhece a propriedade privada, se bem que exera direitos colectivos sobre as pastagens, nascentes, etc. Encontramos testemunhos de que por vezes os prprios rebanhos constituam propriedade colectiva da tribo e de que apenas os bens mveis eram considerados propriedade individual.

    A organizao poltica da tribo era rudimentar. O chefe era o Sayyid ou Sheikh, chefe eleito, o qual raramente representava

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  • algo mais do que o primeiro entre os seus iguais. Mais do que ditar, ele segua a opinio tribal., No podia impor obrigaes nem infligir penalidades. Os direitos e as obrigaes cabiam s diversas famlias no seio da tribo, mas a nenhuma de fora. A funo do governo do Sheikh era mais de arbitragem do que de exerccio de autoridade. No detinha quaisquer poderes coercivos e os prprios conceitos de autoridade, soberania, penas pblicas, etc. eram rejeitados pela sociedade nmada rabe. O Sheikh era eleito pelos velhos da tribo, normalmente de entre os membros de uma nica famlia, funcionando como uma espcie de casa de Sheikhs, designada por Ahl al-bait, as pessoas da casa. Era apoiado por um conselho de ancios denominado Majlis, constitudo pelos chefes das famlias e pelos representantes dos cls existentes na tribo. O Majlis funcionava como porta-voz da opinio pblica. Parece ter sido reconhecida a distino entre determinados cls considerados aristocrticos e os restantes.

    A vida da tribo era regulada pelo direito consuetudinrio, a Sunna, ou prtica dos antepassados, cuja autoridade advinha da venerao pelo passado, e encontrava a sua nica sano na opinio pblica. O Majlis tribal era o seu smbolo formal e nico instrumento. A principal restrio social anarquia dominante consistia na vingana pelo sangue, impondo famlia de um homem assassinado o dever de exigir vingana do assassino ou de um dos membros da sua tribo.

    A religio dos nmadas era uma forma de pohdemonismo prxima do paganismo dos antigos semitas. As entidades por eles adoradas eram, na origem, os habitantes e seres tutelares de lugares especficos, que viviam nas rvors, nas fontes e especialmente nas pedras sagradas. Havia alguns deuses no sentido real, que transcendiam na sua autoridade as fronteiras dos cultos puramente tribais. Os trs mais importantes eram Manat, Uzza e Allat, este ltimo mencionado por Herdoto. Os trs estavam submetidos a uma divindade superior, normalmente designada por Allah. A religio tribal no possua um verdadeiro clero; os nmadas errantes transportavam consigo os seus deuses numa tenda vermelha, espcie de arca da ahana, que os acompanhava durante os combates. A sua religio no era individual, mas comu-

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  • nal. A f tribal concentrava-se volta do deus da tribo, geralmente simbolizado por urna pedra e, s vezes, por qualquer outro objecto. Ficava sob a custdia da casa do Sheikh, que desse modo conquistou um certo prestigio religioso. Deus e culto constituam a divisa da identidade tribal e a nica expresso ideolgica do sentido de unidade e de coeso da tribo. A submisso ao culto tribal era expressiva de lealdade poltica. A apostasia era equivalente a traio.

    O osis era a nica excepo a este modo de vida nmada. Aqui, pequenas comunidades sedentrias formavam uma organizao poltica rudimentar, e a famlia mais importante do osis estabelecia, em regra, uma espcie de regime de pequena realeza sobre cs seus habitantes. Por vezes, o soberano do osis reivindicava uma vaga suserania sobre as tribos vizinhas. Algumas vezes tambm, um dos osis conseguia obter o controlo de um osis vizinho, dando assim origem a um efmero imprio no deserto. S um deles, o de Kinda, merece que se lhe faa referncia uma vez que a sua ascenso e expanso prefiguram, de muitos modos, a posterior expanso do Islo. O reino de Kinda floresceu no Norte da Arbia, nos finais do sculo V e incios do sculo VI. Inicialmente poderoso, expandindo-se pelos territrios dos estados fronteirios, soobrou devido falta de fora noral e de coeso interna, e ainda por no ter conseguido penetrar as barreiras erigidas pelos imprios bizantino e persa, ento muito mais poderosos do que algumas dcadas mais tarde quando assistiram ao assalto avassalador do Islo. O reino de Kinda deixou uma marca indelvel na poesia rabe. No sculo VI as tribos rabes da pennsula possuam uma linguagem e uma tcnica poticas comuns, independentemente dos dialectos tribais, que as unia numa nica tradio e numa nica cultura de transmisso oral. Essa lngua e literatura comuns ficou a dever muito da sua fora e do seu impulso aos feitos e memria de Kinda, a primeira grande aventura colectiva das tribos do Centro e do Norte. Ao longo do sculo VI atingiu toda a sua maturidade clssica.

    Os nmadas foram entretanto estabelecendo, aqui e ali, cidades com um nvel de sociedade muito mais avanado. Destas a mais importante foi Meca, no Hijaz. Na cidade cada cl conti

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  • nuava a ter o seu Majlis e a sua pedra, mas a unio dos cls que constituam a cidade manifestava-se exteriormente atravs de um conjunto de pedras reunidas num santurio central com um smbolo de unidade em Meca, onde um conselho denominado Mda, formado pelos Majlis dos cls, veio substituir o simples Majlis tribal. O carcter condicional e consensual da autoridade do Sheikh foi enfraquecendo e, em certa medida, foi suplantado por um tipo de oligarquia das famlias dominantes.

    Apesar da regresso verificada neste perodo, a Arbia no se encontrava ainda totalmente isolada do mundo civilizado, mantendo-se numa zona de fronteira. Tanto a cultura persa como a cultura bizantina, nos seus aspectos material e moral, penetraram atravs de diferentes canais, muitos deles Ugados s rotas comerciais transarbicas. O estabelecimento de colnias estrangeiras na prpria pennsula revestiu-se de certa importncia. Numerosas colnias de Judeus e de Cristos fixaram-se em diversos pontos da Arbia, divulgando a cultura aramaica e helenista. O principal centro cristo do Sul da Arbia situava-se em Najran, onde se desenvolveu uma vida poUtica relativamente avanada. Por toda a parte se encontravam judeus e rabes judaizados, designadamente em Yathrib, que mais tarde veio a chamar-se Medina. Eram essencialmente agricultores e artesos. A sua origem incerta, e muitas teorias diferentes tm sido avanadas.

    Outra via de penetrao foi atravs dos estados fronteirios. A mesma necessidade que levara os Romanos a incentivar a ascenso dos reinos de Nabateia e de Palmira levou os Imprios Bizantino e Persa a permitir o desenvolvimento de estados rabes fronteirios junto s fronteiras da Arbia com a Sria e o Iraque. Os estados de Ghassan e de Hira eram ambos cristos, o primeiro monofisita, o segundo nestoriano. Ambos apresentavam traos da cultura aramaica e helenstica, que se infiltrou em parte para o interior. Os primeiros tempos da histria de Ghassan so obscuros, e o que chegou at ns foi exclusivamente atravs da tradio rabe. Para alguns a sua histria comea em 529 d. C. quando ao filarco Harith ibn Jabala (Aretas, em grego) foram concedidos novos ttulos por Justiniano aps a sua vitria sobre os vassalos rabes da Prsia. Os Gassnidas habitavam nas ime

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  • diaes do rio Yarmuk e eram reconhecidos, mais do que nomeados por Bizncio. Em vsperas da ascenso do Islo, os subsidios at ento pagos por Bizncio aos Gassnidas foram suspensos por Hercho como medida econmica aps as desgastantes Guerras Prsicas, razo pela qual os invasores muulmanos foram encontrar Ghassan num estado de grande revolta contra Bizncio. as linhas fronteirias da provincia do Iraque, sob o domnio persa, ficava o principado rabe de Hira, estado vassalo dos imperadores Sassnidas da Prsia, dependentes enquanto tinham fora e arrogantes quando enfraquecidos. A sua funo no Imprio Sassnida foi idntica dos Gassnidas no Imprio Bizantino. Nas Guerras Prsicas contra Bizncio, os rabes de Hira serviam normalmente como tropas auxiliares. O seu perodo de maior independncia foi durante o reinado de Al-Mundhir III, contemporneo e inimigo do gassnida Harith. Hira sempre foi considerada pela tradio rabe como parte essencial da comunidade rabe, em contacto directo com o resto da Arbia. Embora vassalo dos Persas, foi buscar a sua cultura essencialmente ao Ocidente, civilizao crist e helenstica da Sria. Inicialmente pag, converteu-se ao cristianismo nestoriano trazido pelos cativos. A dinastia Lakhm foi exterminada aps uma revolta dirigida pelo Imperador persa Chosroes II, que designou um governador persa que manobrava por trs de um governo fantoche rabe. Em 604 os Persas foram derrotados por tribos rabes recm-chegadas, que se fixaram na regio pondo assim fim ao estado de Hira e expanso persa no Nordeste da Arbia.

    O domnio estrangeiro directo constituiu uma outra fonte de influncia estrangeira restrita. O breve domnio exercido pela Abissnia e pela Prsia no lmen e nas provncias limtrofes, persas e bizantinas, do Norte da Arbia, foi um dos canais atravs do qual os rabes tomaram conhecimento das tcnicas militares mais avanadas da poca, para alm da infiltrao de outras influncias de natureza material e cultural.

    A resposta rabe a esses estmulos externos pode ser analisada de diversos modos. Numa perspectiva material, os rabes adquiriram armas, aprenderam a us-las e conheceram os princpios da organizao e da estratgia militar. Nas provncias fronteirias

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  • do Norte, as tropas auxiliares rabes eram subsidiadas e submetidas a urna preparao intensiva. Os txteis, a alimentao, o vinho e provavelmente tambm a arte da escrita chegaram at aos rabes do mesmo modo. Intelectualmente, as religies do Mdio Oriente, com os seus principios monotestas e concepes morais, trouxeram consigo alguns traos culturais e literrios, preparando o caminho para o xito que viria a ter a misso de Maom. Essa resposta, de um modo geral, circunscreve-se a determinadas reas, nomeadamente s populaes sedentrias do Sul da Arbia e do Hijaz.

    A despeito da importncia, em termos de extenso e de nmero, dos nmadas, foram os elementos fixos e, particularmente, os que viviam e trabalhavam nas rotas comerciais transarbicas quem efectivamente moldou a histria rabe. As sucessivas des- locaes dessas rotas determinaram as alteraes e as revolues na histria dos rabes. Na segunda metade do sculo VI d. C. ocorreu uma modificao cujo alcance se veio a revelar da maior importncia. A rota Eufrates-Golfo Prsico, at ento privilegiada pelo comrcio entre o Mediterrneo e o Extremo Oriente, comeou a deparar com dificuldades resultantes das lutas constantes entre os Imprios Bizantino e Persa, e com impedimentos relacionados com rivalidades polticas, barreiras tarifrias e uma desorganizao generahzada devida aos conflitos permanentes. O Egipto encontrava-se igualmente numa situao de desordem, no oferecendo j uma rota alternativa atravs do Vale do Nilo e do Mar Vermelho. Os mercadores voltaram-se uma vez mais para a rota difcil mas mais tranquila que partia da Sria, atravessando a Arbia ocidental at ao lmen, a cujos portos aportavam os barcos vindos da ndia. O prprio lmen havia sucumbido ao domnio estrangeiro. Os reinos de Palmira e de Nabateia, ao norte, cuja anterior prosperidade se ficara a dever a uma idntica combinao de factores, haviam desaparecido h muito. A oportunidade surgida foi aproveitada pela cidade de Meca.

    A histria de Meca obscura quanto aos primeiros tempos. Se, como foi sugerido, se identificar com a Macoraba do gegrafo grego Ptolomeu, foi fundada provavelmente como ponto de passagem na rota das especiarias do sul para o norte da Arbia.

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  • Encontra-se situada no cruzamento das linhas de comunicao para sul para o lmen, para norte para o Mediterrneo, para oriente para o Golfo Prsico e para ocidente para o porto de Jeda no Mar Vermelho, via martima para frica. Durante algum tempo antes da ascenso do Islo, Meca esteve ocupada pela tribo de Quraish no Norte da Arbia, transformando-se rapidamente numa importante comunidade comercial. Os mercadores de Quraish tinham acordos comerciais com as autoridades fronteirias de Bizncio, da Abissnia e da Prsia e desenvolviam um comrcio intensivo. Duas vezes por ano enviavam grandes caravanas para norte e para sul. Essas caravanas tinham a natureza de empreendimentos cooperativos, organizados por grupos de comerciantes associados de Meca. Noutras pocas do ano eram enviadas caravanas mais pequenas, e existem testemunhos da existncia de comrcio martimo com frica. Nos arredores de Meca realizavam-se diversas feiras, a mais importante das quais era a de Ukaz. Integravam-se na vida econmica de Meca, contribuindo para aumentar a influncia e o prestgio da cidade entre os nmadas vizinhos. A populao de Meca era diversificada. O elemento central e dominante, designado por Quraish do Interior, era constitudo por uma espcie de aristocracia mercantil de caravaneiros e homens de negcios, os empresrios e verdadeiros senhores do comrcio transitrio. Vinham a seguir os chamados Quraish do Exterior, uma populao de pequenos comerciantes estabelecidos mais recentemente e de condio mais humilde, e finalmente um proletariado de estrangeiros e de beduinos. No exterior de Meca encontravam-se os rabes de Quraish, as tribos bedunas dependentes.

    O governo da cidade de Meca foi descrito por Lammens como uma repblica mercantil dirigida por um sindicato de homens de negcios, ricos e prsperos. No entanto, esta afirmao no deve ser entendida no sentido de instituies republicanas organizadas segundo o modelo ocidental. Quraish acabava de emergir do nomadismo e o seu ideal continuava a ser o ideal nmada o mximo de liberdade de aco e o mnimo de autoridade pblica. A autoridade era exercida pelo Mala, o correspondente urbano do Majlis tribal, constitudo por homens notveis

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  • e chefes de famha eleitos em funo da sua riqueza e posio social. A sua autoridade era meramente moral e persuasiva, assentando na solidariedade de classe dos mercadores a verdadeira base de unidade. Essa solidariedade esteve bem patente na luta movida contra Maom. A experincia comercial e a mentalidade da burguesia de Meca criou-lhes capacidade de cooperao, de organizao e de autocontrole, raros entre os rabes e de importncia primordial na administrao do vasto imprio que viriam a subjugar.

    Foi neste contexto social que surgiu Maom, o Profeta do Islo.

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  • MAOM E A ORGEM DO ISLO

    II

    E foi assim que ns te revelmos um Alcoro rabe, para que advirtas Meca, a Me das Cidades, e os que esto sua volta; para que os advirtas do Dia do Julgamento...

    (Alcoro, xlii, 5)

    Num ensaio sobre Maom e as origens do Islo, Ernest Renn observa que, diferentemente de outras religies envoltas em mistrio nas suas origens, o Islo surgiu sob a luz crua da histria. As suas razes no vo alm da superfcie, a vida do seu fundador -nos to familiar quanto a dos Reformadores do sculo XVI. Ao fazer esta observao, Renan referia-se ao abundante material biogrfico fornecido pelo Sira, biografia muulmana tradicional do Profeta. Quando os problemas decorrentes da govemao de um vasto imprio colocaram os rabes perante toda a espcie de dificuldades que nunca se haviam posto durante a vida do Profeta, foi estabelecido o princpio de que todo o comportamento se deveria pautar no s pelo prprio Alcoro, a palavra de Deus, mas tambm pela prtica e pela pregao do Profeta ao longo da sua vTd. Essa prtica e pregao foi preservada sob a forma de Tradies (em rabe, Hadith), em que cada Hadith confirmado por uma srie de pessoas do seguinte modo: Eu ouvi de... que ouviu de... que ouviu de... que ouviu o Profeta dizer. No espao de algumas geraes aps a morte do Profeta, uma imensa colec- o de Hadith foi tomando forma, abrangendo todos os aspectos da sua vida e pensamento.

    primeira vista, o Hadith, pela sua cuidadosa enunciao de testemunhos autorizados, remetendo sempre para uma testemunha ocular, afigurar-se-ia uma fonte digna de todo o crdito. No entanto, surgem algumas dificuldades. A compilao e registo

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  • dos Hadith s teve lugar muitas geraes aps a morte do Profeta. Durante todo esse perodo, as oportunidades bem como as razes justificativas de eventuais falsificaes foram praticamente ilimitadas. Em primeiro lugar, o simples decurso de tempo e a falibilidade da memria humana so s por si suficientes para lanar a dvida quanto autenticidade do testemunho transmitido oralmente ao longo de mais de um sculo. Mas houve tambm motivos para distores deliberadas. O perodo que se seguiu morte do Profeta foi de intenso desenvolvimento da comunidade islmica. Houve toda uma srie de questes e de conceitos novos, de ordem social, poltica, legal e religiosa, que penetraram no Islo trazidos pelos povos conquistados, e muitas das ideias e solues encontradas foram transpostas para o passado e postas na boca do Profeta atravs de Hadith forjados. Esse perodo foi tambm de violentos conflitos internos entre indivduos, famlias, faces e seitas no seio da comunidade islmica. E todos eles no encontraram melhor forma para defender a respectiva causa seno produzindo Hadith atribudos ao Profeta, em apoio do ponto de vista desejado. Vejamos apenas um exemplo: a posio e a importncia relativas das famlias de Meca durante a vida do Profeta so distorcidas de modo quase irreconhecvel na literatura Hadith como conseqncia das rivalidades existentes entre os seus descendentes na poca em que foi feito o registo dessa literatura.

    Os prprios Muulmanos se aperceberam muito cedo de que muitos dos seus Hadith eram esprios, o que os levou a incentivar a crtica cientfica no sentido de fazer a distino entre os Hadith genunos e os Hadith forjados, independentemente da sua motivao, piedosa ou no. A crtica tradicional assentava exclusivamente no exame da cadeia de testemunhos rejeitando alguns por alegado preconceito na exposio dos seus pontos de vista, outros porque nunca poderiam ter tido a oportunidade de acesso s informaes transmitidas. Alguns crticos modernos detectaram algumas falhas importantes neste tipo de abordagem. Em primeiro lugar, fcil forjar a ttulo de tradio uma cadeia de testemunhos autorizados. Em segundo lugar, a rejeio de determinados testemunhos com base num critrio opinativo representa

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  • muito simplesmente a vitria de uma opinio individual e a sua aceitao como padro de avaliao de outras. A crtica moderna prefere submeter o texto das tradies a um exame histrico-psi- colgico. A anlise minuciosa e, por vezes, mesmo capciosa de Caetani e de Lammens veio mostrar que a literatura Hadith, na sua globalidade, de que faz parte a biografia do Profeta, deve ser tratada com cautela e com reservas, e cada um dos Hadiths examinado e ponderado antes de ser aceite como autntico. Mais recentemente, as investigaes de Schacht demonstraram que um grande nmero de tradies d contedo aparentemente histrico tm, efectivamente, um propsito legal ou doutrinai, sendo, por conseguinte, historicamente suspeitas.

    A fonte geralmente aceite no tocante vida do Profeta o prprio Alcoro, compilao da pregao feita por Maom ao povo de Meca e de Medina, como revelao directa da palavra de Deus. Recorrendo ao Alcoro e aos poucos testemunhos obtidos de outras fontes, torna-se possvel reconstituir a biografia de Maom que, muito embora no seja de modo algum to pormenorizada quanto a da Tradio e dos primeiros autores europeus que a seguiram, , no obstante, suficiente para revelar a importncia fundamental de que se revestiu a sua carreira.

    Pouco se sabe dos antecedentes e dos primeiros anos de vida de Maom, e mesmo esse pouco tem vindo a ser reduzido medida que a cultura ocidental, progressivamente, vai pondo em causa, um aps outro, os dados da tradio muulmana. Segundo parece, o Profeta ter nascido em Meca, entre 570 e 580 d. C., na famlia do Banu Hashim, uma famlia respeitvel de Quraish, se bem que no pertencente oligarquia dominante. Maom, rfo, foi criado provavelmente pelo av em circunstncias difceis, de pobreza. Adquiriu riqueza e posio social ao desposar Khadija, viva de um rico comerciante, mais velha do que ele alguns anos. Estes acontecimentos so narrados no Alcoro: No te encontrou rfo e no te deu um lar, e encontrou-te errante e guiou-te, e encontrou-te necessitado e enriqueceu-te? (xciii, 6-8). provvel que se tenha dedicado aos negcios, mas no certo. Meca era uma cidade comercial, e o recurso freqente a imagens e a

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  • metforas de cariz comercial no Alcoro sugere alguma experincia de negcios. As tradies que se referem a viagens de negcios a territrios vizinhos exigem certas reservas. Na pregao de Maom h poucos indcios do seu conhecimento desses pases. O problema crucial do seu enquadramento espiritual suscita igualmente muitas dvidas. evidente que esteve sujeito a influncias judaicas e crists. Atestam-no os prprios conceitos de monotesmo e de revelao assim como os mltiplos elementos bblicos contidos no Alcoro. No entanto, Maom no leu a Bblia. A tradio muulmana diz-nos que era iletrado. Pode ser ou no verdade, mas as suas verses de episdios bblicos sugerem que os seus conhecimentos da Bblia foram adquiridos por via indirecta, provavelmente atravs de comerciantes e de viajantes judeus e cristos, cujas informaes sofreram influncias um tanto ousadas e apcrifas. A tradio fala de um grupo denominado Hanifes, pagos de Meca descontentes com a idolatria dominante do seu povo e que aspiravam a uma forma mais pura de religio, embora no estivessem ainda preparados para aceitar nem o Judasmo nem o Cristianismo. Talvez seja entre eles que se devam procurar as origens espirituais de Maom.

    Maom ouviu pela primeira vez o Chamamento quando estava prestes a atingir os quarenta anos. Se foi o clmax de uma longa evoluo ou uma sbita exploso, como o sugerem o Alcoro e a tradio, no se sabe ao certo, se bem que a ltima hiptese se afigure mais provvel. Os habitantes de Meca consideraram, de princpio, a sua pregao inofensiva e no lhe moveram qualquer oposio. Nessa fase, Maom no tinha possivelmente a inteno de fundar uma nova religio, procurando to somente dar a conhecer aos rabes uma revelao em lngua rabe, semelhana do que acontecera antes com outros povos nas suas prprias lnguas. Os captulos do Alcoro relativos a Meca so essencialmente religiosos e ocupam-se fundamentalmente de questes tais como a unidade de Deus, a iniqidade do esprito idlatra e a iminncia do julgamento divino. Os apoios que obteve inicialmente foram escassos, e encontrou-os sobretudo entre as classes mais humildes. Entre os primeiros conversos encontravam-se sua mulher Khadija e seu primo Ali, que viria a ser o quarto Califa.

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  • medida que Maom se foi tornando mais agressivo e comeou a atacar abertamente a religio existente em Meca, a oposio movida contra si e os seus adeptos pelos elementos governantes foi endurecendo. Um autor do sculo XIX tentou apresentar a luta travada entre a comunidade muulmana recm-surgida e a oligarquia de Meca como um conflito de classes em que Maom representava os mais desfavorecidos e a sua revolta contra a oligarquia burguesa instalada no poder. Muito embora esta perspectiva so- breleve um aspecto particular da pregao de Maom em detrimento dos restantes, contm muito de verdade, na medida em que ele foi buscar o seu apoio inicial junto das classes^mais pobres e a oposio desencadeada por Meca teve na origem razes de ordem essencialmente econmica. A sua motivao assenta em duas ordens de factores. A primeira e mais importante tem a ver com o receio de que a abolio da antiga religio e do estatuto de que gozava o santurio de Meca a privassem da sua situao nica e privilegiada como centro no s de peregrinao, mas tambm de negcios. A segunda prende-se com a contestao das pretenses de algum que no pertencia a uma das famlias dominantes. Ainda que econmica nas suas motivaes, a oposio manifestou-se mais no campo poltico do que no religioso, acabando por conduzir Maom aco poltica. O ltimo perodo da sua permanncia em Meca foi assinalado pela perseguio movida aos Muulmanos que, embora menos violenta do que a tradio sugere, foi, no entanto, suficientemente importante para dar origem retirada de um grupo de conversos para a Abissnia. Mau grado as perseguies, o Islo, assim se designava a aceitao da f de Maom, continuou a atrair novos discpulos. Entre os mais notveis destacam-se Abu Bakr, Umar, membro da famlia de Banu Adi, cuja rapidez de deciso e de aco foi de inestimvel valor para a comunidade em luta, e Uthman, membro da casa dos Oma- das, uma das famlias mais proeminentes de Meca e o nico convertido importante de entre a classe dirigente.

    O facto de no conseguir um progresso significativo contra a oposio de Meca levou Maom a tentar o xito noutras paragens. Aps uma tentativa abortada na cidade de Taif, aceitou o convite do povo de Medina e para a se transferiu.

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  • A cidade de Medina, a cerca de 280 milhas a norte de Meca, tinha sido fundada por tribos judaicas vindas do norte, nomeadamente a Banu Nadir e a Banu Quraiza. A relativa prosperidade da cidade atraiu alguns rabes pagaos, que comearam por ser clientes dos Judeus e acabaram por se Ibes sobrepor. Medina ou, como era designada antes do Islo, Yathrib no possua uma forma de governo estvel. A cidade encontrava-se dividida entre as lutas das tribos rabes rivais de Aus e de Khazraj, mantendo os Judeus um incmodo equilbrio de poderes. Estes, ocupados principalmente na agricultura e nos ofcios manuais, eram econmica e culturalmente superiores aos rabes, pelo que no eram vistos com bons olhos. Iremos ver que no preciso momento em que os rabes conseguiram unidade devido interveno de Maom, atacaram e acabaram por eliminar os Judeus.

    A migrao de Maom de Meca para Medina a Hijra segundo a designao rabe constituiu um ponto de viragem e foi adoptada, correctamente, pelas geraes posteriores como ponto de partida do calendrio muulmano. Quraish no esboou qualquer tentativa sria para o impedir, e Maom partiu livremente. Em vez de ordenar, convidou os seus adeptos a partirem e ele prprio permaneceu em Meca at ao fim, em parte certamente para no chegar a Medina como um proscrito, s e perseguido, mas como chefe de um grupo bem definido, com um estatuto preciso. O povo de Medina tinha convidado Maom no tanto por ser um homem de Deus, mas por se tratar de um homem possuidor de um esprito e de uma fora invulgares, capaz de arbitrar e resolver as suas dissidncias internas. O Islo foi-lhes til, inicialmente, no tanto como uma nova religio mas como um sistema que lhes oferecia segurana e disciplina. Ao contrrio da populao de Meca, no tinham qualquer atraco pelo paganismo e estavam prontos a aceitar, sob determinadas condies, o aspecto religioso do Islo, desde que este fosse ao encontro das suas necessidades polticas e sociais. A total converso religiosa de Medina s teve lugar muito mais tarde. Houve desde o incio divergncia de opinies entre o povo de Medina sobre se se deveria recorrer ou no a esse rbitro estrangeiro. Os que apoiaram Maom so designados pela Tradio por Ansar, aqueles

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  • qu ajudam, e aos que se lhe opunham foi dada a designao desdenhosa de Mimafiqun, os hipcritas. O carcter religioso desta divergncia de opinies no passa de uma projeco no passado feita por historiadores posteriores.

    A Hgira foi precedida de negociaes demoradas e tev lugar, por fim, no ano 622 d. C. a primeira data de que h a certeza na histria islmica. Ela marca viragem na carreira de Maom e uma revoluo no Islo. Em Meca, Maom era um simples cidado, em Medina, o magistrado supremo de uma comunidade. Em Meca era forado a submeter-se de forma mais ou menos passiva ordem existente, em Medina era ele que governava. Em Meca pregava o Islo, em Medina podia p-lo em prtica. Essa mudana veio afectar, necessariamente, o carcter, as actividades e as doutrinas de Maom e do prprio Islo; os registos existentes passam da lenda para a histria.

    O governo de Maom em Medina deparou, partida, com graves dificuldades. Os seus adeptos realmente convictos eram pouco numerosos, constitudos pelos Muhajirun, que o haviam acompanhado desde Meca, e pelos Ansar de Medina, que tiveram de fazer face oposio activa dos hipcritas, a qual, ainda que essencialmente poltica, era, no obstante, de recear at sua reconciliao com a nova f, por fora das vantagens tangveis que veio a trazer-lhes mais tarde. Maom esperava encontrar um acolhimento amistoso, entre os Judeus, cuja f e escrituras, assim pensava, lhes permitiria receber as reivindicaes do Profeta rabe com maior simpatia e compreenso. No intuito de os tranquilizar, adoptou algumas prticas judaicas, incluindo o jejum de Kipur e a orao voltada para Jerusalm. Os Judeus, porm, rejeitaram, com desdm, as pretenses do Profeta Gentlico e opuseram-se-Ihe precisamente a nvel rehgioso, aquele a que era mais sensvel. Essa oposio falhou como conseqncia da sua diviso interna e impopularidade entre a populao de Medina, de um modo geral. Maom, ao compreender que no podia contar com qualquer espcie de apoio desse quadrante, abandonou mais tarde as prticas judaicas que adoptara, substituiu Jerusalm por Meca na orientao das suas preces e conferiu sua doutrina um carcter estritamente rabe e nacional.

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  • Desde a sua chegada a Medina que detinha poderes polticos suficientes para se proteger e proteger os seus discpulos contra qualquer tipo de oposio violenta, como a dos Quraish. Ao tomar conscincia de que urna doutrina religiosa seu verdadeiro objectivo necessitava do apoio de um corpo poltico, passou a agir politicamente e atravs de urna diplomacia hbil converteu a sua fora poltica numa autoridade religiosa. Um historiador rabe fez com que chegasse at ns um documento, de autenticidade indiscutvel na sua maior parte, que nos apresenta a constituio embrionria da comunidade de Medina, nos seu primeiros tempos. Segundo as palavras do cronista, Maom redigiu e divulgou entre os Muhajirun e os Ansar um documento em que firmava um acordo com os Judeus e celebrava um tratado confirmando o livre exerccio da sua religio e a posse dos seus bens, impondo e reconhecendo determinadas condies. O documento no constitui uma conveno no sentido europeu da palavra, mas antes uma proclamao unilateral. Os seus objectivos eram meramente prticos e administrativos, o que revela o carcter prudente e cauteloso do Profeta. Regulava as relaes entre os imigrantes de Meca e as tribos de Medina, e entre estes e os Judeus. A comunidade estabelecida, a Umma, constituiu uma evoluo da cidade pr-islmica, com algumas alteraes vitais, e marcou o primeiro passo na via da posterior autocracia islmica. Confirmava a organizao e costumes tribais, mantendo para cada tribo as respectivas obrigaes e privilgios relativamente aos estrangeiros. Porm, no seio da Umma, todos esses direitos vieram a ser abandonados e todas as disputas submetidas deciso de Maom. O Quraish constituiu a nica excepo. Nenhum dos sectores estava autorizado a celebrar a paz com um rgo do exterior, e os transgressores em relao Umma eram proscritos.

    A Umma veio completar mais do que suplantar os costumes sociais da Arbia pr-islmica; todos os seus conceitos se inseriam numa estrutura de tribahsmo. M ^teve as prticas pr-isl- micas em matria de bens, de casamento e de relaes entre membros da mesma tribo. interessante assinalar que esta primeira constituio do Profeta rabe contemplava quase exclu

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  • sivamente as relaes civis e polticas dos cidados entre si e com 0 exterior.

    No obstante, ocorreram alteraes importantes, a primeira das quais se traduziu na substituio da linhagem pela f como vnculo social. J nas tribos pr-islmicas deus e o culto representavam a divisa da nacionalidade e a apostasia a manifestao exterior de traio. Essa mudana traduziu-se, efectivamente, na supresso, no seio da Umma, dos feudos de famlias e na consecuo de uma maior unidade interna atravs de arbitragem. De importncia comparvel foi a nova concepo de autoridade. O Sheikh da Umma, ou seja, o prprio Maom, exercia as suas funes, isto para os verdadeiros conversos, no por fora de uma autoridade condicional e consensual, no espontaneamente reconhecida pela tribo e sempre revogvel, mas por uma absoluta prerrogativa religiosa. A fonte de autoridade foi transferida da opinio pblica para Deus, que a conferiu a Maom como Seu Apstolo eleito.

    A Umma tinha, portanto, um duplo carcter. Por um lado, era um organismo poltico, uma espcie de tribo nova de que Maom era o Sheikh e os Muulmanos e os outros os seus membros. Todavia, possua simultaneamente um significado essencialmente religioso. Constitua uma comunidade religiosa, uma teocracia. Os objectivos polticos e rehgiosos nunca se apresentavam realmente dissociados, nem na mente de Maom, nem da dos seus contemporneos. Tal duahsmo inerente sociedade islmica, de que a Umma de Maom o grmen. Naquele momento e naquele lugar era inevitvel que assim fosse. Na comunidade rabe primitiva, a religio tinha de ser expressa e organizada politicamente, j que nenhuma outra forma era vivel. S a religio podia cimentar o estado entre os rabes, para quem o conceito de autoridade poltica era totalmente estranho.

    Os imigrantes, economicamente dbeis e no desejando criar uma total dependncia da populao de Medina, voltaram-se para a nica profisso que lhes restava, a das armas. Muitos autores europeus manifestaram a sua justificada indignao perante o espectculo de um Apstolo de Deus guiando os fiis em incurses predatrias contra as caravanas de mercadores; porm, aten

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  • dendo aos condicionalismos da poca e aos conceitos morais dos rabes, a pilhagem era uma ocupao natural e legtima, e a confiana depositada no Profeta nunca foi posta em causa pelo facto de ter optado por ela. As expedies contra o comrcio de Meca serviam um duplo propsito: por um lado, ajudavam a manter o bloqueio cidade, nica forma de a submeter nova f. Por outro lado, iam aumentando o poder, a riqueza e o prestgio da Umma, em Medina. Em Maro de 624, trezentos Muulmanos sob o comando de Maom surpreenderam uma caravana de Meca em Badr. Os assaltantes fizeram uma imensa pilhagem e os seus feitos so celebrados no Alcoro como manifestao da indulgncia divina. A batalha de Badr ajudou a estabilizar a comunidade e marcou o incio de um novo tipo de revelao. A partir de ento, as revelaes de Medina so muito diferentes das de Meca, referindo-se aos problemas prticos do governo, distribuio do produto das pilhagens e questes semelhantes. A vitria tomou possvel uma reaco contra os Judeus e, por fim, tambm contra os Cristos, agora acusados de falsificarem as suas escrituras de modo a ocultar as profecias relativas ao advento de Maom. O prprio Islo comeou a transformar-se. Maom pregava agora, claramente, uma rehgio nova, de que ele era o Selo dos Profetas. Essa nova religio era mais estritamente rabe, e com a adopo da Caaba de Meca como local de peregrinao, a conquista da cidade tornou-se um dever religioso.

    Em Maro de 625, os Quraish, reagindo ao perigo crescente das incurses de Medina, enviaram uma expedio contra Maom e derrotaram os Muulmanos nas encostas de Uhud. No se sentiram com foras para prosseguir at Medina e regressaram a Meca. A comunidade muuhnana no havia sofrido nenhum revs grave e, tal como depois da batalha de Badr, Maom atacou e expulsou mais outra tribo judaica. Os Quraish, porm, ainda no tinham abandonado a luta. Na Primavera de 627, um exrcito de cerca de dez mil homens avanou para Medina e cercou a cidade. O simples expediente de escavarem um fosso a toda a volta sugesto de um convertido persa, de acordo com a tradio foi o suficiente para vencerem o cerco, e aps quarenta

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  • dias o exrcito de Quraish retirou-se. Esta vitria foi seguida pelo exterminio da tribo judaica de Quraiza.

    Nos comeos da Primavera de 628, Maom sentiu-se suficientemente forte para tentar um ataque a Meca. No caminho, porm, tomou-se claro que a tentativa era prematura e a expedio transformou-se numa peregrinao pacfica. Os chefes muulmanos rexmiram-se com negociadores de Meca num local chamado Hudaibiya, as fronteiras do territrio sagrado em redor de Meca, no qual, segundo o uso pr-islmico, no eram permitidas quaisquer hostilidades durante determinadas pocas do ano. As negociaes terminaram com umas trguas de dez anos, e os Muulmanos foram autorizados a efectuar a peregrinao a Meca no ano seguinte e a permanecer ai durante trs dias.

    Houve alguma resistncia entre os Muulmanos mais entusiastas perante este resultado aparentemente inconcludente, que se procurou superar com o ataque ao osis judaico de Khaibar. A vitria muulmana em Khaibar assinalou o primeiro contacto entre o Estado muulmano e um povo no-muulmano dominado, constituindo a base de ulteriores relaes do mesmo tipo. Os Judeus conservaram as suas terras, mas pagavam um tributo de 50 por cento. No ano imediato, Maom e duas centenas dos seus adeptos dirigiram-se em peregrinao a Meca, onde o prestigio crescente e a fora da nova doutrina lhes trouxe novos convertidos. Entre eles contava-se Amr ibn al-As e Khalid ibn al-Walid, que viriam a desempenhar um importantssimo papel nas ltimas vitrias islmicas. Finalmente, em Janeiro de 630, o assassinato de um muulmano por um cidado de Meca, segundo parece por uma divergncia de opinies estritamente pessoal, serviu de casus belli ao ataque decisivo e conquista de Meca.

    Com a tomada de Meca e a submisso de Quraish Umma do Islo, a misso do Profeta encontrava-se virtualmente concluda, e durante o ano de vida que Ih restou parece no se ter empenhado em nenhum grande empreendiment. O trao mais significativo do ltimo ano foi a reaco das tribos nmadas nova comunidade de Medina. Nas suas relaes com as diferentes tribos, Maom deparou com situaes que lhe eram totalmente desfavo

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  • rveis. O sistema que lhes propunha era-lhes estranho sob todos os pontos de vista, exigindo a renncia ao seu imenso amor pela independncia individual e a uma parte importante do seu cdigo de virtudes e de tradies ancestrais. um tributo que se deve arte poltica do Profeta o facto de ter sabido compreender e superar, em grande medida, todas essas dificuldades. O seu verdadeiro e ltimo propsito, o da converso, nunca foi realmente alcanado, e mesmo hoje o Islo dos Beduinos olhado com algumas reservas pelos que esto autorizados a julg-lo. O objectivo imediato e aparente da sua diplomacia, aps a Hgira, foi o da expanso da sua prpria influncia em detrimento da dos Quraish. Conseguiu-o evitando atritos com determinados preconceitos tribais, concentrando-se nas questes militares e polticas nas suas negociaes colectivas com as tribos, e remetendo a religio para a converso individual. Os termos dos acordos de Maom com as tribos eram sempre os mesmos a tribo concordava em reconhecer a suserania de Medina, abstinha-se de atacar os Muulmanos e seus aliados e aceitava o pagamento do Zakat, tributo religioso muulmano. Nalguns casos aceitavam mesmo receber emissrios de Medina. Com as tribos mais afastadas, Maom negociou numa base de igualdade, mantendo aquelas uma neutralidade benevolente e expectante.

    Aps a conquista de Meca, iniciou-se um movimento pr- -muulmano de natureza puramente poltica entre as tribos mais distantes. Constituiu uma demonstrao da fora e do prestgio da Umma e revestiu a forma de uma srie de embaixadas espontneas enviadas a Medina, conhecidas na histria muulmana por Wufud. Essas embaixadas ofereciam submisso poltica, entendida como tal por Maom, que aproveitava a oportunidade para fazer propaganda religiosa. O contrato que firmavam era um contrato poltico e pessoal com o governador de Medina, o qual, de acordo com o uso rabe, cessava automaticamente por sua morte. Entre as tribos ainda mais afastadas, sujeitas s influncias culturais, da Sria e da Prsia e demasiado distantes para sentirem a fora da autoridade muulmana, existiam minorias de influncia religiosa. Foi por iniciativa dessas minorias, mais do que por iniciativa das tribos, que a Wufud teve lugar aqui.

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  • A 8 de Junho de 632, o Profeta morreu aps uma breve doena. Tinha reahzado uma vasta obra. Aos povos pagos do ocidente da Arbia tinha trazido uma rehgio nova que, por fora do seu monotesmo e doutrinas ticas, se situava a um nvel incomparavelmente superior ao do paganismo que viera substituir. Dotou essa religio de um livro de revelaes q